Autor e Texto Author - Text Flavia Albano de Lima* BERTOLD BRECHT E KURT WEIL: A ÓPERA DOS TRÊS VINTÉNS BERTOLD BRECHT AND KURT WEIL: THE THREE PENNY OPERA Resumo A colaboração entre o compositor Kurt Weil e o dramaturgo Bertold Brecht foi breve, porém de grande importância para o desenvolvimento da ópera na História da Música. Culminando na criação de A Ópera dos Três Vinténs, Brecht e Weil viram esta supostamente brilhante colaboração dissolver-se até a admissão pública de seu término em meados de 1932. Até os dias de hoje A Ópera dos Três Vinténs é encenada em todo o mundo, traduzida para diversas línguas e sempre aclamada por qualquer tipo de público. O presente artigo visa investigar, por meio de pesquisa bibliográfica, a trajetória do compositor e do dramaturgo enquanto estabeleceram esta parceria. Abstract The collaboration between the composer Kurt Weil and the dramaturge Bertold Brecht was brief, but of great importance to the development of Opera in the Music History. Culminating in the writing of The Threepenny Opera, Brecht and Weil witnessed the collapse of this allegedly brilliant collaboration in 1932. Until our days The Threepenny Opera is staged all around the world, translated into several languages e it is always welcome in every theatre it is performed. This article aims to investigate, through bibliographical research, the trajectory of both the composer and the dramaturge while they established this partnership. Palavras-Chave Bertold Brecht. Kurt Weil. Teatro Alemão. Ópera alemã. Key Words Bertold Brecht. Kurt Weil. German Theatre. German opera. *Flavia Albano de Lima é mestre em Performance Musical pelo Royal Northern College of Music (Inglaterra), coordenadora do Curso de Licenciatura em Música da Faculdade de São Paulo (Grupo Educacional UNIESP), cantora lírica formada pela Faculdade de Música Carlos Gomes e atriz em formação pelo Teatro Escola Macunaíma R.TEMA S.Paulo UNIESP nº 60 jul/dez 2012 P. 26-33 26 Flavia Albano de Lima BERTOLD BRECHT E KURT WEIL: A ÓPERA DOS TRÊS VINTÉNS BERTOLD BRECHT AND KURT WEIL: THE THREE PENNY OPERA O s caminhos do dramaturgo Bertold Brecht e do compositor Kurt Weil cruzaram-se durante o ano de 1927, época em que consolidaram forte colaboração, talvez uma das mais importantes já estabelecidas no mundo da Ópera. O relacionamento profissional destas duas grandes personalidades iniciou-se por conta da admiração mútua e degradou-se até sua dissolução, por volta de 1932, por razões que envolveriam a supervalorização de fatores financeiros e problemas com direitos autorais. O presente artigo pretende investigar, por meio de pesquisa bibliográfica, as contribuições desta colaboração para o desenvolvimento artístico no século XX. Brecht e Sua Obra Eugen Friedrich Berthold Brecht nasceu em 10 de fevereiro de 1898, em Augsburg, uma pequena cidade ao sul da Alemanha. Filho do diretor de uma fábrica de papel 27 TEMA e de uma ferrenha protestante, Brecht cresceu como um burguês em uma Alemanha altamente desenvolvida, forte não só politicamente, como também, culturalmente. Desde cedo já demonstrava fortes inclinações políticas e completo desapreço ao imperialismo e capitalismo vigorantes, possivelmente por ter participado de ambas as Grandes Guerras e também da Revolução Operária de 1918, quando testemunhou o massacre da massa operária culminar na proclamação da Republica de Weimar, em 1919. Segundo Peixoto (1991, p. 23), seus primeiros poemas e peças são um reflexo de sua exposição à Guerra, sendo que mais tarde o poema A Lenda do Soldado Morto o colocaria em quinto lugar na lista dos perseguidos por Adolf Hitler. Bertold Brecht1 foi um dos maiores dramaturgos alemães, foi também um prolixo poeta e encenador. Sua obra soma mais de dois mil poemas, 48 peças e seus escritos teóricos foram responsáveis por uma renovação no teatro alemão e mundial. Por meio de seus escritos e experimentações, criou o conceito de distanciamento, que visava “impedir a empatia e a identificação vivencial exagerada” (ROSENFELD, 1968, p.129) e, também, o teatro épico, que ele próprio esclarece nas notas de Mahagonny: A FORMA ÉPICA DO TEATRO É narração, Faz do espectador um observador – mas Desperta-lhe a consciência crítica, Exige-lhe decisões. Visão do mundo. O espectador é colocado diante de alguma coisa. Argumento. Os sentimentos são elevados a uma tomada de consciência. O espectador está de frente, analisa. O homem é objeto de uma análise. 1 Brecht decidiu mudar seu nome de Berthold para Bertold, sendo que muitas vezes assinava sua correspondência somente com as iniciais B.B. UNIESP 28 O homem se transforma e pode transformar. Interesse apaixonado pelo desenvolvimento da ação. Cada cena para si. Construção articulada. Desenvolvimento retilíneo. Saltos. O homem como uma realidade em processo. O ser social determina o pensamento. Razão. (apud PEIXOTO, 1991, p.99) Em O Tambor na Noite (1922) Brecht já apresenta os primórdios do distanciamento, obra que lhe rendeu o prêmio Kleist e, só mais tarde, em 1924, em Homem é Homem, demonstrou as primeiras antecipações do teatro épico: os personagens interrompem a ação e se dirigem diretamente à plateia, intensificando o distanciamento já exprimido em obras anteriores. Tanto o conceito de distanciamento, como o de teatro épico, tornaram-se pilares da dramaturgia do século XX. Em 1927, o já consagrado compositor Kurt Weil entrou em contato com um ciclo de poesias intitulado Die Hausapostille, do então pouco conhecido Bertold Brecht. Seu encantamento foi tamanho que no mesmo ano começaram a trabalhar juntos. A primeira colaboração do dramaturgo e do compositor foi o songspiel2 Mahagonny, apresentado neste mesmo ano no festival de Baden-Baden, sendo que algumas das canções eram composições do próprio Brecht, revisadas por Weil e, umas poucas escritas pelo compositor. Mahagonny foi um enorme sucesso. Para Brecht a parceria mostrou-se extremamente eficiente, primeiramente porque ele mesmo não era um artista tão notório quanto Weil e, além disso, porque “... o artificialismo da ópera, o jogo de convenções sobre o qual ela repousa, constitui um elemento a mais para promover 2 O termo songspiel provém do conceito alemão de singspiel, que designa um drama musical no qual o diálogo é intercalado com a música. 29 TEMA o “distanciamento” desejado pelo dramaturgo. (COELHO, 2000, p. 499). É importante notar que Bertold Brecht nunca foi um artista que trabalhava só. Jamais Brecht teve problemas para encontrar colaboradores. Sua obra sempre foi cultivada à base de colaborações e Weil foi mais um na sua extensa lista de colaboradores (LANG, 2006). Em Homem é Homem, Brecht foi largamente assistido por sua secretária, amiga de toda a vida e amante, Elisabeth Hauptmann, sendo que a música original é do próprio Brecht, mais tarde recomposta por Weil; teve os manuscritos perdidos e finalmente foi recomposta por Paul Dessau. A Ópera dos Três Vinténs foi certamente o maior êxito de colaboração entre Brecht e Weil. Estreou em Berlim, em 31 de agosto de 1928 e foi baseada na Ópera do Mendigo, de John Gay, de 1728, traduzida por Elisabeth Hauptmann. Quando o jovem ator Ernst Robert Aufricht alugou e reformou um pequeno teatro abandonado, encomendou pequenas óperas a uma série de compositores, inclusive a Kurt Weil. O prazo para a entrega da obra foi tão curto, que, dificilmente, se ouviu falar de uma peça que passou por tantos imprevistos como esta: atores abandonaram seus papéis por diversos motivos; dos que ficaram, alguns não tiveram seus nomes publicados no programa e por aí segue. À revelia, a estreia foi um sucesso. O texto original de Gay e o de Brecht conservam inúmeras semelhanças, sendo que Brecht inventou apenas uma cena. Era sua intenção mostrar o quão pouco verossímil é o teatro, descobrir seus disfarces e seu afastamento da realidade, conceitos base do que ele chamou de teatro épico. A Ópera dos Três Vinténs passa-se em Londres, em 1838, nos dias anteriores à coração da Rainha Victoria e conta a história de Polly Peachum, que foge para se casar com o marginal Mack Navalha. A trama gira em torno da tentativa dos pais da garota, inconformados com o casamento, de colocar Mack Navalha na cadeia. Mesmo tendo assinado o libreto, diversos autores creditam quase que 80% da trama a UNIESP 30 uma simples tradução do texto de Gay. A música foi escrita para 23 instrumentos, é extremamente jazzística e, de certo modo, auxilia de modo brilhante a criação de um ambiente de crítica à burguesia europeia. Com o sucesso da Ópera do Três Vinténs, Brecht e Weil tentaram ainda escrever outra ópera que lhes rendesse o mesmo prestígio da anterior. Happy End, apesar da bela música de Kurt Weil e do grande elenco, foi um fracasso. Foi escrita com a ajuda de Elisabeth Hauptmann e falsamente baseada em uma novela norte-americana. Em 1930, uma empresa cinematográfica interessouse por fazer um filme da Ópera dos Três Vinténs e foi exatamente neste momento que o relacionamento entre Brecht e Weil começou a se deteriorar. Brecht era famoso por redigir seus contratos com extrema prudência e astúcia, mesmo assim, apesar de ter se cercado de todos os cuidados na elaboração deste contrato, foi acusado pela produtora de querer adicionar tendências políticas ao roteiro. Brecht resolveu processar a empresa demonstrando a impossibilidade de associar a arte à indústria cinematográfica. “Este processo atestou claramente, para todos os que sabem ver, os defeitos da indústria cinematográfica e os defeitos da jurisprudência”. (PEIXOTO, 1991, p.89). O filme de A Ópera dos Três Vinténs também não agradou Weil, enquanto Weil lutava para que houvesse apenas composições de sua autoria no filme, Brecht brigava com a produtora pelo dinheiro e o direito de expressar suas ideias políticas como bem entendesse. Mesmo com todos esses problemas legais, o filme foi rodado. Passados dois anos, Weil e Brecht admitiram publicamente o rompimento de sua parceria. O contrato elaborado por Brecht para A Opera dos Três Vinténs motivou mais enfaticamente o rompimento dessa parceria. Weil nunca se interessou pelos aspectos legais que envolviam sua arte e diante desse fato, Brecht elaborou um contrato que lhe dava direitos quase que unilaterais sobre a obra. O desconforto entre eles era tamanho que, na reencenação de 31 TEMA Mahagonny, o elenco testemunhou ter visto o compositor e o dramaturgo brigarem e se insultarem em quase todos os ensaios. Em 1942, enquanto estavam exilados da Alemanha, Brecht tentou levar A Ópera dos Três Vinténs para a Califórnia. Weil, que não tivera acesso à tradução do texto original para a língua inglesa, receou que a tradução traria alguns problemas de prosódia e orquestração para a produção musical por ele elaborada, portanto, impediu a encenação da obra. Conclusão Com a bibliografia e filmografia referendadas neste artigo depreende-se que o caráter de Brecht frequentemente é questionado, mesmo quando colocadas de lado suas convicções políticas e sua turbulenta vida amorosa. Sempre foi uma incógnita saber se as obras atribuídas a Brecht não foram substancialmente escritas por um de seus colaboradores. Kurt Tucholsky, famoso satirista alemão escreveu o poema-piada a respeito de Brecht: “Quem escreveu essa peça? Foi Bertold Brecht. Sim, mas quem escreveu essa peça?” (apud PEIXOTO, 1991, p.84). Observase ainda que, antes mesmo dos problemas de direitos autorais serem os mesmos que são até hoje, Brecht já os enfrentava. Os problemas judiciais enfrentados por Weil por conta de A Ópera dos Três Vinténs não terminaram mesmo depois de sua morte. Foi somente após a morte de Brecht que um novo contrato foi escrito, beneficiando a família de Weil com 35% dos direitos, enquanto a de Brecht receberia o restante. Existiram ainda os problemas de plágio que deram início a inúmeros debates sobre propriedade literária, afinal François Villon, grande ídolo de Brecht, foi quem escreveu diversos versos que foram utilizados na Ópera dos Três Vinténs (PEIXOTO, 1991, P.24) Segundo o próprio Weil, A Ópera dos Três Vinténs UNIESP 32 foi o princípio de um novo gênero de espetáculo, que possibilita a utilização da música como veículo político. Infelizmente o que se seguiu após seu sucesso foi a corrupção total dos valores artísticos implantados por essa parceria, posteriormente desfeita. Mais uma vez, a Arte se vê contaminada por fatores alheios ao seu sentido maior que é o de produzir na humanidade valores estéticos diferenciados, culturalmente valorizados e compreendidos pela sociedade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS COELHO, Lauro Machado. História da ópera: a ópera alemã. São Paulo: Perspectiva, 2000. FUEGI, John. Most unpleasant things with the Threepenny Opera: Weil, Brecht, and money. In: KOWALKE, Kim. Essays on a New Orpheus: Kurt Weil. EUA: Yale University, 1986. p.157-181. LANG, Joachim. Documentário Brecht – Die kunst zu leben. Alemanha, 2006. 33 PABST, G. W. Longa Metragem DieDreigroschen-Opera. Alemanhã, 1931. PEIXOTO, Fernando. Brecht: Vida e Obra. 4.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1991. ROSENFELD, Anatol. Teatro Alemão: Esboço teórico. Vol.1. São Paulo: Editora Brasiliense, 1968. TEMA