538 Revista Brasileira de Ensino de F sica, vol. 22, no. 4, Dezembro, 2000 Sobre a Lei de Distribuic~ ao de Energia no Espectro Normal M. Planck I Introduc~ao As medidas espectrais recentes realizadas por O. Lummer e E. Pringsheim1 e aquelas, ainda mais notaveis, de H. Rubens e F. Kurlbaum2 , conrmam ambas um resultado estabelecido anteriormente por H. Beckmann3 . Elas mostram que a lei da distribuic~ao de energia no espectro normal, inicialmente estabelecida por W. Wien a partir de considerac~oes de cinetica molecular e deduzida, em seguida, por mim mesmo, a partir da teoria da radiac~ao eletromagnetica , n~ao tem validade universal. Em cada um desses casos, a teoria necessita de uma correc~ao. Tentarei, no que se segue, fazer isto, baseando-me na teoria da radiac~ao eletromagnetica que eu mesmo desenvolvi. Sera necessario indicar, ent~ao, na sequ^encia de raciocnios que conduzem a lei da distribuic~ao de energia de Wien, o argumento a ser modicado; este argumento devera ser ent~ao abandonado e substitudo de forma apropriada. Mostrei, em minha ultima exposic~ao sobre o assunto4 , que as bases fsicas da teoria da radiac~ao eletromagnetica, e inclusive a hipotese da \radiac~ao natural"5 , resistem as crticas mais severas. Como, de acordo com meu conhecimento, os calculos n~ao apresentam erros, ca estabelecido que a lei da distribuica~o de energia no espectro normal se torna inteiramente determinada quando se pode calcular a entropia S de um ressonador radiante, oscilando de maneira monocromatica, em func~ao de sua energia de oscilac~ao U . Obtem-se, ent~ao, a partir da relac~ao dS=dU = 1=, a depend^encia da energia U em func~ao da temperatura . Como, por outro lado, uma relac~ ao simples6 liga a energia U e a densidade de radiac~ao a frequ^encia de oscilac~ao correspondente, ocorre o mesmo com a depend^encia da densidade de radiac~ao em funca~o da tem- peratura. A distribuic~ao de energia normal e, ent~ao, aquela para a qual as diferentes densidades de radiac~ao, correspondendo as diferentes frequ^encias de oscilac~ao, possuem a mesma temperatura. Assim todo o problema se resume a encontrar S em func~ao de U , e o essencial da analise que se segue e consagrado a soluc~ao dessa quest~ao. Em meu primeiro estudo desse assunto, tinha, sem outra justicativa, colocado S como sendo, por denic~ao, uma funca~o simples de U , e havia me contentado, em seguida, em provar que esta forma da entropia satisfazia todas as exig^encias impostas pela termodin^amica. Pensava ent~ao que ela era a unica express~ao possvel, e, portanto, que a lei de Wien, que se seguia diretamente dela, possua necessariamente uma validade universal. Um exame ulterior mais aprofundado7 mostroume que devia haver outras express~oes satisfazendo as exig^encias, e que uma condic~ao suplementar e necessaria para se calcular S sem ambiguidade. Acreditava ter encontrado esta condic~ao armando o que, a epoca, me parecia plausvel e evidente a escolha seguinte: na presenca de perturbac~oes irreversveis, pequenas e constantes, um sistema composto de N ressonadores id^enticos, colocados em um mesmo campo estacionario de radiac~ao, e encontrando-se nas vizinhancas do equilbrio termico, vera aumentar sua entropia total SN = N S em func~ao apenas de sua energia total UN = N U e de suas variac~ oes, sem que intervenha a a energia U dos ressonadores individuais. Esta armac~ao conduz necessariamente a lei de distribuica~o de energia de Wien. Mas, como essa n~ao e vericada experimentalmente, somos levados a concluir que este princpio n~ao pode ser correto em sua inteireza, e que a teoria deve ser modicada.8 Deve-se, portanto, introduzir uma outra condic~ao para permitir o calculo de S e, para isso, deve-se ana- Artigo publicado no Annalen der Physik 4, 553 - 563 (1901), em que a id eia de quantizaca~o de energia e aprimorada e calculos mais elaborados s~ao apresentados em relac~ao a sua comunicac~ao de 14 de dezembro de 1900 numa sess~ao da Academia Alem~a de Fisica, publicada em Verhandlungen den Deutshen Physicalishen Gessellschaft Bd. 2, 237-245 (1900). Traduc~ao de Ildeu de Castro Moreira. 1 O. Lummer e E. Pringsheim, Verh. Deutsch. Phys. Ges. 2, 163 (1900) 2 H. Rubens e F. Kurlbaum, Stizungber. d. k. Wissensch. (Berlim), sess~ ao de 25 de outubro, p. 929 (1900). 3 H, Beckmann, Tese, T ubingen, 1898. Ver tambem H. Rubens, Wied. Ann. 69, 582 (1899). 4 M. Planck, Ann. d. Physik 1, 719 (1900) 5 Radia c~ao do corpo negro, N.T. 6 Ver tamb em a Eq. (8) abaixo. 7 M. Planck, op. cit. p. 730 e seguintes. 8 Compare-se isto com as crticas j a provocadas por esta armac~ao: ver W. Wien [Rapport au Congres de Paris 2, p. 40, 1900] e O. Lummer [id. 2, p. 92, 1900]. 539 M. Planck lisar mais profundamente o signicado do conceito de entropia. Uma indicac~ao sobre o caminho a seguir nos e fornecida ao se examinar a insustentabilidade das suposic~oes anteriores. No que vem a seguir, exploramos uma via que conduz a uma express~ao simples para a entropia e consequentemente a uma nova formula para a radiac~ao, que parece n~ao estar em contradic~ao com varios dos resultados experimentais hoje observados. II Calculo da Entropia de um Ressonador em Func~ao da Energia 1. A entropia depende da desordem, e esta desordem, de acordo com a teoria da radiac~ao eletromagnetica para oscilac~oes monocromaticas de um ressonador, quando ele se encontra em um campo de radiac~ao permanentemente estacionario, depende das irregularidades pelas quais ele varia constantemente em amplitude e fase desde que consideremos intervalos de tempo grandes em relac~ao a durac~ao de uma oscilac~ao, mas pequenos em relac~ao a durac~ao de uma medida. Se amplitude e fase fossem ambas absolutamente constantes, as oscilac~oes se tornariam perfeitamente homog^eneas, a entropia n~ao poderia existir e a energia de oscilac~ao deveria poder se transformar livre e completamente em trabalho. A energia constante U de um ressonador individual oscilando de maneira estacionaria deve ser considerada como um valor medio no tempo ou, o que que da no mesmo, como o valor medio das energias de um grande numero N de osciladores id^enticos, dentro do mesmo campo estacionario de radiac~ao, sucientemente afastados uns dos outros para n~ao se inuenciarem mutu nesse sentido que nos referiremos a energia amente. E media U de um unico ressonador. Ent~ao, a energia total UN = N U (1) de um tal sistema, formado por N ressonadores, corresponde uma certa entropia total SN = N S (2) do mesmo sistema, em que S representa a entropia media de um ressonador particular. Esta entropia SN depende da desordem com a qual a energia total UN se reparte entre os diferentes ressonadores individuais. 2. Consideremos agora que a entropia SN do sistema e, a menos de uma constante aditiva arbitraria, proporcional ao logaritmo da probabilidade W , sendo que os N ressonadores UN : t^em todos em conjunto a energia total S = k (log W ) + const: (3) No fundo, esta relac~ao se torna, me parece, uma denic~ao da probabilidade W , porque, nas hipoteses sobre as quais se baseia a teoria da radiac~ao eletromagnetica, nenhuma indicac~ao nos permite dar a esta probabilidade um sentido ou outro. Convem utilizar esta denic~ao por sua simplicidade, e tambem pela sua conex~ao ntima com um teorema da teoria cinetica dos gases9 . 3. Importa agora encontrar a probabilidade W , de modo que os N ressonadores possuam em conjunto a energia total UN . Para isto, sera necessario que UN n~ao seja uma quantidade contnua, innitamente divisvel, mas antes uma grandeza discreta, composta de um numero inteiro de partes nitas iguais. Denominemos " a tal parte elementar de energia; teremos, portanto: UN = P "; (4) onde P representa um numero inteiro, em geral grande. Deixaremos, no momento, indeterminado o valor de ". evidente que agora a distribuic~ao dos P elemenE tos de energia entre os N ressonadores so pode ocorrer segundo um numero nito e determinado de maneiras. Chamaremos cada uma destas repartic~oes de um \complexo" [complexion], segundo o termo utilizado por Boltzmann para uma noc~ao semelhante. Se designarmos os ressonadores pelos numeros 1, 2, 3, ..., N , se os escrevermos uns em seguida aos outros, e se, debaixo de cada ressonador, colocarmos o numero de elementos de energia que lhes s~ao atribudos quando de uma repartic~ao arbitraria, obtemos para cada complexo um padr~ao da seguinte forma: 1 7 2 38 3 11 4 0 5 9 6 2 7 20 8 4 9 4 10 5 Fizemos a suposic~ao aqui de que N = 10, P = 100. O numero R de todos os complexos possveis e visivelmente igual ao numero de todos os arranjos possveis de numeros que se pode obter para a linha inferior, quando N e P forem xos. Para sermos precisos, notemos que dois complexos devem ser considerados como distintos se apresentarem os mesmos numeros, mas dispostos em ordem diferente. A analise combinatoria nos diz que o numero de complexos possveis e: c R = N (N + 1)(N + 2):::(N + P 1:2:3:::P 1) = (N + P 1)! : (N 1)!P ! 9 L. Boltzmann, Sitzungber. d. k. Wissensch. zu Wien (Anais das sess~ oes da Academia Imperial de Ci^encias de Viena), (II) 76, 428 (1877). 540 Revista Brasileira de Ensino de F sica, vol. 22, no. 4, Dezembro, 2000 De acordo com a formula de Stirling temos, em primeira aproximac~ao N! = NN; e, consequentemente, dentro dessa aproximac~ao R = (N + P )N +P NNP P 4. A hipotese sobre a qual queremos basear os calculos a seguir pode ser assim enunciada: a probabilidade W para que os ressonadores possuam em conjunto a energia de oscilac~ao UN deve ser proporcional ao numero R de todos os complexos possveis formados pela repartic~ao da energia UN entre os N ressonadores. Em outros termos, um complexo qualquer e t~ao provavel quanto qualquer outro. Se essa hipotese e verdadeiramente realizada na natureza, em ultima analise so a experi^encia pode decidir. Se, de fato, a experi^encia decidir a seu favor, a validade desta hipotese devera conduzir a novas conclus~oes no domnio especco das oscilaco~es dos ressonadores, notadamente sobre o carater \indiferenciado das celulas do espaco de fases de grandeza inicialmente comparaveis" que aparece aqui, para retomar os termos de J. v. Kries.10 Prosseguir, contudo, dentro desta via de reex~ao, parece prematuro no estado atual da quest~ao. 5. De acordo com a hipotese introduzida em conex~ao com a Eq. (3), a entropia do sistema de ressonadores sob considerac~ao, depois da determinac~ao adequada da constante aditiva, e: c SN = k log R = k f(N + P ) log(N + P ) e, considerando (4) e (1): SN = kN (1 + N log N U U ) log(1 + ) " " U " P log P g ; (5) U log( ) : " Ent~ao, de acordo com a Eq. (2), a entropia S de um ressonador como func~ao da sua energia U sera dada por: U U U U S = k (1 + ) log(1 + ) log( ) : (6) " " " " d III Introduc~ao a Lei de Deslocamento de Wien 6. Em seguida ao teorema de Kirchho da proporcionalidade do poder emissivo e absortivo, a chamada lei do deslocamento, descoberta e batizada por W. Wien, que inclui como um caso especial a lei de Stefan-Boltzmann da depend^encia da radiac~ao total com a temperatura, fornece a contribuic~ao mais valiosa aos fundamentos rmemente estabelecidos da teoria da radiac~ao termica. Na forma dada por M. Thiesen11 , ela e assim expressa: Ed = 5 ()d; em que e o comprimento de onda, Ed representa a densidade volumetrica da radiac~ao do \corpo negro"12 dentro da regi~ao espectral e + d, representa a temperatura, e (x) e uma certa func~ao do argumento x apenas. 7. Desejamos agora examinar o que a lei de deslocamento de Wien arma sobre a depend^encia da entropia de nosso ressonador em relac~ao a sua energia U e seu perodo caracterstico, particularmente no caso geral em que o ressonador esteja situado em um meio diatermico arbitrario.Com este objetivo, generalizamos em seguida a forma da lei de Thiesen para a radiac~ao em um meio diatermico arbitrario com a velocidade da luz c. Desde que n~ ao temos que considerar a radiaca~o total, mas somente a radiac~ao monocromatica, sera necessario introduzir a frequ^encia , em vez do comprimento de onda , para comparar diferentes meios diatermicos. Vamos designar, ent~ao, por ud a densidade volumetrica de energia da radiac~ao correspondente as frequ^encias e + d , com as substituic~oes: ud por Ed, c= por e cd= 2 por d. Chegamos ent~ ao a c 2 c u = 5 : S Ora, a lei bem conhecida de Kircho-Clausius nos diz que a energia emitida por unidade de tempo por uma superfcie negra em um meio diatermico e, para 10 Joh. v. Kries, Die principien der Wahrschleinlichkeitsrechnung (Os princpios do c alculo das probabilidades) p. 36, Freiburg, (1886). 11 M. Thiessen, Verh. Deutsch. Phys. Ges. 2, 67 (1900). 12 Poder-se-ia falar, de maneira mais apropriada, de radia c~ao \branca", generalizando convenientemente o que se chama habitualmente de luz perfeitamente branca. 541 M. Planck uma temperatura e um numero de ondas dado, inversamente proporcional ao quadrado c2 da velocidade de propagac~ao da luz. A densidade espacial de energia e portanto inversamente proporcional a c3 e obtemos 5 u= 2 3 f da a relac~ao: em que as constantes da func~ao f s~ao independentes de c. Em lugar disso, podemos escrever, se f sempre designar, no que se segue, uma nova func~ao de um so argumento: 3 u= ; (7) 3 f em que c n~ao aparece mais explicitamente. Em lugar disto podemos escrever tambem U : = f c u= na qual reencontramos o resultado bem conhecido que a energia radiante u3 , contida em um cubo de um comprimento de ondas a uma dada temperatura e frequ^encia, e a mesma para todos os meios diatermicos. 8. Para passar agora da densidade espacial de radiac~ao u para a energia U de um ressonador estacionario sncrono com o campo de radiac~oes onde se encontra, com o numero de onda , utilizaremos a formula (34) de minha exposic~ao13 sobre os processos radiantes irreversveis: 2 < = c2 U (< e a intensidade de uma radiac~ao monocromatica, polarizada linearmente); o que, junto com a equac~ao bem conhecida 8 u= < c c3 Da e de (7), resulta: U c 8 2 = f (8) U: ; 9. Vamos introduzir nalmente a entropia S do ressonador, colocando 1 dS = : (9) Resulta que: dU 1 dS dU = f U e integrando: S =f U (10) ; ou seja, a entropia de um ressonador oscilando em um meio diatermico depende apenas da variavel U= , e n~ao contem nada alem do que constantes universais. Essa e, a meu conhecimento, a forma mais simples da lei do deslocamento de Wien. 10. Se aplicamos a lei do deslocamento de Wien, sob a ultima forma, a express~ao (6) da entropia S , nos damos conta que o elemento de energia " deve ser proporcional ao numero de oscilac~oes , e que portanto c " = h: Assim S =k 1+ U h log 1 + U h U h log U h d gia procurada em que h e k s~ao constantes universais. Substituindo em (9), obtem-se: k h 1 = log 1 + ; h U = u= U h eh=k 1 ; (11) e, a partir de (8), obtemos a lei de distribuic~ao de ener13 M. Planck, Ann. Phys. 1, 99 (1900). 8h 3 c3 1 eh=k 1 : (12) Ou ainda, se substituirmos o numero de ondas pelo comprimento de onda e, com a ajuda da relac~ao indicada no item 7, temos: 8ch 1 E= : 5 ehc=k 1 542 Revista Brasileira de Ensino de F sica, vol. 22, no. 4, Dezembro, 2000 Quanto as express~oes para a intensidade e para a entropia de uma radiac~ao se propagando em um meio diatermico, e a lei do aumento da entropia total, em processos de radiac~ao n~ao estacionarios, eu os desenvolverei em outro artigo. IV Valores Numericos 11. Os valores das duas constantes naturais h e k podem ser determinados de maneira bastante precisa com a ajuda das medidas disponveis. F. Kurlbaum14 encontrou que, se designamos St como a energia total radiada no ar por 1 cm2 de um corpo negro, levado a uma temperatura de t graus centgrados, durante um segundo c S100 S0 = 0; 0731 Watt=cm2 = 7; 31 105 erg=cm2 s: Da se obtem a densidade espacial da energia total da radiac~ao no ar a temperatura absoluta: 4 7; 31 105 3 1010 (3734 2734) = 7; 061 10 15 erg=cm3 grau4 : Por outro lado, segundo (12), a densidade espacial da energia total radiada e, para = 1: Z1 Z 8h 1 3 d u = ud = 3 c 0 Z 0 eh=k 1 1 h i 8h = 3 e h=k + e 2h=k + e 3h=k + ::: d 3 c e, por integrac~oes sucessivas: u= 0 4 h 1 1 1 48k 4 6 1 + + + = 1; 0823: c3 k 24 34 44 c3 h3 8h d Se colocarmos isto igual a 7; 061 10 15 , obtemos, com c = 3 1010 : k4 h3 = 1; 1682 1015 : = ch 4; 961k : Segue-se que: = 0; 294 cm:grau: Por outro lado, de (13), quando iguala-se a zero a derivada de E em relac~ao a , em que = m , tem-se: ch ch 1 exp =1 5km km 14 F. Kurlbaum, Wied. Ann. 65, 759 (1898). 15 O. Lummer e E. Pringsheim, Verh. Deutsch. m (13) 12. O. Lummer e E. Pringsheim15 determinaram que o produto m , em que m e o comprimento de onda do maximo da distribuic~ao em E no ar e a temperatura , vale 2940 .grau. Ou ainda, em unidades absolutas: m e esta equac~ao transcendental fornece: h k = 4; 9651 0; 294 = 4; 866 10 11 : 3 1010 Da e de (14) encontram-se os valores das constantes naturais: 10 27 erg:s; k = 1; 346 10 16 erg=grau: h = 6; 55 Estes s~ao os mesmos valores indicados em minha comunicac~ao anterior. Phys. Ges. 2, 176 (1900).