Tempo e Linguagem em “Esperando Godot” _____________________________________________ Gilberto Bettini Bonadio1 Resumo: A presente pesquisa tem como tema "O tempo em Esperando Godot" peça teatral escrita por Samuel Beckett no pós 2ª Guerra Mundial. Na peça em questão chama atenção a forma como o tempo é concebido e apresentado pelo autor: esse tempo (fator essencial a uma compreensão histórica do universo) não existe senão como uma eternidade imóvel e morta. A partir disso, procura-se aqui traçar paralelos com a filosofia como de Henri Bergson (1859/1941) que concebe o tempo como uma mudança essencial e contínua, como duração pura e não como o percebemos na realidade: fragmentado, feito de instantes que se sucedem sem se penetrarem, encarando assim, a imobilidade como substrato da realidade. A esse caráter de imobilidade da realidade e, por conseguinte, do ser humano frente a essa realidade a qual não é capaz de mudar, soma-se a falência de sentido do homem em relação ao mundo: um universo cuja ordem e significado ele não é capaz de apreender, vivendo a repetição de cada dia, esperando algo ou alguém que o livre dessa condição, fazendo desta busca uma espera absurda. Através do uso que Beckett faz da linguagem pode-se entender essa falência de sentido para o homem na sua relação com o mundo. Mostrando a desintegração da própria linguagem, o autor fornece as premissas básicas para uma compreensão e análise deste texto bastante peculiar onde tempo e linguagem mesclam-se para mostrar a relação entre o homem e seu tempo, enxergando nisso uma possível característica de sua condição existencial. Palavras-Chave: Beckett. Teatro do Absurdo. Esperando Godot. A peça “Esperando Godot” foi escrita no pós-Guerra (1946/53) pelo irlandês Samuel Beckett, um dos mais ilustres representantes da corrente que ficou (convencionalmente) conhecida como Teatro do Absurdo. A preocupação de Beckett está voltada para questões filosóficas sobre a condição humana, onde o tempo (fator essencial a uma compreensão histórica do universo) não existe senão como uma eternidade imóvel e morta e que tem como meio de expressão a decrepitude física dos corpos, a degeneração físico-fisiológica que se faz presente na medida em que esse tempo passa, fazendo desse homem uma carcaça, resto de uma humanidade que perdeu o seu rumo e agora se vê incapaz de compreender a própria 1 Graduando em Filosofia da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília. [email protected]. Orientador: Profª. Dra. Arlenice Almeida da Silva. Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 59 existência. Ou seja, a preocupação de Beckett não reside em mostrar o absurdo da existência a partir da vida social, mas sim através do choque do homem consigo mesmo, percebendo em seu íntimo a perplexidade desse encontro. E nessa “percepção existencial”, está sem dúvida englobada sua hesitação diante dos sistemas políticos, da ordem social e do absurdo de um mundo onde se sente incapaz de entender a própria vida. Como nos mostra Andrade: À contínua substituição das cascas sucessivas a que damos o nome de ‘eu’ corresponde um mundo igualmente cambiante e a arte deve fazer justiça à natureza movediça do terreno em que pretende promover o encontro (ou denunciar o desencontro) entre o sujeito e o universo. (2001, p. 21). A principal característica desse sentimento (ou desse desencontro) é a sensação de que certezas e pressupostos básicos e inabaláveis de épocas anteriores desapareceram, foram experimentados e constatados como falhos, foram desacreditados e agora são considerados ilusões baratas. O declínio da fé religiosa foi disfarçado até o fim da Segunda Guerra Mundial pelas religiões substitutas como a fé no progresso, o nacionalismo e várias outras falácias totalitárias. Tudo isso foi estraçalhado pela Guerra. Já em 1942, Albert Camus indagava por que razão, já que a vida tinha perdido toda a sua significação, o homem não haveria de buscar uma saída no suicídio; em “O Mito de Sísifo” Camus tenta diagnosticar a situação humana num mundo de crenças destroçadas: Um mundo que pode ser explicado pelo raciocínio, por mais falho que seja este, é um mundo familiar. Mas num universo repentinamente perdido de ilusões e de luz, o homem se sente um estranho. Seu exílio é irremediável, porque foi privado da lembrança de uma pátria perdida tanto quanto da esperança de uma terra de promissão futura. Esse divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e seu cenário; em verdade constitui o sentimento do absurdo. Enquanto tentativas absurdas de confrontação do homem com as últimas conseqüências de sua condição (condição de homem racional levado pela própria racionalidade a um dos mais desastrosos desatinos da humanidade, a saber, a guerra) projetavam uma visão coerente e geralmente identificada da verdade, o Teatro do Absurdo apenas transmite a intuição mais íntima e pessoal de um poeta, sua sensação da Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 60 existência particular, sua visão individual do mundo. Tal é a temática do Teatro do Absurdo, e ela determina sua forma, que deve necessariamente representar uma convenção de palco bastante diferente do teatro “realista”2. Como o Teatro do Absurdo não tem por objetivo transmitir informações ou apresentar problemas ou destinos de personagens que existam fora do mundo interior do autor, como ele não propõe teses e nem debate ideologias, ele não se preocupa com a representação dos acontecimentos, nem com a narração do destino ou das aventuras dos personagens, mas apenas com a situação básica de um individuo. É um teatro de situação, em oposição a um teatro de acontecimentos em seqüência, e por isso mesmo usa uma linguagem baseada na conformação de imagens concretas mais do que em argumentos ou falas discursivas. O Teatro do Absurdo tende então, para uma desconstrução radical da linguagem, para a poesia que deve emergir das imagens concretas e objetivadas do próprio palco; Como nota Esslin (1968, p. 21): “O Teatro do Absurdo desistiu de falar sobre o absurdo da condição humana; ele apenas o apresenta tal como existe - isto é, em termos de imagens teatrais concretas”. O elemento da linguagem ainda desempenha papel importante nessa concepção, mas o que acontece no palco transcende, quando não contradiz, as palavras ditas pelas personagens. No teatro “literário” a linguagem possui papel preponderante. No teatro “antiliterário” do circo, dos gestos, das imagens, a linguagem é relegada a um plano secundário. O Teatro do Absurdo conseguiu a liberdade de usar a linguagem apenas como um componente - ora dominante, ora dominado. Ao colocá-la em uma cena em contraste com a ação, ao reduzi-la a uma série de ruídos sem nexo, ou ao abandonar a lógica discursiva pela lógica poética da associação, o Teatro do Absurdo abriu uma nova dimensão do palco, uma dimensão livre. Segundo Antonin Artaud (1999, p. 127): [...] esses gestos concretos devem ser de uma eficácia bastante grande para levar ao esquecimento até da linguagem falada. Se a linguagem falada existe, ela deve ser apenas um meio de retomada, uma parada do espaço agitado; e o cimento dos gestos deve, através 2 O Teatro do Absurdo caracteriza-se por uma recusa total da concepção de teatro enquanto movimento, ação que se nutre de personagens que lutam contra situações exteriores adversas, deixadas de lado em lugar da encenação interiorizada deste conflito em personagens imobilizadas e ensimesmadas; “(...) uma progressiva simplificação da intriga (redução do número de episódios, de personagens, de ambientes), correspondente a uma complexificação e ganho de importância do mundo interior”. (ANDRADE, 2001, p. 35). Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 61 de sua eficácia humana, atingir o valor de verdadeira abstração [...] o teatro deve tornar-se uma espécie de demonstração experimental da identidade profunda entre o concreto e o abstrato. Esse teatro é, então, parte do movimento “antiliterário” que encontrou sua expressão na pintura abstrata, com sua rejeição dos elementos “literários” em quadros; ou no “novo romance” francês, com sua dependência da descrição de objetos e sua rejeição da empatia e do antropomorfismo. Ao mesmo tempo, o teatro foi progressivamente perdendo sua característica de maior destaque: [...] a apresentação de destinos em movimento, corporificados na ação, em nome de uma maior atenção às imagens acabadas, de caráter quase pictórico, quadros que pedem contemplação em si, independentes do encadeamento e sucessão de episódios, deslocandose do processo para constituírem-se enquanto totalidades expressivas em si. (ANDRADE, 2001, p. 105). Não foi por mera coincidência que, como todos esses movimentos e tantos outros esforços na direção da busca de novas formas de expressão nas Artes, o Teatro do Absurdo se centralizou em Paris. Isso não significa que o Teatro do Absurdo seja essencialmente francês; tem expoentes na Inglaterra, na Espanha, na Itália, na Alemanha, na Suíça e nos EUA, bem como na França. Além do mais, os principais adeptos que vivem em Paris e escrevem em francês não são franceses. O perigo de ser embalado pela lógica da linguagem é por certo sempre maior na língua materna, com seus significados e associações inconscientemente aceitos. Escrevendo numa língua estrangeira, Beckett tem a garantia de que sua obra permaneça uma luta constante, uma dolorosa confrontação com a própria essência da língua. Ele passa a encarar a palavra não somente como um meio sensível de expressão estética, mas como uma forma de mergulhar no vazio inerente a toda condição humana. Sentimento que mais tarde expressaria melancolicamente: “eu não tenho nada a dizer, mas posso dizer até que ponto não tenho nada a dizer” (BECKETT, 1976, p. 9). Caracterizado pela sua preferência por solilóquios e pela investigação detalhista do processo interior de personagens que tentam atribuir ou reconhecer um sentido ao mundo e a si mesmas, por criaturas cuja incapacidade para a ação está diversas vezes representada na degeneração física, o teatro de Beckett, assim como toda sua obra ficcional, institui uma nova ordem de realismo que reconstrói na linguagem a falência Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 62 do sujeito burguês, a dissolução dos indivíduos como sedes da reflexão, perdidos num mundo coisificado. Esse sentimento de inquietação, angústia e solidão tornou-se a viga mestra do teatro beckettiano. Já em sua primeira peça Eleutheria, escrita em 1941, o personagem Victor Krapp, reivindica a liberdade de não ser nada, em oposição ao mundo de utilidades, sentimento e procriação que constituem o mundo burguês. No entanto, é nas obras seguintes que Beckett sintetiza sua análise do mundo de forma inesquecível: surge em 1953, Esperando Godot, que lhe garante repercussão mundial e, em 1957, Fim de Partida, atingindo o clímax de seu vigor teatral. “Esperando Godot” não conta uma história, ao contrário, explora uma situação estática. O lugar é deserto, sem cor. Somente uma árvore ao centro e a luz antecede o crepúsculo. Dois velhos vagabundos, Vladimir e Estragon estão esperando Godot. Com isso, procuram preencher o tempo da espera dialogando até a exaustão, pois nessa espera está todo o sentido de suas vidas. Mas nada acontece e a atmosfera de vacuidade e monotonia não é alterada senão pela entrada de Pozzo e Lucky (respectivamente senhor e escravo) que, partindo depois, fazem retornar o vazio que circunda as personagens. E Godot que não se sabe quem é ou o que seja3 não chega e nem nunca chegará. Assim, para preencher sua desesperada expectativa, para enganar o tédio dos dias vazios e iguais, Vladimir e Estragon falam um com o outro mesmo sem tem o que dizer, travam discussões inúteis e refazem as mesmas perguntas (que são tão frustrantes quanto as tentativas de resposta), para assim preencherem o vazio da existência e para de darem ao menos, a impressão de que existem. Os diálogos procuram, basicamente, “passar o tempo”, fato de que os próprios personagens parecem conscientes. Tudo é colocado na situação estática que traduz o título da peça: Esperando Godot. O assunto da peça não é Godot, mas a própria espera, o ato de esperar como um aspecto essencial da condição humana. Durante toda nossa vida estamos sempre esperando alguma coisa, e Godot representa o objetivo de nossa espera - um acontecimento, uma coisa, uma pessoa, a morte. Além disso, é no ato da 3 Muitas tentativas já foram feitas pra se tentar saber ao menos uma etimologia para o nome de Godot, que indicasse, de certa forma a intenção consciente ou inconsciente de Beckett ao apresentá-lo como o objetivo da espera de Vladimir e Estragon. Sugeriu-se que Godot fosse uma forma enfraquecida da palavra “God” (“Deus”) e enriquecido pela alusão ao personagem criado por Charles Chaplin, que na França é conhecido como Charlot, e cujo chapéu-coco é usado por todos os quatro personagens principais da peça. No entanto, adverte Esslin (1968, p. 43): “[...] deva Godot sugerir a interferência de um agente sobrenatural, ou represente ele algum ser humano mítico cuja chegada se espera que altere a situação, ou englobe ambas essas possibilidades, o fato é que sua natureza exata é de importância secundária”. Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 63 espera que experimentamos o fluxo do tempo em sua forma mais pura e concreta. Quando estamos fazendo algo tendemos a esquecer a passagem do tempo, mas se estamos esperando passivamente temos de enfrentar a ação do próprio tempo, que constitui mudança constante. Aqui pode-se traçar um paralelo com a filosofia do francês Henri Bergson (1859/1941); para ele o que existe é o tempo real, ou seja: a duração. Tempo esse que é mudança essencial e contínua; tempo que passa incessantemente modificando tudo e que constitui a própria realidade da vida psíquica. Como escreve o próprio Bergson: “O real não são os ‘estados’, simples instantâneos tomados por nós, ainda uma vez, ao longo da mudança; é, ao contrário, o fluxo, é a continuidade de transição, é a mudança ela mesma” (1979, p. 104). Todavia, para Bergson, não é assim que percebemos a realidade; presos aos hábitos da inteligência visando nossa ação no mundo, percebemos a realidade como estática e passível de ser fragmentada em partes que facilitam nosso agir. Temos assim uma concepção espacial da realidade, que olha o mundo do ponto de vista da extensão. A essa visão espacial da realidade escapa o tempo real, que flui incessantemente em seu contínuo movimento, porque pensa o tempo nos moldes do espaço, e assim, concebe um tempo ilusório: o tempo espacializado, originado da confusão que inadvertidamente se faz entre tempo e espaço. E a consciência, imbuída de representações espaciais, olha para si mesma e não se reconhece como duração pura, enxerga estados psíquicos que se sucedem sem se penetrarem, não vê o eu no seu conjunto inter-relacionado, esquece o passado num lugar escondido sem relação com o presente, torna as sensações e os sentimentos unidades estanques sem movimento, concebe a imobilidade como substrato da realidade. Mas, na verdade “O que há é um progresso ininterrupto de mudança – uma mudança sempre aderente a si mesma numa duração que se alonga sem fim” (BERGSON, 1979, p. 104). E como na peça nada acontece de real, a mudança é ela mesma uma ilusão. A atividade ininterrupta do tempo é para os personagens autoderrotadora, sem objetivo e significado. Quanto mais as coisas mudam, mais continuam as mesmas, e isso parece constituir a terrível estabilidade/imobilidade do mundo. Didi e Gogo mesmo quando decidem agir não agem, ficam parados, imóveis. Incapazes de agir decididamente, inertes à sua condição, não morrem ou desistem. Presos a repetição contínua, a ela se entregam, e a ela reforçam com suas tentativas patéticas de passar o tempo, corroborando o caráter de imobilidade e não-ação do ser humano frente à sua vida e a um universo cuja ordem não é capaz de apreender. Aliás, Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 64 não são capazes de apreender quase nada e durante toda a peça não sofrem nenhuma evolução psicológica. Se têm consciência de algo é a de que parecem atores encenando diariamente um espetáculo circense: a dança e o discurso de Lucky, as discussões entre Vladimir e Estragon, assim como o momento em que imitam Pozzo e Lucky, são trechos da peça que comprovam o caráter artificial de suas vidas e dos atos que a preenchem. Artificial, pois não têm e nem sabem como seria uma existência autêntica, verdadeira, que lhes possibilitaria um verdadeiro agir no mundo e não somente agir por agir. A ação que desenvolvem não visa outra coisa senão a passar, preencher, enganar o tempo que a cada minuto em seu fluir constante lhes corrói, lhes pesa e não lhes dá alternativa senão fingir, atuar, enganarem-se a si próprios. Como disse uma psicóloga jungiana, Eva Metman, num estudo das peças de Beckett: “A função de Godot parece ser a de manter inconscientes os que dependem dele” (1960, p. 51). Eles não têm consciência plena de sua condição, pois não entendem o que está além da atuação. Atuam, pois não têm alternativa, não entendem o que estão vivendo, existem, por assim dizer, inautenticamente, alienados de si próprios e de tudo o que os cerca; o hábito da esperança de que Godot apareça afinal é a última ilusão de Vladimir e Estragon, ilusão essa que os impede de enfrentar sua condição e a si mesmos em vista de uma plena conscientização. A atuação vem como um anestésico, até mesmo inconsciente, a todo o horror da condição humana, que eles podem não entender, mas que vivem a cada instante. Contudo, por um breve momento Vladimir parece ficar plenamente consciente da terribilidade dessa condição: [...] Esses gritos de socorro que ainda reboam em nossos ouvidos foram dirigidos à humanidade inteira! [...] Vamos fazer o melhor que pudermos, antes que seja tarde demais! Vamos representar com dignidade, pelo menos uma vez o papel que um destino cruel nos reservou [...] É evidente também que, se ficarmos de braços cruzados, sem fazer nada, pensando os prós e os contras, também faremos justiça à nossa condição (BECKETT, 1977, p. 153). Na verdade os diálogos da peça de Beckett são construídos sobre o princípio de que cada fala faz esquecer o que foi dito na fala que a precedeu. “Para este sujeito beckettiano tornado corpo, carcaça, não há memória. A história está excluída, aparecendo apenas como seu produto final: o declínio, o tormento” (ANDRADE, 2001, p. 33). O uso da língua pelo autor investiga as limitações da mesma, seja como meio de Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 65 comunicação, seja como veículo para expressão de asserções válidas, como ferramenta do pensamento. No palco é possível abdicar completamente das palavras, ou ao menos revelar outro sentido para além destas. Por isso mesmo que por um breve instante Vladimir tome consciência de sua condição, seus atos e suas falas posteriores obliteram o que havia acabado de pensar ou dizer, incapaz que é de aprender ou evoluir. Muitas vezes a ação das personagens contradiz suas expressões verbais, como no final de cada ato em “Esperando Godot”, os dois vagabundos dizem “Vamos”, mas a rubrica informa que eles “permanecem imóveis”. A importância da mímica, dos tombos e dos silêncios revela como os fatos por trás das palavras podem ser revelados, como a linguagem pode ser usada como contraponto da ação no palco. O uso que Beckett faz do palco é uma tentativa de reduzir a defasagem entre as limitações da linguagem e a intuição da existência, o sentido da condição humana que procurava expressar, apesar de sua forte convicção de que as palavras são insuficientes para formulá-lo (ESSLIN, 1968, p. 74). A linguagem nas peças de Beckett serve para expressar o desmoronamento, a desintegração da linguagem. Linguagem esta que não é mais veículo de comunicação e sim de falência de sentido, pois ela não esclarece, causa um estranhamento. No começo de “Esperando Godot” não há quem não estranhe os diálogos entre Vladimir e Estragon, e mais adiante dê risada dos mesmos, reconhecendo ali um pouco de si mesmo em suas falas. Com isso Beckett consegue causar no espectador um reconhecimento daquela situação, daquela falência de sentido e do absurdo inerente à nossa condição. Assim também explicita Andrade sobre a obra dramática de Beckett: “Em Beckett, as palavras não são mais motor da ação, veículos para o cumprimento de destinos e enfrentamento de vontade. Seus textos dramáticos dissolvem os projetos em palavrório, burburinho, rumor, ordenado e simétrico sim, mas que se reconhece e se mostra inútil, pondo em cena heróis armados de uma razão tortuosa e sem finalidade” (ANDRADE, 2001, p. 105). Na peça há várias formas diferentes de desconstrução da linguagem que variam das simples confusões de duplo sentido aos monólogos (como indicações da impossibilidade de se estabelecer comunicação), às frases feitas, à repetição de sinônimos, bem como a confusão de caótico non sense de Lucky à omissão de pontução, Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 66 e os longos silêncios e pausas que permeiam todo o texto. Esse silêncio também causa no espectador a angústia da falta do que dizer e da impossibilidade de comunicação, angústia essa que pode nos colocar diante do nada que está na raiz de nossa condição, fazendo-nos, mesmo que por um breve momento, conscientes dela e sentindo todo o seu desconforto4. Porém, mais importante que quaisquer reivindicações formais da desintegração da linguagem e do sentido na peça de Beckett, é a natureza do próprio diálogo, que repetidamente desmorona porque nenhuma troca verdadeiramente dialética ocorre nele - seja pela perda de sentido, seja pela incapacidade dos personagens de se lembrarem do que acabaram de dizer; num mundo sem sentido, que perdeu suas últimas esperanças, o diálogo - assim como a ação - é reduzido a um simples jogo para fazer passar o tempo. A simplicidade e esterilidade das situações têm, em Beckett, um fundamento histórico oculto, mediado, que cabe ao leitor desvendar por sob o véu desta linguagem voluntariamente empobrecida, transmutada em jargão científico, discurso funcional sem propósito evidente. (ANDRADE, 2001, p. 37). Mas se o uso que Beckett faz da linguagem é planejado para desvalorizar a língua como veículo de pensamento ou como instrumento para a comunicação, o seu continuado uso da linguagem deve ser, paradoxalmente, uma tentativa de comunicação da sua própria parte, de uma comunicação do incomunicável. Tal intento pode ser contraditório, mas mesmo assim faz sentido: Beckett critica aqueles que acham que falar de um problema é resolvê-lo, e que aceitam ser dominados por classificações, fórmulas bem arranjadas e respostas pré-fabricadas. Critica não apenas os meios de repressão a que o homem está submetido, mas a ele mesmo incapaz de agir, de se comunicar, de ter consciência plena, de conseguir ser algo além de suas próprias esperanças. A obra de Beckett pode ser vista como uma busca por uma realidade que jaz além do mero raciocínio conceitual; pode ser que ele tenha desvalorizado a linguagem como 4 Existe aí um paralelo verdadeiro entre a filosofia existencialista de Jean Paul Sartre e a intuição criadora de Beckett. Tanto para Beckett quanto para Sartre, o homem tem o dever de encarar a condição humana como reconhecimento de que na raiz de nossa existência está o nada, a liberdade, e a necessidade de nos criarmos através de uma sucessão de escolhas. Godot pode aí se tornar a imagem do que Sartre chama de “má-fé”, que consiste basicamente no ato de fuga daquilo que realmente somos. Embora esses paralelos possam ser esclarecedores, não se deve vincular a visão de Beckett com qualquer escola filosófica, pois como diz Esslin: “Uma das riquezas peculiares a uma peça como Esperando Godot é justamente a de abrir aos nossos olhos tantas perspectivas diversas” (1968, p. 55). Vol. 1, nº 1, 2008. www.marilia.unesp.br/filogenese 67 meio de comunicação do que quer que seja, mas por outro lado ele mostra-se um grande mestre da linguagem como instrumento artístico, que soube fazer das palavras ferramentas de seus objetivos. Referências BECKETT, S. Esperando Godot. Tradução de Flavio Rangel. São Paulo: Abril Cultural, 1977. CAMUS, A. O Mito de Sisifo. Ed. Record, s.d. ESSLIN, M. O Teatro do Absurdo. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1968. _____. Beckett: a busca do eu. In: O Teatro do Absurdo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1968. ANDRADE, F. de S. Beckett: o silêncio possível. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. ARTAUD, A. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BEGSON, H. O pensamento e o movente. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Os Pensadores). ______. Matéria e Memória. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Os Pensadores). SARTRE, J. P. O Ser e o Nada. São Paulo: Vozes, 2003. HOYO, A. del. 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