EDITORIAL
Aterosclerose: estudos
recentes apontam causas
para além das dislipidemias
Menopausa e sistema
imune, uma relação
a ser desvendada
www.revistapesquisamedica.com.br
Número 17 - Jan-Mar/2011
Do laboratório à prática clínica
Inovação
é a palavra
de ordem
Multiplicam-se as
políticas de incentivo
à pesquisa voltada
ao desenvolvimento
de fármacos e
novas tecnologias
para a saúde
A
inovação em tecnologia para suprir as necessidades do complexo
industrial de saúde e reduzir o déficit anual que onera o sistema
universal de assistência entrou na ordem do dia das políticas públicas. Não faltam verbas para financiar a articulação de redes de
ISSN: 1980-2412 R$ 14,90
pesquisa e desenvolvimento e aproximar os principais atores envolvidos, cientistas, engenheiros e empresas farmacêuticas e de produtos médicos e hospitalares.
Mas o caminho da transferência de conhecimento da pesquisa científica para a
indústria não está desimpedido, mostra o Especial Inovação publicado nesta edi-
Editora responsável: Silvia Campolim
Editores contribuintes: Giuliano Agmont e
Alice Giraldi
Editoração e arte: Cleber Estevam
Revisão: Glair Picolo Coimbra e Mônica Ludvich
Assistente de redação: Angela Helena Viel
Web: Vinicius Patricio Pizzi
Colaboraram neste número
Cecília Proença, Frances Jones, Julio Zanella,
Naylora Troster, Valquiria Dinis, Vanessa Santana
e Tomás Troster
A revista Pesquisa Médica é uma publicação
da Segmento Farma Editores Ltda.
Diretor-geral: Idelcio D. Patricio
Diretor executivo: Jorge Rangel
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Médica é de responsabilidade exclusiva da
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ção da Pesquisa Médica. A inadequação da lei de patentes e a lentidão de operação do INPI, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial, são os principais
obstáculos que afastam os empreendedores, segundo os cientistas. Veja a entrevista com o coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para o
Desenvolvimento de Fármacos e Medicamentos, o INTC-INOFAR, professor
Eliezer J. Barreiro. A falta de pessoal técnico e infraestrutura para as fases de
pesquisa pré-clínica, com animais, começa a ser resolvida, informa a reportagem
Abrindo a Gaiola, à página 16. Confira.
Atos de autoviolência que culminam no suicídio ocupam atualmente o primeiro lugar entre as causas de morte não natural, na maioria dos países desenvolvidos, e esta edição revela como essa tendência já vem sendo observada no Brasil.
Além disso, a prática registrada historicamente entre pessoas mais velhas vem
se tornando mais incidente entre indivíduos jovens, de 15 a 44 anos. Os índices
de depressão e suicídio são, ainda, mais elevados entre médicos e estudantes de
medicina, comparativamente às taxas registradas na população em geral, informa o texto A Angústia de Hipócrates. E esses profissionais resistem mais a
procurar ajuda. Veja mais à página 39.
Boa leitura.
Precisamos de sua opinião para melhorar a
Pesquisa Médica. Deixe suas observações no
site: www.revistapesquisamedica.com.br
Silvia Campolim
Editora responsável
sumário
Neurociência
4 Da ficção à realidade
Climatério e
sistema imune
6 Relação complexa
Referência científica
9 Biblioteca médica online
ESPECIAL | INOVAÇÃO
14 Chegou
a hora
de publicar menos
e patentear mais
O país desenvolveu produção científica
e avançou posições no index dos
maiores do mundo na pesquisa e
publicação de artigos, mas os resultados
não atravessaram a fronteira da
universidade para o mundo da produção
e do mercado de alta tecnologia
16 Abrindo a gaiola
O roteiro da inovação no setor de saúde inclui
a construção de biotérios, infraestrutura de
laboratórios certificados por boas práticas
de pesquisa e iniciativas empreendedoras
de pesquisadores desconfortáveis
com as limitações da academia
22 As pedras no caminho
da inovação em fármacos
Na falta de normas jurídicas e processos de
reconhecimento da propriedade intelectual
bem resolvidos, os pesquisadores articulam
parcerias para transferência de tecnologia
na base da palavra e improvisam soluções
para avançar com as pesquisas
26 A história incomum
do P-MAPA
Errata
A chamada de capa do artigo
sobre o uso do escore de
cálcio na avaliação de risco do
paciente cardíaco (Pesquisa
Médica − Edição no 15) e o título
foram equivocados. O escore
de cálcio continua sendo uma
certeza, como parâmetro para
avaliação do risco, na maioria
dos pacientes assintomáticos.
Para os sintomáticos, com dor no
peito, é que o escore não é um
parâmetro tão bom e os médicos
precisam usar outros métodos.
Um fármaco 100% nacional cujo desenvolvimento
seguiu uma trilha alternativa ao tradicional
modelo de inovação farmacêutica e foi aprovado
em testes clínicos nos renomados Institutos
Nacionais de Saúde dos Estados Unidos
31 P&D no complexo
industrial de saúde
Os órgãos de fomento à pesquisa e
desenvolvimento do governo trabalham para
recuperar o atraso na produção de tecnologias
que levem à independência do país das
importações de insumos estratégicos e à
superação do déficit na balança comercial
Infectologia
10 Febre sem causa aparente
Exames e condutas
recomendados para
o estabelecimento
do diagnóstico
e tratamento
adequado
CÁRDIO-ONCOLOGIA
48 Iniciativa pioneira
Especialistas brasileiros saem na frente
e criam normas inéditas no mundo
para contemplar o risco de problemas
cardíacos causados pelo tratamento
quimioterápico contra o câncer
Psiquiatria
34 A vida
por um fio
Perto de um milhão
de pessoas, entre elas
um número crescente
de jovens, põe fim à
própria vida todos
os anos. Medidas
simples, como terapia
breve e seguimento
por telefone,
poderiam evitar esse
desfecho trágico
Conversando
com os especialistas
52 Para além da aterosclerose
Embora o controle das taxas de LDLcolesterol no sangue ainda represente o
tratamento de escolha para conter o avanço
das placas ateroscleróticas, responsáveis
por cerca de 30% da mortalidade
mundial, o entendimento da doença
passa por profundas transformações
Neurociências
42 Musculação cerebral
Pesquisadores investigam
as alterações anatômicas
e funcionais que a prática
da meditação produz
no cérebro e mapeiam
seus benefícios para a
saúde física e mental
Cardiologia
46 Interação
questionada
Novo estudo sobre o
uso concomitante de
clopidogrel e omeprazol
em pacientes com
doença coronariana
conclui que não há risco
de evento cardíaco,
ao contrário do que
preconiza norma de 2009,
estabelecida pelo FDA
Vendo por dentro
60 Risco de overdose
preocupa especialistas
Os médicos sabem pouco sobre os riscos
de indução de câncer associados ao uso
de tecnologias de imagens para realização
de diagnósticos. Diante do problema, o
FDA acaba de lançar uma convocação para
reduzir os efeitos deletérios de tomografias
computadorizadas, fluoroscopias
e técnicas de medicina nuclear
do laboratório à prática clínica
Neurociência
Da ficção à
realidade
Como o aprendizado de leitura modifica redes neurais relacionadas
à visão e à linguagem? Faz diferença o aprendizado precoce
das letras, na infância, ou tardio? Novos estudos têm a resposta
Por
Naylora Troster*
R
ecentemente, ao terminar a leitura voraz de
um exemplar da cuidada edição americana
de Solar, o último livro do escritor britânico Ian McEwan, fui agradavelmente surpreendida
pelo apêndice, que coroa o livro como a “cereja do
bolo”. A nota comenta a origem renascentista do
padrão tipográfico Bembo, usado na impressão da
novela, que me encantou ao longo das quase 300
páginas pela simplicidade e elegância na sustentação do texto moderno e rocambolesco.
O fato de uma tipografia arcaica ainda ser eficiente nos dias atuais corrobora a teoria de Mark
Changizi, neurobiologista evolucionista norteamericano que, entre outras coisas, estuda por que
as letras têm a forma que têm. Changizi acredita
que os sistemas de escrita são formados por marcas
ou traços, como um repertório de caracteres, e que
sinais visuais de todos os idiomas têm a forma de
elementos da natureza. Analisando a combinação
de traçados na formação de caracteres, em mais de
100 sistemas de escrita usados ao longo da história
da humanidade, Changizi encontrou dois aspectos
semelhantes, que julga fundamentais para facilitar
a comunicação escrita: o número médio de traços
por caractere é relativamente pequeno (três) e os
caracteres têm cerca de 50% de redundância, independentemente do sistema de escrita, o que possibilita sua identificação, mesmo quando metade de
seus traços é removida.
Outra área interessante da pesquisa neurobiológica está relacionada ao processo de aquisição
de habilidades de leitura e seu impacto no desen4
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
volvimento cerebral. Como a escrita foi inventada há apenas 5 mil anos, pressupõe-se que não
tenha havido tempo para o desenvolvimento de
um sistema neural de leitura e que aprendamos
a ler por reúso ou reciclagem de algumas partes
do cérebro que evoluíram para outros propósitos.
O aprendizado da leitura, um evento fundamental
na vida da criança, é reconhecidamente capaz de modificar tanto a anatomia como a ativação cerebral.
A alfabetização desenvolve a audição, expandindo o
reconhecimento de fonemas (as menores unidades
da linguagem falada), o discurso e a visão. Estudos
de neuroimagem em crianças normais e disléxicas
demonstram que, com a aquisição da leitura, uma
área cerebral específica no córtex occipitotemporal
esquerdo, denominada área visual da forma da palavra, começa a responder a estímulos ortográficos
no aprendizado da escrita.
Como o aprendizado da leitura modifica redes
neurais relacionadas à visão e à linguagem?
Até recentemente, a maioria dos estudos relacionados à alfabetização apenas comparava analfabetos com adultos alfabetizados. Como não incluíam
“ex-analfabetos” – indivíduos alfabetizados na idade
adulta, que não frequentaram escolas –, os efeitos
da alfabetização confundiam-se com os da escolaridade. Um estudo internacional, recém-publicado no
perió­dico Science, separou os efeitos funcionais da escolaridade e da alfabetização, comparando analfabetos com adultos alfabetizados na infância e adultos
recentemente alfabetizados (ex-analfabetos).
kst
k
oc
De qualquer forma, a maior contribuição desse
estudo pode ter sido provar que a ideia de que
aprender a ler na idade adulta é mais difícil do que
na infância é pura ficção...
in
Th
O objetivo do estudo foi medir a atividade cerebral, por ressonância magnética funcional, em
indivíduos que não frequentaram escola nem
aprenderam a ler, e compará-la com a de indivíduos alfabetizados. O propósito da investigação era identificar se o aprendizado precoce
(na infância) ou tardio (na idade adulta)
faz diferença. A pesquisa foi conduzida na
França, com pacientes de Portugal, em colaboração com o pesquisador Paulo Ventura e colegas da Bélgica (Régine Kolinsky e José
Morais) e, simultaneamente, no Brasil, por Lucia
Braga, do Centro Internacional de Neurociências
da Rede Sarah (em Brasília), onde foram recrutados pacientes de diferentes níveis de alfabetização.
Foram escaneados 63 pacientes portugueses
e brasileiros. A amostra incluiu 32 adultos sem
escolaridade (10 analfabetos e 22 ex-analfabetos,
com habilidade variável de leitura) e 31 adultos
alfabetizados, com boa escolaridade. A habilidade de leitura foi verificada por testes de identificação de caracteres, leitura de palavras, falsas
palavras e frases.
A pesquisa concluiu que a alfabetização, quer adquirida na infância, quer na idade adulta, aumenta as respostas cerebrais de três formas distintas:
estimula a organização dos córtices visuais, principalmente por indução da área visual da forma da
palavra no córtex occipitotemporal esquerdo e por
aumento de respostas visuais precoces no córtex
occipital; ativa, virtualmente, por sentenças escritas, toda a área da fala no hemisfério esquerdo; e
refina o processamento da palavra falada por estimulação da região fonológica, o planum temporale.
Pode-se dizer, assim, que aprender a ler muda
as conexões cerebrais nas áreas da visão e linguagem. Embora aprender a ler na idade adulta
não pareça ser tão eficiente como na infância, os
ex-analfabetos apresentaram todas as alterações
cerebrais características da alfabetização, o que
significa que a eficiência pode apenas depender
da quantidade de treino. Houve apenas duas exceções, com menor intensidade de ativação cerebral
entre os adultos: a competição na área visual com
faces; e no córtex pré-frontal, área relacionada aos
gestos de escrever, que, intuitivamente, deve ser
mais ativada pelo treino de escrever na infância.
Fontes
Changizi MA, Shimojo S. Character complexity and
redundancy in writing systems over human history.
Proc Biol Sci. 2005;272(1560):267-75.
Dehaene S, Pegado F, Braga LW, et al. How learning
to read changes the cortical networks for vision and
language. Science. 2010;330(6009):1359-64.
Ian McEwan. Solar: a novel. 1.ed. New York: Nam A.
Talese; Doubleday, 2010.
* Médica psiquiatra pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP-TEP).
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
5
do laboratório à prática clínica
Climatério e sistema imune
Relação
complexa
A queda hormonal na menopausa tem impacto na atividade
das células de defesa do organismo feminino e torna as
mulheres mais vulneráveis às infecções virais, entre outras
afecções, como as doenças inflamatórias e cardiovasculares
Por
6
Silvia Campolim
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
do laboratório à prática clínica
Thinkstock
discute o efeito protetor da terapia hormonal,
da alimentação e do exercício na menopausa,
considerando esse quadro e a complexidade do
sistema imune, que na mulher madura se mostra mais do que nunca vulnerável.
O
s hormônios estrogênios interagem
com vários mecanismos do sistema
imune feminino e sua ausência, na
menopausa, afeta esse sistema, reafirmam estudos e revisões recentes dos brasileiros Maitelli e Medeiros e do português Camilo Castelo-Branco, de 2010. “A questão é examinada
desde meados do século passado no mundo.
Primeiro em estudos in vitro e em camundongos, experimentalmente. Nos últimos 30 anos,
em ensaios clínicos com mulheres na pós-menopausa”, observa Medeiros, professor do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da
Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Cuiabá, MT. Na entrevista a seguir, o pesquisador
Pesquisa Médica – O que é possível afirmar
sobre o impacto do hipoestrogenismo no sistema imunológico feminino? Já existem estudos
epidemiológicos sobre isso?
Medeiros – A forma de interação entre esteroides sexuais e sistema imune tem ainda hiatos a serem preenchidos. Mas tem relevância
científica o achado de receptores para estrogênios e androgênios em várias células do sistema
imune e a descoberta da modulação da atividade dessas células por parte desses esteroides.
Pode-se afirmar que o hipoestrogenismo está
associado à menor atividade das células de defesa (macrófagos, linfócitos T), o que aumenta
a vulnerabilidade da mulher, na pós-menopausa, às infecções virais e inibe sua capacidade
de atacar as células tumorais ou de estimular
o processo de cicatrização. A menopausa ainda
está associada a níveis elevados de substâncias
pró-inflamatórias envolvidas na gênese da aterosclerose e da osteoporose. Estudos epidemiológicos são escassos e têm focado mais a imunidade humoral relacionada às atividades pró e
anti-inflamatórias.
Pesquisa Médica – Mulheres têm maior prevalência de doenças autoimunes como lúpus,
artrite reumatoide, tireoidite etc., o que deixa
claro o papel dos hormônios femininos na gênese dessas condições, segundo os estudos. Mas
as doenças autoimunes refletem hiperatividade
e não declínio do sistema imunológico. Se os
estrogênios participam dessa gênese, essas doenças deveriam acabar após a menopausa, mas
não é isso que ocorre. Por quê?
Medeiros – A maior ocorrência de doenças autoimunes na mulher tem mesmo relação com os
esteroides sexuais. Esse fato sugere então hiperatividade do sistema imune na mulher, quando comparado ao do homem. Os mecanismos
são complexos e não explicam por que, com
a menopausa, a artrite reumatoide, o lúpus e
“O
hipoestrogenismo
aumenta a
vulnerabilidade
da mulher, na
pós-menopausa,
às infecções
virais e inibe
sua capacidade
de atacar as
células tumorais
ou estimular
o processo de
cicatrização”
(Medeiros)
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
7
do laboratório à prática clínica
“A menopausa
está associada
a níveis
elevados de
substâncias próinflamatórias
envolvidas
na gênese da
aterosclerose e
da osteoporose”
(Medeiros)
a esclerose múltipla evoluem de modo distinto. Por exemplo, a artrite reumatoide tende a
piorar porque o estrogênio suprime a proliferação dos leucócitos T, inibe a maturação dos
linfócitos B na medula óssea e a produção de
células NK. Essas modificações parecem favoráveis à melhoria do lúpus, ainda que nessa
condição o estradiol tenha ação dependente
dos níveis circulantes. A reposição hormonal
é segura no lúpus. A esclerose múltipla pode
piorar com a menopausa e melhorar com a tera­pia hormonal.
Pesquisa Médica – Estudos animais mostram
a exacerbação da artrite reumatoide quando os
ovários dos “modelos” são extraídos. A doença
melhora quando os animais são tratados com
reposição de estrogênios. A reposição hormonal na pós-menopausa em mulheres com artrite
também parece ter efeito benéfico. Tendo em
conta os estudos feitos sobre o tema, já se sabe
quais formulações são mais eficazes, ou que tipo
de TH funciona melhor?
Medeiros – Embora haja melhora da artrite
reumatoide com a TH, não se pode dizer que
determinada combinação seja melhor que outra. Tanto estradiol como estrogênios conjugados e medroxiprogesterona ou noretisterona têm sido usados com resultados parecidos.
Os novos progestogênios hoje disponíveis tendem a ganhar espaço nos próximos estudos. Em
nosso centro, estamos estudando a combinação
de estradiol com drospirenona.
Pesquisa Médica – Para avaliar e tratar as
doen­ças autoimunes na mulher em cada fase –
da idade reprodutiva à perimenopausa e pósmenopausa –, os médicos devem levar em conta
o papel dos estrogênios? Como?
Medeiros – Os protocolos disponíveis para
controlar as doenças autoimunes na mulher em
idade reprodutiva já consideram a modulação
dos esteroides sexuais. Reumatologistas não
têm orientação específica para os diferentes períodos de vida da mulher. Mas é importante que
o ginecologista tenha conhecimento do papel
desses esteroides no curso dessas condições.
As diretrizes recomendam hoje o uso da menor
dose eficaz e de estrogênios naturais.
8
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
Pesquisa Médica – Seus estudos mostram que
o equilíbrio do sistema imune é alterado por um
conjunto de variáveis na menopausa. Poderia resumir em linhas gerais as principais alterações
que elevam a suscetibilidade do organismo feminino às infecções e aos ataques virais?
Medeiros – Mulheres tendem a ter níveis mais
elevados de imunoglobulinas e maior resposta
imune humoral do que os homens. Assim respondem melhor às infecções bacterianas e virais ou
a antígenos não próprios. Essa diferença tende a
diminuir após a menopausa. O hipoestrogenismo
resulta em menor secreção de IL-10 (potente citocina anti-inflamatória) pelos monócitos, menor
secreção de interferon gama e interleucina-2, responsáveis pela indução da imunidade celular, que
é responsável pela defesa contra agentes estranhos.
Pesquisa Médica – É possível melhorar o sistema imune depois da menopausa para além da
TH? Com quais terapias ou esquemas, como vitaminas, prática de atividade física etc.?
Medeiros – Há evidências suficientes para afirmar
que a resposta imune no período pós-menopausa
pode ser beneficiada também por atividade física
associada à reposição hormonal. Atividade de moderada intensidade melhora a imunocompetência.
Deve-se assegurar o fornecimento adequado de
energia, proteínas, vitaminas e minerais. Dietas
ricas em aminoácidos essenciais e antioxidantes
melhoram a resposta imune. A ingestão de produtos derivados de soja pode atenuar a resposta imune ao diminuir a formação de anticorpos
e leucócitos. No entanto, nesse tópico os estudos
são ainda inconsistentes.
Fontes
Gameiro CM, Romão F, Castelo-Branco C. Menopause and aging: changes in the immune system −
A review. Maturitas. 2010 Ago 31. doi:10.1016/j.
maturitas.2010.08.003
Maitelli A, Medeiros SF. Cellular and humoral immune responses after short-term oral hormone
therapy in post-menopausal women. A pilot cohort
study. Disponível em: www.clinicaintro.com.br/index.php?option=com. Acessado em: 29 Nov 2010.
Medeiros SF, Maitelli A, Nince APB. Efeitos da terapia hormonal na menopausa sobre o sistema imune.
Rev Bras Ginecol Obstet. 2007;29(11):593-601.
do laboratório à prática clínica
Referência científica
De médico para
médicos
O site brasileiro MedWebPesquisa, de acesso livre para profissionais da área médica,
tem conteúdos e orientação de busca organizada de material científico na internet
U
ma biblioteca médica online, organizada
por especialidade, com informações para
facilitar a pesquisa e o uso imediato de referências científicas na prática clínica, é a proposta
do site www.medwebpesquisa.com.br, organizado e
mantido pelo cardiologista Paulo Fernando Leite,
de Belo Horizonte (MG). A proposta do portal é
oferecer aos médicos brasileiros um atalho para a
busca de referências científicas em outros catálogos livres de jornais médicos, como o PubMed e
a biblioteca SciELO. “Atualizamos mensalmente o
site, sempre com novos artigos e links de interesse
científico”, diz o cardiologista. Um dos diferenciais
do portal é a veiculação de artigos de revistas médicas brasileiras que não são indexadas em outras
bibliotecas virtuais, como o PubMed. O recurso é
particularmente útil para mais da metade dos médicos brasileiros, que não leem artigos em inglês”,
explica Paulo Fernando Leite, especializado em
educação médica online.
No ar desde 2008, com acesso gratuito mediante cadastro, o MedWebPesquisa disponibiliza online cerca de 3 mil artigos de revisão e diretrizes
médicas, em mais de 20 especialidades. Oferece,
ainda, de forma organizada, os endereços (links)
para, aproximadamente, 1.200 revistas médicas
online. Quatro botões no menu indicam os conteúdos de livre acesso. São eles: Diretrizes Médicas, MedWebGuia, Publicações Médicas Online
e Jornal MedWebPesquisa. Além de ter acesso
ao conteúdo, os médicos cadastrados podem solicitar informações e sugerir novos conteúdos à
equipe do site. “Recebemos recentemente a sugestão para incluir sites de medicina reprodutiva
e da família. Também temos pedidos mais especí-
ficos, como de artigos sobre neurofibromatose e
sobre dor e acupuntura, estes encaminhados por
fisiatras”, conta o médico Paulo Fernando Leite.
Ele menciona que pesquisas feitas no portal têm
mostrado que o médico internauta busca conteú­
dos relacionados a casos clínicos e farmacologia
clínica, por doença. “Vamos caminhar para atender a essa demanda. Também queremos incrementar a parte de imagem do site, oferecendo
vídeos e imagens médicas acompanhadas de conferências e casos clínicos.” Guidelines por especialidades
A seção Diretrizes Médicas reúne publicações de
quase todas as áreas, que foram divulgadas a partir
de 2009. Ao todo, há normatizações para a prática
clínica de 36 especialidades, de alergia a imunopatologia, passando por hematologia e infectologia,
até oncologia, pediatria e radiologia. No item Med
WebGuia, o internauta encontra uma seleção de
sites de referência classificados por associações médicas, doenças e condições clínicas. São quase 40
itens com subdivisões. Na área dedicada a publicações médicas online, estão relacionados links para
busca de conteúdos eletrônicos com textos completos, os chamados free fulltext. Os artigos podem ser
localizados nas próprias publicações médicas, no
menu de arquivos (archive), edições anteriores (past
issues) ou mecanismo de busca (search). Quando há
menção a algum artigo específico, seu link é destacado na página do MedWebPesquisa. O portal produz, ainda, seu próprio jornal, com características
de blog, atualizado quinzenalmente por categorias.
São notícias, internet médica, informática, agenda,
assuntos clínicos, livraria e farmacologia.
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
9
INFECTOLOGIA
Febre
sem causa
aparente
Doenças comuns que acometem a população
com frequência, mas cuja apresentação clínica
se dá de forma atípica, estão por trás da maioria
dos casos de febre de origem indeterminada ou
FOI, como é abreviada. A seguir, os exames e
condutas recomendados para o estabelecimento
do diagnóstico e tratamento adequado
Por
Valquiria Dinis
D
oenças inflamatórias, infecciosas, malignidades, drogas, distúrbios hipotalâmicos e doença factícia podem ser causas
de febre. Mas há também uma entidade clínica
denominada febre de origem indeterminada, cujo
nome já indica que sua etiologia é de difícil elucidação mesmo após intensa busca diagnóstica.
Os critérios que a caracterizam são temperatura
corpórea superior a 37,8°C, medida em diversas
ocasiões, com duração superior a três semanas e
diagnóstico incerto após uma semana de investigação hospitalar.
A prevalência da FOI em pacientes hospitalizados é de 2,9%, segundo estudo publicado em
2003 por Mourad e colegas na revista Archives of
Internal Medicine, que aponta entre as principais
etiologias as doenças infecciosas, neoplásicas e
10
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
inflamatórias. A avaliação diagnóstica pode falhar
na identificação da etiologia em cerca de 30% a
50% dos casos, informa Mourad, embora a maioria dos adultos que permanecem sem diagnóstico
apresente bom prognóstico.
A investigação mínima hospitalar para que se
caracterize a FOI deve conter história e exame
físico, hemograma completo com diferencial, hemoculturas (três pares de amostras retiradas de
diferentes sítios com intervalo de coleta entre as
amostras de algumas horas e sem a administração
de antibióticos), além de bioquímica, função hepática, urina I e urocultura, radiografia de tórax,
fator antinuclear (FAN), fator reumatoide, sorologia para HIV, hepatites virais e pesquisa de IgM
para citomegalovírus (CMV). Caso exista algum
sinal ou sintoma que aponte para o acometimen-
Thinkstock
INFECTOLOGIA
to de determinado órgão, mais exames devem
ser solicitados de acordo com a suspeita clínica.
Tuberculose e abscessos
A maioria das causas de FOI são doenças comuns,
que acometem a população com frequência, mas
cuja apresentação clínica se dá de forma atípica. Por
exemplo, entre as causas infecciosas mais comuns
de FOI, apesar da grande diversidade de patologias, estão abscessos ocultos e tuberculose, sendo
esta última a origem mais comum. Entre as apresentações clínicas que escapam da detecção precoce, estão a tuberculose extrapulmonar, a miliar e
a tuberculose de pacientes com imunodeficiência
ou com história de doença pulmonar preexistente.
O teste de PPD (do inglês purified protein derivative)
é positivo em menos de 50% dos pacientes, nestes
casos, geralmente em decorrência de anergia cutânea, e a pesquisa de BK no escarro é positiva em
apenas 25%. Em razão de tais dificuldades, o diagnóstico é estabelecido apenas após a coleta de biópsia de linfonodos, medula óssea ou fígado. Quanto
aos abscessos ocultos, usualmente se localizam no
abdômen e na pelve. Algumas condições que predispõem sua formação incluem cirrose, esteroides,
medicações imunossupressoras, cirurgia recente e
diabetes. Os locais mais comuns de abscessos ocultos são o espaço subfrênico, omento, saco de Douglas, pelve e retroperitônio.
Outras infecções que podem causar FOI são osteomielite e endocardite bacteriana. Na endocardite,
os critérios de Duke apresentam uma especificidade
de 99% para o diagnóstico, embora em 2% a 5% dos
casos as hemoculturas possam vir negativas, prinN o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
11
INFECTOLOGIA
Ponto-chave
na investigação
sobre a origem
da febre,
história clínica
deve avaliar
viagens, contato
com animais,
presença de
imunossupressão,
uso de
medicações,
exposição
a produtos
tóxicos e
questionamento
sobre localização
de sintomas
cipalmente quando os pacientes fizeram uso prévio
de antibióticos. Alguns microrganismos que podem
levar ao aparecimento de culturas negativas porque necessitam de meios especiais para cultivo, ou
apresentam período de incubação mais prolongado,
são Coxiella burnetii (febre Q), Tropheryma whipplei,
Brucella, Mycoplasma, Chlamydia, Histoplasma, Legionella, Bartonella, Haemophilus spp., Actinobacillus,
Cardiobacterium, Eikenella e Kingella. O ecocardiograma transesofágico é positivo em mais de 90% dos
casos de endocardite que se apresentam como FOI.
Entre as doenças inflamatórias, as duas principais causas por trás de FOI são a doença de Stil
do adulto e arterite de células gigantes − esta última é responsável por 15% das ocorrências em
idosos. A doença de Stil do adulto se caracteriza
por febre, artrite e erupções na pele. A arterite de
células gigantes se apresenta com cefaleia, déficit
visual, sintomas de polimialgia reumática, aumento do VHS (velocidade de hemossedimentação)
e claudicação de mandíbula; a biópsia de artéria
temporal é sugerida em casos suspeitos. Outras
doenças reumáticas causadoras de FOI são a poliarterite nodosa, a arterite de Takayasu, granulomatose de Wegener e crioglobulinemia mista.
FEBRE DE ORIGEM INDETERMINADA:
PRINCIPAIS VARIÁVEIS
» Idade
» Crianças
um terço das FOI é decorrente de
doenças virais autolimitadas
»
Adultos
as causas incluem doenças reumatológicas,
vasculites, arterite de células gigantes, polimialgia
reumática, sarcoidose, infecções e neoplasias
»
Lugar de origem
as doenças causadoras da FOI
variam entre as regiões do mundo
»
Suscetibilidade do
hospedeiro a infecções
»
Aids
as causas de FOI variam de acordo
com o grau de imunossupressão
»
Neutropenia
as causas mais comuns de episódios febris
são as infecções bacterianas, mas podem
também ser decorrentes de infecções fúngicas,
medicações e pela própria doença de base
12
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
Causas neoplásicas
As malignidades responsáveis pela FOI incluem
leucemias, linfoma, especialmente não Hodgkin,
carcinoma de células renais, carcinoma hepatocelular e tumores metastáticos do fígado, mieloma
múltiplo e mixoma atrial. Mas vale lembrar que
algumas medicações também podem causar febre
mediante efeitos alergênicos, reações idiossincráticas ou por afetarem o centro termorregulador.
Nesses casos, a eosinofilia e as erupções acompanham o quadro em apenas 25% das vezes, e a ausência desses achados não exclui drogas como causa da febre. A reação tem início geralmente após
a introdução da droga, embora existam casos de
reações após anos de uso. O diagnóstico é feito por
meio de prova terapêutica, com a retirada da medicação e o desaparecimento dos sintomas, que na
maioria dos casos se dá nas primeiras 72 horas. Em
uma minoria, os sintomas podem demorar semanas
para desaparecer. As medicações mais relacionadas
a episódios febris são os antimicrobianos (sulfonamidas, penicilina, nitrofurantoína, vacomicina,
antimaláricos), anti-histamínicos bloqueadores dos
receptores H1 e H2, anticonvulsivantes (barbitúricos e fenitoína), anti-inflamatórios não esteroides
(AINEs), anti-hipertensivos (hidralazina e metildopa), anti-arrítmicos (quinidina e procainamida),
antitireoidianos e quinino.
Causas menos comuns de FOI incluem febre factícia, alteração da termostase, abscesso dentário,
hepatite alcoólica e infecções como febre Q, leptospirose, tularemia, entre outras. As principais
variáveis associadas com a frequência das doenças
causadoras de FOI são descritas no quadro Febre de
origem indeterminada, ao lado.
Diagnóstico e tratamento
Alguns pontos-chave são essenciais na investigação sobre a origem da febre, como a história clínica,
que deve incluir investigação de viagens, contato
com animais, presença de imunossupressão, uso
de medicações, entre elas, antibióticos, exposição a
produtos tóxicos e questionamento sobre localização de sintomas. A revisão da história clínica, em
diferentes momentos, pode fornecer novas pistas
diagnósticas. O grau de febre, a característica, a
presença de toxemia e a resposta aos antipiréticos
parecem não mostrar tanta especificidade para o
diagnóstico, embora sirvam para o estabelecimento
de parâmetros de piora ou melhora do doente.
INFECTOLOGIA
Testes laboratoriais adicionais, como o VHS,
além dos testes básicos que estabelecem a presença
de FOI, são recomendáveis. Um estudo publicado
por Zacharski e Kyle entre 263 pacientes com FOI
revelou que elevações acima de 100 mm/h apresentavam relação com a presença de malignidade
em 58% dos casos. As mais comuns foram linfomas,
mieloma, câncer metastático de cólon ou mama. Em
25% dos casos, havia processo infeccioso, como endocardite ou doenças inflamatórias, artrite reumatoide e arterite de células gigantes. O uso do teste
VHS tem um papel importante ao revelar doenças
potencialmente graves, embora algumas condições
de base, como hipersensibilidade a drogas, tromboflebites e doenças renais, possam ser responsáveis
pelo aumento da VHS. Os testes laboratoriais recomendados para o diagnóstico da FOI estão no
quadro ao lado.
A tomografia computadorizada (TC) de tórax e
abdômen é um bom exame de imagem para procura de abscessos ocultos e hematomas. A presença
de linfonodomegalias abdominais pode sugerir a
presença de linfomas ou doenças granulomatosas.
Além disso, na TC de tórax é possível identificar
pequenos nódulos e adenomegalias em hilo ou mediastino. O uso de testes de medicina nuclear ainda
é controverso na literatura. Tais exames são inespecíficos para localização do lugar acometido, daí
os especialistas recomendarem como primeira investigação a TC de tórax e abdômen. Na falta de
elucidação da causa, são indicados os testes de medicina nuclear de corpo inteiro.
A biópsia pode ser uma modalidade útil e os sítios
mais utilizados para amostragem são linfonodos,
medula óssea e fígado. Segundo artigo publicado
por Lambertucci e colegas na Revista da Sociedade
Brasileira de Medicina Tropical, em 2005, deve ser
feita biópsia de linfonodos sempre que estes estiverem com tamanho aumentado. A de medula óssea
também deve ser realizada, mesmo na ausência de
alterações do sangue periférico. A biópsia hepática
fica reservada apenas para os casos de evidência de
doença do fígado. O Doppler de membros inferiores pode ser, ainda, uma boa opção, visto que 2% da
trombose venosa profunda é apontada como responsável por 6% dos casos de febre sem diagnóstico.
No tratamento, o uso de antimicrobianos e glicocorticoides como tentativa de resolução do quadro
pode trazer mais prejuízo do que solução. Tais drogas
diminuem o rendimento de culturas e biópsias. Além
Testes laboratoriais recomendados
no diagnóstico da FOI
» Proteína C-reativa
» DHL
» PPD
» Sorologia para o HIV OU pesquisa
do vírus em paciente de alto risco
» Hemoculturas, caso não tenham sido solicitadas
» Fator reumatoide, FAN
» CPK
» Anticorpos heterófilos
» Eletroforese de proteínas séricas
» Hemograma completo com diferencial
» Hemoculturas: três pares de amostras
retiradas de diferentes sítios com intervalo de
coleta entre as amostras de algumas horas
e sem a administração de antibióticos
» Bioquímica, função hepática, urina I e urocultura
» Radiografia de tórax, fator antinuclear (FAN), fator
reumatoide, sorologia para HIV, hepatites virais
e pesquisa de IgM para citomegalovírus (CMV)
disso, os antibióticos podem tratar infecções não relacionadas com a causa da FOI. Portanto, o uso de antibioticoterapia empírica não é recomendado somente
para tratamento da febre. E a terapia com glicocorticoides não deve substituir a realização de biópsias,
uma vez que pode alterar o material no caso de patologias como sarcoidose, doenças granulomatosas e
vasculites. Diante desses fatores potencialmente confundidores, o tratamento só deve ser instituído após o
estabelecimento do diagnóstico definitivo.
Fontes
Lambertucci JR, Ávila RL, Voieta I. Febre de origem indeterminada em adultos. Rev Soc Bras Med Tropl.
2005;38(6):507-13.
Nunes MPT, et al. Clínica médica: grandes temas na
prática. São Paulo: Atheneu; 2010.
Mourad O, Palda V, Detsky AS. A comprehensive
evidence-based approach to fever of unknown origin.
Arch Intern Med. 2003;163:545-51.
Petersdorf RG, Beeson PB. Fever of unexplained origin: report on 100 cases. Medicine (Baltimore). 1961;40:1-30.
Zacharski LR, Kyle RA. Significance of extreme
elevation of erythrocyte sedimentation rate. JAMA.
1967;202:264-6.
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
13
ESPECIAL | INOVAÇÃO
Chegou
a hora de
publicar menos e
patentear
mais
O país desenvolveu produção científica e avançou posições no index dos maiores do
mundo na pesquisa e publicação de artigos, mas os resultados não atravessaram a
fronteira da universidade para o mundo da produção e do mercado de alta tecnologia
Por
Silvia Campolim e Tomás Troster
N
ão é de hoje que políticos e lideranças empresariais sabem da importância de produzir conhecimento para enfrentar a competitividade,
neste mundo global, pautado economicamente por quem
domina novas tecnologias. Mas há uma década, apenas,
que se praticam políticas efetivas para a criação de programas de pesquisa e desenvolvimento no setor produtivo, industrial e de serviços no país, lembram Carlos
Henrique de Brito Cruz e Hernan Chaimovich, autores
do capítulo sobre o Brasil, do recém-divulgado Relatório de Ciência da Unesco, em 20101. O documento tem
impacto no momento político atual, em que a transferência de tecnologia da universidade para a indústria, nos
vários ramos de produção, em particular, no de saúde,
tornou-se estratégica para o governo. O país, afinal, tem
recursos e massa crítica na universidade, produzindo
conhecimento de alto nível em várias áreas. O número
de mestres e doutores formados, de cerca de 5 mil em
1987, saltou para quase 50 mil em 2009. O país passou
a ocupar o 13º lugar no ranking dos maiores produtores
14
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
de ciência, medido pela quantidade de artigos publicados
(ver gráfico, à página ao lado). Chegou a hora de publicar
menos e patentear mais e transferir tecnologias, no caso
da pesquisa médica para o bem da saúde da população e
também da balança comercial, cada vez mais deficitária
(ver texto, à página 31).
Entre as medidas concretas que favorecem a decolagem dessa política voltada para o desenvolvimento de
P&D na indústria, os autores do relatório da Unesco-2010/Brasil mencionam providências, como a Lei de
Inovação, aprovada em 2004 pelo Congresso Nacional.
O lançamento, em 2003, da Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE) estabeleceu áreas
prioritárias para as ações de incentivo, entre elas, o desenvolvimento de fármacos, medicamentos, imunobiológicos, vacinas, kits de diagnóstico.
A chamada Lei do Bem, de 2005, que incentiva o investimento em P&D na indústria, também faz parte dessa escalada em prol da inovação. No artigo sobre os desafios do
desenvolvimento de medicamentos no Brasil2, o professor
ESPECIAL | INOVAÇÃO
roedores knock-out para servir de modelo de doenças,
entre outros. O compromisso de pesquisadores com
essa causa, da transferência de tecnologia do laboratório para a prática clínica, é condição sine qua non
para que a operação de transferência deslanche.
Atores dispostos a correr o risco de empreender
fazem diferença nesse processo. O químico especializado em biologia molecular João Bosco Pesquero
é um exemplo construtivo nesse sentido. Ele criou
o primeiro biotério de roedores knock-in do país, o
Centro de Desenvolvimento de Modelos Experimentais (Cedeme), da Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp), e acabou de montar a Helixxa, a
primeira empresa da América Latina de prestação
de serviços em análises de DNA e RNA, baseada em
plataformas de última geração, para investigação de
SNPs, do inglês Single Nucleotide Polymorphisms, e
sequenciamento genético e detecção de doenças autoimunes, erros inatos do metabolismo, oncogenes
ligados à formação de tumores, de mama, gástrico,
Infraestrutura a caminho
O ambiente mais favorável à interação entre uni- de útero, entre outros (ver página 20). “Os alunos
versidades e empresas para criação, desenvolvi- altamente qualificados que temos aqui, no Brasil,
mento e transferência de tecnologias, na prática, dentro das universidades, precisam empreender
está em formação. Há obstáculos a serem removi- mais. O país tem uma demanda muito grande, redos, gargalos a serem resolvidos, resistências a se- primida, em muitas áreas, tanto que a nossa emprerem superadas ou vencidas, principalmente quanto sa está indo às mil maravilhas, porque não existe
à falta de tradição de cooperação entre esses dois nada nessa área”, diz Pesquero, empolgado com as
importantes setores (ver gráfico, à página 20). Mas iniciativas possíveis e em verdadeira cruzada de
há esperança, em construção acelerada, como o convencimento. “Em todo lugar que vou dar palesCentro de Referência em Farmacologia Pré-Clí- tras, na UERJ [Universidade do Estado do Rio de
nica, de Florianópolis, Santa Catarina, dedicado à Janeiro], na Unicamp [Universidade Estadual de
busca de inovações e à integração entre a indústria Campinas], no interior de São Paulo, falo sobre isso.
e a pesquisa, que terá laboratório certificado para o Como coordenador de área na FAPESP [Fundação
desenvolvimento de linhagens de roedores SPF – de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo],
eu insisto, precisamos incentivar os pesquisadores
sigla do inglês specific pathogen free.
a empreender, dentro e fora da uniO Laboratório Nacional de Bio­
versidade, em parceria com empresas
ciências, LNBio, em Campinas, é ou- Artigos científicos
do setor de saúde, do contrário nunca
tra solução em fase de consolidação. escritos por autores
afiliados a instituições
Trata-se de uma organização social, brasileiras, 1992•2008 seremos competitivos.”
ou facilidade (do inglês facility), volNúmero
%
de artigos Mundo
tada para a prestação de serviços e o
científicos
Fontes
desenvolvimento de parceria com a 1992 4.301
0,8
1. Unesco Science Report, 2010. The
indústria. O LNBio dispõe de recur- 1994 4.363
0,8
Current Status of Science around the
sos para a pesquisa de ponta em me- 1996 5.723
0,9
World. Disponível em: http://www.
dicamentos, como o Laboratório Na- 1998 7.860
1,2
unesco.org/science/psd/publications/
cional de Luz Síncrotron (LNLS), que 2000 10.521
1,5
science_report2010.shtml
permite o estudo da estrutura mole- 2002 12.573
1,7
2. Calixto JB, Siqueira Jr JM. Desenvol1,9
cular de proteínas, ou o Laboratório 2004 15.436
vimento de medicamentos no Brasil: de2,1
de Modificação de Genoma (LMG), 2006 18.473
safios, Gazeta Médica da Bahia, 2008;78
2,7
(Supl 1):98-106.
em desenvolvimento, um biotério de 2008 26.482
do Departamento de Farmacologia da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), João B. Calixto,
menciona a criação do Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Cadeia Produtiva Farmacêutica
(Profarma) pelo Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES), em 2004, e sua renovação e ampliação, como outra providência importante
de apoio à inovação na área farmacêutica e de saúde.
A criação dos fundos setoriais e o lançamento posterior de inúmeros editais para financiamento de projetos de pesquisa em parceria entre universidades e
empresas são outras providências cruciais. O crescimento da economia nesta última década foi responsável pela multiplicação desse elenco de medidas, uma
vez que a autonomia financeira do país e a criação de
riquezas dependem, de agora em diante, mais do que
nunca, da inovação tecnológica, como as lideranças
políticas, empresariais e universitárias sabem.
Fonte: Thomson Reuters (Scientific) Inc. Web
of Science. UNESCO Science Report 2010
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
15
ESPECIAL | INOVAÇÃO
Abrindo
a
O roteiro da inovação no setor de
saúde inclui a construção de biotérios,
infraestrutura de laboratórios certificados
por boas práticas de pesquisa e iniciativas
empreendedoras de pesquisadores
bem-sucedidos na academia
Por
O
Silvia Campolim e Tomás Troster
Brasil ocupa posição de destaque no
mercado mundial de medicamentos. É o
nono colocado, com movimento estimado em 12 bilhões de dólares, só em medicamentos, segundo o instituto especializado em estatísticas do setor, o IMSHealth. Como o país ainda
importa grande parte dos insumos para o setor
e com as drogas biológicas que o Sistema Único
de Saúde (SUS) consome, por não dominar essas
tecnologias, acaba amargando déficit na balança
comercial de saúde de quase 8 bilhões de dólares.
Comparado a um país de industrialização recente
como a Coreia do Sul, a fragilidade tecnológica
brasileira é apreviável, lembra Carlos Morel, diretor do Centro de Desenvolvimento Tecnológico
em Saúde (CDTS), em fase final de construção no
campus da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em
Manguinhos (Rio de Janeiro). “O objetivo principal do CDTS será combater esse Vale da Morte”, declarou ele, em entrevista recente à revista
FACTO1, da Associação Brasileira das Indústrias
16
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
de Química Fina, Biotecnologias
e suas Especialidades (ABIFINA),
referindo-se à dificuldade do país de
transformar conhecimento em produto
e levar para o leito do paciente uma descoberta originada em bancada de laboratório.
A comparação com a Coreia do Sul permite entender melhor o problema. Enquanto os coreanos têm quase 100 mil cientistas e engenheiros
produzindo inovação na indústria, o Brasil tem
menos de 29 mil. “A baixa quantidade de C&E na
indústria brasileira afeta o potencial competitivo das empresas e reduz a capacidade do país em
transformar ciência em tecnologia e em riqueza”,
escreve Brito e colaboradores2,3, o mesmo autor
do relatório de ciência da Unesco-2010, citado
nas páginas anteriores, sobre o Brasil. Os artigos
informam, baseados em dados de 2000 em diante,
que 73% dos cientistas e engenheiros brasileiros
trabalham para instituições de ensino superior,
como docentes, em regime de dedicação exclusi-
ESPECIAL | INOVAÇÃO
va, enquanto apenas 23% trabalham para empresas. “Em todo o mundo, o lugar privilegiado da
inovação é a empresa”, escreve Brito. “E isso tem
razão de ser”, completa.
A transformação do conhecimento em produto de prateleira não é tarefa para a universidade,
obviamente. “Mas, por incrível que pareça, falta
pessoal técnico para ocupar esse espaço”, diz o
farmacologista João Batista Calixto, responsável pela implantação do Centro de Referência em
Farmacologia Pré-Clínica, no Sapiens Parque – em Florianópolis (SC),
um projeto previsto para ser inaugurado em
2012, que terá de 60 a 80 pesquisadores e 13 empresas incubadas, voltado para as parcerias público-privadas em pesquisa e desenvolvimento de
fármacos e medicamentos. Pesquisador nível IA
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), membro da Academia Brasileira de Ciências, Calixto é referência no
desenvolvimento de parcerias com a indústria no
país. Já desenvolveu 40 projetos com indústrias
farmacêuticas nacionais e internacionais e tem
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
17
ESPECIAL | INOVAÇÃO
em seu currículo o registro de 18 patentes, além
do desenvolvimento de produtos que foram para
o mercado, como o anti-inflamatório Acheflan, do
Aché. “Falta pessoal técnico, porque os doutores
são clones de seus orientadores e estes não estão
voltados para o desenvolvimento de tecnologia”,
ele declarou à Pesquisa Médica, na véspera de uma
viagem aos Estados Unidos, onde visitaria um
centro de pesquisa semelhante ao seu e assinaria
convênio de intercâmbio de pesquisadores. “Vamos mandar gente pra lá, fazer treinamento”, ele
disse. O centro de referência terá laboratório certificado para o desenvolvimento de linhagens de
roedores SPF – sigla do inglês specific pathogen
free − inicialmente roedores (ratos e camundongos), e também canil próprio de criação de cães
beagles para ensaios de toxicologia.
O gargalo dos biotérios
A infraestrutura de biotérios é indispensável à
pesquisa de fármacos e medicamentos e se constitui em um dos gargalos que as políticas atuais
de incentivo tentam eliminar. Não existem biotérios privados, no país, por falta de demanda.
Cada grupo de pesquisa faz o seu, nas universidades. Resta ao governo financiar a expansão
e oferecer às empresas a prestação de serviço.
A iniciativa de desenvolvimento de um laboratório de modificação do genoma no Laboratório
Nacional de Biociências, em Campinas, com o
estatuto de uma Organização da Sociedade Civil
de Interesse Público (OSCIP), atende a essa proposta atual de agregar valor à pesquisa biológica, sem burocracias como licitações, e contribuir
para a transferência de tecnologia à indústria.
“Em outros países, as técnicas de modificação
do genoma estão muito bem estabelecidas. Com
elas, é possível produzir animais transgênicos e
estudar modelos de doenças, reproduzindo em
camundongos a mesma mutação que ocorre em
seres humanos”, explica o pesquisador encarregado de criar e manter o biotério de transgênicos
do LNBio, José Xavier Neto, que vem de experiências de trabalho anteriores no biotério da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e do Instituto do Coração (InCor)
do Hospital das Clínicas da mesma instituição,
onde estudou a produção dos transgênicos. “Esse
procedimento já foi bastante utilizado para com­
preender doenças cardíacas. Uma vez identificado
18
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
no corpo humano o nucleotídeo alterado por determinada doença genética, é possível trazer essa
mutação para um camundongo, fazendo com que
ele expresse a proteína defeituosa e sirva de modelo para o estudo da doença”, diz o pesquisador.
Demanda reprimida
O LNBio pretende produzir e fornecer animais
gratuitamente para pesquisadores do Brasil e da
América Latina e realizar parcerias com o setor
privado, que possam estimular o desenvolvimento tecnológico nacional. Segundo dados coletados
na plataforma Lattes, 1.200 pessoas, relacionadas
a um universo potencial de seis mil pesquisadores, que investigam temas adjacentes, estão trabalhando com animais transgênicos no Brasil. Além
disso, Xavier estima que 642 empresas podem se
beneficiar de estudos com animais transgênicos
− fornecedores de material odontológico, equipamentos médicos, hospitalares e laboratoriais
(372), empresas relacionadas à medicina veterinária (101) e empresas farmoquímicas e de biotecnologia (169).
A produção dos camundongos transgênicos
seguirá as principais técnicas de manipulação
genética utilizadas mundialmente: o método
clássico de injeção do DNA selecionado no prónúcleo, por quimera e lentivírus. O método clássico tem eficiência máxima de 21% − em geral,
sua eficácia oscila entre 8% e 10%, explica Xavier. Mas o tempo necessário para desenvolver
animais a partir dele é menor, em relação aos
demais. Quimeras são animais criados para estudar a influência de um determinado gene. São os
chamados camundongos knock-out (com um gene
inativado) e knock-in (com algum gene acrescentado substituindo um original). “Para entender a
função de um determinado gene, não existe melhor experimento do que anular esse gene”, observa o pesquisador. “O lentivírus é um vírus da
família do HIV, modificado para servir de vetor
de um determinado DNA. A vantagem do lentivírus é a região em que atua. Basta inseri-lo
no espaço que envolve o embrião. Não é preciso injetá-lo no pró-núcleo do embrião”, comenta
Xavier, destacando a alta eficiência do lentivírus.
Xavier Neto ressalta que embora esses procedimentos sejam “quase rotina” em outros países, no
Brasil eles ainda não ocorrem de forma regular.
“A pesquisa nacional acabou se resignando a não
ESPECIAL | INOVAÇÃO
Desafios para inovação em P&D
Transformar as melhores universidades brasileiras em centros de excelência de nível internacional e incentivar a produção
científica de qualidade para além de São Paulo, Rio de Janeiro e demais centros urbanos do sul e sudeste, até regiões
menos privilegiadas do norte, nordeste e Amazônia estão entre os principais desafios das políticas atuais de inovação
Contribuição do Estado de
São Paulo para o Investimento
em P&D. (US$ bi PPC)
20.259
9.205
5.346
2.659
1.233
Brasil
Estado de
São Paulo
México
Argentina
Fonte: FAPESP – Indicadores de CT&I em SP e Brasil 2010;
para outros países: RICYT database, junho 2010.
Chile
Artigos científicos publicados pelas
principais universidades brasileiras
Universidade
2000
2003
2006
2009
Universidade de São Paulo (USP)
2.762
3.888
6.068
7.739
Universidade do Estado de São Paulo (UNESP)
772
1.104
2.065
2.782
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
1.190
1.498
2.386
2.582
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
1.080
1.253
1.778
2.357
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
557
792
1.374
1.797
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
597
810
1.392
1.685
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
433
659
1.251
1.561
Total das sete universidades acima
7.391
10.004
16.314
20.503
Total – Brasil
11.978
15.125
23.061
34.172
62%
66%
71%
60%
Participação das sete universidades acima (%)
Fonte: SCOPUS, search restricted to articles, notes and reviews, August 2010. UNESCO Science Report 2010.
fazer uso desses animais, por serem difíceis de obter.” Eram importados, morriam na burocracia da
alfândega, devido à lentidão dos trâmites para liberação. Os pesquisadores se acostumaram a utilizar células in vitro, pois eram mais acessíveis e
rápidas de trabalhar, comparativamente. Habituados a esse tipo de estudo, acabaram esquecendo
que poderiam usar animais transgênicos e agregar maior valor à sua pesquisa.”
Infraestrutura para
estudos moleculares
O termo Laboratório Nacional, embutido na
sigla LNBio, não está ali por fantasia. Traduz o
conceito de laboratório aberto para usuários do
país inteiro, com instrumental e pessoal altamente sofisticado para estimular o desenvolvimento
de pesquisa e tecnologia para a indústria. Esta
é a razão de ser do LNBio, que foi criado em dezembro de 2009, formalmente, mas já operava há
dez anos dentro do Centro de Biologia Molecular
e Estrutural (CeBiMe), em Campinas (SP), que
treinou dezenas de pesquisadores em biologia
estrutural, na última década. Hoje, ele faz parte do Centro Nacional de Pesquisa em Energia
de Materiais (CNPEM), junto com o Laboratório
Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) e o Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE). Cada um tem suas próprias linhas de
pesquisa. O LNLS, por ser uma facility, trabalha
de acordo com a demanda dos usuários. A área de
biotecnologia, por exemplo, tem duas linhas do
LNLS, a MX1 e a MX2, utilizadas para análise de
cristais de proteínas, obtidos da cristalização por
ressonância magnética. São estudos que baseiam
provas de conceito de funcionamento de uma
nova molécula, como os realizados pelo pesquisador Kleber Franchini, que conseguiu demonstrar
os mecanismos de ação de seu objeto de estudo,
inibidores da enzima adenosina kinase (AK), na
insuficiência cardíaca.
O médico já patenteou a molécula capaz de inibir
a ação dessa enzima, que em condições adversas,
como, por exemplo, inflamação, estimula a proliferação das células do músculo liso, levando à hipertrofia do coração, típica da insuficiência cardíaca.
“Pense num sistema hidráulico. O coração funciona como uma bomba, conectada a um sistema de
vasos elásticos, por meio da aorta. A cada minuto
cinco litros de sangue são bombeados pelo coraN o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
19
ESPECIAL | INOVAÇÃO
Distribuição de pesquisadores, em equivalência
de tempo integral, por setor institucional • 2008
Realização de P&D
Empresas
100%
Governo
Universidade
80%
60%
40%
20%
0%
China
Coreia
do Sul
Japão
Alemanha
França
Reino Unido
EUA
Canadá
Brasil
Fontes: (i) – OECD – Main Science and Technology Indicators, Volume 2009 – Issue 2. (ii) – Ministério da Ciência e Tecnologia:
http://www.mct.gov.br/index.php/content/view/73236.html. Acesso em 30 de novembro de 2010. Elaboração própria. http://ifile.it/sxjaw5q/MainSciTechnInd09is2.rar
ção nesse sistema hidráulico. Evidentemente, lá
na ponta encontra uma certa resistência. A hipertensão arterial é uma doença que causa aumento
nessa resistência. Não é uma doença do coração.”
Franchini terá apoio da indústria para avançar nas
pesquisas de viabilidade e estudos pré-clínicos.
Do laboratório à prática clínica
A proposta de parceria do laboratório nacional
para as empresas prevê várias modalidades, inclusive o investimento em novos equipamentos. A
biologia estrutural é o denominador comum das
pesquisas realizadas. Entre os programas próprios do LNBio se destacam as linhas de pesquisa em doenças cardiovasculares, câncer, doenças
negligenciadas, plantas e microrganismos. Mas
as instalações estão disponíveis para quem tiver
um projeto bem estruturado e souber utilizar as
plataformas tecnológicas oferecidas. “O usuário
acadêmico não paga, mas deve mencionar em sua
publicação que utilizou o laboratório”, lembra o
diretor-geral do LNBio.
ESPÍRITO EMPREENDEDOR
A flexibilização da lei de inovação
para que os pesquisadores
possam empreender no setor
privado sem perder o vínculo com
a pesquisa acadêmica poderia
contribuir para acelerar o
avanço tecnológico brasileiro
O cientista João Bosco Pesquero, sócio-proprietário da primeira empresa de serviços
genômicos do país e da América Latina, a
Helixxa, criada há três meses em Campinas
(detalhes mais adiante), acha que o gover20
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
no incentivaria ainda mais o empreendedorismo com essa flexibilidade. Pesquero
foi responsável pela criação do biotério da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), na década de 1990, o Centro de Desenvolvimento de Modelos Experimentais
(Cedeme), primeiro do país a produzir um
camundongo transgênico knock-in. Vivenciou os percalços que a pesquisa acadêmica
enfrenta no dia a dia com a falta de insumos, reagentes, problemas com a alfândega, financiamento descontínuo. Reuniu
experiência e coragem e aproveitou a onda
favorável do momento atual para fundar a
Helixxa. “O pesquisador tem medo de largar
o ganha-pão e, de repente, não dar certo no
mercado, fica inseguro de empreender, e o
país perde com isso”, ele diz.
A iniciativa foi planejada com a ajuda
de investidores angels, como se diz em inglês quando o dinheiro vem de familiares
e amigos, sem verba de start-up – o termo
usado para empresas que estão começando
no ramo de tecnologia, que recebem apoio
de investidores ou do governo. Pesquero e
o sócio, o administrador de empresas Ma-
ESPECIAL | INOVAÇÃO
Não é de hoje que se sabe da necessidade de
aproximar a pesquisa brasileira da indústria,
para favorecer o desenvolvimento de medicamentos e tecnologia para a saúde. A médica e
pesquisadora Regina Scivoletto, ex-professora
de Farmacologia do Instituto de Biociências da
Universidade de São Paulo e uma das principais
experts nessa área, destaca iniciativas que facilitaram a retomada atual das parcerias, como a
Agência de Gestão de Inovação Farmacêutica
(AGIF), criada em 2002 por empresários e exreitores de universidades para aproximar pesquisadores e empresas e atender especificamente
à demanda por inovações relacionadas à criação
de fármacos. A pesquisa do Dr. Kleber Franchini
foi o primeiro projeto abraçado pela AGIF, diz
Regina Scivoletto, que dirigiu por um tempo a
AGIF. A cientista trabalhou depois disso, um
bom tempo, no governo federal, no departamento responsável por analisar pedidos de registro
de medicamentos antes da criação da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Sabe
tudo sobre os marcos regulatórios, protocolos,
provas de conceito. “Por isso, depois de algum
tempo fora do governo, algumas empresas começaram a me chamar para que as ajudasse com
o desenvolvimento e a questão de patentes”, diz
ela, ao explicar que foi assim que se tornou consultora do laboratório Cristália, uma das empresas mais atuantes na pesquisa em parceria com
a universidade. Segundo Regina Scivoletto, a
Cristália emprega 60 pesquisadores e mantém 30
projetos em parceria com universidades e facilidades públicas. No LNBio, por exemplo, financia
rio de Oliveira Júnior, conseguiram juntar
4 milhões de reais, investiram em equipamentos de ponta como o sequenciador da
Roche 454, talvez a plataforma para análise
do genoma mais rápida em operação no
mundo. Só quatro instituições públicas têm
essa máquina no Brasil. No setor privado, é
a única. “A demanda está tão grande que
precisava ter mais dez Helixxas para atender”, diz Pesquero, empolgado com o acerto
de sua iniciativa.
A Helixxa já fez 17 análises genômicas desde que recebeu a máquina e teve
com bolsas de pós-doutorado projetos que não
têm prazo fixo de conclusão e publicação, o que
permite manter o sigilo até o registro eventual
da descoberta. “Esse tipo de ambiente é que deve
ser criado e multiplicado no país, pois ele empurra a pesquisa de ponta na direção do desenvolvimento de produtos.”
Para lembrar a importância do domínio da cadeia de desenvolvimento em fármacos, o farmacologista João Calixto repete, em suas palestras,
que, antes de virar remédio, uma droga já foi
pesquisa básica, na universidade ou na indústria.
“O Brasil perdeu o bonde da primeira revolução
da indústria farmacêutica, com foco na bioquímica, quando foram desenvolvidos os primeiros
anti-hipertensivos, tranquilizantes, antiarrítmicos, não entramos nessa época”, ele acrescenta à
revista Pesquisa Médica. “Mas tem chance de voltar, agora, atuando em alguns nichos, como, por
exemplo, da inovação incremental de fármacos
conhecidos e de produtos de biotecnologia.”
Fontes
1. Revista Facto, edição nº 26 Jul/Ago 2010. Disponível em: http://www.abifina.org.br/facto.asp.
Acessado em: 19 Dez 2010.
2. Brito Cruz CH, Pacheco CA. Conhecimento e inovação: desafios do Brasil no Século XXI. Disponível em:
www.ifi.unicamp.br/~brito/artigos/inte-pachecobrito.pdf. Acessado em: 19 Dez 2010.
3. Brito Cruz CH. A universidade, a empresa e a pesquisa que o país precisa. Disponível em: www.ifi.
unicamp.br/~brito/artigos/univ-empr-pesq-II.
pdf. Acessado em: 19 Dez 2010.
os resultados do primeiro rastreamento validado pela Roche. Os serviços são
custosos, 50 mil reais, em média, mas
valiosos para os clientes, por envolver a
identificação de vírus e permitir o desenvolvimento de vacinas, caso do Instituto
Evandro Chagas, da Amazônia, um dos
seus clientes; ou a melhoria de plantas,
ou de animais de criação, como o gado
bovino. Na área de Saúde, a empresa está
atendendo desde laboratórios brasileiros até o governo da Colômbia. “O país
já identificou as mutações do câncer de
mama e está mandando as amostras para
analisarmos”, diz Pesquero. Os laboratórios brasileiros, pesquisadores e médicos
têm encomendado à empresa análises de
material genético para rastrear doenças
autoimunes, erros inatos do metabolismo, genes ligados à formação tumoral, de
mama, gástrico, de útero. “Vamos atender
também a universidades, desenvolver insumos para a pesquisa, mudar o paradigma a que estão acostumados”, promete
o proprietário da primeira empresa brasileira de análise genômica.
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
21
ESPECIAL | INOVAÇÃO | entrevista
Eliezer J. Barreiro
As pedras no caminho
da inovação em
fármacos
Na falta de normas jurídicas e processos de reconhecimento da propriedade
intelectual bem resolvidos, os pesquisadores articulam parcerias para transferência de
tecnologia na base da palavra e improvisam soluções para avançar com as pesquisas
Por
Silvia Campolim
A
transferência de tecnologia da universidade
para a indústria, na área de fármacos e medicamentos, é considerada estratégica para o
complexo industrial de saúde que abastece o Sistema
Único de Saúde (SUS). A infraestrutura para realizar
esse objetivo não é das melhores, como visto no texto
à página 16. Os gargalos são vários, mas multiplicamse as políticas de incentivo ao desenvolvimento de
parcerias entre a universidade e a indústria e de financiamento à expansão da atividade de P&D nesta
última. E nossa produção científica está amadurecida
para dar esse salto. “Em química de produtos naturais, ela é hoje fantástica”, afirma o cientista Eliezer J.
Barreiro, pesquisador-bolsista de produtividade nível
1A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Inovação
e Desenvolvimento de Fármacos (INCT-INOFAR).
“Somos capazes de decifrar estruturas complexas
de microrganismos, plantas, algas; temos pesquisas,
teses, competência e uma rede colaborativa em ação,
multidisciplinar, condição essencial para a inovação
em fármacos”, ele diz. “E ainda temos essa diferença
com os países ao norte do Equador, que são nossas
120 mil espécies – me parece que chegamos a isso –,
enquanto existem no máximo 40 mil espécies em
todo o hemisfério norte.”
A indústria farmacêutica mundial está atenta a
isso, lembra o professor da Faculdade de Farmácia
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
onde também dirige o Laboratório de Avaliação e Sín-
22
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
tese de Substâncias Bioativas (LASSBIO), que, desde
1999, depositou 15 patentes de moléculas-candidatas
a fármacos. Mas, para que essa política em prol da
inovação frutifique, é preciso um ambiente jurídico
adequado, e esse é um problema ainda mal-resolvido, segundo Barreiro. Na entrevista a seguir, o professor, que é farmacêutico de formação, detalha sua
apreensão com o sistema atual de reconhecimento da
propriedade dos inventos e fala da molécula 596, que
começou a pesquisar no LASSBIO, originalmente, e
hoje é estudada na rede INCT-INOFAR como forte
candidata a virar medicamento contra doenças inflamatórias do sistema respiratório, como asma, doença
pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) e enfisema.
Pesquisa Médica – Como o senhor avalia as políticas
recentes de incentivo à inovação e transferência de
tecnologias em sua área? Desta vez vamos chegar lá?
Eliezer J. Barreiro – O governo Lula tem feito ações
relevantes nesse sentido, elogiáveis mesmo. O nosso
INCT, por exemplo, tem 4 milhões de recursos aprovados e liberados, o que para projetos de pesquisa no
país é algo realmente inovador. Isso garante três anos
de pesquisa, com mais dois prorrogáveis. E somos 99
pesquisadores que estão exatamente com essa missão
de inovação. Pode abrir o mapa do Brasil, estamos
em vários estados, de norte a sul, leste a oeste. Mas
tudo isso é insuficiente para aproximar pesquisadores
e indústria, em minha opinião. Por exemplo, a Finep
[Financiadora de Estudos e Projetos] e o MCT [Ministério da Ciência e Tecnologia] articulam o Sistema
ESPECIAL | INOVAÇÃO
Pesquisa Médica – O senhor pode
Brasileiro de Tecnologia (Sibratec),
citar um exemplo concreto?
que vai abrigar várias áreas produtiEliezer J. Barreiro – Posso lhe dar um
vas e inclui fármacos e medicamenexemplo. No ano de 1999, três anos
tos como setor de desenvolvimento
depois da promulgação da lei de paestratégico no complexo industrial
tentes no Brasil, para fármacos e meda saúde. Ocorrem articulações da
dicamentos, depositei uma solicitação
academia, por meio dos INCTs,
de patente sobre duas moléculas, com
como queria o ministro, que esses
diferentes indicações terapêuticas, no
institutos nacionais das áreas da
escritório de marcas e patentes nortesaúde e de fármacos se articulassem
americano, o United States Patent
e ajudassem a construir um tipo de
and Trademark Office (USPTO), e
diretório de competências, que seria
outra no INPI, em dias diferentes. Em
posto à disposição de setores empre2006, recebi dos Estados Unidos insariais. A ideia é ótima, tem recursos
formações de que minha patente fora
disponíveis, os atores sentaram-se à
concedida. Isso porque eu não sou um
mesa, todos que se habilitaram, desUS citizen. Se eu fosse cidadão ameride multinacionais, nacionais, até emcano seria mais rápido. Pois bem, só
presas incubadas de alta tecnologia –
recebi a primeira notificação de esclamedicamentos, fármacos, vacinas,
recimento do INPI sobre meu pedido
imunobiológicos, kits de diagnósneste mesmo ano, sete anos depois de
tico. A rede foi construída, o nosso
ter feito o depósito. Simplesmente igINCT-INOFAR, como outros, foi innorei. Não respondi. Se a patente dura
tegrado a essa rede, eu participei da
(Eliezer J. Barreiro)
20 anos a partir da década de depósito
fase de implantação do projeto. Quer
dizer, os instrumentos foram criados, as ações foram e o INPI leva sete anos para fazer a primeira pergunta
propostas, mas a coisa não detona. Existe a ideia, está ao inventor, sobram 13. Veja você! É uma forma de
inviabilizar a inovação. Quem vai produzir um medilá formatada, mas falta o estopim.
camento com proteção restante de meia dúzia ou uma
Pesquisa Médica – A regulamentação do direito de dúzia de anos? Na época eu não era sexagenário, não
poderia apressar o trâmite por ser um inventor idoso,
propriedade é o principal problema?
Eliezer J. Barreiro – A patente é um problema. Nós como hoje eu posso, é um recurso que está na lei. Ensomos um país complicado nesse sentido, porque se tão, fico triste pela universidade, pelas pessoas envolvifaz uma lei e ela é esquecida, e uma lei envelhece, como das. Mas entendo que uma empresa não pode ficar esqualquer um de nós, se não é atualizada. Se não é feito perando esse tempo. E se a patente não for concedida?
nenhum diagnóstico dos impactos, ela pode representar um engessamento do setor, sobretudo numa área Pesquisa Médica – E a lei de inovação ainda não mucomo a dos fármacos, que é muito dinâmica. Moral dou esse trâmite?
da história: hoje temos duas agências para regular e Eliezer J. Barreiro – Acho que carece ainda uma foropinar sobre o registro de medicamentos, a Agência mulação mais sólida, como um casamento da lei de
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Institu- inovação com as parcerias público-privadas, que são
to Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Uma essenciais para que você possa ter os segmentos arcom o direito de diplomar o monopólio da patente ao ticulados: o inventor, a instituição que inventa, o prointeressado, que é o INPI, e a outra para opinar sobre dutor e o financiador, todos capazes de atuar de forma
a patente, que é a Anvisa. Mas opinar sobre o direito transparente, com garantias.
de propriedade é um contrassenso, em minha opinião.
O reconhecimento da patente pelo INPI já é muito Pesquisa Médica – Esse caminho não está pavilento. Envolver uma segunda agência, que tem um en- mentado?
tendimento mais regulatório, para opinar sobre algo Eliezer J. Barreiro – Está mal-resolvido. Então, há
que é concessão de monopólio é uma forma curiosa de uma timidez excessiva por parte dos procuradores
retardar ainda mais a evolução do processo.
universitários em assinar um documento e eles prote-
A parceria
público-privada
está no papel,
mas não está
definida nem
regulamentada
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
23
ESPECIAL | INOVAÇÃO | entrevista
Eliezer J. Barreiro
lam, por insegurança no entendimento da lei, falta de
jurisprudência. E isso inibe a empresa. Como eu vou
ficar? Quem garante?
Pesquisa Médica – E como o senhor está encaminhando o desenvolvimento dessa molécula nova, a
596, que é uma forte candidata a se tornar medicamento, nesse contexto?
Eliezer J. Barreiro – A 596 é a nossa prioridade número 1, a molécula que está batendo na trave. Temos
uma segunda prioridade, bem no calcanhar dela, que
é uma molécula antiesquizofrenia, baseada em um
mecanismo inovador. Não existe ainda nenhum medicamento operando com esse mecanismo no mercado. Esses são os dois projetos mais avançados. Temos
mais nove no pipe-line.
Pesquisa Médica – De onde surgiu essa molécula nova?
Eliezer J. Barreiro – Ela nasceu da busca por uma
substância que pudesse ter efeito contra inflamação,
que funcionasse em doenças crônicas inflamatórias,
como doença de Crohn, artrite reumatoide, asma e
também em doenças degenerativas do SNC, como Alzheimer. Elegemos um alvo, ele estava validado, pois
era onde atuava um biofármaco de origem biotecnológica, caro, com indicação para a doença de Crohn.
E como queríamos desenvolver um mecanismo novo,
como se fosse uma chave capaz de entrar na fechadura (o alvo terapêutico) daquele primeiro fármaco
e, em um segundo, também relacionado à patologia
em estudo, optamos por trabalhar com a estrutura da
talidomida, que é uma molécula bruxa, causou aquele
impacto terrível na sua época. Daí, pegamos a talidomida e fomos modificando, por alterações estruturais,
como se fosse um diamante bruto, e chegamos a um
composto precursor do 596, o 468. Mas antecipamos
uma possível toxicidade nele e resolvemos publicar o
trabalho, aprender com ele. Foi assim que chegamos à
596, que é filha do 468, que está publicado.
Pesquisa Médica – Vocês já desvendaram os
mecanismos?
Eliezer J. Barreiro – Estamos investigando todos
os quadros inflamatórios possíveis, inclusive os respiratórios. A Dra. Patrícia Rocco, professora titular
do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, é uma
especialista em modelos de ensaios de moléculas do
trato respiratório. Ela sabe ver e tudo o que se possa
imaginar em modelos do trato respiratório ela tem.
A Patrícia ingressou no grupo já com essa intenção e,
24
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
quando saiu o INCT, já era parceira. E com o INCT
essa molécula cresceu, avançou muito mais rapidamente, por conta dos recursos. Ela faz coisas fantásticas, o mecanismo de ação é novo.
Pesquisa Médica – O que ela faz?
Eliezer J. Barreiro – Para se ter ideia, no enfisema
pulmonar, uma vez lesado o pulmão, o ar sai, como
se furasse o balão, o fole. Com o pulmão furado, o indivíduo não consegue ter a satisfação do oxigênio, é
uma sensação terrível. No jargão da Patrícia, o tecido perde a resistenciabilidade. Mas, quando se trata o
animal de laboratório com essa molécula e depois se
induz um modelo de lesão do tipo enfisema, o animal
resiste. Ela protege o tecido dos efeitos inflamatórios
que caracterizam um enfisema pulmonar.
Pesquisa Médica – Ela tem uma ação preventiva, então?
Eliezer J. Barreiro – Esse é um dos efeitos. Além de
controlar o avanço da obstrução pulmonar crônica,
a chamada DPOC, ela ainda dá esse bônus, que é a
paralisação da evolução do enfisema, protege o cardioenfisema de um agravante, prolonga a meia-vida.
Imagine a figura histopatológica do pulmão; eu não
entendo nada disso, mas dá para ver os buracos no tecido pulmonar – eles ficam coloridos quando usados
determinados corantes, são grandes, produzidos por
determinados mensageiros químicos que simulam o
processo degenerativo. Mas, quando se trata o tecido
com essa molécula, por vários dias, e se vai olhar novamente o corte do tecido, os buraquinhos diminuíram.
Se você olha um rato que nunca teve problema e o que
foi induzido a ter enfisema, não vê diferença, como se o
animal nunca houvesse tido a doença. O pulmão desse
animal, que estava detonado, fica exatamente igual ao
de um animal sadio. Com a DPOC, essa molécula é
fantástica. E sabemos tudo sobre ela, não mata o animal, já fizemos todos os testes com roedores, de histopatologia e toxicidade; fizemos medições bioquímicas
de elementos figurados do sangue para saber se ela
afeta ureia, a creatinina, a transaminase, tudo normal!
Pesquisa Médica – Como ela é capaz de fazer isso tudo?
Eliezer J. Barreiro – É um mecanismo novo, que
previne a formação de mediadores bioquímicos que
se somam e amplificam a doença, porque o problema
é que esse tipo de inflamação crônica é contínuo, evolutivo, por ter vários provocadores, que são multifatoriais. Se você usa medicamentos que são monoalvos,
não consegue ter eficácia terapêutica, porque para
ESPECIAL | INOVAÇÃO
um mecanismo, mas os outros continuam. Então, é
um mecanismo novo, e a professora Patrícia Rocco já
elucidou 90%, faltam alguns detalhes, que não vou divulgar porque é necessário trabalhar um pouco mais
para garantir novas reivindicações, mas o mecanismo
é novo e funciona dessa maneira, impedindo a amplificação do sinal na fisiopatologia do processo crônico.
Pesquisa Médica – Então a finalidade não é só
tratar DPOC?.
Eliezer J. Barreiro – A finalidade é tratar doenças
respiratórias, basicamente a asma e a doença pulmonar obstrutiva crônica. Na asma ela interrompe o
processo, sem ter um efeito beta-adrenérgico; ela faz
vasodilatação, não é um adrenérgico, não é um alfa1,
não tem nada a ver com a adrenalina, então não tem
os efeitos colaterais da adrenalina. Enfim, não é uma
molécula que atinge um alvo só, por conta desse mecanismo totalmente novo.
Pesquisa Médica – Em que etapa do processo vocês
estão com os ensaios?
Eliezer J. Barreiro – Estou precisando de uma quantidade suficiente para fazer os últimos ensaios préclínicos, de toxicidade em animais não roedores, seguindo o marco regulatório. Você tem que fazer testes
em roedores e dar um salto para outro tipo de animal.
Mas uma coisa é você dar um comprimidinho para
um camundongo, que tem 25 gramas, ou mesmo para
um rato, que tem 250 gramas. Para cumprir o marco
de uma forma completa e testar a molécula no cachorro, fazer os ensaios todos e ter amostras para servir
de modelo padrão para os primeiros ensaios clínicos
com humanos, você tem que ter um quilo da substância. Para fazer tal escalonamento e produzir um quilo,
precisamos ter equipamentos e espaço laboratorial
adequados. E nós não temos.
Pesquisa Médica – Não tem parceria que cobriria
esse custo do escalonamento?
Eliezer J. Barreiro – Eu não vou mencionar as empresas, mas procurei parceria com uma farmoquímica
privada, com uma farmoquímica pública e com uma
empresa farmacêutica que tem farmoquímica dentro.
E ficamos no quanto custa, o que eu ganho com isso.
Porque não tem mecanismo jurídico eficiente. Então,
bate e volta. O jurídico da empresa diz uma coisa, o da
universidade diz outra, e fica nesse bate e volta. Já faz
oito meses que busco uma solução para isso. Então,
resolvemos fazer um ajuste dentro do instituto e, em
vez de um quilo, que permitiria monitorar inclusive
o impacto ambiental de influentes, vamos fazer o limite da nossa capacitação, que é 300 gramas, em três
vezes. Isso aumenta os custos porque teremos de padronizar, de uma forma muito rigorosa, as três partes
produzidas, para que sejam rastreáveis em quaisquer
circunstâncias e cheguem até a fase 1. Seria mais barato e adequado fazer isso na indústria, claro, que tem
laboratório certificado para isso e tudo o mais. Por
isso, quando eu falo da pavimentação jurídica, não estou falando de achismos.
Pesquisa Médica – A lei de inovação antecipa
perspectivas, mas o ambiente jurídico não favorece
essas perspectivas.
Eliezer J. Barreiro – A parceria público-privada está
no papel, mas não está definida de forma completamente segura nem regulamentada de forma suficiente. E, assim, os recursos que a lei do bem estimula as
empresas a investir não aparecem. E tínhamos de ter
uma solução para isso, porque a inovação nessa área
de medicamentos não espera. Não dá para você ficar
oito meses tentando resolver um problema.
"Não me
surpreenderia
se uma
joint-venture
viabilizasse
uma inovação
brasileira e um
medicamento
novo saísse
do Brasil para
os mercados
do mundo"
(Eliezer J. Barreiro)
Pesquisa Médica – E o que vocês estão pensando
em fazer, além de improvisar nessa etapa de ensaios
com cachorros?
Eliezer J. Barreiro – Consegui que o laboratório
Cristália topasse ser parceiro, a partir do centro de
desenvolvimento tecnológico que eles têm, que é fantástico. Eles assumiriam esse risco de fazer o fármaco
virar comprimido para ser usado em fase 1. Não estou falando dessa molécula específica, mas em geral.
Conversamos no geral, já que não tenho moléculas
prontas. Mas, se tivermos, o ambiente ideal para fazer
o sal é a empresa. “Vocês topam?” – eu perguntei ao
Cristália. Na hora não houve titubeio. Depois, outras
empresas se agregaram. Temos nossos parceiros.
Pesquisa Médica – Então, será possível ir em frente?
Em qual condição?
Eliezer J. Barreiro – A condição é consultar primeiro nossos parceiros, se tivermos resultados. Estamos
fazendo parcerias nessa base e, dando certo, vamos
articular para que o produto chegue à prateleira. Não
me surpreenderia se uma joint-venture viabilizasse uma
inovação brasileira, como as empresas grandes fazem,
e um medicamento novo saísse do Brasil para os mercados do mundo. Mas, se o ambiente jurídico for adverso, aí pode ser que de novo a gente perca o bote.
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
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ESPECIAL | INOVAÇÃO
A história
incomum do
P-MAPA
Um fármaco 100% nacional cujo desenvolvimento seguiu
uma trilha alternativa ao tradicional modelo de inovação
farmacêutica e foi aprovado em testes clínicos nos renomados
Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos
Luciana Christante
Thinkstock
Por
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PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
ESPECIAL | INOVAÇÃO
O
dilon da Silva Nunes, formado na Universidade Federal do Paraná (UFPR), era um
médico sonhador, que acreditava ter descoberto a cura do câncer em uma substância sintetizada
por fungos que ele cultivava e testava desde os anos
1950, nos fundos de sua casa, em Birigui, no interior
de São Paulo. A tal substância, nomeada P-MAPA
(sigla dos elementos Proteic – Magnesium Ammonium
Phospholinoleate Anhydride), passou, nos últimos anos,
por diversos testes em animais, alguns dos quais rea­
lizados no renomado Institutos Nacionais de Saúde
(NIH, na sigla em inglês) dos Estados Unidos. A droga demonstrou enorme potencial terapêutico contra
alguns tumores e certos vírus, bactérias e protozoá­
rios. Mais importante que seu amplo espectro de
ação, porém, é o fato de o P-MAPA estar no centro
de uma história incomum na ciência brasileira: a de
um fármaco 100% nacional cujo desenvolvimento
vem seguindo uma trilha alternativa ao tradicional
modelo de inovação farmacêutica.
O P-MAPA de Odilon da Silva Nunes, morto em
2001, muitas vezes é comparado à penicilina, também obtida por meio de um fungo e descoberta por
Alexander Fleming, em 1928. Tal como o médico
brasileiro, o bacteriologista escocês teve de enfrentar o ceticismo de seus contemporâneos, tanto que
o antibiótico só ganhou o mundo em 1941, em plena Segunda Guerra Mundial, quando as infecções
se tornaram um inimigo mais mortal que o próprio
conflito. O médico brasileiro também se deparou
com a incredulidade da academia, o que, por sinal,
é compreensível.
Odilon fazia a pesquisa por conta própria, sem seguir um método sistemático. Costumava dizer que
não queria se prender à burocracia dos cientistas.
Além disso, sua tese também causava estranheza. Ele
acreditava que o tumor teria uma carga negativa e
poderia ser neutralizado por um composto de carga
positiva, como é o caso do P-MAPA. Não publicava
os resultados de seus experimentos em revistas especializadas e, quando procurava pesquisadores para
contar sua descoberta, tudo que levava na valise era
um pó branco e algumas fotos de camundongos curados. Ninguém lhe deu crédito.
A história só começou a deslanchar em meados da
década de 1980, quando o filho do médico, Iseu Nunes, formado em Administração de Empresas pela
Fundação Getúlio Vargas, retornou a Birigui para
ajudar o pai a levar o projeto adiante. Sua primeira
providência foi pedir a Odilon que escrevesse um
artigo com os principais resultados. Depois, bateu
à porta do químico Nelson Duran, na Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), que se empolgou
com o que viu. Em 1987, Iseu, Odilon e Duran criaram uma ONG, que passaria a se chamar Farmabrasilis (www.farmabrasilis.org.br) e hoje coordena uma
rede internacional de pesquisas sobre o P-MAPA.
O composto foi patenteado pela Farmabrasilis, mas
colocado em domínio público, para uso no combate a
doenças negligenciadas, sob condições, e os resultados das pesquisas, abertos a todos. A ONG fornece
dados sobre o P-MAPA a qualquer pesquisador interessado em estudá-lo, seguindo um modelo colaborativo de desenvolvimento que muito se assemelha ao do software livre. Boa parte dos estudos com
o P-MAPA tem como foco as chamadas doenças
negligenciadas, como a tuberculose, a leishmaniose
e a malária, enfermidades típicas de países pobres e
que não atraem investimentos por parte dos grandes
laboratórios farmacêuticos.
Além das doenças negligenciadas e do câncer, o
P-MAPA também tem potencial para tratar Aids
e diabetes, de acordo com alguns estudos recentes.
O leitor crítico poderá desconfiar de tão amplo espectro de ação e questionar se a droga não estaria
sendo divulgada como uma espécie de panaceia.
A apreensão é natural, mas começa a se desfazer
quando passamos a entender o mecanismo de ação
do fármaco, que vem sendo elucidado recentemente.
Potente imunomodulador
O P-MAPA tem ação imunomoduladora ou, mais
precisamente, é um modificador da resposta imunológica. Atua fortalecendo o sistema imune, ajudando a
combater patógenos intracelulares, como o bacilo da
tuberculose, que deprimem as defesas do organismo,
explica Iseu Nunes. Algo semelhante ocorre no caso
da Aids e do câncer. “Há certos tipos de tumor que
aumentam a interleucina 10, que por sua vez bloqueia
a resposta imunológica, fazendo o câncer se expandir.
O P-MAPA faz a interleucina 10 cair. Então o organismo consegue atacar o câncer”, complementa ele.
Para Nelson Duran, da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), o composto “age de forma tão
espetacular porque consegue localizar o que está descontrolado [no sistema imunológico] e, de alguma
Receptores toll-like
Eles são uma das grandes
vedetes da imunologia
atualmente. Trata-se de
uma classe de proteínas de
membrana que desempenham
um papel fundamental na
resposta imunológica inata.
Esses receptores reconhecem
moléculas compartilhadas
por um grande número de
patógenos e são expressos
por células que iniciam a
resposta imune. A descoberta
envolvendo os receptores tolllike do P-MAPA, divulgada
em meados do ano passado
e ainda não publicada,
permitiu explicar finalmente
o amplo espectro de ação
desse imunomodulador,
bem como a surpreendente
velocidade com que ele é
capaz de mobilizar uma
potente resposta terapêutica
Composto P-MAPA
A droga, cuja sigla
significa Proteic –
Magnesium Ammonium
Phospholinoleate
Anhydride, resultou da
síntese de fungos
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
27
ESPECIAL | INOVAÇÃO
Como
funciona
o P-MAPA
Versatilidade e
velocidade de ação
bacilos
vírus
O composto é um
polímero, obtido
da fermentação de
linhagens do fungo
Aspergillus oryzae, que
atua sobre o sistema
imune como um potente
imunomodulador,
capacitando-o para
combater invasores
como vírus, bacilos ou
células neoplásicas
O amplo espectro e
a rapidez de ação
do composto estão
relacionados aos receptores
toll-like, uma classe de
proteínas de membrana
capaz de reconhecer
moléculas compartilhadas
por um grande número
de patógenos
citocinas
nk
câncer
linfócitos t
p-MAPA
Cascata de eventos
A droga estimula os receptores toll-like TLR-2 e TRL-4, que deflagram reações em cadeia, como a proliferação
de linfócitos T, a produção de citocinas, a ativação das células NK e a liberação de ácido nítrico pelos macrófagos
maneira, reequilibra isso”, diz. “Por isso, essa atuação tão ampla. Não é por mágica.” Os bons resultados demonstrados pelo P-MAPA atraíram a atenção
dos NIH, que financiaram alguns estudos nos últimos anos. Um dos mais importantes, publicados em
2009 na revista Antiviral Research, mostra a eficácia
do composto em camundongos infectados com um
vírus muito agressivo, o Punta Toro, que causa lesão
hepática grave. “O Punta Toro vírus tem ação quase
imediata, pode matar o animal em 48 horas, mas com
o P-MAPA isso não aconteceu”, explica Duran.
No experimento, o fármaco brasileiro foi comparado à ribavirina, medicamento mais usado contra
a hepatite C. Ambos mantiveram 100% dos animais
vivos, mas com regimes bem diferentes. O P-MAPA
foi administrado em dose única, 24 horas depois da
inoculação do vírus, ao passo que, para produzir o
mesmo efeito, a ribavirina teve de ser aplicada quatro
horas antes da infecção, com doses complementares
ao longo de cinco dias.
Os estudos com animais coordenados pela Farmabrasilis permitiram demonstrar que o efeito imunomodulador do P-MAPA se dá por uma cascata de
eventos que incluem a ativação de linfócitos T, que
28
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
por sua vez passam a produzir mais citocinas, como
o interferon gama e a interleucina 2, que apresentam
um série de propriedades antivirais e antitumorais.
Essas citocinas estimulam a atividade das células NK,
que, assim como os linfócitos T, são capazes de destruir células tumorais, vírus, bactérias e protozoários.
Mas esses mecanismos ainda não explicam tudo.
“Nós pensávamos que o P-MAPA era um imunomodulador clássico, que matura os linfócitos T, estimula
as citocinas, numa ação em cascata, que leva tempo para ocorrer, sete dias no mínino”, afirma Iseu.
O problema é que a ação muito rápida do composto,
demonstrada em vários estudos com animais, não foi
compatível com essa hipótese. “Foi aí que os NIH sugeriram fazer um estudo dos receptores toll-like do
P-MAPA”, acrescenta ele.
Os receptores toll-like são uma das grandes vedetes
da imunologia atualmente (ver quadro à página 30).
Trata-se de uma classe de proteínas de membrana
que desempenham um papel fundamental na resposta imunológica inata. Esses receptores reconhecem
moléculas compartilhadas por um grande número
de patógenos e são expressos por células que iniciam a resposta imune, como, por exemplo, as células
ESPECIAL | INOVAÇÃO
dendríticas, deflagrando diversas ações, tais como a
produção de citocinas, proliferação de linfócitos T,
ativação de células NK e liberação de óxido nítrico
por macrófagos.
A descoberta envolvendo os receptores toll-like do
P-MAPA, divulgada em meados do ano passado e ainda não publicada, permitiu explicar finalmente o amplo
espectro de ação desse imunomodulador, bem como a
surpreendente velocidade com que ele é capaz de mobilizar uma potente resposta terapêutica. O P-MAPA
estimula dois tipos de receptores toll-like: TLR-2 e
TRL4. Não coincidentemente, explica Duran, a literatura científica registra o envolvimento desses receptores com enfermidades contra as quais o P-MAPA
já demonstrou algum tipo de efeito, como a tuberculose, a malária, a listeriose e a infecção por herpes.
Segundo o pesquisador da Unicamp, a comprovação da ação agonista desse tipo de receptor posiciona
o P-MAPA entre os imunomoduladores de terceira
geração, uma nova classe de medicamentos que já começa a chegar ao mercado. Um deles é o imiquimod,
indicado para o tratamento de lesões infecciosas virais e cancerosas. “Isso também irá facilitar o direcionamento do fármaco para o tratamento de novas
patologias, pois passamos a nos beneficiar do conhecimento já produzido, que relaciona os receptores
toll-like a diversos processos patológicos e terapêuticos”, acredita Duran.
Anticâncer e neuromodulador
As pesquisas com os receptores toll-like podem fornecer valiosas pistas sobre a carcinogênese, razão
pela qual um grande número de cientistas em diversos países já se dedica ao tema. Alguns estudos
sugerem que a ativação desses receptores pode inibir
o surgimento de neoplasias, o que abre a perspectiva para o desenvolvimento de vacinas ou de medicamentos que promovam a prevenção de tumores.
O P-MAPA já demonstrou bons resultados nessa
área, ainda que preliminares.
“Estudos-piloto recentes realizados em animais indicam que o P-MAPA tem efeito protetor em lesões
pré-cancerosas (displasias) promovidas por agentes
mutagênicos, impedindo a sua evolução até a patologia plena (câncer)”, afirma Duran. Segundo ele, esses
estudos permitem projetar uma utilização terapêutica do produto no tratamento de lesões associadas a
agentes externos, tais como o HPV, e processos inflamatórios crônicos relacionados a alguns tipos de
câncer no sistema digestivo.
Em outra frente de trabalho, o P-MAPA está
sendo investigado como possível tratamento de
doenças degenerativas do sistema nervoso central.
Quem comanda a pesquisa é o médico Esper Cavalheiro, chefe do Grupo de Neurologia Experimental da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp),
em São Paulo. Experimentos com modelos animais
iniciados recentemente pretendem testar o fármaco como neuromodulador.
“Essa ação imunomoduladora do P-MAPA é
muito interessante para o tratamento de moléstias neurodegenerativas, tais como a doença de
Alzheimer, de Parkinson e o processo de evolução
da epilepsia. Sabemos que nesses quadros existe
um processo inflamatório que prejudica a conversa neuronal e acaba levando à perda de memória
e morte de neurônios”, explica Cavalheiro. “Esperamos que o P-MAPA seja capaz de reverter esse
processo fisiopatológico básico em nossos modelos
e deter toda aquela cascata de acontecimentos que
culmina com a morte do neurônio.”
Além do potencial como tratamento de uma ampla
gama de patologias, o P-MAPA tem outra característica promissora: sua baixíssima toxicidade. Isso é
algo que vem sendo comprovado em inúmeros testes
feitos nos últimos 60 anos, desde que Odilon Nunes
começou a investigar o composto. De lá para cá, a
droga foi extensivamente estudada em camundongos, ratos, cães e macacos, na fase de desenvolvimento pré-clínico, utilizando doses escalonadas e com
tratamentos que duraram até 90 dias consecutivos.
Mais recentemente, estudos fase I mostraram baixa toxicidade também em humanos. Em comparação
a outros imunomoduladores agonistas dos receptores
toll-like, a situação do P-MAPA é bastante favorável,
segundo Duran. “A maioria deles apresenta grau de
toxicidade considerável, com exceção de alguns tipos
de uso tópico.”
Perspectivas
Depois de uma longa trajetória, cheia de idas e vindas, muitas portas na cara e, finalmente, resultados
surpreendentes, os próximos anos serão decisivos.
A Farmabrasilis busca agora parceiros para a fase II
e é bem provável que ela seja realizada nos Estados
Unidos. A ONG está preparando a documentação
para pleitear, com o Food and Drug Administration
(FDA), o status de “droga órfã” para o P-MAPA.
Segundo a legislação americana, droga órfã é um
medicamento desenvolvido para tratar “doenças
Estudo fase II do
P-MAPA deve
acontecer nos
Estados Unidos.
Brasileiros
preparam a
documentação
para pleitear,
junto ao FDA, o
status de “droga
órfã” para o
fármaco, voltado
para doenças
negligenciadas
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
29
ESPECIAL | INOVAÇÃO
Sem conexões e
mediadores que
complementem
as competências
e busquem
alternativas
às portas que
se fecham, o
conhecimento
dificilmente
vence as
paredes dos
laboratórios e
tende a tornarse oportunidade
perdida
órfãs”, ou seja, patologias que afetem até 200 mil
pessoas nos Estados Unidos. A medida tem como
objetivo estimular a indústria a investir em doenças
para as quais o mercado é pequeno. Exemplos típicos são algumas deficiências enzimáticas, de caráter
genético, em sua grande maioria, incuráveis e graves. Quando uma droga é aprovada nessa categoria
pelo FDA, o fabricante recebe algumas isenções de
impostos e tem garantidos sete anos de exclusividade no mercado.
A Farmabrasilis pretende que o P-MAPA obtenha
status de droga órfã para o tratamento do câncer pancreático (um tipo raro de tumor) e doenças negligenciadas, como malária e leishmaniose. Uma Farmabrasilis
História do
ensina
vez alcançado o objetivo, “imediatamente o FDA P-MAPA
que é possível
desenvolver
novos fármacos
avisará os poderosos lobbies de pacientes nos fora dos domínios
“Os fracassos e os êxitos em estabelecer
dos grandes
Estados Unidos sobre a entrada de uma nova laboratórios
alianças ao longo da trajetória do P-MAPA sufarmacêuticos
droga para testes na fase II”, explica Iseu. Asgerem que associações e translações avançam
sim, prossegue ele, “qualquer médico no territóquando os interesses se articulam e quando mediadorio americano poderá requisitar a droga para uso em res se encontram e se dispõem a trabalhar juntos em
seus pacientes. Será um processo público que, acredi- torno de objetivos comuns, que atendam também a
tamos, atrairá automaticamente os investidores”.
seus interesses específicos”, analisa o jornalista CarPara além da origem inusitada, do percurso longo, los Henrique Fioravanti na sua tese de doutorado,
tortuoso e revelador e das boas perspectivas que tem defendida na Unicamp em março de 2010.
pela frente, a história do P-MAPA ensina que é posSegundo ele, a trajetória desse composto até o
sível desenvolver novos fármacos fora dos domínios estágio inicial de testes em seres humanos ilustra
dos grandes laboratórios farmacêuticos.
estratégias inexploradas de produção de conheci“Antes se imaginava que era necessário um grande mento científico no Brasil, expondo um dos pontos
laboratório multinacional para fazer uma descoberta fracos da ciência nacional. “Sem conexões e sem
como essa. E de repente uma pessoa curiosa, sufi- mediadores que complementem as competências
cientemente bem informada, sabe observar e aí che- e busquem alternativas às portas que se fecham, o
ga a resultados interessantes. Esse lado do indivíduo conhecimento dificilmente vence as paredes dos lainovador foi o que me entusiasmou com o trabalho boratórios e tende a tornar-se oportunidade perdido P-MAPA”, comenta Esper Cavalheiro. O esforço da”, escreve Fioravanti. Com massa crítica e grancolaborativo, que envolveu mais de 200 pessoas (en- de competência nas ciências médicas e biomédicas,
tre cientistas e não cientistas) nos últimos 20 anos, o Brasil tem muito que aprender com essa história
também foi fundamental para se chegar até aqui.
de colaboração e persistência.
Um candidato ao Nobel
A descoberta dos receptores toll-like vem
sendo cotada como futuro Prêmio Nobel de
Medicina. Eles recebem esse nome por sua
similaridade com uma proteína codificada
pelo gene Toll, identificada em drosófilas por
cientistas alemães em 1985. Quando sofre
mutação, o gene dá à drosófila um aspecto
estranho – em alemão, toll.
Os receptores toll-like são uma família de
proteínas de membrana celular presentes
30
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
em plantas, vertebrados e invertebrados. Eles
reconhecem moléculas pertencentes a uma
ampla lista de patógenos e parecem ser um
componente evolutivamente muito antigo e
conservado do sistema imune. Por meio de
sua ativação é deflagrada a chamada resposta imunológica inata. São expressos por
células dendríticas, macrófagos, linfócitos T
e B, entre outras. Já foram identificados 12
subtipos desses receptores.
Fármacos que se ligam aos receptores tolllike, como o P-MAPA, são chamados imunomodulares de terceira geração, uma classe de medicamentos ainda com poucos representantes
no mercado. Há grande expectativa na comunidade científica em relação não só ao desenvolvimento de drogas inovadoras nessa área, mas
também de avanços consideráveis na compreensão dos mecanismos imunológicos subjacentes aos processos infecciosos e tumorais.
ESPECIAL | INOVAÇÃO
P&d
no complexo
industrial
de saúde
Por
Silvia Campolim e Giuliano Agmont
O
mercado mundial do chamado complexo industrial da saúde é avaliado em 1 trilhão de
dólares e dividido entre a indústria farmacêutica (670 bilhões), a indústria de equipamentos e produtos médicos (300 bilhões), reagentes de diagnóstico
(25 bilhões) e vacinas (9 bilhões). A participação do
Brasil nesse mercado mundial é de apenas 1,2%. Estados Unidos, Japão, Alemanha, Holanda e França controlam 80%. O resultado é o déficit da área de saúde na
balança comercial brasileira de produtos, que supera os
7 bilhões de dólares, anualmente, desde 2008. Reduzir esse déficit para 4,4 bilhões e desenvolver no país a
produção de produtos estratégicos para o Sistema Único de Saúde (SUS) até 2013 são as principais metas do
Departamento do Complexo Industrial e Inovação em
Saúde, o DCIIS, órgão vinculado à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do
Ministério da Saúde. A SCTIE também financia a pesquisa médica, a partir do seu Departamento de Ciência
e Tecnologia (DECIT) – ver mais adiante. O DECIT
apoia a pesquisa nas universidades e nos institutos de
pesquisa e o Departamento do Complexo Industrial da
Saúde e Inovação focaliza as empresas com a meta de
Thinkstock
Os órgãos de fomento à pesquisa
e desenvolvimento do governo
trabalham para recuperar o atraso na
produção de tecnologias que levem à
independência do país das importações
de insumos estratégicos e à superação
do déficit na balança comercial
fortalecer a indústria local de produtos para a saúde, de
modo a diminuir a dependência brasileira de tecnologia
e insumos importados. Essa foi a ideia básica que orientou sua criação, uma iniciativa do governo atual – em
particular, do secretário da SCTIE, Reinaldo Guimarães (Ver Pesquisa Médica no 8.).
A relação de produtos considerados estratégicos inclui fármacos, imunobiológicos e biofármacos, reagentes
para kits diagnósticos e hemoderivados, além de órteses,
próteses, equipamentos e materiais de uso em saúde. Só
os gastos do complexo industrial da saúde com biofármacos e hemoderivados consomem 42% do valor de 3
bilhões de reais destinado atualmente à aquisição de
medicamentos, embora essas drogas representem apenas 2% do consumo do SUS. O desenvolvimento de fármacos, insumos, equipamentos e kits diagnósticos é uma
área estratégica para a SCTIE e onde o DECIT, apoiado
pelo MCT/FINEP, investe no momento a maior quantia de recursos – mais de 46 milhões de reais.
Estratégias de fomento
Para viabilizar o incentivo à inovação industrial, a
SCTIE firmou acordos com o Ministério da Ciência
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
31
ESPECIAL | INOVAÇÃO
e Tecnologia e passou a contar com recursos da
Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Para
mudar o patamar competitivo do complexo industrial brasileiro, definiu como focos prioritários
de investimento os segmentos farmacêutico, biotecnológico e de produtos médicos e biomateriais.
O desenvolvimento da produção, em andamento,
envolve projetos de parceria. Um total de 18 projetos foi assinado entre oito laboratórios públicos
e 14 parceiros privados (quatro estrangeiros e 10
nacionais), com vistas à produção de 23 produtos.
O valor representado pelo total de projetos será de
850 milhões de reais/ano em compras que devem
significar a economia de 170 milhões de reais/ano
nos próximos cinco anos, informa o relatório do
DCIIS (ver quadro abaixo).
decit x parceiros
Decit
R$ 387.108.948
Parceiros
R$ 289.371.047
O DECIT e a Pesquisa Médica
Com recursos de 670 milhões de reais investidos em
mais de 3.500 projetos de 528 instituições de pesquisa,
desde 2002, o Departamento de Ciência e Tecnologia
em Saúde (DECIT) da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério
da Saúde (MS) é, sem dúvida, o principal financiador
Acordo para o Desenvolvimento da Produção
Resumo das Parcerias Finalizadas:
LABORATÓRIOS PRODUTOS
PÚBLICOS
Laboratório
Raloxifeno
da Marinha
FUNED
Tenofovir
LAFEPE +
Clozapina; Olanzapina;
NUPLAM
Quetiapina
LAFEPE
Tenofovir
Instituto Vital
Rivastigmina
Brazil (IVB)
HEMOBRAS
Fator VII recombinante
Formoterol +
Budesonida
Rifampicina,
Farmanguinhos Isoniazida, Etambutol
e Pirazinamida
Tacrolimo
Dispositivo
FURP
Intrauterino - DIU
FUNED + FURP Donepezila
FUNED
Entecavir
Micofenolato
LAFEPE
de Mofetila
IVB
Octreotida
LAFEPE
Ritonavir
LAFEPE
Toxina Botulínica
LFM
Ziprazidona
Farmanguinhos
Atazanavir
PARCEIROS
INDICAÇÃO
TERAPÊUTICA
Nortec
Osteoporose
Nortec + Blanver
Antirretroviral
Cristália
Antipsicóticos
Cristália
Antirretroviral
Laborvida/ Mappel Mal de Alzheimer
Cristália
Hemofilia
Aché (Biosintética) Antiasmáticos
Lupin
Tuberculostáticos
Libbs
Cristália
Microbiológica
Imunossupressor
Prevenção
da gravidez
Alzheimer
Antiviral
Nortec/Roche
Imunossupressor
Laborvida / Hygéia
Cristália
Cristália
NPA/Hetero Drugs
BristolMyers
Squibb
Acromegalia
Antirretroviral
Relaxante muscular
Antipsicótico
Injeflex
Antirretroviral
Fonte: DECIIS/SCTIE/MS.
32
PESQUISA MÉDICA | N 17 | Jan/Mar 2011
o
da pesquisa médica brasileira. O maior estudo na área
de epidemiologia já desenvolvido na América Latina,
o Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto, mais conhecido como ELSA Brasil, sobre doen­ças crônicas,
como diabetes e problemas cardiovasculares e seus
fatores de risco na população brasileira, foi viabilizado pelo DECIT, com recursos do MCT/FINEP de
22 milhões de reais (ver Pesquisa Médica no 14). Fazem parte do Consórcio ELSA Brasil, como é denominado, a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), a
Universidade Federal da Bahia (UFBA), a Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), a Uni­
versidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS) e a Universidade de São Paulo (USP). Cerca
de 15 mil funcionários (homens e mulheres entre 35 e
74 anos) dessas instituições foram avaliados, cederam
amostras de sangue e outros materiais biológicos e
serão acompanhados por duas décadas, pelo menos,
pelos cientistas envolvidos no projeto para verificar
a evolução das doenças crônicas entre os brasileiros,
suas principais origens e fatores de risco. O ELSA é a
maior pesquisa multicêntrica de coorte realizada por
um país fora do eixo de nações desenvolvidas.
Convergência do conhecimento
Outros projetos importantes do MCT/FINEP/
DECIT são os Institutos Nacionais de Ciência e
Tecnologia – nove ao todo – criados em 2009; a
implantação de Unidades de Pesquisa Clínica nos
Hospitais de Ensino (19) e os Centros de Terapia
Celular (8), que, juntos, consomem 100 milhões de
reais, ou 15% do orçamento disponível para pesquisa. A Rede Nacional de Pesquisa Clínica em Hospitais de Ensino (RNPC), como foi nomeada, com
seus 19 centros vinculados a instituições de ensino
de todo o país, tem desenvolvido projetos para resolver problemas regionais, que são diversos. Eles
incluem desde a avaliação da cirurgia bariátrica ao
desenvolvimento de insulinas recombinantes análogas à humana, ao tratamento da leishmaniose, até
problemas associados com a apneia do sono, a osteoporose, a prevenção de eventos cardiovasculares
em pacientes hipertensos e a hanseníase.
São 82 os projetos em andamento na área de
doenças negligenciadas, como dengue, doença de
Chagas, esquistossomose, hanseníase, leishmaniose, malária e tuberculose. A pesquisa em malária,
por exemplo, recebeu investimento inicial de 15,4
milhões de reais para o desenvolvimento de estudos
ESPECIAL | INOVAÇÃO
em rede, ao longo de três anos, de modo a estimular
o intercâmbio e a integração de instituições e pesquisadores na Amazônia Legal, o uso otimizado de
recursos e o compartilhamento de infraestrutura
para a pesquisa, principalmente de equipamentos
de custo elevado. A implantação de uma rede interregional e interdisciplinar de pesquisas em dengue
com recursos de 22,7 milhões de reais do MCT/
FINEP/DECIT segue o mesmo roteiro.
O fomento às pesquisas em terapia celular e células-tronco é outra área de investimento do DECIT,
viabilizada em 2002, com a criação do Instituto
do Milênio de Bioengenharia Tecidual (IMBT).
O IMBT recebeu apoio de diferentes instituições brasileiras, como a Fundação Oswaldo Cruz
(FIOCRUZ), do Instituto Nacional de Cardiologia (INC), Instituto Nacional de Câncer (INCA) e
Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia
(INTO), além de universidades públicas e hospitais
públicos e privados para pesquisar biomateriais, células-tronco e suas aplicações terapêuticas em modelos pré-clínicos, com possível translação para a
clínica. Os avanços obtidos com a iniciativa permitiram o desenvolvimento de projetos como o Estudo Multicêntrico Randomizado de Terapia Celular
em Cardiopatias, sobre infarto agudo do miocárdio,
doença isquêmica crônica do coração, cardiomiopatia dilatada e cardiomiopatia chagásica.
Com a aprovação da Lei de Biossegurança (Lei nº
11.105/2005) pelo Congresso Nacional, em 2005,
e o aval do Supremo Tribunal Federal, em 2008,
o Brasil iniciou as pesquisas com células-tronco
embrionárias humanas e, no ano seguinte, reunia
220 publicações relacionadas ao tema. Hoje, a chamada Rede Nacional de Terapia Celular (RNTC) é
constituída por 52 grupos de pesquisa e possui um
centro coordenador sediado no Instituto Nacional
de Cardiologia, no Rio de Janeiro. A Rede Brasileira de Pesquisas sobre o Câncer, criada no segundo
semestre de 2008, representa mais um esforço de
unificação em rede da pesquisa básica, translacional e clínica em neoplasias. O foco atual da rede
é o mapeamento do tumor de mama; o objetivo é
sequenciar o genoma relacionado a esse câncer.
A Rede Nordeste de Biotecnologia (Renorbio),
com investimento de mais de 15 milhões de reais,
deve permitir aos pesquisadores executar projetos
que ajudem a desenvolver a região. Entre as estratégias de fomento, o programa estabeleceu uma linha de temas relacionados à agropecuária, à saúde,
Número de Projetos e Recursos
destinados pela DECIT por Subagenda/áREA
Subagenda/área
Alimentação e nutrição
Assistência farmacêutica
Avaliação de tecnologias e economia da saúde
Bioética e ética em pesquisa
Complexo produtivo da saúde
Comunicação e informação em saúde
Demografia e saúde
Doenças crônicas (não transmissíveis)
Doenças não transmissíveis
Doenças transmissíveis
Epidemiologia
Gestão do trabalho e educação em saúde
Pesquisa clínica
Promoção da saúde
Saúde bucal
Saúde da criança e do adolescente
Saúde da mulher
Saúde da população negra
Saúde do idoso
Saúde dos portadores de necessidades especiais
Saúde dos povos indígenas
Saúde mental
Saúde, ambiente, trabalho e biossegurança
Sistemas e políticas de saúde
Violência, acidentes e trauma
Total: 25 Subagenda(s)
Nº de
Projetos
240
167
239
154
131
62
2
294
50
652
55
101
224
39
121
120
159
34
52
32
63
141
87
204
96
3519
Total
Recursos
R$ 12.459.380,20
R$ 20.786.042,39
R$ 26.973.659,70
R$ 3.590.302,26
R$ 179.309.842,13
R$ 8.591.163,92
R$ 7.834.842,07
R$ 53.617.770,60
R$ 3.954.960,86
R$ 100.698.388,21
R$ 26.439.785,81
R$ 9.206.744,43
R$ 125.785.105,44
R$ 3.385.964,31
R$ 5.446.797,63
R$ 5.506.105,97
R$ 15.468.128,07
R$ 3.118.466,05
R$ 8.553.618,27
R$ 2.214.510,93
R$ 3.493.265,72
R$ 13.664.166,72
R$ 10.734.220,70
R$ 13.800.418,97
R$ 6.015.053,95
R$ 670.648.705,31
Fonte: Brasil, Ministério da Saúde, Departamento de Ciência e Tecnologia – DECIT. Base de Dados Gerencial.
à biotecnologia industrial e aos recursos naturais,
de interesse e importância para a Região Nordeste.
A perspectiva é de que a Renorbio transforme a região em um polo de excelência em biotecnologia.
Redes temáticas de inovação
e serviços tecnológicos
O Sistema Brasileiro de Tecnologia (SIBRATEC) é
outro instrumento legal criado para integrar a pesquisa acadêmica, científica e tecnológica com as necessidades das empresas. O sistema foi estabelecido por
decreto, em 2007, como parte do Plano de Ação de Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento
Nacional (PACTI). É administrado pelo Ministério da
Ciência e Tecnologia e prevê ações de fomento para
aproximar a demanda das empresas a redes temáticas
de centros de inovação e de serviços tecnológicos. As
redes temáticas de Centros de Inovação contemplam
14 áreas do conhecimento e as de serviços tecnológicos, 20 áreas. O sistema está em seu início. No momento, apenas uma rede tem convênio assinado com a
indústria, a de manufaturas e bens de capital.
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
33
Psiquiatria
A vida por
um
fio
Perto de um milhão de pessoas, entre elas
um número crescente de jovens, põe fim
à própria vida todos os anos. Medidas
simples, como terapia breve e seguimento
por telefone, poderiam evitar esse
desfecho trágico, mostram experiências
de prevenção em andamento no país,
baseadas em estudo multicêntrico da OMS
Por
Cecília Proença e Alice Giraldi
O
s atos de autoviolência são a primeira causa de
morte não natural, atualmente, na maioria dos países desenvolvidos. Nos últimos 45 anos, as mortes
por suicídio registraram um aumento de 60%, informam
os dados da Organização Mundial de Saúde (OMS). Além
de crescentes, as taxas de morte autoinfligida são mais
elevadas entre as faixas etárias mais jovens. Praticado historicamente por idosos, o suicídio vem se tornando mais
incidente entre indivíduos de 15 a 44 anos. Essa é uma tendência que já foi detectada também no Brasil. Um estudo
Fatores de risco de suicídio
Quadro de doenças mentais
Tentativa anterior de suicídio
Dependência química
Impulsividade/agressividade
34
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
Histórico de depressão
pessoal e familiar
Isolamento afetivo e social
Quadro de doenças
dolorosas e debilitantes
Gu
sta
vo
Mo
rita
Psiquiatria
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
35
Psiquiatria
Suicídio e transtornos mentais
Há uma forte conexão entre comportamento suicida e doença mental, mostram os estudos. Uma
revisão de 31 pesquisas publicadas entre 1959 e
2001, englobando 15.629 suicídios na população
geral, demonstrou que em mais de 90% dos casos caberia um diagnóstico de transtorno mental
à época do ato fatal (Bertolote e Fleischmann,
World Psychiatry, 2002).
Sem diagnóstico
3,2%
Transtornos de
personalidade
11,6%
Transtornos
do humor
35,8%
Fatores de natureza social, cultural, genética, psicodinâmica, filosófica e ambiental estão
envolvidos nesse índice crescente de autoviolência. “A etiologia da tendência suicida é multifatorial e extremamente complexa, de difícil
caracterização”, diz o psiquiatra Luiz Antonio
Nogueira-Martins, professor do Departamento
de Psiquiatria da Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp). Estudos revelam uma significativa participação dos transtornos mentais entre
as causas do suicídio, o que amplia as possibilidades de prevenção. Presentes em 90% dos quadros de morte autoinfligida, esses transtornos
incluem, por ordem de prevalência, depressão,
transtorno afetivo bipolar, dependência química, traços impulsivo-agressivos de personalidade e esquizofrenia.
Sinais de alerta
Esquizofrenia
10,6%
Transtornos
relacionados
ao uso de
substâncias
22,4%
Fonte: Comportamento suicida: conhecer para
prevenir. Associação Brasileira de Psiquiatria, 2009.
realizado pelo psiquiatra José Manoel Bertolote,
publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria, em
2005, mostrou que a mortalidade por suicídio entre
jovens de 18 a 24 anos, de ambos os sexos, aumentou dez vezes entre 1980 e 2000. No mesmo período, o número de jovens do sexo masculino mortos
por suicídio foi 20 vezes maior do que nas décadas
anteriores. O problema desafia a saúde pública na
maioria dos países. Dados levantados pela OMS
mostram que o Leste Europeu e a Escandinávia são
as regiões que registram o maior número de casos
de suicídio em todo o mundo. No Brasil, segundo informações da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), 24 pessoas se suicidam a cada dia.
O estado do Rio Grande do Sul lidera as taxas de suicídio, com uma média anual de 10 mortes para cada
100 mil habitantes.
36
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
Na clínica diária, dizem os especialistas, é muito
importante observar aspectos do comportamento dos pacientes que possam sinalizar uma tendência a cometer suicídio. As causas ou fatores
que predispõem uma pessoa a cometer suicídio
são sempre mais complexas do que um acontecimento recente, como a perda do emprego ou
um rompimento amoroso. Ter tentado pôr fim à
própria vida antes é o principal deles. “Pressupor
que tentativas de suicídio são apenas uma maneira
de chamar a atenção é um erro grande, que ainda
é cometido com frequência”, alerta o psiquiatra
Neury José Botega, professor titular do Departamento de Psiquiatria da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp), pesquisador e autor de
vasta produção na área de prevenção de suicídio.
“Indivíduos que já tentaram se matar reúnem uma
série de fatores de risco que podem levá-los a uma
nova tentativa que resulte em morte.”
A história de familiares suicidas pode sinalizar
a participação da herança genética na tendência à
autoviolência. Pesquisas sobre o papel da hereditariedade na incidência de suicídios, que compararam
irmãos gêmeos e adotivos, identificaram um traço
de personalidade caracterizado por um misto de
impulsividade e agressividade. Combinado a outros
fatores de risco, tais como depressão e dependência
Psiquiatria
Comportamento suicida ao longo da vida
Atendidos em
Pronto-Socorro
1
3
tentativa
5
17
plano
pensamento
De cada
100 habitantes
Fonte: Comportamento suicida: conhecer para prevenir. Associação Brasileira de Psiquiatria, 2009.
química, esse traço de personalidade pode conduzir
o indivíduo a uma situação extrema.
Tabu e prevenção
Álcool e outras substâncias psicoativas aumentam
a impulsividade e reduzem a capacidade de ponderação. “E uma pessoa deprimida por uso de substâncias, com menor tolerância e mais impulsiva, está
mais próxima do suicídio”, explica Botega. Um fator
que agrega potencial ainda maior de risco, nessas
circunstâncias, diz o psiquiatra, é o isolamento social e afetivo, nos casos em que o indivíduo não pode
contar com o apoio de amigos ou familiares.
O comportamento suicida também tem conexões
com sexo e profissão, mostram as pesquisas. O suicídio ocorre com maior frequência entre homens do
que entre mulheres e, no Brasil, marcadamente entre
indivíduos de profissões de risco, como policiais militares e bombeiros, de acordo com dados levantados
no Estado de São Paulo. As mulheres médicas norte-americanas seriam uma exceção à predominância
masculina entre os suicidas, segundo uma pesquisa
recente nos Estados Unidos que detectou entre essas
profissionais um percentual de depressão e suicídio
proporcionalmente bem maior do que o verificado entre médicos (ver A angústia de Hipócrates, à página 39).
A morte autoinfligida ainda é um tema tabu em
diversas sociedades, mas que começa, aos poucos, a
ser compreendido e discutido como uma questão de
saúde pública. Na visão da OMS, a prevenção do suicídio exige uma abordagem abrangente e multissetorial, que inclua iniciativas específicas nas áreas de
saúde, educação, trabalho, justiça, religião, direito,
política e mídia. “O importante é investir em ações
que aumentem os fatores de proteção e diminuam os
fatores de risco”, destaca Neury Botega. Como fatores de proteção, ele cita os vínculos afetivos, crença
espiritual, condição financeira estável e realização
profissional, bem como a assistência prestada àqueles que tentaram se matar. Esta última providência é
considerada a estratégia fundamental na prevenção
do suicídio. Detectar precocemente e tratar de modo
adequado os transtornos mentais também levam à
redução significativa das taxas de suicídio.
Ponta do iceberg
Estimativas indicam que o número de pessoas
que atentam contra a própria vida é dez vezes maior do que o total de suicídios. Apenas
uma pequena proporção dessas tentativas de
suicídio chega aos registros oficiais. Um estudo realizado em Campinas (SP), com o apoio
da Organização Mundial de Saúde, que ouviu
515 pessoas sorteadas, apurou que 17,1% delas já tinham “pensado seriamente em pôr fim
à vida”; 4,8% chegaram a elaborar um plano e
2,8% efetivamente tentaram se matar.
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
37
Psiquiatria
Dois fatos e duas versões
Investigar o desejo de suicídio
nos pacientes faz diferença na
sua prevenção, ao contrário
do que pensa o senso comum
Versões do
senso comum
Fatos
científicos
Indivíduos que
falam em suicídio
raramente
se matam
Os indivíduos que
cometem suicídio
usualmente dão
algum indício de
que irão se matar
Perguntar sobre
suicídio a um
paciente pode
desencadear
atos suicidas
Perguntar sobre
suicídio pode reduzir
a ansiedade sobre
o sentimento; o
indivíduo pode se
sentir mais bem
compreendido e
menos ansioso
em 10 vezes o número de suicídios, em comparação
com o grupo controle.
Após a divulgação do levantamento do SUPREMISS, um projeto-piloto de prevenção de suicídio
baseado em intervenção breve, sob a coordenação
de Neury Botega, foi implementado no município
de Campinas. Os dados dessa experiência estão em
processo de análise, mas a expectativa é integrar o
modelo à política de saúde pública.
Outra importante iniciativa na área de prevenção
vem sendo desenvolvida pela Associação Brasileira de
Psiquiatria (ABP), que pretende compilar e divulgar
informações sobre a relação entre suicídio e transtornos mentais para públicos específicos, tais como
profissionais de saúde e mídia. A estratégia da ABP é
sensibilizar, por meio deles, os diversos segmentos da
população em relação ao tema, de modo a diminuir o
estigma associado ao suicídio. O objetivo final é motivar os sujeitos em conflito entre a vida e a morte a dar
um passo que pode fazer a diferença nesse momento
decisivo: procurar e obter a ajuda certa.
Fontes
Intervenção breve
Foi o que comprovou, em 2002, o Estudo Multicêntrico de Intervenção no Comportamento Suicida
em Múltiplos Locais (SUPRE-MISS), promovido
pela OMS em dez países. A pesquisa foi realizada
em diversas cidades, entre elas Campinas, no interior paulista, onde foi coordenada pelo psiquiatra
José Manoel Bertolote. O SUPRE-MISS avaliou
o impacto do atendimento de saúde no comportamento de indivíduos com histórico de tentativa de
suicídio entre 1.867 pessoas atendidas em prontosocorros. Elas foram divididas aleatoriamente em
dois grupos: um deles recebeu o chamado “tratamento usual”, que previa alta sem encaminhamento
a um serviço de saúde mental; o outro foi encaminhado a uma modalidade de tratamento intitulada
“intervenção breve”, que incluía entrevista de aconselhamento e telefonemas periódicos de seguimento num período de um ano e meio. Ao final dos 18
meses, conforme mostraram os resultados, a modalidade de intervenção breve foi capaz de reduzir
38
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
Associação Brasileira de Psiquiatria. Comportamento
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Thinkstock
Psiquiatria
Suicídio
A angústia de
Hipócrates
Os índices de depressão e suicídio são elevados entre médicos e
estudantes de Medicina, profissionais que apresentam taxas de
suicídio maiores do que a população em geral, mas resistem mais
do que os não médicos a vencer o estigma e procurar ajuda
Por
Alice Giraldi
A
classe médica corre mais risco. Estudos
realizados nos Estados Unidos mostram
que entre essa categoria de profissionais as
taxas de suicídio são maiores do que na população
em geral. A diferença para mais é de 40% para os
profissionais do sexo masculino, comparativamente
aos homens em geral, e de impressionantes 130%
para as médicas, em relação às mulheres em geral.
O quadro começa a se desenhar já nos bancos das
Faculdades de Medicina, informam as pesquisas. Estudantes da área médica ingressam nas universidades com perfis de saúde mental semelhantes aos dos
colegas das demais áreas, mas tendem a concluir os
estudos com altas taxas de transtornos mentais, tais
como depressão e síndrome do esgotamento profissional, ou burnout (ver os principais sintomas no quadro,
à página 41). Segundo as pesquisas, 25% dos residentes sofrem de depressão, 50% deles já passaram pela
experiência do burnout e mais de 10% desses jovens
têm pensamentos suicidas. São números elevados,
mesmo considerando o pesado nível de estresse característico do período de residência.
Entre os profissionais formados, o quadro não é
diferente. “O médico tende a criar uma espécie de
couraça protetora, até mesmo para poder suportar
a carga de angústia do seu dia a dia”, diz Neury
Botega, do Departamento de Psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Essa
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
39
Psiquiatria
rigidez, muitas vezes, chega às relações pessoais e
pode repercutir tanto na saúde mental do profissional como em aspectos de seu comportamento. “Os
índices de depressão e de abuso de álcool e outras
drogas psicoativas entre médicos são altos”, diz Botega. Uma parcela importante de profissionais não
resiste às inúmeras fontes de estresse da profissão
− tais como carga horária elevada, múltiplos empregos, convívio com o sofrimento e a morte − e
necessita de ajuda. “Entre 8% e 10% da população
médica apresenta uma predisposição a desenvolver
distúrbios emocionais”, afirma o psiquiatra Luiz
Antonio Nogueira-Martins, criador do Núcleo de
Assistência e Pesquisa em Residência Médica e
Pós-Graduação (Napreme), centro da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp) que presta assistência psiquiátrica e psicológica ao residente médico e
desenvolve pesquisas sobre sua saúde mental.
Resistência e estigma
A procura de apoio e orientação é um passo difícil
para o profissional de saúde que sofre de transtornos
mentais e/ou apresenta tendência suicida. Apesar do
amplo acesso à atenção especializada, muitos indivíduos apresentam forte resistência a buscar auxílio.
Um estudo entre universitários nos Estados Unidos
mostrou que o tempo médio que os estudantes de
Medicina levam para procurar ajuda, na área de saúde mental, é de 20 anos, informa Nogueira-Martins.
“Isso significa que o estudante pode passar toda a sua
vida estudantil, até mesmo ingressar na profissão, antes de receber atendimento adequado”, ele observa.
Entre as causas da resistência está o estigma da
doença mental, ainda hoje existente, dizem os especialistas − especialmente na área médica. “Muitas
vezes, o médico carrega o sentimento de que doente
é o outro, ele próprio não tem o direito de ficar mal”,
diz Botega. O tipo de atenção que o profissional de
saúde costuma receber é outro motivo de resistência, segundo Nogueira-Martins. “Médicos com dependência química, por exemplo, são às vezes censurados moralmente pelos colegas quando procuram
atendimento”, afirma o psiquiatra da Unifesp.
Prevenção
“O primeiro passo é combater o estigma e ajudar os
profissionais a buscar ajuda”, ressalta Neury Botega. Com a meta de oferecer uma alternativa concreta nesse sentido, o Conselho Regional de Medicina
do Estado de São Paulo (Cremesp) e a Unifesp criaram, em 2002, a Rede Estadual de Apoio a Médicos
Dependentes Químicos. Trata-se de uma iniciativa
pioneira no campo da prevenção e do tratamento
de um dos principais fatores de risco de suicídio entre profissionais de saúde. O serviço, que já atendeu
mais de 400 médicos desde sua criação, inclui psicoterapia, manejo psicofarmacológico e orientação
aos familiares, evidentemente, com garantia total
de anonimato e confidencialidade aos pacientes. Um
estudo realizado em 2006 pela Unidade de Pesquisa
em Álcool e Drogas (Uniad), da Unifesp, mostrou
que a rede vem obtendo excelentes resultados terapêuticos, além de ter contribuído para reduzir o
intervalo de procura de ajuda por parte do médico
Ajuda acessível
Várias universidades brasileiras de
primeira linha oferecem serviços
gratuitos de atenção psicológica e
psiquiátrica a estudantes e residentes
das áreas médica e de saúde. O Conselho
Regional de Medicina do Estado de
São Paulo (Cremesp), em parceria
com a Unifesp, mantém uma rede de
atendimento voltado especificamente
para os profissionais com dependência
química. A seguir, alguns endereços:
40
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
Unicamp
GRAPEME (Grupo de Atendimento
Psicopedagógico ao Estudante de
Medicina e Enfermagem) – Oferece
pronto atendimento em casos de urgência,
psicoterapia breve, acompanhamento
psiquiátrico e pedagógico, atendimento
familiar. Cidade Universitária Zeferino Vaz,
Faculdade de Ciências Médicas, Campinas,
SP. Rua Vital Brasil, 50, Prédio Vital Brasil,
térreo. E-mail: [email protected].
USP
GRAPAL (Grupo de Assistência
Psicológica ao Aluno) – Oferece
consultas psiquiátricas, sessões de
psicoterapia, orientação familiar e
grupos de reflexão sobre identidade
médica e relação médico-paciente.
Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo − Av. Dr. Arnaldo, 455, 2º
andar, sala 2160 – São Paulo, SP. Tel.:
(11) 3061-7235. E-mail: [email protected].
Psiquiatria
dependente químico, de uma média de sete anos,
antes do programa, para três anos e meio, após sua
implantação. “Isso mostra que quando se cria um
bom serviço, oferecido sem preconceitos e com sigilo, a adesão do médico é grande e os resultados,
muito bons”, destaca Nogueira-Martins.
Os serviços de atendimento a estudantes e residentes de Medicina, na área de saúde mental, existentes hoje nas principais universidades brasileiras,
como Universidade de São Paulo (USP), Unicamp
e Unifesp, foram criados a partir da década de 1960
(ver quadro Ajuda acessível), por conta dos episódios
de suicídio observados entre estudantes. “Não podemos afirmar que exista uma relação de causa e
efeito, não foram realizados estudos a respeito, mas
não ocorreram novos casos de suicídios entre estudantes e residentes depois da criação dos serviços
de atendimento psicológico e psiquiátrico na Unifesp”, comenta o criador do Napreme.
Fontes
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and attitudes among US medical students. JAMA.
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psychological distress among U.S. and Canadian medical students. Acad Med. 2006;81(4):354-73.
Lima MEA. A polêmica em torno do nexo causal entre
distúrbio mental e trabalho. Psicol Rev (Belo Horizonte). 2003;10(14):82-91.
Unifesp
SSCD (Serviço de Saúde do Corpo
Discente) – Oferece atendimento
médico, incluindo atenção psiquiátrica,
ao corpo discente da Escola Paulista
de Medicina. Rua Borges Lagoa, 426
– São Paulo, SP. Tel.: (11) 5579-7371.
Napreme
A Síndrome do
Esgotamento Profissional
Metade dos residentes de Medicina já passou
pela experiência do burnout, informam estudos realizados nos Estados Unidos. Estes são
os principais sintomas da síndrome:
ansiedade;
depressão;
cansaço excessivo;
irritabilidade;
insônia;
intolerância;
humor negro.
Nogueira-Martins LA. Saúde mental dos profissionais de saúde. Rev Bras Med Trab (Belo Horizonte)
2003;1(1):59-71.
Palhares-Alves HN, Laranjeira R, Nogueira-Martins
LA. A pioneering experience in Brazil: the creation
of a support network for alcohol and drug dependent
physicians. A preliminary report. Rev Bras Psiquiatr.
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Palhares-Alves HN, Surjan JC, Nogueira-Martins LA, et
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Schwenk TL, Davis L, Wimsatt LA. Depression, stigma, and suicidal ideation in medical students. JAMA.
2010;304(11):1181-90.
(Núcleo de Assistência e Pesquisa
em Residência Médica e PósGraduação) – Oferece orientação e
assistência psicológica e psiquiátrica
a residentes e pós-graduandos
da Escola Paulista de Medicina.
Rua Borges Lagoa, 426 – São
Paulo, SP. Tel.: (11) 5579-7371.
Cremesp/Unifesp
Rede Estadual de Apoio a Médicos
Dependentes Químicos − Oferece
atendimento a médicos dependentes
ou familiares. Dependendo da
gravidade do problema, em menos de
36 horas é agendada uma consulta
com os psiquiatras voluntários que
atendem em 20 cidades do Estado de
São Paulo. Tels.: (11) 5575-1708/(11)
5576-4341/(11) 9616-8926. E-mail:
[email protected].
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
41
Thinkstock
Neurociências
42
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
Neurociências
Musculação
cerebral
Pesquisadores investigam as alterações anatômicas e funcionais que a prática da
meditação produz no cérebro e mapeiam seus benefícios para a saúde física e mental
Por
Alice Giraldi
U
ma consulta rápida ao PubMed, serviço da
Biblioteca Nacional de Medicina Americana, retorna perto de dois mil resultados para
a palavra meditation (do inglês, meditação). O crescente interesse da comunidade científica a respeito desse
milenar exercício de treinamento mental parece ter
fundamento, mostram os estudos. As melhorias observadas na saúde dos praticantes da meditação iriam
além da redução do estresse. “A meditação é uma es-
pécie de musculação cerebral, que revela benefícios
em todas as direções”, afirma o psiquiatra e neurorradiologista João Radvany, do Hospital Israelita Albert
Einstein (HIAE), pesquisador do tema. Entre os efeitos positivos da prática mental, ele destaca seu papel
na prevenção ou tratamento de distúrbios crônicos,
tais como insônia, fibromialgia e síndrome de fadiga
crônica e, ainda, de doenças cardiovasculares, depressão, diabetes tipo 2 e artrite reumatoide.
Nem passado, nem futuro
A proposta essencial da meditação é que o praticante exercite a capacidade de manter
a mente no presente, sem se deixar tomar por divagações sobre o passado ou o futuro
A meditação é uma prática oriunda de algumas vertentes religiosas orientais, como
o budismo. O interesse dos países ocidentais, como Estados Unidos e Brasil, em realizar pesquisas sobre o tema cresceu nos
anos 1990, quando o diálogo entre tradições milenares do Oriente e a visão científica do Ocidente começou a colocar em
destaque os ganhos obtidos por meio das
práticas meditativas. Mas, como costuma
acontecer na transposição de conceitos de
uma cultura para a outra, a definição de
meditação ainda não está suficientemente
clara e suscita discussão.
De maneira geral, os estudiosos concordam que o termo “meditação” designa
uma ampla variedade de técnicas de trei-
namento mental, que podem ser agrupadas
basicamente em duas linhas. Uma delas
propõe ao praticante fixar a atenção num
determinado conteúdo, uma ideia, por
exemplo, ou visão, ou simplesmente em sua
própria respiração. A outra linha não tem
como objetivo um foco mental específico,
mas a simples observação das sensações
e pensamentos que ocorrem à mente durante a prática, sem que haja envolvimento
emocional ou julgamento. A utilização de
um cântico repetido, como um mantra, é
usual em algumas versões de meditação.
Seja qual for a linha, porém, a proposta essencial é que o praticante exercite a capacidade de manter a mente no momento presente, sem se deixar tomar por divagações a
respeito do passado e do futuro. Para João
Radvany, “meditação é qualquer exercício
que focaliza a atenção na intenção, dentro de um estado de relaxamento”, define.
O pesquisador destaca que a intenção é
crucial no exercício de meditar. Para focalizarmos a atenção, precisamos primeiro
fixar uma intenção, explica. “Esse conjunto
de intenção com atenção focada é o que
chamamos de concentração, que é a essência da meditação.” Independentemente da
linha adotada, especialistas afirmam que,
para obter benefícios à saúde, são necessárias duas sessões diárias de meditação, de
25 minutos cada uma. Essa duração deve
ser atingida progressivamente, conforme o
praticante ganha experiência.
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
43
Neurociências
Após 12
meses de
sessões diárias
de 20 minutos
de meditação,
150 indivíduos
hipertensos de
origem afroamericana
exibiram
redução média
de 6 mmHg
na pressão
diastólica e
de 3 mmHg
na pressão
sistólica
Entre os benefícios mais notáveis e mais bem estudados da meditação no sistema cardiovascular,
destaca-se sua ação na regulação da pressão arterial. O National Institutes of Health (NIH), órgão
de pesquisa em saúde do governo norte-americano,
destinou 24 milhões de dólares ao estudo dos efeitos
da meditação transcendental nas doenças cardiovasculares, nas duas últimas décadas, e as pesquisas
realizadas por sete universidades norte-americanas
apontaram resultados significativos nesse sentido.
Em um dos estudos foram analisados 150 indivíduos hipertensos de origem afro-americana, grupo
que apresenta incidência elevada de doenças cardiovasculares. Após 12 meses de sessões diárias de
20 minutos de meditação, os praticantes exibiram
redução média de 6 mmHg na pressão diastólica
e de 3 mmHg na pressão sistólica. Outra pesquisa
comparou as taxas de óbitos entre dois grupos de
idosos com tendência à hipertensão, ao longo de 18
anos. O grupo que praticou meditação transcendental apresentou uma taxa de óbito 23% menor
que a do grupo controle, que participou apenas de
aulas de educação em saúde no mesmo período.
Respiração e atenção
A respiração é o ponto-chave para entender os benefícios da meditação à saúde, segundo Radvany.
“Toda atividade meditativa tem esse componente
importante de exercício respiratório, que induz ao
prolongamento da expiração”, explica o pesquisa-
dor. “E a expiração prolongada contribui para a redução da pressão sanguínea, da frequência cardíaca
e da adrenalina circulante”, acrescenta.
Com a prática regular, esses benefícios acabam
incorporados como um novo e mais eficiente padrão
respiratório. “Quando um indivíduo medita, ocorrem alterações não somente na atividade cerebral,
como também em aspectos fisiológicos, tais como
batimentos cardíacos, ritmo respiratório e produção
de hormônios”, afirma a psicobióloga Elisa Kozasa,
pesquisadora do Departamento de Psicobiologia
da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e
do Instituto do Cérebro do HIAE. Ao lado de Radvany, ela participa de um estudo desenvolvido pelo
hospital em conjunto com a Unifesp, que emprega
a ressonância magnética funcional para analisar
alterações na atividade cerebral de meditadores.
A pesquisa comparou as características cerebrais
de meditadores antes e depois de uma imersão de
sete dias na prática intensiva da meditação. Os sujeitos tiveram seus cérebros analisados por exames
de ressonância funcional antes e após a imersão,
enquanto executavam o Teste de Stroop, que avalia a capacidade individual de conter a impulsividade e manter o foco numa determinada atividade.
Os dados coletados na pesquisa ainda estão em
fase de análise, mas o estudo piloto mostrou mudanças na intensidade da atividade de algumas áreas
do cérebro após uma semana de prática, particularmente entre os meditadores mais experientes,
Versões da prática
Entre as linhas
meditativas praticadas
ao redor do mundo,
em particular na Ásia,
onde a técnica é parte
integrante de tradições
milenares, são mais
conhecidas e têm sido
objeto de pesquisas
científicas no Ocidente as
versões transcendental,
mindfulness, zen-budista
e budista-tibetana.
Confira, a seguir, suas
características.
44
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
Transcendental
Originária da tradição
védica indiana.
Amplamente difundida
e pesquisada no
Ocidente, propõe 20
minutos diários de
prática focada na
aquietação da mente.
Neurociências
que praticavam pelo menos três vezes por semana,
há mais de três anos. “Houve ativação no córtex
pré-frontal e no giro do cíngulo, que são áreas relacionadas à atenção”, informa Elisa. A capacidade
de focar a atenção, frisa a pesquisadora, é essencial
no desempenho de funções cognitivas importantes,
como aprendizado e memória.
Neuroplasticidade e saúde pública
Um conceito cada vez mais relacionado à meditação
na área da pesquisa médica é o da neuroplasticidade.
Sabe-se que certas práticas e experiências são capazes de promover mudanças na anatomia e funções
do cérebro. A meditação é uma delas. “Estudos mostram que cérebros de meditadores de longo tempo
têm diferenças em relação aos de não meditadores”,
diz Elisa Kozasa. “São diferenças de espessura do
córtex cerebral na região da ínsula, que está relacionada à interocepção e à percepção, e também em
outras áreas ligadas à memória e à atenção.” Uma
pesquisa realizada em 2009, na Dinamarca, revelou
também que indivíduos que praticam meditação durante muitos anos apresentam maior densidade de
massa cinzenta na parte inferior do tronco cerebral,
região relacionada ao controle cardiorrespiratório.
No Brasil, a técnica já foi incorporada à rede do
Sistema Único de Saúde (SUS) em 19 estados e 107
municípios, por meio da Política de Práticas Integrativas e Complementares do Ministério da Saúde.
Uma parceria entre a Unifesp e a Prefeitura de São
Paulo também viabilizou a introdução da prática da
meditação na rede pública de saúde. “Hoje, 80% das
unidades de saúde da região centro-oeste do município oferecem alguma atividade meditativa”, conta
Elisa Kozasa, que participa do projeto.
Fontes
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Budista
tibetana
Propõe a busca pela
atenção plena. Tratase de uma técnica de
redução de estresse
desenvolvida na
década de 1980, com
base na meditação
zen-budista, por
Kabat-Zinn, professor
da Escola de Medicina
da Universidade de
Massachusetts, nos
Estados Unidos.
Zen-budista
Prática difundida pela tradição budista Soto
Zen, fundada há 800 anos no Japão. Propõe
a aquietação da mente por meio da prática
da atenção plena ao momento presente
e da observação de pensamentos e emoções.
Prática
comum a
diversas
tradições
budistas do
Tibet, propõe a
concentração
num mantra
(cântico) ou
num objeto
de meditação
com o objetivo
de atingir a
tranquilização
da mente.
Imagens: Thinkstock
Mindfulness
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
45
Cardiologia
Interação
questionada
Novo estudo sobre o uso concomitante de clopidogrel e
omeprazol em pacientes com doença coronariana conclui
que não há risco de evento cardíaco, ao contrário do
que preconiza norma de 2009, estabelecida pela Food
and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos
Por
Cecília Proença
46
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
Coneyl Jay/Science Photo Library/Spl Dc/Latinstock
A
doença coronariana (DAC)
é a maior causa de morte e
de incapacidade nos países desenvolvidos, e seu crescimento acelerado
em países em desenvolvimento representa uma
das questões de saúde pública relevantes da atualidade. Embora as taxas de mortalidade por DAC
tenham caído nas últimas quatro décadas nos Estados Unidos e em outros países, a doença continua respondendo por um terço de todas as mortes
de indivíduos acima dos 35 anos. Segundo dados
de 2010 da Associação Americana de Cardiologia,
17,6 milhões de pessoas têm a doença coronariana, das quais 8,5 milhões com infarto do miocárdio e 10,2 com angina pectoris.
A aspirina teve, comprovadamente, grande impacto na modificação da evolução clínica dos pacientes com angina instável ou infarto agudo do
miocárdio. Os derivados tienopiridínicos, como
a ticlopidina e o clopidogrel, que inibem a ação
Cardiologia
do difosfato de adenosina e, portanto, impedem a
ativação plaquetária apresentam benefícios comparáveis aos do ácido acetilsalicílico (AAS), conforme demonstraram importantes estudos clínicos. E, nos casos de impossibilidade de uso do
AAS, o clopidogrel é a alternativa mais utilizada
na clínica médica em razão de menor incidência
de efeitos colaterais em relação à ticlopidina.
Dados de estudos randomizados sustentam o
conceito de que terapias antiácidos reduzem as
complicações gastrointestinais de antiplaquetários, como os AAS. Por isso, os inibidores de
bombas de prótons (IBPs), a exemplo do omeprazol, são comumente prescritos combinados
à aspirina ou clopidogrel, para prevenir as hemorragias gastrointestinais, complicação mais
comum do uso prolongado de medicamentos antiplaquetários. Em 2009, a Food and Drug Administration (FDA) alertou o sistema de saúde
quanto aos possíveis riscos da interação entre
o clopidogrel e os IBPs, principalmente o omeprazol. Essa comunicação foi feita com base em
estudos que demonstraram uma redução de 45%
nas concentrações séricas do metabólito ativo do
clopidogrel quando usado concomitantemente
ao omeprazol, o que parecia representar maiores taxas de hospitalização por recorrência da
síndrome coronariana aguda. Mas uma pesquisa
com esomeprazol e pantoprazol, realizada por
Siller-Matulla e colegas, em 2009, não encontrou
evidência de redução da atividade antiplaquetária quando esses fármacos foram administrados
em associação com o clopidogrel, destacando a
necessidade de estudos adicionais para determinar a real interação. Outras investigações não
conseguiram afirmar com propriedade os prejuízos dessa interação medicamentosa, de modo
que permaneceu incerto o cuidado ideal com os
pacientes que necessitam do antiplaquetário e de
um IBP.
O novo estudo COGENT (Clopidogrel and the
Optimization of Gastrointestinal Events Trial), publicado em novembro de 2010 no jornal de medicina New England, terá importante impacto
nessa questão conflitante, provavelmente. Cerca
de dez vezes maior que os estudos randomizados prévios sobre o tema, o COGENT buscou
estabelecer a eficácia e segurança da administração simultânea do clopidogrel e do omeprazol
em pacientes com doença coronariana. Foi um
estudo internacional, randomizado, duplo-cego,
controlado com placebo, que comparou o uso de
CGT-2168 (clopidogrel associado ao omeprazol)
com a administração do clopidogrel isolado. Foram incluídos no estudo 3.761 pacientes em risco
elevado de morte em decorrência de problemas
cardiovasculares − 25% já tinham experimentado um evento prévio. Desse total, 1.876 receberam omeprazol e 1.885, placebo. A duração média do seguimento dos pacientes foi de 106 dias,
mas alguns foram seguidos até 341 dias.
Uso concomitante
de clopidogrel
associado ao
omeprazol
demonstrou
benefício em
relação ao risco de
eventos clínicos
gastrointestinais,
incluindo
sangramento
do trato
gastrointestinal
alto, sem aumentar
a probabilidade
Uso promissor
de eventos
Depois de 180 dias de seguimento, a porcenta- cardiovasculares
gem de eventos gastrointestinais registrada no
grupo que recebeu placebo foi de 2,95%, contra 1,1% no grupo que recebeu o omeprazol
(p < 0,001). Entre os 109 pacientes que apresentaram eventos cardiovasculares, 4,9% pertenciam
ao grupo que recebeu omeprazol e 5,7% estavam
no grupo placebo, diferença que não foi estatisticamente significante (p > 0,5). As taxas de eventos
adversos, como diarreia, e de intercorrências, como
pneumonia, cefaleia, náusea, anemia e fraturas,
também não foram significativamente diferentes
entre os dois grupos da amostra.
A conclusão do COGENT corrobora o uso
concomitante dos dois fármacos estudados, uma
vez que os resultados demonstraram benefício
em relação ao risco de eventos clínicos gastrointestinais, incluindo sangramento do trato gastrointestinal alto, sem aumentar a probabilidade
de eventos cardiovasculares. Tudo indica que o
uso profilático dos IBPs é promissor. Embora o
estudo tenha terminado precocemente, devido
à perda de financiamento, seus resultados terão
importante impacto nas condutas preconizadas
nos dias atuais.
Fontes
Bhatt DL, Cryer BL, Contant CF, et al.; for the COGENT Investigators. Clopidogrel with or without
omeprazole in coronary artery disease. N Engl J
Med. 2010;363:1909-17.
Siller-Matula JM, Spiel AO, Lang IM, et al. Effects of
pantoprazole and esomeprazole on platelet inhibition by clopidogrel. Am Heart J. 2009;157(1):148.
e1-5.
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
47
CÁRDIO-ONCOLOGIA
Iniciativa
pioneira
Especialistas brasileiros saem na frente e criam normas inéditas no
mundo para contemplar o risco de problemas cardíacos causados
pelo tratamento quimioterápico contra o câncer e orientar
os médicos sobre o tratamento precoce dos que correm risco
Por
Frances Jones
N
ão é de hoje que se sabe que muitos quimioterápicos causam dano ao coração.
Mas a preocupação em tratar o câncer e a
curta sobrevida dos pacientes não deixavam espaço
para o médico se preocupar com os efeitos indesejados desses medicamentos. O avanço dos tratamentos e o aumento da sobrevida dos pacientes, obtidos nos anos recentes, porém, levaram a Sociedade
Brasileira de Cardiologia (SBC), a Sociedade Brasileira de Oncologia e o Instituto do Câncer de São
Paulo a tomarem essa iniciativa inédita de lançar a
primeira Diretriz de Cárdio-Oncologia do mundo.
“As diretrizes, que serão publicadas em janeiro de
2011, no máximo em fevereiro, foram feitas para
melhorar a interação entre o oncologista e o cardiologista”, diz o médico Roberto Kalil Filho, cardiologista do Instituto do Coração (InCor) e diretor-geral do Centro de Cardiologia do Hospital
Sírio-Libanês. “É mais um alerta, como uma cartilha para ser seguida por todos os oncologistas e
todos os cardiologistas do Brasil”, acrescenta Kalil
Filho, um dos coordenadores da diretriz.
Cerca de 30 especialistas trabalharam na preparação do documento, que será publicado nos Ar48
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
quivos Brasileiros de Cardiologia e, provavelmente,
no exterior. Ele conterá, entre outros trópicos,
a relação dos quimioterápicos cardiotóxicos e os
tipos de problemas que eles podem causar, além
de formas de tratamento para casos de pacientes
de maior risco ou para os que desenvolverem um
problema no coração em decorrência do tratamento contra o câncer. “O que a diretriz tem de diferente é essa possibilidade de permitir que as duas
especialidades trabalhem juntas na identificação
dos pacientes de maior risco a ter problemas na
pós-quimioterapia”, diz o cardiologista Fernando Bacal, da Unidade de Insuficiência Cardíaca e
Transplante do InCor, outro coordenador do projeto de elaboração da diretriz.
De acordo com Bacal, os pacientes que têm mais
risco são, em geral, os que tomam doses elevadas
de quimioterápicos, os que fazem radioterapia simultaneamente ao tratamento quimioterápico,
os pacientes do sexo feminino e os portadores de
doenças cardiovasculares prévias (hipertensos, coronarianos, diabéticos etc.). “Vamos trabalhar no
tratamento precoce das eventuais alterações que
possam surgir e na criação de protocolos de moni-
CÁRDIO-ONCOLOGIA
Thin
ksto
torização de lesão cardiovascular precoce e tardia e
de seguimento precoce e tardio”, afirma o cardiologista, que também é presidente do Departamento de Insuficiência Cardíaca da SBC e professor
livre-docente da Universidade de São Paulo (USP).
“A diretriz deve propor novas formas de abordagem, tanto para a prevenção quanto para o tratamento do problema cardiovascular instalado.”
Interesse recente
O tema dessa primeira diretriz atraiu o interesse dos especialistas nos últimos anos, porque o
tratamento do câncer melhorou consideravelmente, os pacientes passaram a viver mais e os
médicos e pesquisadores começaram a identificar indivíduos com disfunção miocárdica pósquimioterapia, principalmente secundária ao uso
da doxorrubicina, que faz parte da classe dos antracíclicos. Essas drogas eram – e ainda são – usadas principalmente em protocolos para câncer de
mama e linfoma, explica Bacal. E foram associadas
a casos de insuficiência cardíaca. A incidência pode
chegar a até 30% se a doxorrubicina for usada em
dose acima de 550 mg/m2, diz o médico. “Mas hoje
é mais raro você precisar usar uma dose tão elevada.” No caso do câncer de mama, a radioterapia na
região do tórax é um fator de risco adicional para
cardiotoxicidade, especialmente quando combinada à químio. Os efeitos da quimioterapia, porém,
são o foco da diretriz. Um dos mecanismos pelos
quais a droga causa problemas é a alteração na liberação de radicais livres, com o envolvimento da
enzima superóxido desmutase. A alteração leva a
um processo de fibrose e apoptose (morte da célula miocárdica), provocando o enfraquecimento do
músculo cardíaco (cardiomiopatia).
Os problemas, porém, não se resumem às drogas
mais antigas. A nova geração de quimioterápicos –
como, por exemplo, o anticorpo monoclonal trastuzumab − também pode causar alterações. “É uma incidência pequena, mas existe”, diz Bacal. “Pode variar
de 3% a 15%, dependendo do quimioterápico.” Entre
os problemas possíveis, há alterações plaquetárias,
infarto, embolias, arritmia e de hipertensão. Veja no
quadro à página 50 alguns dos principais quimioterápicos e seus potenciais efeitos cardiotóxicos.
Pesquisadores italianos da Divisão de Pesquisa em Oncologia do Instituto di Ricerca e Cura a
ck
Entre os
problemas
decorrentes
se destacam
alterações
plaquetárias,
infarto,
embolias,
arritmia e
hipertensão
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
49
CÁRDIO-ONCOLOGIA
to
nks
Thi
ck
Riscos ao coração
Alguns dos principais quimioterápicos e
seus potenciais danos cardiovasculares
Antraciclinas e antraquinonas »
insuficiência cardíaca congestiva,
miocardite aguda, arritmia
Capecitabina, 5-fluorouracil,
citarabina » isquemia, pericardite, insuficiência
cardíaca congestiva, choque cardiogênico
Paclitaxel, alcaloides de vinca »
bradicardia sinusal, taquicardia ventricular,
bloqueio atrioventricular, hipotensão,
insuficiência cardíaca congestiva, isquemia
Ciclofosfamida » ativação neurohumoral, regurgitação mitral
Imatinib » arritmias, insuficiência
cardíaca congestiva, angioedema,
disfunção ventricular esquerda
Sorafenib » hipertensão, arritmias
Sunitinib » hipertensão, arritmias
SERMs (moduladores seletivos de
receptor estrogênico) » modulação
das lipoproteínas HDL/LDL, tromboembolia,
hemorragia do trato gastrointestinal
Inibidores específicos da
Cox-2 » tromboembolia
Irradiação do tórax » fibrose
miocárdica, doença valvar cardíaca,
disfunção ventricular esquerda
Fonte: Artigo “Cardiotoxicity of anticancer drugs: the need for cardio-oncology and cardio-oncology
prevention”, publicado no Journal of the National Cancer Institute em dezembro de 2010.
50
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
Carattere Scientifico MultiMedica, de Milão, defenderam, num artigo publicado recentemente no
Journal of the National Cancer Institute, o desenvolvimento de um novo campo interdisciplinar, que
poderia ser chamado de cárdio-oncologia ou de
onco-cardiologia. “O uso de agentes quimioterápicos, radioterapia e terapias moleculares direcionadas é abordagem que pode
causar dano ao sistema cardiovascular,
tanto no nível central, deteriorando a
função cardíaca, como periférico, aumentando as alterações no fluxo hemodinâmico e os eventos trombóticos,
geralmente presentes de forma latente
nos pacientes oncológicos”, dizem os especialistas no artigo “Cardiotoxicity of Anticancer Drugs: The Need for Cardio-Oncology and Cardio-Oncological Prevention”, assinado
por Adriana Albini e colegas.
Diagnóstico e terapêutica
As alterações podem ser agudas, como o infarto ou trombose observados do início do tratamento até duas semanas depois de sua conclusão.
Muitas vezes, porém, elas surgem tardiamente,
entre três e dez anos após o tratamento quimioterápico. “O sinal mais típico de cardiotoxicidade crônica é a disfunção sistólica e/ou diastólica
do ventrículo esquerdo assintomática, que causa
cardiomiopatia congestiva grave e pode levar à
morte”, escrevem os pesquisadores italianos. Nos
pacientes de maior risco ou para os que apresentam algum grau de disfunção precoce, a diretriz
propõe a utilização preventiva de drogas cardioprotetoras. Basicamente, afirma o cardiologista,
são betabloqueadores e inibidores da ECA − enzima conversora da angiotensina.
Entre os exames recomendados no início do tratamento e para o seguimento estão o ecocardiograma, a dosagem de BNP (peptídeo natriurético do
tipo B) e a dosagem de troponina. “Estamos discutindo também a possibilidade de recomendar a ressonância magnética, mas isso ainda não está decidido”, diz Bacal. “Evidentemente, quando você fala
em diretriz, você fala muito em evidências. Como
é um tema novo, o nível de evidência ainda é pequeno, porque tem poucos trabalhos na literatura
mundial.” Tudo depende do tratamento, da droga
utilizada, da quantidade; é individual o problema,
acrescenta Kalil Filho. “O importante é ter essa in-
CÁRDIO-ONCOLOGIA
teração entre o cardiologista e o oncologista. Muitas vezes o paciente está perdendo a força do coração, mas não percebo isso porque não faço exame.”
Bacal alerta que também é importante não alarmar a população. “Senão, ninguém mais vai tratar
o câncer e essa é a prioridade, a linha mestra do
tratamento.” “A diretriz representa uma vigilância
maior, para que façamos a melhor prática médica,
que minimize os efeitos adversos precoces e tardios
dos quimioterápicos”, diz. “O importante é o cardiologista estar junto para ajudar o oncologista a
fazer a melhor prática, a melhor conduta em cima
do que ele acha que é a melhor quimioterapia individualmente para aquele paciente.”
Uma década de observação
A recém-lançada Diretriz de Cárdio-Oncologia, a primeira orientação normativa
elaborada no mundo, é baseada nas melhores evidências científicas disponíveis sobre
condutas e procedimentos para proteger o paciente oncológico de males cardíacos
A
iniciativa das duas sociedades envolvidas
com as especialidades de Cardiologia e
Oncologia de publicar essa primeira diretriz é resultado de dez anos de estudos e observação dos efeitos tóxicos das terapias contra o câncer no músculo cardíaco. Indivíduos submetidos a
tratamentos quimioterápicos ou radioterapias por
causa de um câncer têm 30% mais chance de desenvolver doenças cardiovasculares, principalmente
se estão expostos a fatores de risco − sofrem de
diabetes, por exemplo, são fumantes ou têm hipertensão arterial. Os fármacos usados para tratar os
vários tipos de câncer, especialmente os inibidores
da enzima tirosina quinase, podem levar o paciente
a sofrer de arritmias graves e desenvolver doenças
como a insuficiência cardíaca, quando não aceleram
problemas cardiovasculares preexistentes como as
doenças das artérias coronárias.
Uma diretriz, como se sabe, é o principal documento científico de uma sociedade de especialidades. Há 30 anos que a Sociedade Brasileira de
Cardiologia publica diretrizes para orientar os médicos sobre condutas e procedimentos nas várias
áreas da cardiologia, lembra Jadelson Pinheiro de
Andrade, coordenador de diretrizes da SBC e futuro presidente da sociedade, eleito para o biênio
de 2012-2013. “Nos últimos três anos, publicamos
mais de 20 diretrizes de tratamento, entre atualizações de diretrizes existentes e novas normatizações”, informa ele, lembrando que tais publicações
são revistas e atualizadas a cada dois anos, em mé-
dia, para acompanhar a dinâmica das descobertas
de novas terapias e práticas intervencionistas nas
diversas áreas da cardiologia.
O documento sobre Cárdio-Oncologia foi elaborado pelo Grupo de Estudos em Insuficiência
Cardíaca (GEIC), da SBC, em conjunto com especialistas da Sociedade Brasileira de Oncologia e do
Instituto do Câncer de São Paulo. Além dos fatores
de risco que predispõem certos pacientes ao desenvolvimento de problemas cardíacos em decorrência
do tratamento oncológico, parece existir também
um fator de sensibilidade à cardiotoxicidade das
drogas quimioterápicas, que ainda está em estudos.
Jadelson Andrade informa que a equipe do cientista Jean-Bernard Durand, do centro de pesquisas
do câncer M.D. Anderson, em Houston, no Texas (EUA), vem investigando pessoas que por um
determinismo genético teriam mais sensibilidade
do que outras a apresentar problemas cardíacos.
“O cientista esteve conosco, no último Congresso
Brasileiro de Cardiologia, realizado em setembro
em Belo Horizonte, e está envolvido na publicação
da mesma diretriz lá nos Estados Unidos.” Essas
pessoas, a exemplo dos pacientes expostos a fatores de risco, terão de ser tratadas com drogas
menos agressivas para o coração, enfatiza o coordenador de diretrizes da SBC. Em resumo, todo
paciente com câncer, antes de ser submetido a tratamento, qualquer que seja, deve ser avaliado por
um cardiologista, de acordo com a nova diretriz.
(Por Silvia Campolim)
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
51
conversando com os especialistas
Para além da
aterosclerose
Embora o controle das taxas de LDL-colesterol no sangue
ainda represente o tratamento de escolha para conter o
avanço das placas ateroscleróticas, responsáveis por cerca
de 30% da mortalidade mundial, o entendimento da doença
passa por profundas transformações. Uma nova perspectiva
médica sugere que a formação dos ateromas associa-se a
diversos outros fatores além da dislipidemia, como inflamações
e infecções crônicas e proliferação celular, o que engloba
desde distúrbios psicossociais e apneia do sono até processos
autoimunes. Entre os tratamentos investigados, destaca-se a
aplicação de quimioterápicos em nanoemulsões, capazes de
conter a multiplicação de células nas camadas subendoteliais
Por
Giuliano Agmont
O
mecanismo fundamental da aterosclerose permanece desconhecido,
enquanto a comunidade médica passa a associar a doença também a processos
infecciosos, inflamações crônicas e distúrbios
psicossociais. Nas palavras do professor José
Antonio Franchini Ramires, diretor da Di-
52
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
visão de Cardiologia Clínica do Instituto do
Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo (HC-FMUSP), o desenvolvimento
das placas ateroscleróticas independe do processo de envelhecimento do sistema cardiovascular. “A aterosclerose deixou de ser conside-
Gjlp/Science Photo Library/SPL DC/Latinstock
conversando com os especialistas
Tomografia
computadorizada
tridimensional e colorida
mostra placa de ateroma
(onda laranja) na
artéria carótida interna
(direita superior) da
garganta. O depósito
subendotelial de gordura
estreita a cavidade
do vaso e restringe
o fluxo do sangue
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
53
conversando com os especialistas
Pessoas
competitivas
ou depressivas
apresentam
comportamento
mais suscetível
a manifestações
ateroscleróticas,
desencadeadas
pelo estresse
psicossocial
rada uma doença degenerativa, pois está presente
desde a vida intrauterina”, explica o cardiologista.
“Nascemos, crescemos e morremos com ateromas
no corpo. O que acontece é que algumas condições
aceleram e intensificam as agressões ao endotélio
vascular, precipitando as lesões.”
Responsável por três de cada dez mortes no
Brasil e no mundo, a aterosclerose acomete principalmente a camada íntima de artérias de médio
a grande calibre, o que leva a desfechos indesejáveis, em particular isquemias cardíacas e acidentes vasculares encefálicos. De acordo com as Diretrizes Brasileiras sobre Dislipidemias e Prevenção
da Aterosclerose IV, a disfunção endotelial favorece a retenção das lipoproteínas no espaço subendotelial ao tornar as paredes internas dos vasos
sanguíneos mais vulneráveis a elas. Retidas, as
partículas de LDL sofrem oxidação e tornam-se
imunogênicas, dando origem ao processo inflamatório. O depósito de lipoproteínas na parede arterial, escrevem os autores do documento, representa o processo-chave no início da aterogênese
e ocorre de maneira proporcional à concentração
dessas partículas no plasma.
Doença multifatorial
A disfunção endotelial também se caracteriza pelo
surgimento de moléculas de adesão leucocitárias
na superfície das paredes vasculares, determinado
pela presença de LDL oxidada. Essas moléculas de
adesão atraem para a parede arterial monócitos e
linfócitos, que migram para o espaço subendotelial.
Lá eles se diferenciam em macrófagos e captam as
LDL oxidadas, formando as chamadas células espumosas – principal componente das estrias gordurosas, lesões macroscópicas iniciais da aterosclerose.
Diante do início das agressões ateroscleróticas,
mediadores da inflamação estimulam a proliferação das células musculares lisas na camada média
arterial, que passam a produzir citocinas e fatores
de crescimento ao migrarem para a íntima, além
de precipitar os processos para formação da capa
fibrosa da placa. Formam a placa aterosclerótica o
núcleo lipídico, farto em colesterol, e a capa fibrosa, rica em colágeno. As placas estáveis apresentam
54
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
capa fibrosa espessa, raras células inflamatórias e
núcleo lipídico menor, enquanto as instáveis têm
atividade inflamatória intensa (especialmente nas
suas bordas laterais, com grande atividade proteolítica), núcleo lipídico proeminente e capa fibrótica
tênue. A aterotrombose, um dos principais determinantes das manifestações clínicas da aterosclerose, se dá mediante a ruptura da membrana da placa,
expondo material lipídico altamente trombogênico
e levando à formação de um trombo sobrejacente.
A aterosclerose é, como se sabe, uma doença de
origem multifatorial, associada a fatores de riscos
como elevação dos níveis plasmáticos de lipoproteínas aterogênicas, diabetes melito, hipertensão
arterial sistêmica, obesidade, sedentarismo e tabagismo. Recentes investigações levaram à descoberta de novos mecanismos aterogênicos secundários. O estudo INTERHEART, conduzido em
52 países com mais de 30 mil pacientes durante
quatro anos no início dos anos 2000, além de reforçar a importância das mudanças de hábitos de
vida como medida decisiva para o tratamento das
doenças cardiovasculares, foi um dos primeiros a
estabelecer a relação entre problemas psicossociais, especificamente depressão e estresse, com
isquemias miocárdicas, comparável à hipertensão
e à obesidade abdominal. “Pessoas competitivas
ou depressivas, que seriam duas posturas psicológicas extremas, apresentam um comportamento
mais suscetível a manifestações ateroscleróticas,
já que as adaptações fisiológicas diante do estresse, como a liberação de adrenalina, ativam células inflamatórias e favorecem a oxidação de LDL.
Paralelamente, há aumento de vasoconstrição,
espasmos localizados e frequência cardíaca, que
ampliam a pressão sanguínea e motivam lesões
mecânicas no endotélio, principalmente em vasos
mais tortuosos”, explica Ramires. Segundo o cardiologista do InCor, processo similar ocorre durante a síndrome da apneia e hipopneia obstrutiva
do sono (SAHOS), distúrbio frequente e pouco
diagnosticado, que também acelera o processo de
aterosclerose: “O cérebro está em permanente vigília, fazendo a varredura dos processos fisiológicos do corpo. Diante da interrupção da respiração
conversando com os especialistas
Progressão dos processos inflamatórios
e proliferativos até formação de ateromas
1
■ Endotélio
■ Íntima
■ Média
Agressões
endoteliais
crônicas:
■ Adventícia
Dislipidemia
Hipertensão
■ Tabagismo
■ Homocisteína
■ Fatores hemodinâmicos
■ Reações imunológicas
■
■
Resposta à agressão
2
Disfunção
endotelial
(por exemplo,
aumento da
permeabilidade)
Adesão e migração
de monócitos
Listras de gordura
3
Camada íntima recruta
células musculares lisas
Ativação dos macrófagos
Linfócito
Ateroma fibroso e gorduroso
4
Macrófagos e células
musculares lisas
engolfam lipídeos
5
Linfócito
Colágeno
Restos
lipídicos
Proliferação de células
musculares lisas, colágeno
e outros depósitos de
matrizes extracelulares
Lípides extracelulares
Adaptado de: Lybbi P, Bonow R, Zipes DP. Braunwald’s Heart Disease − A textbook of cardiovascular medicine. Disponível em: http://www.braunwalds.com. Acessado em: Dez 2010.
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
55
conversando com os especialistas
Interação celular durante o processo aterosclerótico
Agressão e disfunção endotelial
Adesão e migração
de monócitos para
a camada íntima
Efluxo de colesterol via HDL
Lúmen
Síntese de
matrizes
extracelulares
LDL
Macrófago
Endotélio
LDL
Íntima
Citocinas
(ex. IL-1, MCP-1)
+
LDL oxidado
Proliferação
de células
musculares lisas
Células
espumosas
Absorção
de lipídeos
Lípides
extracelulares e
células necróticas
Citocinas/Fator de crescimento
Migração
de células
musculares lisas
Membrana
elástica
interna
Células musculares lisas
Média
Vaso normal
Desenvolvimento
progressivo da placa
aterosclerótica
Adaptado de: Lybbi P, Bonow R, Zipes DP. Braunwald’s Heart Disease − A textbook of cardiovascular medicine. Disponível em: http://www.braunwalds.com. Acessado em: Dez 2010.
por tempo prolongado, a central nervosa do indivíduo comanda uma descarga de adrenalina na
circulação sanguínea, que eleva a pressão arterial,
acelera a oxidação e promove até arritmias. Esses
pequenos e constantes choques também predispõem à aterosclerose”.
As inflamações crônicas, em especial aquelas desencadeadas por respostas autoimunes, como o lúpus e a artrite reumatoide, representam mais uma
classe de doenças associadas à aterosclerose, assim
como os processos infecciosos, que podem ser motivados por invasores virais, bacterianos e outros.
As agressões celulares e teciduais provocadas por
56
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
agentes inflamatórios ou patogênicos geram uma
reação imunológica do organismo promovida por
mediadores enviados ao local com o objetivo de reparar a lesão. Nesse processo, as citocinas sinalizam
os agentes imunitários, estimulam outras células
do corpo e acabam por contribuir para a liberação
de radicais livres, compostos químicos capazes de
neutralizar os agressores das células. “O problema
é que a ação desequilibrada desses radicais livres,
que têm propriedade altamente oxidante, torna-se
agressiva também ao endotélio, criando portas para
a entrada das LDL e favorecendo sua oxidação”,
explica o professor Ramires. Além disso, continua
conversando com os especialistas
o cardiologista, inflamações e infecções de repetição estimulam um aumento da espessura da média
intimal, criando uma lacuna favorável ao depósito
de lípides e demais estruturas ateroscleróticas, processo estabelecido também por cicatrizações e calcificações provenientes da neovascularização.
Um estudo da Universidade de Palermo, publicado no ano passado no recém-criado World Journal
of Cardiology, sugere que marcadores sistêmicos
de inflamação podem ser preditores importantes
de eventos cardiovasculares, independentemente
de fatores de risco tradicionais. Segundo o trabalho, tanto inflamações sistêmicas quanto aquelas
localizadas dentro da placa aterosclerótica contribuem para o início, a progressão e a precipitação
de eventos agudos de doenças cardiovasculares. Os
pesquisadores italianos levantam ainda a hipótese
de que os processos inflamatórios no interior dos
ateromas estejam associados à instabilidade da placa, mais do que à estenose. Eles citam, inclusive,
a participação da bactéria Chlamydia pneumoniae,
importante agente patogênico associado a casos de
pneumonia, faringite, bronquite e sinusite, na aterogênese, embora reconheçam que o combate a essa
infecção com uso de antibiótico mostre-se ineficaz
na contenção da doença coronariana. Na cidade de
São Paulo, em compensação, a vacinação contra a
influenza demonstrou ser efetiva na redução dos índices de mortalidade por problemas cardiovasculares. “É importante lembrar que até a poluição do ar
contribui para o infarto”, acrescenta Ramires.
Ácidos graxos e biomarcadores
O bioquímico Rui Curi, professor titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto
de Ciências Biomédicas da Universidade de São
Paulo (ICB-USP), explica que os ácidos graxos
também têm efeito pró-inflamatório. O pesquisador cita um trabalho de 2010, publicado no Cardiovascular Diabetology, segundo o qual infusões de
baixas dosagens de ácidos graxos em indivíduos
saudáveis, durante 48 horas, induziram marcadores de ativação endotelial, inflamação e trombose
vascular, o que sugere que o aumento transitório
e modesto de lípides no plasma pode dar início
precoce às anomalias vasculares responsáveis por
aterosclerose e doença cardiovascular. “Os macrófagos morrem tentando fagocitar os grandes
adipócitos, criando condições para a secreção de
citocinas pró-inflamatórias, óxido nítrico e ROS
(espécies reativas de oxigênio)”, explica Rui Curi.
“Os ácidos graxos também estão associados ao
aumento da resistência periférica à insulina.”
Existem inúmeros biomarcadores de aterosclerose, nenhum deles preponderante em relação aos
demais, e muitos ainda por vir. Contribuem para
o reconhecimento de lesões ateroscleróticas a
presença de citocinas (IL-6, MCP-1, TNF-α, IL18, IL-10), as reações de fase aguda (PCR, SHH,
FE), a angiogênese (VEGF, PIGF, HGF), a ativação de plaquetas (CD4DL, selectina), as proteólises (MMP-1, -2, -9, -10, TIMP-1, -2, PAPP-A), o
estresse oxidativo (LDLOX, Lp-LPA2, mieloperoxidase, NADPH oxidase), a ativação endotelial
(vWF, sLFas, sICAM-1, sVCAM-1, SE-selectina),
entre outros. Para o professor Ramires, do InCor,
a identificação de biomarcadores representa uma
busca sem fim para a medicina e apenas corrobora aquilo que já se faz na prática clínica: a melhor
maneira de impedir a doença cardiovascular é neutralizar fatores de risco da aterosclerose, com indicação preferencial de estatina, que apresenta ação
anti-inflamatória, antioxidante e estabilizadora de
placa, além de baixar a concentração de colesterol
no sangue, sobretudo na prevenção secundária, e
tratar hipertensão e diabetes, reduzir peso, praticar
exercício e abandonar o fumo, conforme conclui o
trabalho da Universidade de Palermo.
A recente publicação, na revista Archives of Internal Medicine, de metanálise com estatina na prevenção primária gerou polêmica ao demonstrar
não haver redução estatisticamente significativa
na mortalidade total de pacientes no seguimento
de quatro anos com uso do medicamento. Diante
da controvérsia, o Departamento de Aterosclerose da Sociedade Brasileira de Cardiologia esclarece
que o resultado contrasta com o de outros trabalhos. “Embora os autores estejam corretos nas suas
afirmações, é importante enfatizar que as taxas de
morte foram baixas nos estudos, cerca de 1% ao
Metanálise
com estatina
na prevenção
primária gerou
polêmica ao
demonstrar não
haver redução
significativa na
mortalidade de
pacientes após
quatro anos
com uso do
medicamento
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
57
conversando com os especialistas
ano, fato que dificulta a demonstração do impacto
sobre esse desfecho. Além disso, o seguimento de
apenas quatro anos limita a janela de observação”,
escrevem os cardiologistas Renato Jorge Alves e
Raul Dias dos Santos Filho. “O benefício do uso
das estatinas será tanto maior quanto maior o risco
de eventos cardiovasculares, maior o tempo de tratamento e maior a redução do LDL-colesterol.”
De acordo com as Diretrizes Brasileiras sobre
Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose de
2007, as estatinas reduzem o LDL-colesterol de
15% a 55% em adultos (duplicação das doses acrescenta em média 6% na redução de LDL-C), baixam
os triglicérides de 7% a 28% e elevam o HDLcolesterol de 2% a 10%. Portanto, consensos médicos e múltiplos ensaios clínicos controlados e
aleatorizados sustentam que essa classe de medicamento diminui a mortalidade cardiovascular, a incidência de eventos isquêmicos coronários agudos
e acidente vascular encefálico (AVE), bem como a
necessidade de revascularização do miocárdio.
Nanoquimioterápico antiaterogênico
Assim como
nas neoplasias,
a proliferação
celular influi
no processo
aterosclerótico, o
que permitiu usar
nanoemulsões
anticâncer
para conter
inflamações
subendoteliais
58
Para o endocrinologista Raul Cavalcante Maranhão, diretor do Laboratório de Metabolismo de
Lípides do InCor, o principal desafio hoje da cardiologia é marcar as placas ateroscleróticas instáveis para antever eventos cardiovasculares agudos
e evitar internações para cirurgias de recanalizações vasculares, com aplicação de stents ou uso de
pontes com partes de veias ou artérias. Segundo
o médico, ainda não há um tratamento específico
para os processos inflamatórios crônicos que estão
na base da aterosclerose. Mas um trabalho pioneiro
desenvolvido por sua equipe com uso da nanotecnologia, aplicada até então em drogas contra o câncer,
abre perspectivas promissoras nesse campo. “Uma
das características mais importantes do processo
aterosclerótico é a proliferação celular, assim como
ocorre nas neoplasias. E foi justamente esse aspecto que nos permitiu direcionar uma nanoemulsão
criada para combater o câncer para neutralizar o
avanço de processos inflamatórios crônicos que
evoluem com o depósito de lipídeos nas camadas
subendoteliais”, explica Maranhão.
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
Composta por uma cápsula de fosfolípides e um
núcleo com ésteres de colesterol, essa partícula esférica de dimensões nanométricas, que começou a
ser criada há pelo menos 20 anos, é uma versão artificial da LDL capaz de transportar medicamentos
e se concentrar em células cancerosas. O segredo
da LDE, como passou a ser chamada, é sua capacidade de se ligar não às apolipoproteínas B (Apo B),
presentes na LDL, mas à Apo E. “A LDE é injetada
na circulação sanguínea e liga-se à Apo E quando
se choca com as lipoproteínas do sangue. A Apo
E permite à LDE se conectar com mais força aos
receptores na comparação com a LDL Apo B. Não
tínhamos como recriar em laboratório essa apolipoproteína”, constata Maranhão.
O projeto ganhou contornos clínicos a partir
de 1992, quando os cientistas norte-americanos
Michael Stuart Brown e Joseph Goldstein, que
ganharam o Prêmio Nobel de Medicina, demonstraram que as células cancerosas apresentam
mais receptores de LDL do que todas as outras,
pois têm de fabricar membranas na mesma velocidade com que se dividem e as lipoproteínas
compõem a base dessa estrutura capsular. Com
essa descoberta, os pesquisadores brasileiros decidiram injetar a LDE com uma droga anticancerígena em indivíduos com diferentes tumores.
“Marcamos a trajetória das nanoemulsões no organismo dos pacientes e percebemos que a concentração de LDE em células tumorais chegava
a ser 50 vezes maior na medula óssea, no caso de
leucemia aguda. Para o câncer de ovário, o número de receptores mostrou-se dez vezes maior
e, para tumor de mama, cinco vezes maior”, informa Maranhão. Além da eficácia em direcionar o medicamento para as áreas lesionadas, os
cientistas também comemoraram os estudos de
toxicidade dos fármacos em associação à LDE,
o etoposídeo e o paclitaxel. “Essa quimioterapia
apresentou efeito colateral mínimo ou ausente,
mesmo dobrando as dosagens.”
Mais recentemente, os pesquisadores do InCor
e da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCM-USP) constataram,
ao testar a LDE em coelhos, que a técnica tam-
conversando com os especialistas
bém se aplica no combate à aterosclerose. “Pela
primeira vez temos a oportunidade de neutralizar
diretamente a proliferação de células aterogênicas, que é um dos efeitos de base da doença”, esclarece o endocrinologista Raul Maranhão. “Durante o processo proliferativo desencadeado pelas
inflamações ateroscleróticas, o número de receptores para LDL das células cresce, assim como
acontece com o câncer, e os fármacos podem ter
um efeito antiproliferativo”. Como as pesquisas de
segurança em pacientes com câncer já estão avançadas, essa nova categoria de medicamentos para
conter a aterosclerose, baseados na nanotecnologia, pode chegar à prática clínica em três a quatro
anos. Outro medicamento utilizado no combate ao
câncer com efeitos ateroprotetores, que também
está sendo utilizado nas LDE, é o metotrexato.
O medicamento facilita a saída do colesterol das
camadas subendoteliais e inibe a formação de células espumosas. A quimioterapia, combinada com
metrotexato-LDE e paclitaxel-LDE, resultou em
uma redução de 80% da placa aterosclerótica, relata Maranhão.
Mas é preciso não generalizar, alerta o cardiologista Sérgio Ferreira, médico-assistente da Unidade Clínica de Aterosclerose do InCor. Segundo
ele, nem toda droga anticancerígena tem efeitos
antiaterogênicos. “Ao contrário, muitas delas
apresentam efeitos deletérios para o sistema cardiovascular.” (Ver a respeito texto sobre a I Diretriz
Brasileira e Mundial de Cárdio-Oncologia, à página
48). De volta da Scientific Sessions 2010, da American Heart Association, em Chicago, nos Estados
Unidos, Sérgio Ferreira diz que a primazia do tratamento de doenças cardiovasculares ainda depende de um diagnóstico precoce, mas destaca a ação
de stents farmacológicos no combate à proliferação de células lisas musculares na camada média,
que têm papel significativo na aterogênese. “Outra droga importante na redução dos processos
inflamatórios é a glitazona, que aumenta o HDL
e reduz o triglicérides. Existe também muita expectativa em relação à enzima PCSK9 (proprotein
convertase subtilisin/kexin type 9), que desempenha
um papel decisivo na regulação da homeostase
do colesterol e se tornou um dos principais alvos para futuras técnicas terapêuticas.” O mesmo
se aplica ao mipomersen, um inibidor da síntese
de apo-B, em fase final de desenvolvimento, com
grande potencial para redução das taxas de colesterol. Esta é a fronteira atual da pesquisa em
aterosclerose: o combate do processo inflamatório
que leva à doença.
Fontes
Departamento de Aterosclerose da Sociedade Brasileira
de Cardiologia. IV Diretriz Brasileira sobre Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose. Arq Bras Cardiol. 2007;88(Supl I).
Fazio G, Giovino M, Gullotti A, et al. Atherosclerosis,
inflammation and Chlamydia pneumoniae. World J
Cardiol. 2009;1(1):31-40.
Mansur AP, Favarato D, Ramires JAF. Vacina contra
o vírus da influenza e mortalidade por doenças cardiovasculares na cidade de São Paulo. Arq Bras Cardiol. 2009;.93(4):395-9.
Mathew M, Tay E, Cusi K. Elevated plasma free fatty
acids increase cardiovascular risk by inducing plasma biomarkers of endothelial activation, myeloperoxidase and PAI-1 in healthy subjects. Cardiovascular
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Reiss AB, Carsons SE, Anwar K, et al. Atheroprotective
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Sociedade Brasileira de Cardiologia. I Diretriz de Prevenção da Aterosclerose na infância e na adolescência. Arq Bras Cardiol. 2005;85(Supl VI):
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Arterial VI. Rev Hipertens. 2010;13(1):.
Yusuf S, Hawken S, Ounpuu S, et al. Effect of potentially
modifiable risk factors associated with myocardial infarction in 52 countries (the INTERHEART study):
case-control study. Lancet. 2004;364:937-52. Ray KK, Seshasai SRK, Erqou S, Sever P, Jukema
JW, Ford I, Sattar N. Statins and All-Cause Mortality in High-Risk Primary Prevention. A Metaanalysis of 11 Randomized Controlled Trials Involving 65 229 Participants. Arch Intern Med.
2010;170(12):1024-1031.
N o 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
59
vendo por dentro
Radiação ionizante
Risco de
Mauro Fermariello/Science Photo Library/SPL DC/Latinstock
overdose
preocupa especialistas
Os médicos sabem pouco sobre os riscos
de indução de câncer associados ao uso
de tecnologias de imagens para realização
de diagnósticos. Por desconhecimento,
imprudência, ou mesmo negligência,
especialistas de diferentes áreas, em
particular aqueles que lidam com
problemas cardiovasculares e neoplasias,
submetem seus pacientes a doses
desnecessárias de radiação ionizante – um
tipo de energia capaz de causar danos às
células humanas. Diante do problema, o
FDA acaba de lançar uma convocação para
reduzir os efeitos deletérios de tomografias
computadorizadas, fluoroscopias e
técnicas de medicina nuclear
Por
Índices de irradiação de tomografia computadorizada caem
de uma geração de equipamentos para a outra, mas exposição
evitável preocupa. Raios X atravessam os tecidos orgânicos e
conseguem interferir em ligações atômicas ou moleculares ao
deslocar elétrons. Essa ação pode danificar o material genético
e, assim, levar à proliferação celular desordenada motivada
justamente pela quebra do DNA, o que caracteriza a carcinogênese
60
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
Giuliano Agmont
A
exposição desnecessária à radiação ionizante restabelece o debate em torno dos
protocolos para solicitação de exames de
diagnósticos por imagem. A incorporação das novas
tecnologias, como a tomografia computadorizada
de múltiplos detectores (TCMD) para angiogra-
vendo por dentro
fia de coronárias, auxilia a medicina, mas também
oferece riscos. A discussão ganhou as páginas do
The New England Journal of Medicine (NEJM) em
julho de 2010, logo depois que o Food and Drug
Administration (FDA) lançou uma iniciativa para
reduzir a exposição evitável de radiação proveniente de procedimentos médicos. Em um dos artigos
publicados no periódico norte-americano, os autores relatam o caso de uma professora com paralisia
facial confirmada por tomografia computadorizada
(TC) e ressonância magnética (RM) que começou a
perder cabelo duas semanas após fazer os exames
e retornou ao hospital com vertigem e confusão
mental. Submetida a novas varreduras radiológicas,
a paciente passou a apresentar fadiga, mal-estar e
perda de memória. As investigações mostraram
que a quantidade de radiação absorvida durante o
primeiro procedimento chegou a 6 Gy, o equivalente a três vezes a dose diária de radioterapia para
câncer de cérebro. Resultado: a paciente de 59 anos
está agora processando o médico, o hospital e os
fabricantes de tomógrafos em geral.
Um paper da edição de setembro do Journal of the
American Medical Association (JAMA) também discute o problema, mas enfatiza as doses cumulativas de
radiação em pacientes submetidos à cintilografia de
perfusão miocárdica. O artigo lembra que, embora
muita atenção seja dada à TC, a injeção de radioisótopo na circulação sanguínea para observação de
cintilações via tomografia cardíaca é responsável
sozinha por 22% das doses de radiação ionizante
cumulativa proveniente de fontes médicas nos Estados Unidos. O médico radiologista Carlos Eduardo
Rochitte, professor do Setor de Ressonância Magnética e Tomografia Computadorizada Cardiovascular
do Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo (HC-FMUSP), concorda que a cintilografia por perfusão miocárdica está associada a altas doses de radiação e compara: “É uma situação em que
há emissão de fótons dentro do corpo do paciente,
por isso é preciso avaliar com rigor o risco-benefício
antes de requisitar esse procedimento”.
Editor da I Diretriz de Ressonância e Tomografia Cardiovascular da Sociedade Brasileira
de Cardiologia (SBC), Rochitte explica que a
radiação ionizante atravessa os tecidos orgânicos e consegue interferir em ligações atômicas
ou moleculares ao deslocar elétrons. Essa ação
pode danificar o material genético e, assim, levar
à proliferação celular desordenada motivada justamente pela quebra do DNA, o que caracteriza
a carcinogênese. Além das alterações celulares e
suas eventuais replicações, a irradiação acima de
doses seguras pode provocar queimaduras, queda
de cabelo e reações inflamatórias motivadas pela
liberação de radicais livres na circulação, além de
aumentar risco de surgimento de catarata diante
da exposição direta aos olhos.
O Instituto Nacional de Câncer (Inca) estima que
menos de 3% dos cânceres resultem da exposição
às radiações ionizantes. Os tecidos mais sensíveis a
essa radiação são o hematopoiético, o tireoidiano, o
mamário e o ósseo. Ainda de acordo com o órgão,
as leucemias ocorrem entre dois e cinco anos após a
exposição, e os tumores sólidos surgem entre cinco
e dez anos. O risco de desenvolvimento de um cânEQUIPAMENTOS DE DIAGNÓSTICO
POR IMAGEM NO BRASIL (tipo/unidade)
Equipamento
Gama câmara
Existentes
Em uso
829
779
3.441
3.341
822
800
7.714
7.202
10.747
10.261
3076
2.948
38.179
36.874
Raios X com fluoroscopia
1.500
1.424
Raios X para densitometria óssea
1.609
1.565
Mamógrafo com comando simples
Mamógrafo com estereotaxia
Raios X até 100 mA
Raios X de 100 a 500 mA
Raios X de mais de 500 mA
Raios X dentários
Raios X para hemodinâmica
693
673
Tomógrafo computadorizado
3.034
2.791
Ressonância magnética
1.113
1.091
Ultrassom Doppler colorido
9.050
8.844
Ultrassom ecógrafo
8.195
7.944
Ultrassom convencional
TOTAL
8.497
8.219
98.499
94.767
Fonte: Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) Net.
No 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
61
vendo por dentro
cer é significativamente maior quando a exposição
dos indivíduos à radiação aconteceu na infância. Pelos dados do FDA, estima-se que o surgimento de
pelo menos 29 mil cancros no futuro, nos Estados
Unidos, terá relação com a TC. Assim como uma
em cada 270 mulheres e um em cada 600 homens
que se submetem à angiografia coronária por TC
desenvolverão câncer aos 40 anos de idade.
Prescrição indiscriminada
Para o professor Rochitte, a RM deveria ser mais
difundida. “É um exame com capacidade semelhante à da tomografia computadorizada para gerar
imagem, mas produz menos radiação ionizante,
uma vez que usa radiofrequência na mesma faixa
das emissoras de rádio FM”, diz o radiologista.
O inconveniente da ressonância é o tempo do exame,
mais demorado. Leva de 30 a 40 minutos, podendo
chegar a uma hora, enquanto a TC é realizada em
até 20 minutos. “Mas também é importante considerar que os índices de irradiação das novas gerações de tomógrafos caíram três a quatro vezes em
relação aos modelos antigos”, acrescenta Rochitte.
O Cadastro Nacional de Estabelecimentos de
Saúde (CNES) informa que existem quase 2.800
tomógrafos computadorizados em uso no Brasil
(leia mais no quadro, à página 61), mas não há estimativa oficial do número efetivo de exames realizados por ano no país. Nos Estados Unidos, cerca
de 10% da população é submetida a uma ou mais
varreduras por TC, o que representa mais de 75
milhões de exames por ano, segundo o artigo do
NEJM. Somados a outros procedimentos, como
a medicina nuclear e a fluoroscopia, o número de
exames associados ao acúmulo de radiação passa
dos 100 milhões, informa o FDA. Além dos riscos
à saúde do paciente, a prescrição indiscriminada de
exames como a TC torna os custos da saúde acima
da inflação geral e cria um impasse político com as
seguradoras e o próprio governo, mostra um segundo artigo do periódico norte-americano sobre
o mesmo tema. No Brasil, uma tomografia pode
custar 250 reais no Sistema Único de Saúde (SUS)
ou mais de 1.500 reais no setor privado.
O combate à aplicação desnecessária de exames
por imagem deve acontecer com o uso racional
As fontes de radiação ionizante
Radiografia
Imagem obtida a partir da emissão
de feixes de raios X ou raios gama,
que atravessam o corpo e interagem
com uma emulsão fotográfica ou tela
fluorescente. As técnicas radiográficas
mais conhecidas são as que usam
os raios X. Exemplos: radiologia
oral (periapicais, panorâmicas e
cefalométricas), radiologia de tórax
(pulmão, trato gastrointestinal, sistema
reprodutivo, bacia), de membros (braços,
mãos, pernas), de crânio, cérebro e
coluna. Para essas aplicações, o risco
é baixo diante do uso adequado
e com equipamentos dentro dos
padrões de operação. Mas operadores
devem se proteger, sempre com uso
do chumbo, por conta do caráter
cumulativo da radiação ionizante.
62
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
Tomografia
Tubo de raios X ligado a um filme
radiográfico por um braço rígido
giratório que produz imagens
de planos de cortes sucessivos.
A tomografia convencional não
diferencia tecidos moles e deixa
de reproduzir informações vitais.
Na TC, a melhoria da colimação, a
introdução de detectores no lugar
do filme radiográfico e os recursos
de tratamento da imagem eliminam
essa deficiência. Os equipamentos
mais modernos reduziram o nível de
exposição de radiação ionizante no
paciente. Hoje, um paciente submetido
à tomografia absorve pouco mais
radiação do que outro que passou por
exame de raios X. Em alguns casos,
chega a apenas cinco vezes mais.
Mamografia
O mamógrafo obtém imagens com o
uso de um feixe de raios X de baixa
energia, produzido em tubos especiais.
O risco associado à exposição à radiação
é mínimo, principalmente quando
comparado com o benefício obtido.
Mapeamento com radiofármacos
Detectores de cintilografia identificam o
radioisótopo, que é um marcador radioativo,
durante seu transcurso no organismo. Esse
recurso permite a realização de exames de
medula óssea, pulmão, coração, tireoide,
rins e cérebro. A irradiação do paciente é
inevitável, por isso requer cuidado. Devese optar por radioisótopos de meia-vida
curta e tempo de residência pequeno.
Enfermeiros e indivíduos próximos ao
paciente ficam sujeitos à irradiação.
vendo por dentro
Radioatividade acumulada
De acordo com o National Council on Radiation
Protection and Measurements (NCRP), órgão norte-americano que representa lideranças científicas
na área de proteção radiológica, a dose per capita de
radiação proveniente de fontes médicas aumentou
quase seis vezes, de 1980 a 2006, nos Estados Unidos. Embora seja difícil aferir o quanto o diagnóstico por imagem, isoladamente, induz a um câncer,
uma vez que a radiação também está presente na
atmosfera, os especialistas concordam que a exposição excessiva ou desnecessária é indesejável.
A despeito dessa incerteza, os autores do artigo
publicado no NEJM sobre a segurança da TC calculam que o risco de câncer em uma única varredura chegaria ao “inaceitável” índice de 1 em 80.
Contudo, afirmam, nenhum profissional ou órgão
governamental é responsável por coletar, monitorar ou informar sobre doses radiativas acumuladas
por paciente submetido à tomografia, tampouco os
operadores recebem treinamento adequado sobre
os aparelhos. Pelo artigo, a primeira medida para
Thinkstock
das tecnologias diagnósticas, na opinião do médico Giovanni Guido Cerri, diretor e professor titular do Departamento de Radiologia da FMUSP.
“O avanço desses equipamentos permite a realização de procedimentos menos invasivos e a obtenção
de diagnósticos mais precisos e precoces, principalmente em relação a doenças assintomáticas, como
alguns cânceres, o que dá ao paciente a possibilidade de viver mais e melhor. Mas os riscos vêm junto com os benefícios e por isso devemos observar
os protocolos antes de pedir os exames”, considera Cerri, que ainda sugere bom senso nessa hora.
Segundo ele, existem recomendações gerais que
podem ser adotadas na investigação, conforme a
região do corpo ou a área médica, com possibilidade de complementações ou substituições, de acordo com as circunstâncias: “Ressonância magnética
para o sistema nervoso central e também para o
músculo-esquelético. TC para tórax, coração, pulmão e abdômen. Mamografia para mama. Ultrassom para ginecologia e obstetrícia. E medicina nuclear para oncologia”.
reverter o problema seria reduzir as doses de radiação em cada varredura, considerando que já existem evidências de que essa irradiação poderia cair
50% ou mais sem afetar a precisão do diagnóstico.
O médico Giovanni Cerri acredita que vários aspectos podem estar associados ao problema da irradiação em exames diagnósticos, a começar pela
falha médica. “O desconhecimento para determinados procedimentos ou mesmo a pressão do paciente, que ameaça procurar outro especialista, fazem
com que o médico peça exames sem observar os
protocolos, muitas vezes solicitando procedimentos inadequados ou prescrevendo todos de uma
vez, desrespeitando uma sequência apropriada”, diz
Giovanni Cerri. O entusiasmo dos médicos com as
novas tecnologias também ajuda a explicar a exposição desnecessária de pacientes à radiação ionizante. Nesse caso, porém, ocorre o que os especialistas
convencionaram chamar de efeito “pêndulo”. “Em
um primeiro momento, há uma utilização excessi-
Angiografia
coronária
por tomografia
computadorizada
com múltiplos
detectores
reduz dose
efetiva de radiação
No 17 | Jan/Mar 2011 | PESQUISA MÉDICA
63
Thinkstock
vendo por dentro
tomografia
requer adequada
calibração e
manutenção dos
equipamentos
utilizados para
realização
do exame
va de determinada tecnologia por empolgação ou
desatualização, que tende a se equilibrar com a maturação clínica. É preciso considerar que a maioria
não aprendeu na faculdade a usar recursos muito
novos”, analisa Carlos Rochitte.
A calibração e a manutenção dos equipamentos
usados para o diagnóstico por imagem representam
mais um fator decisivo para os danos associados à
radiação, como se percebeu no episódio relatado no
NEJM. Na ocasião, diz o artigo, o console do tomógrafo registrou a overdose de radiação, mas o
operador do aparelho não reconheceu o problema.
O FDA deve recomendar aos fabricantes de equipamentos de diagnósticos por imagem que criem dispositivos de segurança contra overdose de radiação
e também registrem para o médico a quantidade
Doses de radiação de fontes médicas
Cruzamento dos dados de diversos estudos mostra tanto as doses
médias absorvidas pelo corpo do paciente em diferentes exames
diagnósticos por imagem como a comparação dos efeitos de cada
um deles com os raios X de tórax. Note que uma fluoroscopia
intervencionista pode ter o impacto de 3.500 raios X de tórax.
Procedimento
Raios X odontológicos
Dose média em
adultos (mSv*)
Dose comparativa
(nº de raios X de tórax)
0.005-0.01
0.25-0.5
Raios X de tórax
0.02
1
Mamografia
0.4
20
2-16
100-800
0.2-41
10-2050
5-70
250-3500
Tomografia computadorizada
Medicina nuclear
Fluoroscopia intervencionista
Fonte: Food and Drug Administration (FDA).
* O Sv (Sievert), ou seu submúltiplo mSv (milisievert), é uma unidade de radiação que leva
em consideração a dosagem absorvida pelo corpo e seu efeito biológico em tecidos vivos.
64
PESQUISA MÉDICA | No 17 | Jan/Mar 2011
de radiação em cada aplicação. Além disso, o órgão
pretende cobrar o desenvolvimento de ferramentas
que permitam ao paciente acompanhar o acúmulo
de radiação em sua história médica. A falta de ajuste do equipamento, além de representar prejuízo ao
paciente, pela absorção de radiação, muitas vezes
não produz a imagem necessária ao diagnóstico.
Existe ainda o controverso problema da autorreferência, quando o pedido de exame acontece porque o cirurgião ou o clínico tem interesse em usar o
equipamento por tê-lo adquirido, provocando uma
demanda diagnóstica sem benefício ao paciente. Ou,
então, quando os fabricantes dos aparelhos incentivam os médicos para que peçam os exames. Em
ambos os casos, haveria conflito de interesse seguido de desvio ético. O radiologista Carlos Rochitte
relativiza a questão. “A autorreferência não é um
problema da esfera clínica e pode ser evitada com
critérios bem definidos de indicação aos pacientes,
como aqueles publicados em diretrizes de especialidades”, considera o radiologista. Finalmente, os
médicos chamam a atenção para os exames inócuos,
como ultrassom e ecocardiografia, mas que podem
gerar, a partir de falsos diagnósticos, investigações
com emissão de radiação.
Fontes
Andrew JE, Weiner SD, Bernheim A, et al. Multiple
testing, cumulative radiation dose, and clinical indications in patients undergoing myocardial perfusion
imaging. JAMA. 2010;304(19):2137-44.
Hillman BJ, Goldsmith JC. The uncritical use of hightech medical imaging. N Engl J Med. 2010;363:4-6.
I Diretriz de Ressonância e Tomografia Cardiovascular da Sociedade Brasileira de Cardiologia. Grupo de
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