As cabeças falantes do universo beckettiano: uma análise da transcriação do texto teatral de That Time1 Gabriela Borges Introdução As cabeças falantes são elementos estéticos constituintes de algumas das obras teatrais e audiovisuais de Samuel Beckett. A fragmentação das partes do corpo e a sua consequente transformação nos próprios personagens é uma característica que está presente em peças como Play (1964), That Time (1976), Not I (1972) e What Where (1983). Este trabalho tem o intuito de discutir a encenação das cabeças falantes a partir da análise da transcriação da peça teatral That Time dirigida por Charles Garrad para o projecto Beckett on Film. O projecto Beckett on Film consta da adaptação das peças de teatro de Samuel Beckett para o cinema e a televisão produzido pela televisão pública irlandesa RTÉ, o Channel 4 britânico e o Irish Film Board. O projeto Beckett on Film O projeto Beckett on Film, realizado em 1999, consta da transcriação para o meio audiovisual das dezenove peças de teatro do dramaturgo irlandês Samuel Beckett. As peças foram originalmente produzidas pelo Gate Theatre Dublin para o Beckett Festival em 1991, tendo sido exibidas em conjunto com as peças de rádio do autor. Devido ao grande sucesso de público nos palcos de Dublin, Londres, Nova York e Melbourne, o diretor artístico do Gate Theatre Dublin, Michael Colgan, juntamente com Alan Moloney da produtora Blue Angel Films, propuseram a realização do projeto para a rede pública de rádio e televisão irlandesa RTÈ, que o produziu em parceria com o Channel 4 e o Bord Scannán na hÉireann/The Irish Film Board. Samuel Beckett, apesar de ser mais conhecido pelos seus trabalhos literários e teatrais, sempre teve muito interesse pelos meios audiovisuais. Em 1938, escreveu Texto publicado no livro Borges, Gabriela (org.) Nas margens. Ensaios sobre teatro, cinema e meios digitais. Lisboa, Gradiva, 2010. 1 1 uma carta para Sergei Eisenstein pedindo para aprender cinema com o mestre russo, a qual nunca foi respondida. Entre as décadas de 1950 e 1980, Beckett escreveu peças de rádio e televisão para a rede de rádio e televisão britânica BBC e dirigiu os seus trabalhos na emissora de televisão alemã Suddeustcher Rundfunk. Em 1963, escreveu o filme intitulado Film, protagonizado por Buster Keaton e dirigido por Alan Schneider. Por outro lado, Beckett era avesso às adaptações de seus trabalhos para outros meios, não por purismo, mas porque acreditava que o meio é um elemento estético constituinte da obra e a adaptação não permite explorar o meio neste sentido. Em 1963, Beckett autorizou a adaptação da peça de rádio All that Fall pela televisão francesa RTF. Esta foi traduzida pelo próprio autor com o título Tous ceux qui tombent e direção de Robert Pinget. O autor ficou muito insatisfeito com o resultado porque esta é uma peça “for voices, not bodies”, por isso não funciona num meio que mostra os personagens. Para Beckett “to act is to kill it” (Zilliacus, 1976). Após assistir à adaptação, o autor escreveu para John Barber da Curtis Brown, a sua agência na França, a seguinte nota: “In a weak moment I let French TV do All that Fall, with disastrous results” (apud Knowlson, 1997: 799). Por isso, quando Ingmar Bergman pediu permissão para adaptar as duas peças de rádio, All That Fall e Embers, Beckett não a concedeu. (apud Knowlson, 1997: 505). Mesmo assim, alguns autores afirmam que a criação das suas peças de teatro foi influenciada pelas tele-peças que estava produzindo no mesmo período. Na televisão, Beckett teve a possibilidade de aperfeiçoar a sua estética minimalista e a fragmentação do corpo dos personagens de uma forma que o teatro não permitia, mas ao mesmo tempo inovou a linguagem teatral ao trabalhar neste meio a partir das suas experimentações com a televisão. A realização do projeto Beckett on Film levanta uma discussão muito instigante em relação à criação artística e à crítica da obra do autor. Por um lado, sabe-se que Beckett não autorizava as adaptações sendo que, curiosamente, o meio audiovisual permitiu o apuramento estético da abstração das imagens criadas pelo autor. Por outro lado, os produtos audiovisuais produzidos permitem que a sua obra teatral continue a ser estudada e que as novas gerações venham a conhecer trabalhos tão idiossincráticos e relevantes para a história da dramaturgia ocidental. 2 Apesar de ter conhecimento das restrições de Samuel Beckett no que diz respeito à adaptação de suas peças para outros meios, Colgan propôs ao Beckett Estate, detentor dos direitos autorais da obra beckettiana, a realização da adaptação para os meios audiovisuais das dezenove peças de teatro escritas pelo autor. A concessão dos direitos autorais por parte do Beckett Estate contou com várias premissas, entre elas destaca-se o critério para a escolha dos realizadores, que baseou-se na experiência prévia como escritores, pois as didascálias de Beckett para a performance das peças deviam ser seguidas à risca. Colgan2conta que foi escrita uma espécie de “bíblia” para os realizadores, cujas instruções eram categóricas: não eram permitidos cortes no texto, definições de gênero e, por exemplo, onde estava escrita a palavra “praia” devia haver uma praia, pois não seriam aceites adaptações ou cenas inspiradas em outros autores ou mesmo em outros textos do próprio autor. O desafio dos realizadores estava na passagem do texto teatral inalterado do palco para a tela, usando apenas os recursos do meio audiovisual, isto é, os enquadramentos, os ângulos e movimentos de câmera e a edição. Por outro lado, foi dada total liberdade para a escolha do elenco, pois os produtores esperavam que os realizadores contratassem atores e atrizes de renome para dar credibilidade ao projeto. A atriz Julianne Moore foi convidada para protagonizar a peça Not I, dirigido por Neil Jordan; o ator John Hurt para o papel de Krapp em Krapp´s last tape, dirigido por Atom Egoyan; Jeremy Irons protagoniza os dois personagens, Reader e Listener, de Ohio Impromptu, dirigido por Charles Sturridge e Harold Pinter faz o papel do diretor em Catastrophe3, dirigido por David Mamet. Como produto audiovisual, os filmes foram captados em película e disponibilizados também em DVD. Para a transmissão televisiva os filmes foram divididos em blocos e acompanhados de entrevistas com os diretores e atores, as quais também se encontram no DVD juntamente com o documentário sobre a produção, Check the Gate: Putting Beckett on Film, dirigido por Pearse Lehane. É importante ressaltar que os filmes tiveram uma ótima acolhida por parte do público ao serem exibidos em festivais de cinema ao redor do mundo mas, quando foram exibidos na televisão, os índices de audiência foram tão baixos que o próprio Channel 4 www.beckettonfilm.ie Esta peça foi dedicada por Beckett ao dramaturgo e ex-presidente da República Tcheca, Václav Havel, quando ele foi preso por suas opiniões políticas em 1982. 2 3 3 cancelou a exibição de alguns deles. Ainda assim, o projecto Beckett on Film ganhou o prêmio Best TV Drama do South Bank Award Ceremony em 2002. A partir das considerações iniciais tecidas, o próximo capítulo tem o intuito de discutir a fragmentação das peças beckettianas e, em especial, a transcriação da peça That Time. Para isso será analisada a génese da peça teatral e o filme produzido pelo projeto Beckett on Film. A fragmentação e a transcriação Em termos narrativos, as peças de Beckett não estão baseadas na unidade de ação aristotélica, com começo, meio e fim, pois apresentam uma estrutura circular e reincidente. Os diálogos não correspondem às ações e os personagens, aos poucos, vão sendo imobilizados. A ideia do drama como representação mimética da realidade é questionada quando a imitação de uma ação torna-se o próprio tema da peça. O espaço cênico apresenta um mínimo de objetos. Num constante processo de minimalização e abstração, os cenários não representam um espaço definido de ação no sentido realista ou naturalista do termo. Em Waiting for Godot4, por exemplo, há somente uma estrada com uma árvore, em Happy Days, Winnie está enterrada num monte de areia até a cintura no primeiro ato e no segundo ato até o pescoço. Do mesmo modo que os objectos de cena começam a ser preteridos para a composição dos cenários, os corpos dos personagens começam a ser fragmentados ao ponto das próprias partes do corpo se transformarem em personagens. Este é o caso das peças Play, Not I, That Time e What Where. Em Play, os personagens W1, W2 e M estão dentro de urnas e somente as suas cabeças são vistas quando enfocadas pelos holofotes de luz. A protagonista de Not I é a Boca que, como o próprio nome indica, é o órgão que atua como personagem. Em That Time, que será detalhadamente analisada neste estudo, temos apenas uma cabeça suspensa na escuridão, o personagem do Ouvinte. E What Where apresenta a máscara da morte, a voz de Bam, e os quatro rostos-personagens muitos parecidos - Bam, Bem, Bim e Bom - suspensos na escuridão referida por Beckett como o campo da memória. A performance dos A árvore da primeira performance desta peça em 1958 foi criada pelo escultor Alberto Giacometti. 4 4 atores, na maioria das vezes, é enfatizada com o uso de focos de luz em meio à escuridão, tanto nas peças acima mencionadas como em outras. Em Rockaby somente a cadeira de balanço em que a personagem W está sentada é vista no palco e em Footfalls somente a personagem fantasmagórica de May está iluminada ao andar compassadamente de um lado ao outro do palco. Sem dúvida que Beckett subverteu as regras daquilo que era considerado o drama teatral, principalmente nos anos 1950. Porém, a questão que se coloca neste trabalho é se os filmes conseguem transcriar as particularidades da peça numa outra linguagem, o que Campos (apud Plaza, 1987:28) refere-se como a tradução do próprio signo na sua materialidade. Para Ballogh (1996:36-41), o texto transcriado tem que responder como um texto estético por si só, independente do texto de origem, que é denominado na literatura de “forma-prisão” (Santiago apud Johnson, 1982:10). No teatro, não somente o texto com os monólogos ou diálogos fazem parte desta forma-prisão, mas também as didascálias, ou as rubricas que constróem o espaço cênico visualizado pelo autor. Na opinião de Ramos (1999:77) as rubricas e os diálogos são igualmente importantes na composição do texto teatral beckettiano, inviabilizando a performance e o sentido da peça caso não sejam respeitados. Por outro lado, pode-se argumentar que o próprio desenvolvimento do processo criativo de Samuel Beckett contribuiu para a realização do projeto Beckett on Film, pois a imagética beckettiana da fragmentação se adequa muito bem às especificidades da linguagem audiovisual, permitindo a criação de novas metáforas visuais por intermédio do uso da câmera, da iluminação, dos recursos de áudio e de edição. Neste sentido, este estudo tem como objetivo discutir as particularidades e as nuances do processo de criação e de transcriação da peça de teatro That Time para o projeto Beckett on Film. O texto teatral A peça That Time foi escrita em inglês entre os anos de 1974 e 1975 e encenada pela primeira vez no Royal Court Theatre em Londres no dia 20 de Maio de 1976. A peça é composta por um personagem, um homem de longos cabelos compridos brancos, o Ouvinte, cuja imagem contrasta com uma mesma voz advinda de três 5 fontes sonoras diferentes: A, B e C. As referências imagéticas da peça são as gravuras de William Blake e possivelmente a fotografia Women with long hair (1929), de Man Ray5. James Knowlson (1997: 600-2) afirma que esta peça trabalha com temas reincidentes na obra do autor, como a ausência de um eu identificável e a existência de uma vida imaginária em que o personagem inventa histórias e vozes para ouvir, criando um mundo próprio para poder fugir dos seus problemas e ignorar os sinais de decadência, desintegração e morte que o circundam. Apesar de não ser possível afirmar que esta é uma peça autobiográfica, podem ser feitas associações com a vida do próprio Beckett, que naquele momento tinha sessenta e oito anos e indagava sobre a passagem do tempo. Os sentimentos de confusão, solidão, desolação e morte emergem à medida que o personagem do Ouvinte relembra do seu passado. Neste sentido, a peça remete para o que o próprio Beckett (1999: 13) tinha escrito sobre a obra de Proust: “There is no escape from the hours and the days. Neither from tomorrow nor from yesterday. There is no escape from yesterday because yesterday has deformed us, or been deformed by us. The mood is not important. Deformation has taken place. Yesterday is not a milestone that has been passed, but a daystone on the beaten track of the years, and irremediably part of us, within us, heavy and dangerous. We are not merely more weary because of yesterday, we are other, no longer what we were before the calamity of yesterday. A calamitous day, but calamitous not necessarily in content.” That Time tem uma estrutura circular e terciária como a peça Play. Beckett escreveu em 1974 que tinha consciência de que esta era uma peça que estava nos limites do que era possível se fazer no teatro. O autor escreveu a seguinte nota no manuscrito: “To the objection visual component too small, out of all proportion with aural, answer: make it smaller on the principle that less is more” (apud Knowlson, 1997: 602). A forma é uma das características centrais da peça, talvez até mesmo fornecendo as razões para a necessidade de expressar-se, cuja preocupação Beckett ressaltou muito bem nos diálogos com George Duthuit: “there is nothing to express, nothing Knowlson (1997: 816) afirma que não se sabe ao certo se Beckett conhecia o trabalho de Man Ray, mas sabe-se que Ray fotografou James Joyce, Francis Picabia, Tristan Tzara, Marcelo Duchamp, todos conhecidos de Beckett. 5 6 with which to express, nothing from which to express, no power to express, no desire to express, together with the obligation to express” (Beckett, 1999: 103). A peça apresenta uma estrutura matemática, com trinta e seis parágrafos divididos em três secções de doze parágrafos, sendo que cada voz fala quatro vezes em cada secção. A peça abre com o discurso da Voz A e fecha com o discurso da Voz C. O balanço é simétrico e a divisão das secções é feita por meio de silêncios, um recurso que se mostra adequado para uma peça em que a possibilidade do silêncio está sempre presente de modo elusivo. Os períodos são interligados sem pontuação, portanto sem interrupções no discurso. Também não há letra maiúscula no começo dos parágrafos, os quais funcionam apenas para marcar uma quebra e uma mudança entre os três monólogos, o que é feito com uma precisão matemática que pode ser associada à obra Lessness (1969). De acordo com a indicação de Beckett, a mudança das vozes deve ser imperceptível, porque estas constituem uma mesma voz e aparecem como um fluxo da consciência, mais uma característica marcante no modo de expressão beckettiano. No teatro, as indicações são para que as vozes venham da direita, da esquerda e de cima da cabeça do personagem. A cabeça move-se, mas os lábios não se mexem, apenas os olhos se abrem quatro vezes durante a peça. E há um sorriso epifânico no final. As diferentes estórias contadas por A, B, C, que são as denominações dadas por Beckett para o discurso, correspondiam primeiramente aos aspectos factuais, mentais e afectivos da vida do personagem, mas foram desenvolvidas em três períodos da vida do Ouvinte (A refere-se à infância, B à juventude e C à velhice). O monólogo da voz A conta a história de uma criança solitária que se esconde numa ruína isolada e inabitada, onde fica falando consigo mesmo. O monólogo da voz B relata um relacionamento em que os amantes nunca se dirigiram um ao outro, nunca se tocaram ou coisa parecida. Na opinião de Pountney (1998: 38) a relação entre eles parecia envolver uma responsabilidade crescente a fim de permitir o amor mútuo e, neste sentido, a reiteração se torna não apenas uma troça do voto do casamento, mas talvez as implicações da punição por falta de amor. À abordagem estéril do amor pela voz B adiciona-se a referência a um rato morto que foi apanhado entre os ramos de uma árvore. Na obra de Beckett a experiência de um amor perdido é lembrado como um remorso nostálgico. Entretanto, em That 7 Time o amor perdido é associado a um rato morto, o amor não apenas foi perdido, mas está morto e pútrido. O monólogo da voz C é de um velho homem, um vagabundo beckettiano que assombra os espaços públicos, como a Portrait Gallery, a Public Library ou o Post Office, em busca de calor e de algum lugar para se sentar. Ele tem a mesma relutância que a Boca de Not I6 para aceitar a sua identidade, como na seguinte passagem: “could you ever say I to yourself in your life …” e está sempre tendo pontos de viragem na sua vida. Ele também está confuse e repete várias vezes durante a peça: “was that the time or was that another time?” (Beckett: 1999: 390). Na opinião de Pountney (1998: 39) a questão é retórica, porque na verdade as suas experiências são apenas palavras, e a vida em si mesmo é uma ficção. Os protagonistas beckettianos sempre passam a vida a contar, ou a ouvir histórias, uma situação paralela ao processo criativo do autor, na verdade a ironia do seu trabalho está na tensão entre o autor e o protagonista-autor e as dificuldades experimentadas por ambos. A Voz B descreve porque sente a necessidade de contar histórias na seguinte passagem: “just one of those things you kept making up to keep the void out just another of those old tales to keep the void from pouring in on top of you the shroud” (Beckett: 1999: 390). E a Voz C expressa a mesma necessidade em: “trying making it up that way as you went along how it would work that way for a change never having been how never having been would work the old rounds trying to wangle you into it…” (Beckett: 1999: 391). O texto audiovisual No cinema e na televisão a peça foi transcriada por Charles Garrad, com atuação do ator Niall Buggy e duração de vinte minutos. O filme apresenta close-ups do Ouvinte sob diversos ângulos da câmera de acordo com o discurso de cada uma das vozes. Na transcriação, a figura do Ouvinte pode ser melhor enfatizada do que no teatro, através do uso do close-up e dos enquadramentos da câmera. O uso estético do close-up começou a ser desenvolvido por Beckett na tele-peça Eh Joe, com o fechamento do ângulo de visão da câmera nos olhos de Joe, atingindo um Beckett considera o texto da peça That Time como “irmão de Not I” (apud Knowlson, 1997: 816). 6 8 momento epifânico na formação do que Deleuze (1995: 12) denomina “a imagem” do personagem F, na tele-peça Ghost Trio (1975). A fragmentação do corpo e o posterior redimensionamento de suas partes em personagens, especialmente as cabeças falantes (talking heads), são recursos explorados nas peças teatrais Play (1964), Not I (1972), That Time (1976) e What Where (1983), mas que foram aperfeiçoados nas tele-peças devido ao espaço condensado da tela, que enfatiza a expressividade dos fragmentos corporais. De facto, a tecnologia intrínseca aos meios audiovisuais permitiu que Samuel Beckett explorasse as partes do corpo e, em especial, o rosto. Nos filmes transcriados para o projecto Beckett on Film, com destaque para That Time, a expressividade do rosto é favorecida pelo enquadramento do plano e o recorte da tela. Deleuze (1994) define o primeiro plano, o close-up e portanto o rosto, como imagem-afecção. O close-up retira as coordenadas espacio-temporais da imagem e faz surgir o afecto puro no momento em que está a ser expresso. Neste sentido, a imagem-afecção transforma a face humana em paisagem, em “rostidade”. Deleuze e Guattari (apud Vasconcelos, 2006: 97) afirmam que “o rosto é paisagem ao comportar inúmeras facetas em uma face, infindáveis rostos em um rosto. Esses desdobramentos do rosto teimam em descaracterizar o que há de humano em suas expressões, pervertendo a própria anatomia, instaurando um corpo sem órgãos”. A imagem-afecção, ao retirar as coordenadas espacio-temporais da imagem, instaura um espaço qualquer, que no filme That Time é expresso pela escuridão que circunda o rosto. Ao ser fragmentado o rosto passa a estar suspenso neste espaço qualquer. O espaço qualquer não é um espaço universal abstracto, em todo tempo e lugar, é um espaço singular que perdeu a sua homogeneidade, isto é, o princípio das suas relações métricas ou a conexão de suas próprias partes (Deleuze, 1994: 160). Segundo Deleuze e Guattari (1980: 206), o close do cinema tem dois pólos: fazer com que o rosto reflita luz ou, ao contrário, acentuar as suas sombras até mergulhá-lo numa impiedosa ‘obscuridade’. Isto é exatamente o que temos na transcriação de That Time, que apresenta o rosto como focos de luz na escuridão da tela. Em That Time o rosto-personagem do Ouvinte ganha uma dimensão diferente daquela que tinha no teatro. Cada uma das vozes corresponde a um ângulo de visão do rosto, o monólogo da voz A apresenta o fade in do perfil do 9 rosto no lado esquerdo da tela. O monólogo da voz B apresenta o personagem no ângulo frontal da câmera, em grandes close-ups mais próximos ou afastados que enfatizam a sua insignificância perante a escuridão da tela. O monólogo da voz C apresenta o fade in do rosto do lado direito da tela. A edição é feita por meio da fusão das imagens do rosto, que se intercalam com os monólogos. Os monólogos interiores de That Time não se expressam na narrativa, de modo algum como passagens das etapas da vida do Ouvinte, mas pode-se dizer que se aproximam de um fluxo da consciência que muda em conformidade com os ângulos do rosto do personagem. Em That Time, há uma coexistência de temporalidades na narrativa, que não separa o passado do presente e o futuro do passado. Neste sentido, Beckett, como Alain Resnais em Hiroshima mon amour (1959), subverte o procedimento da imagem-lembrança no cinema, que reconstitui o passado por meio do flash-back e das falas em off de um narrador. Em That Time, as três fontes sonoras que narram três momentos da vida do Ouvinte na terceira pessoa se imbricam de tal forma que temos apenas um fluxo sonoro que se associa e se dissocia dos três angulos do rosto-personagem. Para Bergson (1999), a percepção e a lembrança estão imbricadas num circuito em que a imagem-lembrança se insinua na percepção e dificulta a possibilidade de se distinguir entre uma e outra. Neste sentido, esta concepção de tempo não cronológico reinventa a memória e dá acesso à lembrança pura, que se deve ao aparecimento dos lençóis do passado e das pontas de presente. Para Deleuze (1990: 330), com a morte do flash back, da voz off e do extra-campo, o cinema moderno só pôde conquistar a imagem sonora impondo uma dissociação desta e da imagem visual. “A imagem sonora enquadra uma massa ou uma continuidade da qual se extrai o ato de fala puro, isto é, um ato de mito ou fabulação que cria o acontecimento. E a imagem visual enquadra um espaço qualquer, espaço vazio desconectado que ganha novo valor, pois vai enterrar o acontecimento sob camadas estratográficas. Logo, a imagem visual nunca mostrará o que a imagem sonora enuncia”. Neste sentido, pode-se argumentar que o mesmo procedimento está presente no trabalho de Beckett e, em particular, na transcriação de That Time. 10 O diálogo, ou a dissociação, entre a imagem visual e a imagem sonora no trabalho de Beckett é empreendido pela descorporificação da voz, que é desmembrada do corpo do personagem. Em Beckett as vozes são sempre ambíguas, pois não se sabe quando se trata da voz do próprio personagem ou de um outro personagem, uma vez que esta age independentemente das ações do personagem visto na tela. Isto pode ser constatado nas tele-peças Eh Joe, Ghost trio e ...but the clouds.... Este recurso permite a inserção das vozes da memória no espaço de ficção e a reconfiguração da ordem cronológica do tempo. Ainda ligada à memória está a repetição, que sempre volta de forma fragmentada, como nas tele-peças Eh Joe, Ghost trio, ...but the clouds... e Nacht und Träume e na própria peça That Time, bem como em Play e Not I. Em That Time a imagem visual é sempre do rosto-personagem, no entanto a imagem sonora cria fabulações que tentam afastar em vão o vazio. A Voz B afirma: “No words left to keep it out so gave it up there by the window in the dark or moonlight gave up for good and let it in and nothing the worse a great shroud billowing in all over you on top of you and little or nothing the worse” (BECKETT, 1999: 394). A Voz A reafirma as reincidentes tentativas de afastar o vazio no final da peça na seguinte passagem: “not a thought in your head only get back on board and away to hell out of it and never come back or was that another time all that another time was there ever any other time but that time away from to hell out of it all and never come back” (BECKETT, 1999: 395). Neste sentido, pode-se afirmar que as próprias características da obra audiovisual becketiana estão presentes na transcriação de That Time, tais como a busca de um mínimo expressivo na contração do espaço-tempo audiovisual; o diálogo e a dissociação entre a imagem e o som; a repetição em formas diferenciadas, que é impulsionada também pelos mecanismos da memória; a fragmentação do corpo e a sua encenação como personagem; bem como a abstração e o estranhamento gerado pelas imagens. Para concluir, é possível afirmar que a transcriação de That Time faz uso das potencialidades inerentes aos meios audiovisuais a fim de criar um objecto estético que realça as características da peça e aprimora o próprio processo de criação empreendido por Beckett. Como foi argumentado, esta transcriação aponta uma série de questões em relação à criação artística e à crítica da obra beckettiana, 11 sendo que agrega valor e, até mesmo, como argumentei, aproxima a obra beckettiana das discussões e artifícios usados pelo próprio cinema moderno. Apesar de alguns autores do fechado círculo de estudiosos da obra beckettiana não terem aprovado as adaptações, devido às insistentes recusas do autor no passado, é importante ressaltar que estes filmes do projecto Beckett on Film se tornaram paradigmáticos para o estudo da obra de Beckett. De certo modo, renovam a performance e a crítica à sua obra no início do século XXI, em que novas formas de expressão artística surgiram em função do desenvolvimento das novas tecnologias, e lançam um novo olhar sobre o seu trabalho. Se, por um lado, as peças perderam a imediaticidade da performance ao vivo intrínseca à linguagem teatral, por outro lado deixaram as suas idéias “malucas”, como o próprio autor dizia, registradas permanentemente em formato digital e audiovisual. Bibliografia: BALLOGH, Ana Maria. Conjunções, Disjunções Transmutações. Da literatura ao cinema e à TV. São Paulo: Annablume, 1996. BECKETT; Samuel. The complete dramatic works. 2ªed. Londres: Faber and Faber Limited, 1990. ------------------------. Proust and Three dialogues with George Duthuit. Londres, Montreuil e Nova York: John Calder Publisher, 1999. BERGSON, Henri. Matéria e Memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Trad. Port. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999. CAMPOS, Haroldo de. Da transcriação: poéticas e semióticas da operação tradutora”, em OLIVEIRA, A.C. e SANTAELLA, L. (org.). Semiótica da literatura. São Paulo: EDUC. Cadernos PUC 53 a 74, 1987. COLGAN, Michael. Finding new audiences for alienation. 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