A EXPLORAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA PELO ESTADO
Autor: Felipe do Canto Zago
I. HISTÓRICO
O processo histórico sempre demonstrou a associação entre a política
e a economia. Em cada fase da evolução dos povos, são concebidas
doutrinas filosóficas que oferecem seus dogmas para compatibilizar as
formas de direção do Estado com os interesses econômicos.
Partindo mais especificamente do Estado moderno, e a partir do final
do século XVIII, emergiu da Revolução Francesa a teoria do liberalismo
econômico, que postulava o domínio do chamado Estado Mínimo, voltado
apenas para questões tipicamente públicas, como a segurança, além de
serviços de utilidade pública. Observe-se, todavia, que continuou existindo a
intervenção estatal na ordem econômica.
O Estado, nessa época, já era responsável por algumas políticas de
serviços de utilidade pública, tidos hoje em dia como fundamentais, como
ilustra o doutrinador lusitano José Carlos Vieira de Andrade, que aborda em
sua análise a Constituição Portuguesa de 1976 sobre o dever do Estado de
responsabilização de ações específicas:
As políticas de habitação, saúde, segurança social, educação,
cultura, etc., dadas as suas complexidade e contingência, não
podem estar determinadas nos textos constitucionais e a sua
realização implica opções autônomas e específicas de órgãos que
disponham simultaneamente de capacidade técnica e de
1
legitimidade democrática para se responsabilizarem por essas
opções. 1
Com efeito, o movimento chamado de liberalismo foi caracterizado por
uma posição restrita e limitada, ramificando-se no domínio econômico por
uma atitude que impôs o afastamento do Estado desse setor. Foi evidente
que a posição da administração pública durante esse período caracterizou-se
sobremaneira pela sua deficiência no domínio econômico.
Considerando as reduzidas funções que lhe cabiam, o Estado era
composto de um pequeno núcleo estratégico e não havia grande necessidade
de descentralização, mesmo porque as atividades exercidas se restringiam
quase exclusivamente a ações típicas, como defesa nacional, segurança
interna, arrecadação, exercício do poder de polícia, que são, em geral,
indelegáveis, por serem incompatíveis com os métodos do direito privado.
As demais atividades públicas tinham seu exercício transferido aos
particulares por meio de concessão. A realização dessas atividades era feita
pela via contratual e restringia a intervenção do Estado nos negócios privados
ao mínimo necessário.
Ademais, examinando posição doutrinária de um dos maiores
representantes do liberalismo econômico, Adam Smith, verifica-se que:
[…] de acordo com o sistema de liberdade natural, o soberano
(Estado) tem somente três deveres a cumprir; três deveres de grande
importância, na verdade, mas claros e inteligíveis ao senso comum:
primeiro, o dever de proteger a sociedade da violência e da invasão
por outras sociedades independentes; segundo, o dever de proteger,
na medida do possível, cada membro da sociedade da injustiça e da
opressão de qualquer outro membro, ou o dever de estabelecer uma
adequada administração da justiça; em terceiro lugar; o dever de erigir
e manter certas obras públicas e certas instituições públicas que nunca
1
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976. Coimbra: Almedina, 1987, p. 192-193.
2
será do interesse de qualquer indivíduo ou de um pequeno número de
indivíduos erigir e manter; porque o lucro jamais reembolsaria as
despesas para qualquer indivíduo ou número de indivíduos, embora
possa freqüentemente proporcionar mais do que o reembolso a uma
2
sociedade maior […].
Ainda, a análise de Paulo Henrique Rocha Scott:
(...) as regras do pensamento econômico liberal, o Estado deveria
assumir deveres de legislar, gerir o próprio patrimônio, prover às
suas despesas, proteger a sociedades da invasão e violência
externa, proteger um membro da sociedade da opressão do outro,
garantir o rigor na administração da justiça, erigir e manter certas
obras e serviços que, necessários sob o ponto de vista da
sociedade, jamais conseguiriam, em razão da sua natureza,
compensar economicamente os esforços empreendidos por um
particular ou grupo de particulares. Como conseqüência dessa
visão, a organização estatal se manteve afastada do universo dos
3
indivíduos, da sua plena liberdade econômica.
No final do século XVIII e em todo o XIX, a normalidade das atividades
econômicas ficou vinculada exclusivamente à concorrência estabelecida pelo
mercado. De um lado, exercendo seu poder econômico dentro de um espaço
de competição que lhes era particular, estavam os agentes econômicos
privados e, do outro, o Estado, abstendo-se do exercício de qualquer poder
econômico, deixando aqueles livres para se autorregrarem e intervindo
somente quando solicitado para garantir a observância das regras naturais do
mercado.
De modo geral, é possível afirmar que naquele século a liberdade
econômica foi quase absoluta, tendo na livre concorrência o critério mais
2
SMITH, Adam. The nature and causes of the Wealth of Nations. London: Cadell, 1811, v. IV,
p. 42, apud VENÂNCIO FILHO, Alberto. A intervenção do Estado no domínio econômico.
Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1968, p. 06.
3
SCOTT, Paulo Henrique Rocha. Direito Constitucional Econômico: Estado e Normalização
da economia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000, p. 41.
3
significativo de organização e definição dos vencedores da disputa
econômica.
Para Paulo Henrique Rocha Scott,
A capacidade de se manter no mercado dependia da capacidade
que o agente econômico tivesse para impor sua vontade, seus
interesses, sobre os demais concorrentes; a realidade, cedo ou
tarde, impunha-lhe o seguinte dilema: crescer, aumentar o seu
poder econômico, ou desaparecer. E justamente desse dilema
acabou surgindo o fenômeno econômico denominado concentração,
no qual umas empresas acabaram por inibir os mecanismos
decisórios do mercado, absorvendo as outras, encampando-as ou
se fundindo, deixando menor o número de agentes econômicos
4
atuantes no mercado.
Tal situação de liberdade econômica absoluta, que pressupunha uma
condição ideal de igualdade, de equilíbrio nas competições econômicas, não
se revelou perfeita. Na prática, não se conseguiu evitar que o mais forte
dominasse, de modo quase absoluto, seus adversários, nem garantiu a
renovação no quadro dos concorrentes quando os derrotados saíam do
mercado.
O funcionamento do regime liberal exigiria, no entanto, o envolvimento
de homens honestos e teria como pressuposto uma certa igualdade,
requerendo, ademais, uma competição equilibrada.
Ocorre que essa intervenção mínima do Estado gerou consequências
desastrosas, tais como a criação de monopólios que praticamente dizimaram
as pequenas empresas, bem como desigualdades sociais acentuadas,
marcadas por um proletariado vítima da miséria e da ignorância.
4
Ibidem, p. 43.
4
A pretensa liberdade na ordem econômica conferida aos indivíduos
surtiu efeito contrário, alargando o abismo entre as classes sociais, tornando
o pobre cada vez mais miserável e o rico cada vez mais abastado. A
liberdade para as classes desfavorecidas transformou-se em escravidão.
Definitivamente, o Estado não poderia ficar indiferente ao crescimento de
tamanhas desigualdades sociais.
Por derradeiro, no final do século XIX, começou-se a falar na crise da
liberdade econômica. Unidades econômicas passaram a assumir posições de
destaque nos mercados, regulando-os em proveito próprio.
De acordo com Paulo Henrique Rocha Scott,
Este poder, poder econômico, detido somente por alguns agentes
econômicos, foi exercido abusivamente e acabou inviabilizando a
modalidade das próprias forças produtivas, aniquilando os valores
da competição e estabelecendo uma evidente contradição no
quadro de dogmas econômicos provenientes da visão liberal
setecentista. O princípio da livre iniciativa, correspondente ao
estado original e revolucionário das forças industriais, não mais
enquadrava as condições dos agentes econômicos no mercado. A
associação dos interesses das grandes empresas substituiu o livre
jogo econômico – organização, produção, distribuição e repartição
de mercados – negando o limitado acesso ao mercado e
acentuando uma vocação ao protecionismo privado de caráter
associativo e monopolístico. Foi o saturamento do campo
competitivo. A concentração de capitais se impôs como estratégia
primordial, desvirtuando por completo a desejada dinâmica da livre
5
concorrência.
Esse quadro problemático levou o Estado a adotar um novo
comportamento: a intervenção.
Com implicações cada vez mais intensas das descobertas científicas e
de suas aplicações, que se processam com maior celeridade a partir da
5
SCOTT, Paulo Henrique Rocha. Direito Constitucional Econômico: Estado e Normalização
da economia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000, p. 45-6.
5
Revolução Industrial, o aparecimento das gigantescas empresas fabris,
trazendo, em consequência, a formação de grandes aglomerados urbanos,
representou mudanças profundas na vida social e política, acarretando
alterações acentuadas nas relações sociais. Aos poucos, o Estado precisou
intervir mais assiduamente na vida econômica e social, para atenuar os
conflitos de interesses de grupos e de indivíduos.
Afastando-se, portanto, dos padrões do liberalismo clássico, o Estado,
em nome dos interesses intermitentes de grupos privados com menor poder
econômico, passou a enfrentar os grandes agrupamentos de produtores,
intervindo sempre que sua evolução e sua excessiva liberdade colocassem
em risco as leis naturais do mercado.
Assim, o liberalismo econômico, como doutrina, passou a sofrer duros
golpes. De um lado, a eclosão de movimentos sociais denunciava o
inconformismo com a direção do poder, e, de outro, novos filósofos sociais
procuravam incutir idéias antagônicas à liberdade excessiva, destacando-se
entre eles Karl Marx, propulsor da idéia de um Estado soberano e da
eliminação de classes como fator de proteção do operariado.
A ação estatal se manteve na retaguarda dos fenômenos da produção
industrial, procurando minorar algumas das suas consequências negativas,
na presunção de que, logrando a sua correção, a harmonia natural acabaria
por recuperar plenamente a normalidade do sistema econômico. O objetivo,
por conseguinte, era tão somente impedir o desenvolvimento de uma espécie
de autoritarismo econômico privado, sem provocar a extinção do mercado,
apenas a sua correção.
A partir de então, começou-se a perceber a influência da política na
economia, pelo grande volume arrecadado e pago pelo Estado, no final do
6
século XIX, o que levou o poder público a atuar em frentes nas quais
normalmente não estava acostumado a agir.
As novas idéias acabaram por inspirar uma nova posição do Estado
ante a sociedade. Diferentemente do que vinha ocorrendo, estabeleceu-se
uma posição atuante e fiscalizadora e, o que é mais importante, uma postura
compatível com os reclamos invocados pela própria sociedade. Do modelo
liberal passou-se a adotar o modelo interventivo.
Na medida em que foi-se afastando dos princípios do liberalismo, o
Estado começou a ampliar o rol das atividades próprias, definidas como
serviços públicos, pois passou a assim considerar determinadas atividades
comerciais e industriais que antes eram reservadas à iniciativa privada.
Segundo José dos Santos Carvalho Filho,
A intervenção do Estado o capacitou a regular a economia,
permitindo a inauguração da fase do dirigismo econômico, em que o
Poder Público produz uma estratégia sistemática de forma a
participar ativamente dos fatos econômicos. Na verdade, o
intervencionismo compreende um sistema em que o interesse
público sobreleva em relação ao regime econômico capitalista. O
governo recebe certas funções distributivas e alocativas, isto é,
busca proporcionar uma equânime distribuição de riqueza e fornecer
a certas categorias sociais alguns elementos de proteção contra as
6
regras exclusivamente capitalistas.
E continua:
Com esse tipo de atuação, o Estado procura garantir melhores
condições de vida aos mais fracos, sem considerar seu status no
mercado de trabalho, e ainda corrige o funcionamento cego das
forças de mercado, estabelecendo parâmetros a serem observados
na ordem econômica. De todos esses fatores, importa que,
intervindo na economia, o Estado, por via de conseqüência, atende
6
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 23. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Júris, 2010, p. 986.
7
aos reclamos da ordem social com vistas a reduzir as desigualdades
entre os indivíduos. 7
O Estado interventor, com isso, retoma sua hegemonia. As guerras
mundiais de 1914-1918 e 1939-1946 despertam o sentimento estatal, fazendo
as nações começarem a preparar-se para o esforço bélico, o que acabou
exigindo a mobilização de todas as atividades econômicas para esse objetivo,
acarretando,
também,
indiretamente,
o
alargamento
das
atribuições
governamentais.
O
jurista
italiano
Vincenso
Spagnuolo
Vigotita
descreve,
com
proficiência, os efeitos da Primeira Guerra Mundial na conjuntura políticoeconômica:
A Primeira Guerra Mundial rompe a tradição do liberalismo
econômico, acelerando violentamente a ação dos fatores
desagregadores. De fato, tal guerra: a) dilata desmesuradamente as
exigências de armamento e aprovisionamento, demonstrando a
necessidade do controle integral e coativo da vida econômica; b) em
virtude disso, constitui uma experiência concreta de total disciplina
pública da economia, assumido como modelo de futuros objetivos
autoritários de política econômica, e ao mesmo tempo cria hábitos e
métodos dirigistas dificilmente anuláveis; c) provoca excessos
dimensionais e distribuições erradas na industrialização, com
predisposição à ruína por falta de capital e da demanda, e
conseqüente “absorção” estatal para evitar a crise; d) fraciona o
mercado internacional pelo surgimento de novos Estados e de um
novo nacionalismo econômico, determinando ademais o definitivo
deslocamento do equilíbrio econômico em favor dos Estados Unidos
e em prejuízo da Europa; e) provoca o desenvolvimento numérico e
o despertar classista das massas operárias, de quem acresce o
peso político e a força organizatória, colocando em posição de
condicionar a tradicional supremacia das antigas classes dirigentes
8
e de exigir a revisão em sentido social do intervencionismo.
7
8
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 23. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Júris, 2010, p. 987.
VIGORITA, Vincenso Spagnuolo. L’Iniziativa Econômica Privata nel Diritto Publico, p. 170-172,
apud VENÂNCIO FILHO, Alberto. A intervenção do Estado no domínio econômico. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1968, p. 11.
8
Com a Constituição de Weimer (1919), que serviu de modelo para
inúmeras outras do primeiro pós-guerra, e apesar de ser tecnicamente uma
constituição consagradora de uma democracia liberal, houve a crescente
constitucionalização do Estado Social de Direito, com o destaque, em seu texto,
dos direitos sociais e a previsão de aplicação e realização por parte das
instituições
encarregadas
dessa
missão.
Consubstanciou-se,
assim,
a
importante intenção de converter em direito positivo várias aspirações sociais,
elevadas à categoria de princípios constitucionais protegidos pelas garantias do
Estado de Direito.
O papel do Estado como interventor nas atividades econômicas e
sociais ganhou corpo no início do século XX. Os investimentos públicos na
melhoria
da
qualidade
de
vida,
bem
como
as
entidades
públicas
desenvolvendo atividades até então tipicamente privadas, levaram à
aceitação de um novo modelo estatal.
O Estado interventor assume responsabilidades antes atinentes à
iniciativa privada, regulando as mais diferentes atividades econômicas,
concentrando em suas próprias mãos o poder em relação ao mercantilismo,
as relações de consumo e as produções de mercado.
A intervenção na ordem econômica se consubstanciou e se ampliou
através de diversas formas e ensejou algumas técnicas especiais, entre elas
a criação e a gestão pelo Estado de empresas industriais e comerciais. Por
intermédio delas, passou a ter maior proximidade com os setores privados do
capital e maior eficiência no controle de condutas prejudiciais à comunidade.
No início, a atuação econômica estatal foi exagerada em determinados
casos, como, por exemplo, na Alemanha, onde houve evidente extensão
demasiada do Estado, que desempenhou atividades de hotelaria e de
9
produção de meias femininas, como afirma, Dirk Ehlers, da Universidade
Westfálica, na Alemanha:
As atividades econômicas do Estado são extensas. Muitos aspectos
desta presença do Estado na economia podem ser explicados a partir
de uma perspectiva história. Há casos conhecidos quando o Estado
exerceu até mesmo as atividades de hoteleiro e produtor de meias
9
femininas [...].
Foi com esse novo contexto que o Estado passou a organizar
amplamente os processos econômicos e a legitimar a opção pelo
intervencionismo, instrumentando a realização de determinadas finalidades
econômicas e sociais, proporcionando a superação do modelo liberal.
II. EVOLUÇÃO DO PAPEL DO ESTADO NA ECONOMIA NO CONTEXTO
NORMATIVO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO
O sistema do dirigismo econômico, que resultou na restrição da
margem de livre atuação da vontade do particular, implantado pelo Estado no
fim do século XIX e início XX, propiciou o estabelecimento de regras jurídicas
reguladoras da ordem econômica em várias Constituições.
Trata-se da constitucionalização normativa, em que regras jurídicas
são inseridas no plano político e incluídas na Constituição.
No direito pátrio, foi a partir da Constituição de 1934, inspirada pelas
Constituições Européias do pós-guerra, que todas as Cartas subsequentes
dedicaram um de seus capítulos à Ordem Econômica, refletindo o
9
EHLERS, Dirk. A atividade econômica do Estado na República Federal da Alemanha. DIREITO
& JUSTIÇA, Revista da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre: Livraria Editora Acadêmica, v. 14, ano XII, p. 17, 1990.
(Tradução de Peter Walter Ashton da Faculdade de Direito da UFRGS e PUC/RS; Direção
Claudio Cezar Maciel Fetter).
10
desenvolvimento das aspirações das classes trabalhadoras em consonância
com as novas atividades do Estado.
Sobre Constituição econômica, Ricardo Rivero Ortega alerta:
El concepto de economia social de mercado puede aproximarnos al
proceso de elaboración de lãs cláusulas econômicas de la
Constitución, aunque ésta presenta en todo caso un sistema abierto,
que deja al margen a ordenaciones económicas de distinto signo,
extremo en el que han coincidido la mayoría de sus comentaristas.
Lo que no quiere decir que exista una indefinición con el carácter
normativo de la Constitución, esto es, con su naturaleza como
fuente del Derecho – si bien ciertamente peculiar – que reclama
uma interpretación sistemática. 10
Após a primeira guerra mundial, ficou insustentável um modelo de
Estado ausente das relações socioeconômicas. A partir da década de 30, sob
diretrizes
político-econômicas
governamentais,
nitidamente
voltadas
à
conquista de uma autossuficiência nacional pelo fortalecimento da economia
interna, novos fatores passaram a caracterizar o processo brasileiro de
industrialização, como o aparecimento de um núcleo importante de indústrias
de bens primários, a consciência da escassez de capital e das deficiências
técnicas e culturais relacionadas às atividades econômicas, bem como as
aspirações de melhoria das condições sociais.
De acordo com Raymundo Faoro,
O Estado brasileiro, sob inspiração nacionalista, passa a
desempenhar a tarefa de ajuste da economia nacional à
internacional, controlando-a política e juridicamente, adotando,
nisso, uma posição mais intervencionista do que a verificada na
11
primeira república.
10
ORTEGA, Ricardo Rivero. Introducción al derecho administrativo económico. 2. ed.
Salamanca: Ratio Legis, 2001, p. 58-59.
11
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patrono político brasileiro. Porto
Alegre: Globo, 1958, p. 252.
11
Assim, a Constituição de 1934 se postou mais de acordo com os
anseios das classes trabalhadoras, ao mesmo tempo em que procurou
disciplinar uma ordem econômica capitalista, já que mantenedora da
apropriação privada dos meios de produção, da livre iniciativa e concorrência,
que autorizasse, pela ligação de determinados princípios e regras, o
despertar de um sentimento nacional de solidariedade capaz de intensificar e
aperfeiçoar a produção econômica com justiça.
Paulo Henrique Rocha Scott comenta a Constituição de 1934:
O texto constitucional partiu, portanto, da concepção política de que
o mais importante era integrar o Estado – um Estado forte,
ordenador do desenvolvimento e defensor dos direitos das massas
trabalhadoras - aos demais interesses da sociedade e também às
demais forças econômicas relacionadas à produção e ao consumo.
Avançando, assim, sobre a orientação constitucional anterior e
estruturando juridicamente um novo intervencionismo estatal mais
12
sensível às questões da sociedade.
No entanto, essa Constituição teve vida curta. Ao mesmo tempo em
que o Estado se fortalecia, um quadro de radicalização política se instalava
no Brasil, a exemplo do que ocorria em outros países da Europa e das
Américas no contexto de crise do capitalismo liberal desencadeado após
1929.
No dia 10 de novembro de 1937, Getúlio Vargas trouxe ao País um
novo momento de sua história. O Congresso se dissolveu, a autonomia dos
estados foi sufocada, e o Governo adotava uma postura abertamente
autoritária. O Estado se tornava centralizado e assumia muitas características
que o aproximavam do fascismo: nacionalismo, culto à figura do chefe da
Nação, censura à imprensa, forte repressão a atividades oposicionistas e ao
sindicalismo independente. Ao mesmo tempo, Getúlio Vargas tomou
12
SCOTT, Paulo Henrique Rocha. Direito Constitucional Econômico:
Normalização da economia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000, p. 71.
Estado e
12
iniciativas de modernização econômica, fomentando a industrialização,
apoiando o ensino técnico e profissional e criando as primeiras grandes
empresas estatais.
O golpe de estado de 1937 (Constituição Federal de 1937), início do
regime autoritário denominado Estado Novo, inovou no campo econômico ao
propugnar a organização corporativa da economia, enfatizando a participação
das classes econômicas na vida política e social, estabelecendo uma
descentralização na qual o Estado interviria não mais de forma direta,
conforme havia previsto anteriormente na Constituição de 1934. Seu papel,
agora, haveria de ser o de coordenação dos agentes econômicos, ficando
qualquer ação interventiva condicionada à ocorrência de situações em que a
defesa do interesse coletivo fosse realmente necessária.
Em seus primeiros momentos, o Estado Novo demonstrou clara
simpatia pelas potências nazi-fascistas. A partir de 1942, no entanto, com a
entrada dos Estados Unidos na guerra e o apoio da maioria dos países
americanos aos aliados, a pressão norte-americana, conjugada com
promessas de ajuda econômica em troca de estabelecimento de bases
militares no nordeste, levaram o governo brasileiro a mudar de lado. O ataque
de submarinos alemães a embarcações brasileiras e a mobilização da opinião
pública contra o fascismo consolidaram essa opção.
No Estado Novo, a política do governo foi direcionada no sentido da
substituição da importação de produtos estrangeiros pela produção interna. A
partir da II Guerra Mundial, em 1942, começou uma fase importante do
crescimento industrial brasileiro, caracterizada pelo desenvolvimento das
empresas siderúrgicas, determinando uma situação de relativa independência
na economia brasileira.
13
Terminada a II Guerra Mundial, logo começaram os movimentos no
sentido da redemocratização do País. Surge, então, a Constituição de 1946,
na qual se verificou um acirrado confronto entre tendências socioeconômicas
opostas: de um lado estavam os adeptos das tendências socializantes e, de
outro, os defensores de um liberalismo identificado com a visão individualista
do século XIX.
Desse choque ideológico, resultou a opção por uma ordem econômica
que, embora baseada na livre iniciativa e na livre concorrência, fosse sensível
ao ideal de realização da justiça social, pretensão que deveria assumir a
condição de idéia regente e vinculatória dos propósitos de organização da
ordem econômica, conciliando liberdade de iniciativa com valorização do
trabalho humano.
Pode-se dizer que, no geral, as possibilidades de ações interventivas
pela União para a realização de certas finalidades foram ampliadas
significativamente.
Já a Constituição Federal de 1967, considerada menos intervencionista
que a CF/1946, sofreu poderosa influência da Carta Política de 1937, cujas
características básicas assimilou, possibilitando o retorno da organização e
da exploração das atividades econômicas pela iniciativa privada.
Segundo Paulo Henrique Rocha Scott,
A exemplo das constituições anteriores, a Constituição de 1967,
sem alterar a essência do sistema econômico, postou-se no sentido
da correção estatal de algumas das distorções existentes no
mercado e da realização da justiça social, refletida, dentre outros,
nos princípios da liberdade de iniciativa, da valorização do trabalho,
da harmonia e solidariedade entre os fatores de produção e da
busca pelo desenvolvimento econômico. Manteve o perfil
incentivador e protecionista do Estado, que permaneceu obrigado a
investir em infra-estrutura e serviços que se destinassem a
proporcionar melhores condições à atuação das empresas privadas
14
– a intervenção no domínio econômico foi permitida tão somente
para organizar determinado setor econômico que não pudesse se
desenvolver com eficiência no regime da livre iniciativa e da livre
13
competição.
Foi adotado um intervencionismo econômico menos contundente,
valorizando a livre empresa como fator primordial da prosperidade econômica
e a intervenção estatal como elemento supletivo da atividade privada.
No final do século XX, nasceu a chamada teoria neoliberal, que marcou
profundamente a Constituição Federal de 1988 no capítulo da Ordem
Econômica e Financeira.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Brasil retornou
aos ditames da democracia, tendo como fundamento o princípio da dignidade
da pessoa humana e, como alvo principal, a concretização da justiça social.
Para que a justiça social fosse alcançada, o Estado necessitaria do
auxílio da economia, na medida em que é esta a ciência que desenvolve os
estudos acerca dos fatos econômicos capazes de gerar a riqueza necessária
para o desenvolvimento da sociedade, seja por meio de políticas públicas
desenvolvidas pelo Estado, seja pela própria iniciativa privada.
Segundo Marco Antonio Sandoval de Vasconcellos é a economia,
(...) que estuda como o indivíduo e a sociedade decidem (escolhem)
empregar os recursos produtivos escassos na produção de bens e
serviços, de modo a distribuí-los entre várias pessoas e grupos da
14
sociedade, a fim de satisfazer as necessidades humanas.
13
14
SCOTT, Paulo Henrique Rocha. Direito Constitucional Econômico: Estado e
Normalização da economia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000, p. 81.
VASCONCELLOS, Marco Antonio Sandoval de; GARCIA, Manuel Enriquez. Fundamento
de economia. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 2.
15
Na vigente Constituição, a disciplina da Ordem Econômica e Financeira
tem previsão no Título VII (Arts. 170-192), no qual todas essas normas
pretendem formar um sistema geral da ordem econômica e, dentro de suas
várias disciplinas, algumas indicam formas de atuação e de intervenção do
Estado no domínio econômico.
O artigo 170, da CF15, esclarece que se optou pelo modelo capitalista
de produção, também conhecido como economia de mercado, cuja idéia
central é a livre iniciativa.
A análise dos quatro princípios da ordem econômica previstos no caput
do citado art. 170 (valorização do trabalho humano, livre iniciativa, existência
digna, conformidade com os ditames da Justiça Social), apontam no sentindo
da ampla possibilidade de o Estado intervir na economia, e não somente em
situações excepcionais.
A Ordem Econômica e Financeira da atual Constituição Federal
estabelece, assim, as finalidades e os princípios gerais, o tipo de organização
e a delimitação entre o domínio da iniciativa privada e da intervenção direta
ou indireta do Estado na economia.
Hans Kelsen já alertava sobre a interpretação jurídica para várias
possibilidades dentro de uma determinada moldura, que, em analogia ao caso
em exame, seriam as premissas de atuação do Estado no domínio econômico
15
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça
social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada;
III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto
ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis
brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado
a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de
autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
16
e financeiro “[...] o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser
a
fixação
da
moldura
que
representa
o
Direito
a
interpretar
e,
conseqüentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro
desta moldura existem”.16
Nesse sentido, Uadi Lammêgo Bulos sintetiza a moldura constitucional
que trata da participação do Estado na economia “Numa palavra, a
Constituição de 1988, ao agasalhar o modelo capitalista, reconheceu a
excepcionalidade da exploração direta da atividade econômica pelo Estado”.17
Assim, essa excepcionalidade anteriormente citada pelo autor é
inferida diretamente do texto do art. 173, caput, da CF/88, que assim dispõe:
Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração
direta da atividade econômica pelo Estado só será permitida quando
necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante
interesse coletivo, conforme definidos em lei.
A participação do Estado na economia, portanto, como fruto da teoria
neoliberal, é exceção, sendo que a regra é a exploração das atividades por
particulares. Segundo Uadi Lammêgo Bulos,
Logo, o dispositivo delimitou a esfera da iniciativa econômica
pública e privada, atendendo a reivindicações privatistas. Ao fazê-lo,
traçou um novo perfil estatal no campo da economia, restringindo a
participação do Estado, o qual, para explorar diretamente uma
atividade econômica, deverá resguardar a própria soberania
16
17
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes,
1998, p. 390.
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2009,
p. 1262.
17
nacional (imperativos de segurança nacional) ou os interesses
maiores da sociedade (relevante interesse coletivo).18
O fato é que a norma do art. 173, da CF, possui eficácia contida, à
medida que remete à posterior regulação em lei. Isso leva à inarredável
conclusão de que, antes da edição desta Lei, nenhuma forma de atuação
empresarial do Estado poderia estar autorizada.
Ademais, a Constituição de 1988 restringiu a possibilidade de
interferência do Estado na ordem econômica, não mais falando em
intervenção, mas sim em atuação.
Hoje, com frequência, o Estado cria pessoas jurídicas a ele vinculadas,
destinadas mais apropriadamente à execução de atividades mercantis. Para
tanto, institui empresas públicas e sociedades de economia mista, entidades
adequadas a tais objetivos. Embora sejam pessoas autônomas, que não se
confundem com a pessoa jurídica do Estado, é ele que as controla, dirige e
impõe a execução de seus objetivos institucionais. Assim, se são elas que
exploram diretamente a atividade econômica, é o Estado que, em última
instância, intervém na ordem econômica; noutras palavras, há exploração
indireta de atividades econômicas pelo Estado.
Dessa forma, a atual Constituição Federal assegurou a atuação
supletiva do Estado na atividade econômica, não mais com a intervenção,
que se vinha praticando com muita frequência e ilegalidade antes da edição
da referida Carta.
18
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2009,
p. 1262.
18
III. A EXPLORAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA PELAS EMPRESAS
ESTATAIS
A carta de 1988 restringiu a possibilidade de interferência do Estado na
ordem econômica, não mais falando de intervenção, mas sim de atuação,
conforme o seu artigo 173.
O artigo 173, caput, e §4º, da CF19 tem de ser interpretado
conjugadamente com o art. 170, IV e parágrafo único20, pois a exploração de
atividades econômicas cabe, via de regra, à iniciativa privada, um dos
postulados fundamentais do regime capitalista. Dessa forma, a possibilidade
que a Constituição admitiu no art.173 há de ser considerada como tendo
caráter excepcional. Por isso é que o próprio texto estabeleceu os limites que
ensejariam essa forma de atuar do Estado. Por derradeiro, não é difícil
perceber que a leitura do texto indica claramente que a regra é que o Estado
não explore atividades econômicas, podendo fazê-lo, contudo, em caráter
especial, quando estiverem presentes os pressupostos nele consignados.
Segundo Hely Lopes Meirelles,
Atuar é intervir na iniciativa privada. Por isso mesmo, a atuação
estatal só se justifica como exceção à liberdade individual, nos
casos expressamente permitidos pela Constituição e na forma que a
lei estabelecer. O modo de atuação pode variar segundo o objeto, o
motivo e o interesse público a amparar. Tal interferência pode ir
desde a repressão a abuso do poder econômico até as medidas
19
20
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de
atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da
segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. (...) §4º. a
lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação
da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça
social, observados os seguintes princípios: (...) IV - livre concorrência; (...) Parágrafo único.
É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica,
independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
19
mais atenuadas de controle do abastecimento e de tabelamento de
preços, sem excluir outras formas que o Poder Público julgar
adequadas em cada caso particular. O essencial é que as medidas
interventivas estejam previstas em lei e sejam executadas pela
21
União ou por seus delegados legalmente autorizados.”
Mantendo a orientação da Constituição de 1967, a atual Carta
assegurou à iniciativa privada a preferência para exploração da atividade
econômica, atribuindo ao Estado somente as funções de fiscalização,
incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e
indicativo para o setor privado, a teor do artigo 174, da CF22.
Quanto à maneira de intervenção do Estado na economia, Diogo de
Figueiredo Moreira Neto, assim classifica:
Essas instituições interventivas se classificam em quatro
modalidades:
regulatórias,
concorrenciais,
monopolistas
e
sancionatórias. Pela intervenção regulatória, em que o Estado
impõe uma ordenação coagente aos processos econômicos; pela
intervenção concorrencial, em que o Estado compete com a
sociedade no desempenho de atividades econômicas empresariais;
pela intervenção monopolistas, em que o Estado se impõe com
exclusividade na exploração econômica de certos bens ou serviços;
e pela intervenção sancionatória, em que o Estado pune os abusos
e excessos praticados contra a ordem econômica e financeira,
23
incluída a economia popular e interesses gerais correlatos.
José dos Santos Carvalho Filho, declara que o Estado pode assumir
duas posições como titular de atividades econômicas:
21
22
23
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 36. ed. São Paulo: Malheiros,
2010, p. 672-673.
Art. 174, caput, da Constituição Federal: - Como agente normativo e regulador da atividade
econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e
planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor
privado.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 15. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2009, p. 527.
20
O Estado atua de duas formas na ordem econômica. Numa primeira,
é ele o agente regulador do sistema econômico. Nessa posição, cria
normas, estabelece restrições e faz um diagnóstico social das
condições econômicas. É um fiscal da ordem econômica organizada
pelos particulares, pode-se dizer que, sob esse ângulo, temos o
Estado Regulador. Noutra forma de atuar, que tem caráter especial,
o Estado executa atividades econômicas que, em princípio, estão
destinadas à iniciativa privada. Aqui a atividade estatal pode estar
mais ou menos aproximada à atuação das empresas privadas. O
certo, porém, é que não se limita a fiscalizar as atividades
econômicas, mas ingressa efetivamente no plano da sua execução.
Seja qual for a posição que assuma, o Estado, mesmo quando
explora atividades econômicas, há de ter sempre em mira o
interesse, direto ou indireto, da coletividade. Podemos considerá-lo
24
nesse ângulo como Estado executor.
Nessa esteira, apresentam-se como forma mais comum de exploração
da atividade econômica pelo Estado as empresas estatais, a saber,
sociedades de economia mista e empresas públicas.
As sociedades de economia mista e as empresas públicas são as
empresas estatais vinculadas ao Estado às quais se atribui a tarefa de intervir
diretamente no domínio econômico.
Essa exploração indireta de atividades econômicas pelo Estado tem
previsão no art. 173, §1º, da CF, segundo o qual a lei deverá estabelecer o
estatuto jurídico da empresa estatal que explore atividade econômica de
produção, de comercialização de bens ou de prestação de serviço.
A referida disposição legal destaca vários aspectos, como função
social, forma de fiscalização pelo Estado e pela sociedade e sujeição sob
regime jurídico das empresas privadas, inclusive no âmbito civil, trabalhista,
comercial e tributário.
24
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 23. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Júris, 2010, p. 991.
21
Quando as sociedades de economia mista e as empresas públicas
exercem atividades econômicas, como são dotadas de personalidade jurídica
de direito privado, podem agir como verdadeiros particulares no campo
mercantil, seja no setor de comércio e indústria, seja em prestações de
serviços.
Essas empresas estatais só se justificam quando suas congêneres
particulares forem insuficientes para atender à demanda do mercado em
obras, produtos ou serviços, pois o Poder Público não pode nem deve
competir com as atividades da indústria ou do comércio.
O texto constitucional de 1988, portanto, consagrou uma economia
descentralizada, de mercado, sujeita à forte atuação do Estado, de caráter
normativo e regulador, permitindo que ele explore diretamente atividade
econômica quando necessária aos imperativos de segurança nacional ou de
relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei (art. 173, da CF).
Segundo os ensinamentos de José dos Santos Carvalho Filho, a
Constituição não deixa liberdade para o Estado explorar atividades
econômicas, mas, ao contrário, aponta três pressupostos que legitima a
intervenção:
O primeiro é a segurança nacional, pressuposto de natureza
claramente política. Se a ordem econômica conduzida pelos
particulares estiver causando algum risco à soberania do país, fica o
Estado autorizado a intervir no domínio econômico, direta ou
indiretamente, tudo com vistas a restabelecer a paz e a ordem
sociais.
O outro pressuposto é o interesse coletivo relevante. A noção de
interesse
coletivo
relevante
constitui
conceito
jurídico
indeterminado, porque lhe faltam a precisão e a identificação
necessárias a sua determinabilidade. Por essa razão, a
Constituição admitiu que essa noção viesse a ser definida em lei.
Desse modo, será necessário que o Governo edite a lei definidora
do que é interessante coletivo relevante para permitir a
intervenção legítima do Estado no domínio econômico.
22
Há um terceiro pressuposto que está implícito no texto. O
dispositivo, ao ressalvar os casos previstos na Constituição, está
admitindo que o só fato de haver disposição em que haja
permissividade interventiva contida no texto constitucional é
suficiente para autorizar a exploração da atividade econômica pelo
Estado, independentemente de ter hipótese de segurança nacional
ou de interesse coletivo relevante. Há, de fato, interesse coletivo
relevante presumido, porque constante da Constituição, muito
25
embora não tenha sido ele definido em lei.
IV. CONCLUSÃO
Por todos esses elementos, podemos dizer, em suma, que a atuação
do Estado como explorador da atividade econômica é, em princípio, vedada,
só sendo permitida quando for exigida a segurança nacional, o interesse da
coletividade de forma relevante e o expresso permissivo constitucional.
Acresce que as exigências constitucionais que podem caracterizar a
excepcionalidade da atividade empresarial do Estado, segurança nacional e
relevante interesse coletivo, não devem apenas estar invocadas como
efetivamente existirem. Não há discricionariedade legislativa para inventar
hipóteses de segurança nacional e de relevante interesse coletivo, mas, tão
somente, para identificá-las quando de fato existam.
A rigorosa aplicação do artigo 173, da CF, obriga o Estado a rever o
fundamento jurídico de suas respectivas empresas estatais e, por certo,
haverá muitas delas concorrendo inconstitucionalmente em atividades
econômicas reservadas ao setor privado, como na construção civil, na
mineração, na fabricação de produtos não monopolizados, nos transportes,
etc.
25
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 23. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Júris, 2010, p. 1009.
23
De qualquer modo, é fato que somente dentro das limitadas hipóteses
constitucionais o Estado pode ser empresário, se houver interesse coletivo
relevante ou pela manutenção da soberania nacional.
Em última instância, não deve mesmo o Estado exercer a função de
explorar atividades econômicas. Seu papel é realmente de regular, controlar e
fiscalizar, deixando o desempenho para as empresas da iniciativa privada.
24
REFERÊNCIAS
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Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987.
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25
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26
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