UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA Africanias, Imagens e Linguagens 29 a 31 de agosto de 2012 Salvador – BA PAI-NOSSO!? PRESENTE! Uma reflexão sobre a prática religiosa católica nas escolas municipais de Salvador Amanaiara Conceição de Santana Miranda1 RESUMO. Na prática de acolhimento de alunos/as, em muitas escolas publicas municipais SSA-BA, reza-se o Pai-Nosso diariamente. Este artigo indaga se a escola brasileira é laica, em virtude das práticas pedagógicas que são desenvolvidas no cotidiano escolar. Práticas essas que algumas vezes ferem os princípios de valores religiosos dos indivíduos que dela fazem parte, implicando na construção da identidade, principalmente das crianças e adolescentes que estão em processo de desenvolvimento. Atrela-se às reflexões posicionamentos da Lei 10639/03, de Mignolo (2003), Foucault (2006), Silva (2011), para possibilitar reflexão. A tentativa será de trazer um breve relato para que o/a leitor/a amplie suas discussões ou indagações na mesma ou em diferentes fontes bibliográficas apresentadas durante o desenvolvimento do texto. PALAVRAS-CHAVE: Lei 10639/03. Descolonização do saber. Ideologia eurocêntrica. Currículo Escolar. Atuando como professora há 14 anos na rede municipal de ensino, na cidade do Salvador- BA, onde pelo fato de ser pesquisadora sobre questões ligadas à etnicidade, gênero e sexualidade sempre fui convidada por colegas: diretores/as, professoras/es e coordenadoras/es para fazer oficinas e para realizar palestras. Devido também ter atuado no setor de educação durante quase dez anos (período de 2002-2012), no Centro de Referência Especializado em Assistência Social - 1 Pedagoga, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo – PPGNEIM/UFBA. Pesquisadora do Nugsex Diadorim/UNEB e NGEALC/UNEB. Professora e Coordenadora Pedagógica da Secretaria Municipal de Educação Cultura esporte e Lazer – SECULT. [email protected] 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA Africanias, Imagens e Linguagens 29 a 31 de agosto de 2012 Salvador – BA CREAS, onde fazia o trabalho de prevenção contra a violência, pude ter acesso a mais de 100 unidades de ensino da rede municipal de várias CRE – Coordenadoria Regional de Ensino. Nestas idas às escolas para realizar os referidos trabalhos, comecei a observar que mesmo depois da promulgação da Lei 10.639/03, as escolas, mesmo aquelas que se consideravam implementando a referida Lei, continuavam fazendo (rezando) o Pai-Nosso em suas acolhidas dos alunos do primeiro segmento do Ensino Fundamental e Educação Infantil, principalmente nos turnos matutino e vespertino. A observação me fazia refletir e me perguntar: a escola brasileira é laica? O ponto auge da reflexão sobre o fato citado se deu quando em 2006 chegaram às escolas municipais caixas e mais caixas ofertadas pela Igreja Batista Brasileira. Nas caixas continham exemplares do evangelho a serem distribuídos para alunas/os e professoras/es. A pergunta que não saia da minha cabeça: como depois de Salvador ser a segunda capital no Brasil a implementar a Lei 10.639/03, a SECULT- Secretaria de Educação Cultura Esporte e Lazer autoriza a uma vertente religiosa com bases no cristianismo a distribuir seu material instrucional de convencimento da fé. Neste momento surge a minha mente o que segundo Mignolo (2003) chama de descolonização do saber. Teríamos nós que fomos colonizados por mais de três centenários por europeus que afirmaram sua cultura como superior em detrimento de outras, já ter descolonizado as mentes? Mignolo (2003), diz que a descolonização não é um projeto de libertação das colonias com vistas à formação do Estado-nação independente, mas é um processo de descolonização epistêmica2 e de socialização do conhecimento. Qual conhecimento será socializado numa sociedade que foi forjada por uma democracia racial, de harmonia entre povos com culturas completamente diferentes, mas que a cultura 2 Mignolo, (2003, p. 668) afirma que a “diversidade epistêmica” será horizonte para o qual convergem o “paradigma de transição” (ou um paradigma de conhecimento prudente para a vida descente), proposto por Santos e “um outro paradigma” que está a surgir da perspectiva de conhecimentos e racionalidades subalternos. 2 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA Africanias, Imagens e Linguagens 29 a 31 de agosto de 2012 Salvador – BA européia se acentua ao centro como verdadeira a todas as instituições e estruturas esquematizadas no Brasil?. Mesmo se pensando no terceiro milênio a colonialidade não é relíquia do passado, ela está presente no nosso cotidiano. Eu utilizarei mais uma vez o conceito de Mignolo (op.cit), para dizer sobre colonialidade, pois ele tanto é: colonialidade do saber e como colonialidade de poder. As duas categorias foram introduzidas na língua castelhana da América Latina com vista a dar conta de diferentes aspectos do diferencial epistêmico colonial que, desde o século XVI, preside a crença na superioridade da ciência e do saber ocidentais – e na duvidosa racionalidade do conhecimento em línguas que não sejam o grego e o latim ou as suas versões vernáculas (italiano, espanhol, português, francês, alemão e inglês), isto é, as línguas vernáculas coloniais da modernidade ocidental. A ‘ciência’ (conhecimento e sabedoria) não pode ser separada da língua, não são meros fenômenos ‘culturais’ em que os povos encontram a sua ‘identidade’; são também o lugar em que o conhecimento está inscrito. (MIGNOLO, 2006, p. 668-669) Pensando na ideia do autor citado acima, podemos refletir por que o Pai-nosso está presente no ambiente escolar: O Pai-nosso se faz presente porque é uma prática religiosa de uma ideologia eurocêntrica que até os dias atuais tem enorme função no currículo escolar brasileiro. A representação do europeu no ambiente escolar é de beleza e heroísmo. Assim esta representação do corpo do outro (colonizador) produz de forma visceral na constituição da nossa identidade social positivamente ou negativamente. A escola com seus currículos, metodologias de ensino, teorias, materiais didáticos, processos de avaliação e normas são lugares das diferenças de gênero, sexualidade, etnia/raça e classe. Nesse sentido, Tomaz Tadeu da Silva (2011) relata que o poder está escrito no currículo, através da seleção dos conhecimentos, revelando divisões sociais e legitimando alguns grupos em detrimentos de outros. Ele ainda argumenta que as narrativas contidas no currículo, de maneira explicíta ou não, coorporificam noções sobre o conhecimento, como a sociedade se organiza em diferentes grupos sociais, assim estabelece qual o conhecimento que pode ser considerado legítimo, quais as formas de se conhecer que são válidas, dentre outras. As narrativas que fazem parte do currículo traduzem subliminarmente noções sobre quais os grupos sociais legitimados ou excluídos de qualquer representação. 3 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA Africanias, Imagens e Linguagens 29 a 31 de agosto de 2012 Salvador – BA A escola, portanto, é constituída partindo de diferentes discursos: discursos que regulam, normalizam e instauram saberes, produzindo “verdades” e que estão impregnados de valores sociais. E ao falarmos em “verdades” e como ela atua incondicionalmente na vida dos sujeitos principalmente nos seres em desenvolvimento como são as crianças e os jovens que são atendidos na rede municipal de ensino, devemos refletir sobre práticas de si. Para Michel Foucault, (2006) práticas de si é uma expressão que designa o fato de que as ações do sujeito são percebidas por ele mesmo como criação sua, quando na “verdade” essas condutas são determinadas conforme os valores e as regras estabelecidas socialmente. Em toda prática ou atitude há um saber e o corpo é que servirá como base para os saberes sobrevirem. É um saber que ao ser tomado como verdade torna-se parte do corpo, mas que só ganha vida no campo da experiência, quando é tomado como “verdade” e ao ser efetuado como prática própria, como prática de si. Na prática de rezar o Pai-nosso na acolhida ou em qualquer outro momento da rotina escolar fere a liberdade de consciência da criança, antes mesmo de ferir a liberdade de crença. Assim, desde a infância, as crianças são convidadas a se ajustarem às normas determinadas socialmente. O racismo, a intolerância religiosa, assim como outros fatores discriminatórios trazem repercussão à formação psicossocial da criança, proporcionando uma compreensão de religião, influenciando representações de como deve se pensar o tema e principalmente informando qual o conhecimento religioso é “predileto” na nossa sociedade. E ainda dentro do contexto da prática do Pai-nosso, não adianta se pensar em colocar a prática da leitura de provérbios africanos, afirmando que oportuniza a prática das religiões afrobrasileiras. Não que a leitura dos provérbios não sejam válidas, porém não representa a prática das religiões em questão. A escola não é a instituição autorizada para propagação da fé a não ser que a mesma esteja registrada como escola confessional, ou seja, é a escola que é instituída por grupo de pessoas físicas ou por uma ou mais pessoas jurídicas que atendem a orientação confessional e ideologia especificas. Os pais/mães/responsáveis quando matriculam seus/suas filhos/as devem ser informados/as sobre a proposta político pedagógica da escola. As escolas não confessionais que colocam o Pai-nosso presente na sua rotina, desrespeita a Constituição Federal Brasileira, pois no seu artigo 19, veta à União, aos estados e municípios estabelecer cultos religiosos, manter relação de dependência ou aliança com eles e criar distinções ou preferências entre os/as brasileiros/as. 4 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA Africanias, Imagens e Linguagens 29 a 31 de agosto de 2012 Salvador – BA O fato citado sobre a prática do Pai-nosso não é um procedimento exclusivo da rede municipal de ensino em Salvador, pois cotidianamente podemos identificar em escolas estaduais e particulares de todo o país o mesmo ocorrido. No início deste ano acompanhamos a Lei estabelecida em Iheus/BA que obrigava as escolas rezarem o Pai-nosso. A Revista Nova Escola publicou, em março de 2012, a reportagem abaixo evidenciando o desrespeito: O Pai-nosso, como qualquer outra prática religiosa deverá estar ausente do cotidiano escolar. Porém talvez isto só será possível quando as nossas mentes estiverem descolonizadas. A descolonização do saber/conhecimento é indispensável para vislumbrarmos uma sociedade plural, diferentemente da 5 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA Africanias, Imagens e Linguagens 29 a 31 de agosto de 2012 Salvador – BA sociedade que foi construída desde os princípios epistêmicos da Europa Renascentista e da Europa Iluminista. REFERÊNCIAS BRASIL. Lei n. 9. 394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, 1996. _______. Lei. n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. CAMILO, Camila; QUEEM, Marina. Pai-nosso na escola. Revista Nova Escola, São Paulo: Abril, ano XXVII, n. 250, p. 39. Março. 2012. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade – A vontade de saber. Vol. 1. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2006. MIGNOLO. Walter D.(EXPLICAR W e D PARA GARANTIR UNIFORMIDADE DOS AUTORES ANTERIORMENTE APRESENTADOS) Os esplendores e as misérias da “ciência”: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistémica. In.: SANTOS, Boaventura de Souza (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente. ‘um discurso sobre as ciências’ revisitado. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2006. SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais / Tomaz Tadeu da Silva (org). Stuart Hall, Kathryn Woodward. 10. ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. VIGOTSKY, Lev Semenovich. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 6