Uma história dos Balcãs diferente
Sra. Catherine Ashton1
Tinha que haver outra maneira melhor e agora já sabemos que sim.
Como na maior parte da Europa, a história recente dos Balcãs Ocidentais foi escrita com letras de
sangue. Lugar de onde partiu a chispa incendiária da Primeira Guerra Mundial, conheceu a
ocupação e a resistência durante a Segunda, os anos draconianos do comunismo e as batalhas e a
barbárie que se seguiram ao colapso da Jugoslávia, os povos da região já sofreram o suficiente.
Na passada sexta-feira, Ivica Dacic e Hashim Thaci decidiram fazer as coisas de outra maneira.
Depois de seis meses de conversações diretas, os Primeiros-Ministros da Sérvia e do Kosovo, de
comum acordo, decidiram normalizar relações. Definiram uma série de medidas práticas para ajudar
os seus povos a afastar o medo, a prosperar e a assumir plenamente o papel que é o seu na família
europeia.
Mas não podemos cair em exageros. Ainda não estamos no fim do caminho. Estamos, sim, numa
encruzilhada. O que sucedeu na semana passada foi que dois homens de coragem escolheram o
caminho da paz.
Não era este o resultado que muitos antecipavam há seis meses, quando reuni no meu gabinete de
Bruxelas Ivica Dacic e Hashim Thaci. Dois homens que nunca se haviam encontrado, apesar de
Belgrado ficar mais perto de Pristina do que Nova Iorque de Washington. Eu própria não estava de
todo otimista, mas achei que tinha que ser feito um esforço. Durante anos, o meu gabinete serviu de
intermediário nas discussões técnicas para resolver os problemas do dia-a-dia, sobre a maneira
como as coisas se haveriam de passar concretamente na fronteira entre a Sérvia e o Kosovo. Estas
conversações tinham já atingido o ponto em que era preciso um impulso político, que não seria
possível sem a participação dos dois Primeiros-Ministros. Felizmente, ambos concordaram que
fosse eu a presidir a essas conversações diretas.
Foi na tarde de 19 de outubro que entraram no meu gabinete do sexto andar da nova sede do
Serviço Europeu para a Ação Externa. Vinham naturalmente nervosos. Nem um nem outro podiam
estar certos do efeito que a notícia desse encontro produziria nos seus países. Quando o nosso
fotógrafo os juntou a ambos numa única fotografia, guardei-a comigo até que os dois Primeiros-Ministros estivessem suficientemente à vontade para consentir na publicação.
A tarefa que os unia era a de ajudar o mesmo grupo de pessoas: as dezenas de milhares de sérvios
do Kosovo que vivem no Norte deste país. Já muito se escreveu sobre a história deste conflito.
Agora tratava-se de encontrar maneira de lhe pôr termo.
Aquele primeiro encontro no meu gabinete não durou mais de uma hora e o seu objetivo era
simples: não se pretendia superar divergências, mas apenas ver se já tinha chegado o momento
oportuno para iniciar um diálogo sustentado. Eu concluí que sim. Mas mais importante do que isso,
eles também.
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A autora é a Alta Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança e VicePresidente da Comissão Europeia. Este trabalho foi publicado originalmente no International Herald Tribune.
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Seguiram-se mais nove reuniões. Algumas delas foram longas, chegando a durar 14 horas, muitas
delas marcadas pela minúcia, outras pela tensão. Em certas ocasiões, convidei os Vice-Primeiros-Ministros e outras pessoas de ambas as partes vieram juntar-se às conversações. Para mim, era
evidente que não seria suficiente conseguir que os dois Primeiros-Ministros assinassem um papel.
Nenhum acordo sobreviveria se não contasse com o apoio de largas coligações tanto na Sérvia
como no Kosovo.
Por fim, ambas as partes acabaram por encontrar uma plataforma de entendimento acerca do nível
de autonomia de que os sérvios do Kosovo deveriam beneficiar. Tanto em Belgrado como em
Pristina, o acordo foi bem acolhido por todas as forças políticas. Para o pôr em prática, muito
haverá ainda que fazer. Não é de esperar que já não haja obstáculos pelo caminho. Porém,
parece-me que é possível refletir sobre os quatro ensinamentos que retirámos destes últimos seis
meses.
1. Para que as coisas mudassem de vez era fundamental a coragem dos dirigentes. Por esse
mundo fora, a política joga-se normalmente explorando linhas de clivagem e atiçando as
disputas. A paz não se constrói sem buscar pontos comuns e sem vislumbrar um futuro
partilhado. Nos seis meses que passaram, assisti a uma evolução pela qual homens vindo de
Belgrado e de Pristina passaram de políticos a construtores da paz. Sabiam que se expunham a
riscos, mas não se deixaram intimidar, o que é um grande mérito.
2. Na Europa dos nossos dias – aliás em grande parte do mundo de hoje – há muita coisa por
arrumar. Temos um multiplicidade de identidades que nem sempre se encaixam bem na noção
oitocentista do Estado-Nação. Um dos grandes desafios que nos lançam tantas das disputas de
hoje é reconhecer essa "desarrumação" e ajudar os povos que têm identidades diversas a
encontrar uma ou outra maneira de partilhar o mesmo espaço, num espírito de respeito mútuo.
Só então nos será dada a oportunidade de tomar em mãos o prémio que verdadeiramente
importa: a celebração da nossa magnifica diversidade.
3. A União Europa pode ter uma influência determinante. É um grande laboratório para a
demonstração de como a diversidade pode funcionar em proveito de todos nós. Tem os seus
defeitos, sem dúvida. Está hoje perante grandes problemas económicos. Mas, no seu conjunto,
funciona. Essa foi a razão por que os povos da Europa oriental se lhe quiseram juntar logo que
se libertaram do domínio soviético. Agora querem aderir também a Sérvia e o Kosovo. Espero
que o acordo da semana passada tenha desencadeado um processo que lhes dê essa
possibilidade.
4. A força bruta – económica e às vezes militar – tem o seu lugar; mas também a força da
influência tem um grande papel a desempenhar. A União Europeia continua a atrair novos
membros não só porque favorece o comércio, o emprego e o investimento, mas porque é
símbolo de valores, como a liberdade e a democracia, que são fonte de inspiração para muitos
em todo o mundo. A força musculada requer calculismo, enquanto a força da influência
recompensa a imaginação. O que Ivica Dacic e Hashim Thaci mostraram quando vieram ao
meu gabinete foi que tinham a coragem de imaginar um futuro melhor para os seus povos.
É aqui que reside, pois, a minha esperança. (Sublinho – esperança: ainda não é uma certeza.) Nos
últimos cem anos, os Balcãs Ocidentais têm sido vistos como um foco de guerra. Que daqui em
diante passem a ser conhecidos como um berço de paz.
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