RELATÓRIO CIRCUNSTANCIADO DE IDENTIFICAÇÃO E DELIMITAÇÃO DA TERRA INDÍGENA GUARANI-KAIOWÁ GUYRAROKÁ Levi Marques Pereira Antropólogo Coordenador do Grupo Técnico Portaria Nº 083/PRES/FUNAI – 31 – 01 – 2001 Três Lagoas, 13 de Março de 2002 1 Índice Agradecimentos Introdução Procedimentos metodológicos adotados na pesquisa I – PARTE I. 1 – Informações gerais sobre os Kaiowá I. 2 – Histórico I. 3 – A atuação do SPI e FUNAI I. 4 – A expulsão dos Kaiowá de Guyraroká: doenças, violência física e simbólica I. 5 – A situação atual I. 6 - Tentativas recentes de reocupação II - PARTE II. 1 - Habitação permanente II. 2 – Localização na imagem de satélite das principais referências de ocupação tradicional II. 2.1 - Demografia II. 2. 2 - Censo da população de Guyraroká II. 3 - O eixo das águas II. 4 - Localização atual da população originária de Guyraroká II. 4. 1 - O acampamento II. 4. 2 - Famílias originárias do Guyraroká que estão fora do acampamento II. 4. 3 – Famílias que vivem na reserva de Dourados II. 4. 4 - Famílias que vivem em Três Irmãs II. 4. 5 - Famílias que vivem a reserva de Limão Verde II. 4. 6 - Famílias que vivem na reserva de Caarapó II. 4. 7 - Famílias que vivem na reserva de Taquapery III - PARTE - Atividades produtivas III. 1 – descrição da atividades produtivas e formas de manejo do meio ambiente III. 1. 1 - mudanças ocorridas na economia a partir do contato III. 1. 2 - relações sócio-econômico-culturais com outros grupos indígenas e com a sociedade envolvente IV - PARTE - Meio Ambiente IV. 1 - descrição das áreas imprescindíveis à preservação dos recursos necessários ao bem estar econômico e cultural do grupo indígena IV. 2 - explicações das razões pelas Quais tais áreas são imprescindíveis e necessárias V - PARTE V. 1 - Reprodução física e cultural V. 2 - O efeito desestruturador da perda da Terra sobre a população de Guyraroká V. 3 - Referencias mitológicas dentro do perímetro da Terra identificada V. 4 - Religião e território V. 5 - Brancos e índios V. 6 - A ameaça de destruição do mundo VI – PARTE 2 04 05 06 13 13 21 27 30 34 34 37 37 37 42 45 47 52 53 59 59 61 63 64 64 66 67 70 72 74 74 80 82 82 82 83 87 90 91 94 VI. 1 - Levantamento fundiário VII – PARTE - Conclusões VII. 1 - Conclusões VII. 2 – Memorial descritivo Glossário Bibliografia Anexo 01 – Fontes documentais que fazem referência a antiga ocupação da Terra Indígena Ypytã/Guyraroká pelos Kaiowá Anexo 02 – Diagramas de parentesco e dados demográficos complementares Anexo 03 – Documentos e reportagens que versam sobre as tentativas recentes dos Kaiowá de reocuparem a terra Anexo 04 – Relatório ambiental Anexo 05 – Relatório fundiário e patrimonial 3 94 95 95 99 103 106 Agradecimentos Agradeço ao Centro de Documentação do Programa Guarani (Kaiowá/Ñandeva) da Universidade Católica Dom Bosco, ao Centro de Trabalho Indigenista e ao Conselho Indigenista Missionário, por terem franqueado seus arquivos para a realização da pesquisa documental. Isto tornou o trabalho mais ágil, permitindo encontrar os documentos em arquivos organizados, o que facilitou o acesso às informações de que necessitava. Se não fosse a colaboração dessas organizações da sociedade civil, com certeza a pesquisa documental levaria meses e seria menos completa. No Núcleo de Apoio Local da FUNAI em Dourados, o GT contou com a prestimosa colaboração da funcionária Maria Telma Alencar Ohira, sempre solícita na resolução dos encaminhamentos práticos, o que facilitou em muito nosso trabalho. Os técnicos do GT, que constam na Portaria, demonstraram profissionalismo, dedicação e companheirismo, o que muito contribuiu para o bom andamento dos trabalhos. A colaboração do INCRA de Dourados foi imensamente importante, forneceu as imagens de satélite. Da mesma forma, o IDATERRA-MS forneceu documentos sobre a cadeia dominial, além de ceder um técnico para compor o GT. De muita utilidade foi o relatório preliminar do antropólogo Carlos Alexandre B. P. dos Santos, pois grande parte dos dados foram incorporados ao presente relatório. Finalmente, a participação indígena foi fundamental para a realização do trabalho, especialmente dos xamãs Papito, Jorge Paulo, Carmem, Teresa e Miguela. Ambrósio, o líder político, foi fundamental para esclarecer os acontecimentos mais recentes, além de servir de companhia na localização das pessoas originárias de Guyraroká que vivem fora do acampamento, como ainda a colaboração de sua esposa e filhas prepararam com carinho nossas refeições. 4 Introdução O presente relatório atende às exigências da Portaria do Presidente da FUNAI, n.º 083/2001, que instituiu o GT para Identificar e Delimitar a Terra Indígena Guyraroká, situada no município de Caarapó–MS. Além do relatório antropológico, foram elaborados também os relatórios ambiental, fundiário, cartorial e das benfeitorias, que seguem na forma de anexos, cumprindo assim as determinações da mesma Portaria. O trabalho do GT começou no dia 09/02/2001. Cheguei em Dourados sozinho (a bióloga responsável pelo relatório ambiental iniciou seu trabalho no dia 11/02/2001), procurei o Núcleo de Apoio Local de Dourados da FUNAI. Lá encontrei-me com o administrador, Sr. Jonas Nascimento, para discutir os procedimentos relativos ao trabalho que se iniciava. Fizemos uma reunião da qual participou também o administrador da regional da FUNAI em Amambai, Sr. Pedro Franco e o ex-administrador do Núcleo de Apoio Local Dourados, Sr. Wilson de Matos. Esses funcionários da FUNAI expuseram as dificuldades que o GT provavelmente teria na realização dos trabalhos de identificação, devido ao clima tenso que caracterizava a disputa pela posse da terra entre Kaiowá e fazendeiros. Estas dificuldades não se confirmaram no caso de Terra Indígena Guyraroká, onde de um modo geral, pudemos contar com a compreensão e apoio dos proprietários, principalmente do Sr. José Teixeira, que também exerce o cargo de deputado estadual e é importante liderança política na região. Com o objetivo de levantar dados sobre a terra a ser identificada, conversei com antropólogos, historiadores, representantes de organizações não-governamentais, universidades, INCRA, delegados de polícia, funcionários da FUNAI, moradores regionais etc., que forneceram informações sobre a população da Terra Indígena Guyraroká. Além das informações transmitidas oralmente, em alguns locais foi possível encontrar documentos importantes que ajudaram a construir a história da população em questão. Guyraroká é o nome religioso como os Kaiowá denominam o local e, Ypytã é o nome do córrego que corta o interior do Terra Indígena. É este último termo que aparece nos documentos que fazem referência ao local, pois a primeira denominação era restrita ao uso interno da comunidade. Os anexos 01 e 02 são de leitura obrigatória para a 5 compreensão do presente relatório: no anexo 01, discute-se os documentos escritos que fazem referência direta à Terra Indígena Guyraroká, enquanto local de ocupação indígena tradicional; no anexo 02, discute-se alguns diagramas de parentesco e trazem informações fundamentais sobre o impacto da perda da terra sobre a estrutura social da comunidade. Na redação do laudo antropológico, procuro adotar um "estilo" direto e claro, já que trata-se de um documento com finalidades administrativas; ao mesmo tempo, primo pelo cuidado na aplicação dos conceitos e pela coerência teórica, de forma a cumprir as exigências técnicas e científicas que caracterizam o estudo antropológico. No final do texto é apresentado um glossário com os principais expressões em guarani e termos técnicos ou regionais, a finalidade é facilitar a leitura, considerando que o texto se dirige a um público nem sempre familiarizado com a etnografia da região. Fica fora do glossário os termos que são suficientemente explicados no próprio corpo do texto. A Terra Identificada e Delimitada localiza-se nas bacias dos Córregos Ypytã e Caracu, abrangendo parte do curso de riachos secundários, ou cabeceiras, formadores desses córregos, como o Ypo‟i (água estreita), o Chagua Yry (riacho da pitanga, por causa da grande concentração dessa planta em suas margens) e o Lucero. Procedimentos metodológicos adotados na pesquisa A aplicação de uma série de procedimentos de pesquisa antropológica permite que as informações oriundas de fontes orais e escritas sejam apresentadas e analisadas. A pesquisa combina: a) pesquisa de campo junto aos Kaiowá e outros informantes; b) pesquisa documental junto aos arquivos, imprensa e processos administrativos e judiciais; e c) pesquisa bibliográfica. As informações compõem um quadro analítico e interpretativo reunindo os elementos que permitem atestar em que medida a localidade denominada de Guyraroká constitui-se como terra de ocupação tradicional dos Kaiowá que vem tentando reocupá-la a partir do início de 2000. Para isto, considerando que o grupo está fora do território nas duas últimas décadas, realizo na II parte do relatório a reconstituição histórica da ocupação indígena do território antes da expulsão da comunidade. Como será demonstrado adiante, a história da ocupação indígena de Guyraroká é caracterizada por 6 eventos que marcam a presença da sociedade kaiowá e sua interferência no espaço por um período que antecede em muitas décadas a entrada das frentes colonizadoras na região. A identificação da série de eventos econômicos, políticos e rituais que marcam a existência das unidades sociológicas e dos grupos de residência, fornece um caminho seguro para o entendimento da forma como o tempo se espacializa, ou seja, permite identificar a trajetória da sociedade no espaço por ela ocupado. Assim, a compreensão das estruturas que conformam a organização social são imprescindíveis para o entendimento da ocupação do território, pois estas são esferas da realidade social intrinsecamente relacionadas e conferem inteligibilidade mútua. O presente relatório é orientado por um conjunto de procedimentos metodológicos que permitem demonstrar a maneira como as categorias de pensamento relativas ao espaço e tempo estão articuladas entre si de forma a compor um modelo que orienta a prática social. Assim, é possível deixar claro que, em última instância, é justamente essa articulação que fornece a compreensão do modelo de ocupação tradicional. Adiante essas formulações serão explicitadas a partir de exemplos concretos. Este procedimento busca demonstrar como a forma de ocupação reflete o modelo de organização social típico dessa sociedade, o que permite identificar a relação entre essa comunidade específica e o território que reivindica. É preciso lembrar que a sociedade kaiowá é ágrafa, e que portanto, ela não dispõe registros escritos sobre si mesma. A ausência de narrativas escritas implica que a reconstituição histórica deve ser buscada através da aplicação de uma série de procedimentos retirados do instrumental teórico/ metodológico da antropologia e da etnohistória, como recursos que permitem um tratamento científico das narrativas orais para reconstituir a trajetória histórica do grupo. A coleta, registro, comparação e ordenação das histórias de vida das pessoas mais velhas da comunidade faz emergir uma história coletiva, baseada na experiência de participação conjunta em eventos passados que marcaram profundamente a história local, evidenciando as conexões que juntam as trajetórias individuais em um destino comum. Assim, a partir das sagas individuais, é possível dizer algo a respeito de tempo biográfico, de onde surgem as relações sócio-estruturais que caracterizam o tempo histórico da 7 sociedade. Os significados atribuídos aos eventos, apresentam-se ancorados na experiência cultural comum, o que permite ordená-los em uma mesma cadeia semântica. A história de vida de vários indivíduos de uma mesma faixa etária, no caso as pessoas com mais de 60 anos, na maioria das vezes ligados por relações de parentesco, permite reconstituir o ambiente social da época. Concatenados no tempo os eventos mostram a estrutura social em operação. Aparece em várias partes do relatório evidências de que os eventos mais marcantes e também os mais traumáticos são aqueles relacionados à experiência de contato com a sociedade nacional envolvente, que na perspectiva indígena é considerada invasora e dominadora. Assim, a análise das histórias de vida permite discernir os fenômenos recorrentes e gerais, daqueles que se referem a idiossincrasia individual de forma a tornar possível apreender a memória coletiva dos Kaiowá de Guyraroká. É fato amplamente documentado nas ciências humanas desde Durkheim ([1912] 1988) que os ajuntamentos coletivos produzem fenômenos sui generis, de natureza diferente dos fenômenos individuais. A reunião de vários informantes para debater um tema específico, no caso a história de ocupação da terra que reivindicam, gerou uma profunda discussão cujos resultados parece ter surpreendido os próprios participantes. Os ajuntamentos de pessoas em torno de um objetivo específico, acaba gerando uma situação, em certa medida, autônoma em relação às vontades individuais1. As entrevistas coletivas funcionaram como suporte da memória coletiva, que junta fragmentos de lembranças individuais e reconstitui o processo da história vivida que não é lembrada integralmente por nenhum dos participantes devido ao processo seletivo da memória que sofre interferências das idiossincrasias individuais, ou aos traumas resultados das pressões e mortes no momento em que foram expulsos da terra. Paraíso (1994: 50) em Reflexões Sobre Fontes Orais e Escritas na Elaboração de Laudos Periciais afirma que “a desesperança numa solução é uma das causas principais do desestímulo em relembrar as antigas aldeias e sua localização, assim como a história do contato e suas malezas”. Assim, o momento de falar sobre os acontecimentos vividos transforma-se, para a sociedade, em uma espécie de acerto de contas com o passado e com 1 Thonson (1990) discute em profundidade as características e implicações metodológicas da entrevista coletiva. 8 a própria história, um momento de elaboração das experiências passadas, compreensão da situação presente e projeção do futuro. O levantamento e análise das genealogias de parentesco, segundo os parâmetros consagrados pela antropologia contemporânea, demonstra ser instrumento chave para a compreensão das relações sociais entre os Kaiowá (Pereira, 1999). Como recurso metodológico, permitiu construir uma rede de informantes constituída pelos antigos moradores de Guyraroká, relacionados entre si por laços de parentesco próximo, mas que em certos casos faziam muitos anos que não se encontravam devido a dispersão que sofreram com a saída das famílias da terra que ocupavam. Esses reencontros e redescoberta dos parentes, proporcionado pela mobilização em torno do estudo de identificação da terra, reacendeu em muitos deles o desejo de novamente viverem juntos. As genealogias expressam também a continuidade histórica entre esses antigos moradores e seus atuais descendentes, que estão mobilizados em termos da reivindicação da terra. Os vínculos de parentesco estão sendo relembrados e reatualizados. Através das genealogias foi possível também traçar uma cadeia de informantes baseada em critérios como faixa etária, grau de parentesco, vizinhança, alianças políticas e religiosas. A descrição da toponímia kaiowá, por um lado, tornou possível identificar o conhecimento e controle que exerciam sobre o território e, por outro, forneceu elementos para a identificação da maneira como os nomes na língua indígena estavam relacionados com eventos que dizem respeito a história de ocupação. O recurso à memória coletiva, no caso das sociedades ágrafas, aciona espaços cognitivos ausentes nas sociedades que pensam sua existência no tempo a partir do registro escrito. A forma de pensar-se no tempo é tão distinta daquela que estamos acostumados. Situada dentro da vertente de pensamento ocidental, de nossa ótica, temos dificuldade de conceber historicidades que não recorram à escrita. A própria noção de sociedades ágrafas, como signo de uma ausência2, que gozou de grande aceitação na produção historiográfica 2 A tentativa de definir as sociedades indígenas pelo que nelas estaria ausente é tão antiga quanto o exercício de elaborar uma compreensão sobre elas. Já os primeiros cronistas que aportaram em nossas praias afirmaram que seriam sociedades “sem fé, sem lei e sem rei”. Posteriormente, foram também definidas como sociedades sem Estado, economia, escrita e história. Uma critica 9 durante muitas décadas é colocada em questão por estudos de historiadores que incorporam contribuições mais recentes da lingüística, filosofia da linguagem e antropologia. A reconstituição da memória coletiva dos Kaiowá de Guyraroká, composta a partir dos traços comuns presente nas memórias individuais, demonstrou ser um procedimento fundamental na compreensão dos vínculos existentes entre essa sociedade e a terra que reivindicam. Assim, a composição da história dos Kaiowá do local incorpora os resultados de um intenso e profundo debate entre historiadores e antropólogos, cujos principais marcos teóricos podem ser encontrados nos trabalhos de Vansina (1966), Sahlins (1985), Rosaldo (1980) e Thonson (1992). Dessa forma, o tratamento metodológico adotado no presente relatório permite escapar das armadilhas representadas pelas perguntas condicionadoras que muitas vezes dificultam a coleta de dados fidedignos, principalmente quando o pesquisador realiza seu estudo em um meio social distinto do seu. Permite também, superar a fragmentação das informações que surgem nos relatos individuais. A violência física imposta aos Kaiowá de Guyraroká3, no processo de expulsão das terras que tradicionalmente ocupavam, foi acompanhada por formas de violência simbólica. A sociedade nacional impôs um completo ocultamento da sociedade indígena em sua alteridade, para assim negar-lhe o estatuto de comunidade organizada a partir de suas formas próprias de sociabilidade e com vínculos históricos com determinados territórios. A partir do momento em que as terras foram ocupadas pelos colonizadores, as comunidades guarani passam a ser tratadas apenas como “um bando de índios” que estão no lugar inadequado, e que por isso, devem ser deslocados para o interior das reservas, idealizadas justamente para receber essa população dispersa pelo território que deveria dar lugar a pastagens e agricultura. Construi-se, assim, um "ideário", compartilhado por fazendeiros, funcionários do governo e pelo próprio SPI, onde se entendia que “lugar de contundente sobre a impropriedade dessas formas de classificações é formulada pelo antropólogo francês Pierre Clastres em “A Sociedade contra o Estado”. 3 O que se afirma aqui é válido para quase todas as comunidades Guarani de Mato Grosso do Sul que não tiveram suas terras reconhecidas pelo SPI, nas demarcações ocorridas entre as décadas de 1910-20. 10 índio é na reserva”, todos os que não residiam em reservas estavam ilegais e deveriam à elas se recolher. Adiante desenvolvo o argumento de que a existência desse consenso entre os principais agentes históricos da sociedade nacional que então se estabelecia na região, é o fato que explica a quase inexistência de documentos que versam sobre as expulsões e violência sofridas pelos Kaiowá nesse período. Nada de extraordinário acontecia quando ocorria a expulsão de índios de uma localidade na qual sempre viveram e era feito seu recolhimento forçado em uma das reservas demarcadas pelo SPI. Era acontecimento comum que não merecia o desprendimento da atenção e esforço de um Delegado de Polícia, ou até mesmo de um funcionário do SPI, para redigir um relatório descrevendo o acontecido. Quando alguém adquiria uma terra e descobria que ela era habitada por índios, simplesmente reunia alguns homens armados e os expulsava, ou, quando era mais correto para o padrão moral da época, comunicava ao Chefe do Posto do SPI da reserva mais próxima, que ele mesmo trataria da transferência dos índios para a reserva. Nesse sentido, o caso de Taquara é paradigmático: ali o Chefe de Posto da reserva Caarapó fez um acordo com o fazendeiro onde ele indenizava os Kaiowá pelo prejuízo do abandono das roças com o deslocamento para a reserva. Tal procedimento deveria parecer tão correto e justo para o padrão da época (e por isso extraordinário), que o Chefe de Posto elaborou um documento com o nome dos moradores e os valores que cada um recebeu pela indenização das perdas. Esta forma de relação entre os agentes da sociedade nacional e a sociedade indígena, configura uma situação onde se constrói a invisibilidade das comunidades indígenas que estavam fora das reservas. Estes “índios de fazendas” como comumente passam a ser denominados na região, são vistos com certa ambigüidade: por um lado constituem a principal força de trabalho para realizar a derrubada de mato e o plantio de pastagens ou a formação de agricultura, por outro lado, poderiam se tornar um problema se eles insistissem em continuar na propriedade assim que sua mão de obra se tornasse dispensável. Argumento, a partir dos dados expostos até aqui e daqueles que serão acrescentados ao longo do relatório, que a inexistência de documentos escritos que atestam a presença indígena em determinado território, não é, no caso dos Kaiowá de Mato Grosso 11 do Sul, fato suficiente para assegurar que o local não é de ocupação indígena tradicional. Daí a necessidade de utilizar outros procedimentos metodológicos. No caso de Guyraroká foi possível encontrar dois documentos (veja anexo 01) que registram a presença indígena na terra reivindicada, mas caso essa documentação não tivesse sido encontrada, as informações coletadas através do conjunto de procedimentos metodológicos aqui adotado, já seriam suficientes para propor a delimitação e demarcação da terra. 12 I - PARTE I. 1 Informações gerais sobre os Kaiowá Os Kaiowá são um povo do tronco Tupi, da família lingüística Tupi-Guarani, que no Brasil engloba os Kaiowá, os Ñandeva e os Mby‟a. A literatura costuma designar estes três subgrupos como Guarani. Apresentam grandes similaridades do ponto de vista lingüístico, da organização social e do sistema religioso. Os Kaiowá ocupam, atualmente, pequenas aldeias situadas em uma faixa de terra de cerca de 150 quilômetros de cada lado da região de fronteira do Brasil com o Paraguai, onde são denominados Pãi Tavyterã. Para os Kaiowá a faixa de terra acima descrita compõe o território historicamente ocupado pelo grupo e é por eles denominado de tetã, que pode ser traduzido como país ou pátria. Tradicionalmente são agricultores de floresta tropical, praticando a caça como principal fonte de proteína, e a pesca e a coleta como atividades subsidiárias. Segundo Brand (1997: 01), a população guarani (Kaiowá e Ñandeva) em MS “está distribuída em 22 terras indígenas e é estimada em 25 mil pessoas”. A bibliografia guarani, tanto histórica como atual, é vasta e cobre um longo período que vai desde os primeiros momentos da colonização até a atualidade. Pesquisas arqueológicas, como, por exemplo, a de Brochado (1982) e a de Noeli (1993), trazem informações detalhadas sobre a maneira como os Guarani do passado relacionavam-se com o meio ambiente e atestam a presença dessa população no território que eles identificam como pertencente aos seus antepassados. Sobre o quadro atual, destacam-se os estudos de Meliá, Cadogan, Nimuendaju, Susnik, Schaden, e as dissertações e teses de Tomáz de Almeida (1991), Brand (1993 e 1997) e Pereira (1999). A ocupação do território se dá com base em unidades sociológicas típicas da organização social. Assim, para a compreensão da distribuição espacial, é importante considerar a forma de estruturação dessas unidades, que apresentam distintos graus de amplitude (número de pessoas) e de solidariedade interna. As formas de composição dessas unidades e as relações que estabelecem entre si, articulam as noções de tempo e espaço 13 social próprias aos Kaiowá, tal como desenvolvo extensamente em outro lugar (Pereira, 1999). Como recurso metodológico inicio a descrição pelas unidades de menor abrangência, passando para as categorias mais gerais, dentro de um modelo que poderia ser identificado como concêntrico, onde algumas categorias são englobadas por outras de maior amplitude. Che ypyky kuera4 é como o Kaiowá se refere ao grupo de parentes próximos, reunidos em torno de um fogo doméstico, onde são preparadas as refeições consumidas pelos integrantes do fogo. Numa primeira acepção, ypy significa “proximidade”, “estar ao lado”, ressaltando o fato da convivência íntima e continuada. O termo pode significar ainda “princípio” ou “origem”. Assim, a expressão che ypyky kuera retém os dois sentidos do termo ypy, referindo-se aos ascendentes diretos, com os quais se compartilham os alimentos, a residência e os afazeres do dia-a-dia; enfim, denota proximidade, intimidade e fraternidade, ponto focal da descendência e da ascendência. O fogo doméstico constitui-se como unidade sociológica no interior do grupo familiar extenso ou parentela, composto por vários fogos, interligados por relações de consangüinidade, afinidade ou aliança política. O pertencimento a um fogo é pré-condição para a existência humana na sociedade kaiowá. O fogo prepara os alimentos, protege contra o frio e, em torno dele, as pessoas reúnem-se para tomar mate ao amanhecer e ao anoitecer. Para o Kaiowá, é impensável a condição de saúde física e estabilidade emocional fora da sociabilidade livre e descontraída que ocorre no círculo de parentes próximos. O núcleo central de um fogo doméstico é o casal em torno do qual se reúnem os filhos e agregados. Portanto, o fato fundador de um fogo é uma relação de conjugalidade, da qual depende sua existência: a separação do casal implica a dissolução do fogo e a dispersão de seus integrantes por outros fogos relacionados. O fogo doméstico, visto a partir da ótica de seus integrantes, é um espaço de conjunção, entretanto, se considerarmos a relação entre os fogos, ele é um espaço de disjunção, pois o ingresso do forasteiro é sempre marcado por sentimentos de receio, constrangimento e vergonha –atim. 4 A língua kaiowá obriga a colocar um pronome como che (meu, minha) ou nde (teu, tua) antes da expressão, quando se quer referir-se ao fogo doméstico, pois, sem o pronome, a expressão significa antepassados. Uma tradução aproximada de che ypyky kuera seria “meus descendentes diretos”. 14 A relação entre pessoas que não convivem no mesmo fogo caracteriza-se pelo comedimento e por um protocolo que evita que se penetre em espaços ou assuntos que se julguem relacionados à intimidade do outro. Olhar nos olhos entre homens pode significar sinal de hostilidade e entre homem e mulher pode expressar desejo, motivo por que este tipo de olhar deve ser evitado. Os integrantes do fogo doméstico (homem, mulher e crianças) desenvolvem uma série de atividades complementares necessárias à vida cotidiana, de acordo com a divisão do trabalho por sexo e faixa etária. Esta unidade sociológica goza de grande liberdade para se deslocar de uma parentela à outra, desde que possa atualizar relações de parentesco baseadas na consangüinidade e na afinidade, dessa maneira, é comum que ao longo da história de vida de uma pessoa, ela faça parte de distintas parentelas, o que implica também em mudança do local de residência. É comum que os membros de um fogo doméstico dirijam-se para a floresta em uma expedição de caça ou coleta de um ou dois dias de duração. Esses momentos cumprem funções de importância crucial para o equilíbrio psíquico das pessoas que compõem uma comunidade kaiowá, pois: a) é um momento de grande intimidade; b) podem saciar desejo de comer carne, mel e outros produtos sem as obrigações de repartir tais produtos com uma quantidade maior de pessoas como sempre acontece quando estão no convívio mais amplo dos parentes e aliados; c) é uma ocasião propícia para a troca de conhecimentos entre o casal e de transmissão desses conhecimentos para os membros mais jovens do fogo. Os Kaiowá de Guyraroká que vivem confinados nas reservas demarcadas, na periferia de pequenas vilas, e os que vivem no acampamento, reclamaram do tédio dos dias intermináveis, e da impossibilidade de deslocamento no território; d) existe um grande quantidade de ensinamentos secretos que não podem ser socializados para todos os membros da comunidade. Essas ocasiões são propícias para que os pais identificam entre os filhos aqueles que demonstram maior capacidade para assimilar e lidar com o saber mais sofisticado, a transmissão é sempre seguida da recomendação de que não se repasse essas informações a qualquer pessoa, principalmente “brancos”, que são classificados como inimigos por excelência. A despeito dos problemas atuais colocados pela situação do contato, os Kaiowá seguem morando em fogos, sempre controlados por mulheres, o que lhes assegura o poder de unir e alimentar seus integrantes. Sem mulher não há fogo, reconhecem os Kaiowá. 15 Assim, ele está associado a uma horizontalidade sociológica que, em cada momento, institui e organiza a vida social das pessoas, impondo ritmo e sentido à vida cotidiana. Remete também aos princípios cosmológicos e aos princípios fundadores da sociedade humana, que se espelha na conduta dos deuses que vivem junto com suas esposas ao redor de seus fogos. É nessas pequenas unidades sociológicas onde a prática das atividades produtivas, como agricultura, caça e coleta, atinge também um grau satisfatório de convivência com o meio ambiente. Além disso, possibilita um padrão de exploração considerado ideal pelo grupo, por ser pautado no modelo instituído socialmente e ecologicamente viável dentro do padrão tradicional de ocupação do espaço. Che ñemoñá, che jehuvy ou che re'yi kuera é como um determinado ego denomina sua parentela, ou grupo familiar extenso5. Os Kaiowá utilizam alternativamente qualquer uma das três expressões. Em conjunto, elas expressam aspectos de uma mesma instituição: che ñemoñá expressa o fato natural da consangüinidade (fecundidade, procriação, descendência), podendo, em certos contextos, ser entendida como fogo doméstico; che jehuvy expressa a idéia da convivência e auto-ajuda (jehu=ajuda), ressaltando os laços de solidariedade presentes no interior dessa instituição; che re'yi kuera, além da parentela bilateral, designa também a autodenominação Kaiowá, o que demonstra que a parentela constitui-se como um núcleo de identidade social. Che re’yi remete à idéia de companheirismo e compromisso no trato das questões consideradas de interesse coletivo da parentela -te’yi. Por cobrir um leque semântico mais amplo, a expressão te'yi (forma não flexionada de re'yi) é mais freqüentemente utilizada como categoria nativa de grupo familiar extenso, ou família extensa6. Os Kaiowá definem como hi’u ou Tamõi o homem de idade avançada, com muitos filhos e netos, que assume a responsabilidade de organizar a parentela. Dizem que ele é o 5 Na literatura antropológica, instituições semelhantes ao te’yi são descritas como a extended family (formada a partir de kinship and alliance), o kinship group, a extended consanguine family e o grupo doméstico (household ou domestic group). Utilizo “parentela” para facilitar a leitura, entretanto é importante delimitar as características desta instituição dentro do sistema social kaiowá. 6 Watson (1952), Schaden (1974) e Brand (1993, 1997) utilizam o termo “família extensa” para o que denomino “parentela”. 16 “tronco”, ou o “esteio da casa”, “é nele que nos encostamos”, afirmam. Dessa forma, ele se constitui no elemento integrador da parentela, sendo que a ocorrência de sua morte implica na escolha de um novo líder, ou na divisão da parentela, caso o cargo seja reivindicado por líderes rivais emergentes. É em torno do cabeça de parentela –hi’u, que os vários fogos que compõem uma parentela desenvolvem a maior parte de sua existência coletiva. As parentelas que residiam em determinada região estabelecem entre si relações de proximidade baseadas em trocas matrimoniais, visitas e participação conjunta em festas e cerimoniais religiosos, constituindo unidades sociológicas mais amplas. As principais atribuições de um cabeça de parentela são a escolha do local das roças e de construção das casas. Antigamente, quando toda a parentela vivia na casa grande –ogapysy, era ele quem decidia o momento de construção de uma nova casa e coordenava os trabalhos. Hoje, mesmo com a alteração do padrão de residência devido as interferências do contato, o cabeça de parentela mantém basicamente as mesmas funções, sendo respeitado e sempre consultado pelos fogos que compõem uma parentela. Estes residem sempre próximos uns dos outros, só que no momento atual ocupando pequenas moradias construídas ao estilo caboclo, distribuídas em torno do local de residência do cabeça de parentela. Os trabalhadores na Cia Mate Larangeira e mais tarde os funcionários do SPI e outros regionais com os quais os Kaiowá conviveram nas primeiras fases do contato, reprovavam o estilo de residência comunal –ogapysy, que reunia vários fogos vivendo sob o mesmo teto. Por falta de conhecimento, imaginavam que no seu interior reinava a completa promiscuidade. Assim, para fugir do preconceito, tiveram que mudar o padrão de residência. Atualmente, as poucas casas grandes que ainda existem são mais para uso ritual do que para residência. A mudança no padrão de construção não alterou profundamente a ordem social, manteveram-se basicamente intactos os vínculos de obrigações e direitos que caracterizam as relações entre os parentes que antes residiam em única casa comunal e passaram a ser vizinhos em casas construídas ao estilo caboclo. É importante deixar claro que os Kaiowá nunca foram nômades, como erroneamente muitas vezes se propaga. Após 4 a 6 anos de uso, a casa era abandona por estar com a cobertura muito estragada, infestada de insetos (principalmente baratas), ou por 17 motivo de morte de um morador ilustre7, que no costume tradicional era enterrado no interior da própria casa. É por esse motivo também que antigamente não existiam cemitérios permanentes, eles eram abandonados junto com as antigas moradias. As casas eram feitas com material orgânico (madeira, capim e cipó) e como, no caso de Guyraroká, já se passaram muitos anos desde a saída da terra, a ação do tempo já decompôs esse material, além de que a terra foi desmatada, queimada e arada muitas vezes para dar lugar as atividades agrícolas e pastoris. Mesmo assim, fizeram questão de mostrar o local onde existiam as antigas residências. Muitas vezes essas visitas remetiam a lembrança dos parentes mortos, e à noite, no acampamento, voltavam à memória dos velhos antigos acontecimentos que se tornavam relatos cheios de emoção, algumas vezes com pranto. Em algumas dessas ocasiões os xamãs (Jorge, Papito e Carmem) lembravam também de cantos de antigos xamãs falecidos, que passavam a entoar, provocando um misto de admiração e medo nos presentes. A parentela -te'yi pode ser descrita como: a) um grupo de residência8, já que ocupa uma parte das terras de uma aldeia e detém uma noção clara deste território; b) um grupo de atuação econômica, pois no seu interior desenvolve-se intenso intercâmbio de bens e serviços, dentro dos princípios que regem a economia de reciprocidade kaiowá; c) um grupo de atuação política, pois é a base do sistema de representação por intermédio do cabeça de parentela -hi’u, que reúne seus descendentes e aliados pelo carisma, representaos e por eles fala nas reuniões gerais (aty), as quais reúnem os representantes de todas as parentelas-te’yi que dividem uma mesma aldeia -tekoha, devendo defender os interesses do seu grupo familiar acima de qualquer outro interesse. Não existe um padrão instituído de sucessão na parentela, embora seja comum que um cabeça de parentela dê preferência a um filho ou genro, este só ocupará o cargo se de fato demonstrar possuir as habilidades que o cargo requer, que se resumem basicamente na capacidade de reunir pessoas e de coordenar ações coletivas. 7 O anguery, uma espécie de duplo da alma, costuma afligir os vivos e é temido pelos Kaiowá. Quanto mais importante a pessoa é em vida, mais perigoso e temido será seu anguery. 8 Tomáz de Almeida (1991:242) denomina de cantão a porção de terra ocupada por determinado te’yi. O autor não registra um termo na língua para designar esta parte do território. 18 A parentela é uma instituição que extrapola os limites tradicionalmente definidos como domínios típicos do parentesco, embora as relações situadas neste âmbito sejam os ingredientes básicos de sua constituição e base de formação. Mesmo gozando de considerável estabilidade no tempo (uma parentela tende a continuidade ao longo de várias gerações), o deslocamento de fogos domésticos alterara constantemente a sua composição. Ao longo de sua existência, uma pessoa pode nascer em uma parentela e vir a pertencer a outras, mobilidade permitida pela existência de mecanismos como a adoção de crianças, o casamento fora da parentela e alianças políticas ou religiosas circunstanciais. As separações também implicam, com freqüência, mudança de um dos cônjuges (o que veio de outra parentela). Em todas estas modalidades de deslocamentos, é comum que solteiros ou fogos domésticos atualizem relações de parentesco distantes, havendo a clara interferência de escolhas políticas e estratégias individuais. Esta é uma característica estrutural da organização social, encontrada em Guyraroká, como em qualquer comunidade guarani de MS. A noção de tekoha é adotada pela maioria dos trabalhos recentes sobre os Kaiowá. Para B. Meliá, tekoha “é a comunidade semi-autônoma dos Pãi” (Meliá, Grünberg & Grünberg, 1976:218). Etimologicamente, a palavra é composta pela fusão de teko -sistema de valores éticos e morais que orientam a conduta social, ou seja, tudo o que se refere à natureza, condição, temperamento e caráter do ser e proceder kaiowá -, e ha, que, como sufixo nominador, indica a ação que se realiza. Assim, tekoha, pode ser entendido como o lugar (território), no qual uma comunidade kaiowá (grupo social composto por diversas parentelas) vive de acordo com sua organização social e seu sistema cultural (cultura). A formação de um tekoha implica a reunião e cooperação entre várias parentelas -te’yi, aliadas ou aparentadas. Susnik afirma que o tekoha surgia da “associação dos te‟yy no „teko‟a‟ acondicionava vários elementos de uma maior coesão sócio-política” (Susnik, 1979-1980: 19). A análise das relações entre as parentelas que compõem um tekoha revela que ele se constitui como uma unidade político/religiosa e que comporta grande dinamismo no que diz respeito ao número e à forma de articulação das parentelas que entram na sua composição, tendendo a assumir uma configuração flexível e variada. 19 Teko porã é, para o Kaiowá, uma noção semelhante àquela registrada para os Achuar como Shiir waras e que significa “o bem viver” (Descola, 1988:147). É, portanto, um sistema moral que orienta a conduta social. Os Piro, descritos por Gow, também expressam uma noção semelhante. Acredito que entre os Kaiowá, é nas pequenas unidades (fogo doméstico -ypyky kuera e parentela –ñemoñá, jehuvy, te’yi), que a economia de reciprocidade pode atingir o grau máximo de eficácia. Por conseguinte, é nestas unidades que o teko porã atinge sua expressão mais comum, em ações que acontecem no dia a dia, no convívio freqüente entre um grupo restrito de pessoas. No fogo doméstico (menor unidade), as pessoas estão livres das tensões provocadas por disputas, conflitos políticos e toda sorte de forças disjuntivas predominantes nas relações no interior das unidades sociais de maior abrangência, como a parentela -te’yi, e o tekoha. A descrição das unidades sociológicas kaiowá, como o fogo doméstico –ypyky kuera, a parentela -ñemoñá, jehuvy ou te’yi, e o tekoha, constitui-se num procedimento metodológico que permite identificar dados esclarecedores da maneira como o modelo de organização social conecta-se a uma forma de manejo do meio ambiente. Seguindo este procedimento, será possível demonstrar o modo como as diversas parentelas originárias de Guyraroká constituem uma única comunidade ampla, e também os vínculos históricos que ligam essa comunidade ao território que reivindicam. Procuro demonstrar também, como a organização social e as formas de manejo encontram-se encompassadas por um sistema simbólico que apresenta internamente grande coerência lógica, e por isso é capaz de atribuir sentido às ações humanas em seus diversos planos. A formação florestal do território tradicional kaiowá é caracterizada pela presença da mata sub-tropical, (é evidente que esse clima é considerado sub-tropical para dar ênfase ao inverno, que chega a ser rigoroso na região), combinada com extensos campos e espaços de transição entre campo e cerrado. Meliá esclarece que esta vegetação, a primeira vista heterogênea, comporta certas “constantes ambientais” que torna possível identificar um “mapa ecológico” que caracteriza o território tradicionalmente ocupado pelos Kaiowá (Meliá, 1987:82). A localização das aldeias obedece a certos critérios ecológicos como: a) estão sempre próximas a cabeceiras ou nascentes d'água; b) preferencialmente próximas a recursos florísticos e faunísticos distintos como os vários tipos de cerrado, mata alta, mata de terra da região inter-fluvial, matas ciliares, etc. Isto permite uma versatilidade na 20 exploração dos recursos ambientais, embora, como se verá adiante, considerem imprescindível que a localização da aldeia esteja próxima a solos férteis, que garantam um boa produtividade da cultura do milho, bastante exigente em termos da qualidade do solo. I – 2 Histórico Segundo Meliá, Grünberg & Grünberg (1976:155) o mundo colonial terá conhecimento dos atuais Kaiowá ou Pãi-Tavyterã, como são denominados no Paraguai, por ocasião da execução do tratado de Madri em 1750-60. Nesse momento os Kaiowá são identificados como índios “infiéis” e culturalmente “bárbaros” pois, refugiados nas matas altas de difícil acesso, haviam ficado fora do processo de cristianização desenvolvido pelos jesuítas e do contato direto com os colonizadores (Op. Cit. p.169). Para esses autores, o território tradicional kaiowá estendia-se ao norte até as bacias dos rios Apa e Dourados, sendo que ao sul, até a Serra de Maracaju e os afluentes do Jejui, compreendendo uma faixa de mais de cem quilômetros de cada lado da atual fronteira entre Brasil e Paraguai, abrangendo uma extensão aproximada de 40 mil quilômetros quadrados9(Op. Cit. p. 217). O estudo antropológico de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Guyraroká levantou de uma série de dados históricos da região e do grupo indígena, visando identificar a possível existência dos fundamentos que permitissem caracterizar essa terra como um local de ocupação tradicional por comunidades kaiowá. Em primeiro lugar, apresento a ocupação indígena e em seguida, o processo de incorporação da terra pelas frentes de ocupação agropecuária. Apoiado nas fontes escritas e no relato das circunstâncias históricas vividas pelos Kaiowá de Guyraroká nos últimos dois séculos, é possível, do ponto de vista analítico, 9 Assim, a terra de Guyraroká pretendida pela comunidade de Guyraroká está localizada no interior do amplo território tradicionalmente ocupado pelos Kaiowá antes do período colonial. Entretanto, será necessário traçar os vínculos específicos entre a comunidade e a terra pretendida, o que é o objetivo geral do presente relatório. 21 dividir a história local em quatro períodos distintos, segundo o estilo de vida que levaram em cada um desses períodos e o tipo de relação que estabeleceram com a sociedade envolvente. Assim, é possível distinguir: a) o período anterior a guerra do Paraguai; b) o período da Cia Matte Larangeiras; c) A ocupação agropatoril; d) a reconquista das terras tradicionalmente ocupadas: a) antes da Guerra do Paraguai e subsequente instauração da Cia Matte Larangeiras, segundo Gressler e Swensson (1988:20), a região sul de Mato Grosso “permanecia quase despovoada‟‟... “apesar do surto colonizador do ciclo do gado” que havia se iniciado já na década de 1830. O mesmo fato é confirmado por Campestrini e Guimarães (1991:92), que afirmam que até 1870 os Kaiowá mantinha total domínio sobre seu território: “as terras ao longo do Ivinhema, do Brilhante, do Dourados, do Pardo...(eram) ...vistas apenas como território de índios”. Até esse período gozavam de livre trânsito e controlavam praticamente todo o seu território tradicional, sendo que a presença de não-índios na região era esparsa e esporádica, pois poucos aventureiros se dispunham a entrar nessas terras até então consideradas como sertão ermo e “terra de índio”. Embora esses contatos pudessem eventualmente fornecer a oportunidade de aquisição de bens industrializados como ferramentas metálicas que os Kaiowá já conhecem de longa data, podiam ser facilmente evitados, caso se julgassem prejudicados. Na memória dos velhos esse tempo se funde ao tempo dos antepassados reais e míticos, tempo do ser pleno kaiowá, quando não havia mistura de costumes, “era só Kaiowá puro”, afirmam. Esse tempo é lembrado e imaginado como um tipo de jardim do Éden, para usar uma imagem bíblica, tempo da completa solidariedade entre os membros da aldeia, da fartura de alimentos, da saúde, das festas e dos xamãs poderosos, que curavam e protegiam a comunidade. É o tempo da autonomia dos Kaiowá sobre sua forma de vida, podendo decidir livremente sobre as regras que regulavam o funcionamento de sua sociedade; b) Com a Guerra do Paraguai o panorama se alterou completamente. Campestrini e Guimarães (1991) estimam que cerca de 1200 soldados paraguaios marcharam pelo território kaiowá em Mato Grosso do Sul, sendo que após a guerra um número significativo deles fixou-se no território como empregados da Cia Matte Larangeiras. Será justamente essa população paraguaia que fará a intermediação entre os trabalhadores indígenas e a Cia, pois apesar das diferenças dialetais falavam um língua comum: o guarani. Se durante a 22 Guerra do Paraguai os Kaiowá conseguiram ficar fora dos embates, desviando-se das tropas que marcharam sobre seu território, a introdução da Cia Mate Larangeira representará a imposição definitiva do contato e dependência em relação a sociedade nacional. A entrada da Cia Matte Larangeiras marca um período de grande transformação social na maioria das comunidades kaiowá. Embora o interesse da Cia estivesse voltado para a atividade extrativa da erva mate, o que não requeria uma ocupação em caráter continuado de toda a região, pois apenas as regiões de maior concentração de erva foram efetivamente ocupadas, os Kaiowá foram amplamente incorporados como mão de obra, conforme veremos adiante. Este tipo de ocupação iniciou-se na década de 1890, teve seu auge na década de 1920 e predominou até o início da década de 1940, quando o contrato de arrendamento foi suspenso pelo então governador Dr. Arnaldo Estevão Figueiredo em 1947. Daí em diante a Cia segue na região apenas como proprietária de algumas fazendas; c) a ocupação agropatoril da Terra Indígena Guyraroká ocorre a partir de 1947, coincidindo com o fim da monopólio da Cia Matte Larangeira. Causará maior impacto na comunidade a partir de meados da década de 1950, quando toda a terra é efetivamente ocupada e, conforme dizem os Kaiowá “não tinha mais lugar para o índio 10”. Com o fim do monopólio da Cia Mate Larangeiras, novamente as terras voltam para o domínio da União, que passa a vendê-las e aliena-las como propriedades privadas para fazendeiros e colonos que se deslocaram para a região, estimulados pela política de integração das fronteiras, desenvolvida pelo governo nacionalista de Vargas. Nesse momento, segundo a compreensão desses Kaiowá, inicia-se a fase mais difícil de sua história, pois resultou na expulsão das terras que tradicionalmente ocupavam e no conseqüente confinamento nas reservas demarcadas pelo SPI. Os dois fenômenos acontecem como processos simultâneos. A implantação das fazendas exigia o fim do tipo de ocupação e manejo do ambiente que historicamente caracterizara a presença indígena no território. Este não era compatível com a forma de exploração que os fazendeiros passavam a implantar. Os poucos Kaiowá que 10 Estratégias indi viduai s de aliança com fazendeiros, muitas vezes se oferecendo para executar trabalhos a preç os abaixo do mercado, per mitiram que algumas famílias se manti vessem na terra até meados da década de 1970, mas vi viam como peões, j á que essas famílias só participavam da vida comunitária ( rituais festivos e religiosos), quando visitavam os parentes que vi v iam nas reser vas. 23 permanecerão por algum tempo na terra, serão submetidos à condição de peão, trabalhando na derrubada de matas ou plantio de pastagens e lavouras para os novos proprietários; d) a reconquista das terras tradicionalmente ocupadas inicia-se, ainda segundo os Kaiowá, com o advento do que os Kaiowá identificam como o “tempo do direito”, quando o Estado passa a reconhecer e a assegurar aos índios a legitimidade da posse das terras que tradicionalmente ocupavam. Coincide com a promulgação da atual Constituição Federal e com a demarcação das primeiras terras kaiowá, desde a demarcação das oito reservas para os Guarani/Kaiowá e Guarani/Ñandeva, realizadas pelo SPI entre os anos de 1915 e 1928. É um período marcado por muitos conflitos internos, fome, suicídios e miséria, mas também pela esperança de dias melhores, já que a reconquista da terra é marcada por forte revigoramento do sentimento étnico-religioso e pela tentativa de recompor formas de sociabilidade atualmente quase em desuso no interior das reservas demarcadas, onde segundo dizem, o modo de vida tradicional se tornou inviável, principalmente pela presença das igrejas pentecostais e da escola. A divisão acima esboçada reaparecerá várias vezes ao longo do texto, será retomada, ampliada e discutida. A idéia é que ela sirva para balizar a discussão, tornando a exposição mais didática, pois facilitará a compreensão dos dados resultados do levantamento antropológico. As duas últimas fases são as que mais diretamente interessam ao presente relatório, tendo em vista que é nesse período que ocorre a expulsão da comunidade e a posterior tentativa de retorno. A colonização agropastoril ocorre em períodos variados e de maneiras distintas, atingindo desigualmente o território guarani. Resulta daí que algumas aldeias foram de imediato atingidas e deslocadas, ainda nas décadas de 1930-40, enquanto outras lograram permanecer na terra por mais tempo. É o caso da aldeia de Rancho Jacaré que se manteve no local até final da década de 1970, quando a Cia Matte Larangeira queimou as casas e, aliada à FUNAI, providenciou a transferência da comunidade para a reserva de Bodoquena, distante centenas de quilômetros e pertencente a outro grupo étnico. Isto demonstra que a sistemática de trabalho adotada pelo SPI, no sentido de transferir as comunidades cujas terras não foram demarcadas para o interior das reservas, se consolida 24 como prática permanente do órgão tutor. Essa prática também é adotada pela FUNAI na região até o final da década de 1980. Thomás Larangeiras forneceu víveres para a Comissão que demarcou a fronteira entre Brasil e Paraguai, após o término da Guerra do Paraguai. Percorrendo a região da então quase desabitada fronteira entre os dois países, identificou o extraordinário potencial econômico que comportava a exploração da erva mate nativa, abundante na região. Terminada a demarcação da fronteira consegue do Governo Federal (em 1882) o arrendamento de terras para exploração de erva-mate e, em 1892, funda a Cia Matte Larangeiras. Nas décadas seguintes, usando de seu prestígio, que cresce junto com sua fortuna, consegue estender cada vez mais o domínio de sua Companhia, chegando a abranger grande parte do sul do então estado de Mato Grosso. Em 1895 a Cia amplia seu arrendamento para mais de 5.000.000 ha (Arruda, 1986). O força de trabalho indígena foi amplamente empregada nos trabalhos dos ervais (Brand, 1997). Praticamente todos os homens Kaiowá de Guyraroká com mais de 60 anos trabalharam na coleta, processamento e transporte da erva-mate, afirmando que “antigamente só existia trabalho na erva”. Assim, empregar-se na Cia era a única forma de conseguir roupas e ferramentas, bens que já conheciam, e dos quais se tornam cada vez mais dependentes. Os velhos costumam dizer também que muitos dos problemas de saúde que enfrentam é devido ao grande esforço que realizavam transportando fardos pesados de erva e ao trabalho nos fornos (mbarbaqua) em noites de frio. Segundo Serejo (1986: 110) coube a Marcelino Pires, fundador de Dourados, uma participação determinante na introdução dos “bugres mansos e de bom trabalho” na extração de erva-mate. Para isto teria estabelecido um acordo com Thomás Larangeiras, proprietário da Cia para realizar a “seleção rigorosa, entre bugres não aldeados, portanto, livres para se locomoverem”. Com certeza os índios não aldeados estavam fora da tutela do Estado, exercida através do SPI, assim ficava mais fácil de submetê-los aos interesses da Cia. Cita também que Marcelino Pires “sabia por onde andavam os bugres caçadores” ( Op. Cit. p.110). “Bugres caçadores” se refere aqui aos Guarani (Kaiowá e Ñandeva) que viviam segundo seu modo tradicional de vida, morando em suas terras tradicionais, plantando suas pequenas lavouras e praticando a caça, pesca e coleta de forma independente. O 25 recrutamento desses índios para o trabalho na erva mate significará um golpe fatal em sua autonomia política e no controle do território que até então exerciam. O mesmo autor afirma ainda que houve muitos conflitos entre os Kaiowá e a Cia, e que Thomás Larangeiras “teve que se empenhar em duras refregas contra os índios habitantes da região”, pois “estes silvícolas –verdadeiros donos da terra (...) achavam-se no direito de defender as matas, os campo, as aguadas e os ervais nativos” (Op. Cit. p.107-108). Os velhos de Guyraroká dizem que demorou um tempo até se entenderem com a Cia, relatam que no início houve muitos conflitos. Isto demonstra que os Kaiowá não aceitaram passivamente a perda de autonomia sobre seu território, antes reagiram recorrendo muitas vezes à violência. Por outro lado, se levarmos em consideração as falas dos Kaiowá, perceberemos que não eram “bugres mansos”, como cita Serejo, mas que foram “amansados”, pois as constantes perdas demonstravam que a única saída era se adaptar aos novos tempos e sujeitar-se aos desígnios da Cia. Os Kaiowá mais velhos de Guyraroká (como Jorge Paulo) contam que primeiro a Cia instalou um acampamento próximo ao riacho Caracu, um pouco distante de suas casas. Nesse tempo ainda viviam nas casas grandes –ogapysy e praticavam a poligamia. Uma dessas casas teria sido atacada por trabalhadores paraguaios da Cia, que mataram o dono da casa e raptaram suas quatro mulheres. A partir desse período, por motivo de segurança, passaram a construir as casas mais próximas umas das outras. Os paraguaios empregados da Cia passaram a visitá-los para conversar, instalaram um alambique que fornecia generosamente cachaça aos Kaiowá, e em pouco tempo os homens jovens passaram a trabalhar para a Cia, engajando-se na coleta da erva e desenvolvendo formas de convivência pacíficas com os trabalhadores paraguaios. O convívio íntimo dos Kaiowá com os paraguaios, ambos falantes da língua guarani, contribui para a construção da invisibilidade da presença indígena nos acampamentos da Cia, que incorporava uma parcela significativa dos índios que viviam fora das reservas. Em muitos casos os índios que trabalhavam na erva eram confundidos com paraguaios e essa fusão de certa forma interessava aos Kaiowá pois, mesmo os paraguaios sendo um grupo discriminado, a discriminação sobre o índio era ainda maior. 26 Brand (1997:72) suspeita que a Cia tivesse interesse nesse ocultamento “para assim poder considerar a região como desocupada e, portanto, passível de ser arrendada”. Outro problema enfrentado pelos Kaiowá e Guarani eram as condições extremamente desfavoráveis dos contratos de trabalho a que tinham que se submeter. Brand (1997:68) cita o Relatório de 1927 em que o auxiliar Genésio Pimentel Barbosa, informa o Inspetor do SPI, Dr. Antônio Martins Estigarribia, que “o índio nesse armazém assume um compromisso do qual jamais se libertará a não ser pela fuga11” e que é necessário que o SPI tome uma decisão no sentido de libertar essas tribos “do domínio dos ervateiros paraguayos, fazendo cessar o regime de escravidão em que vivem”. I – 3 - A atuação do SPI e FUNAI A análise da presença do SPI no sul do então Estado de Mato Grosso permite notar que ao longo de sua existência ele acaba incorporando, em sua sistemática de atuação junto a população guarani, a distinção entre índio aldeado e desaldeado, embora não faltaram vozes dissonantes, como se pode apreender da leitura de relatórios de alguns funcionários do órgão. Se nas décadas de 1920-30 a demarcação das terras pode ter sido pensada por alguns indigenistas do SPI como uma maneira de garantir a presença indígena nas terras que tradicionalmente ocupavam, ficará evidente nas décadas seguintes que a população guarani estava distribuída em um território de grandes dimensões, cujas terras eram requeridas pelas novas frentes de ocupação econômica. Assim, o território de ocupação guarani extrapolava em muito as terras que lhes haviam sido destinadas como reserva e o grande problema prático a ser então enfrentado será como deslocar inúmeras comunidades para as reservas, definidas como “o lugar de índio”. Uma voz dissonante que merece destaque é o relatório de Joaquim Fausto Prado de ([1948:110] Apud, Brand, 1997:117). Aí o funcionário do SPI reconhece o grande número de índios e afirma que se o órgão fosse efetivamente cumprir aquilo que era 11 Os Kaiowá dizem que quem fugia era perseguido pela Polícia da Cia, denominada de “comitiveiros” e, caso fosse pego, era punido com castigos físicos ou até com a morte. 27 entendido como sendo sua função, ou seja, recolher os índios para as reservas, “então os postos onde se encontram serão pequenos para eles” e identifica o problema que surge para a população indígena com a ocupação efetiva da terra, pois “o vale do Iguatemy e outras zonas que eram ocupadas pela Cia Matte Larangeiras e das quais estão sendo dados títulos”. Afirma ainda que os índios estão se recusando a deixar as terras. Aqui é indicada a diferença entre modelo de ocupação realizado pela Cia e o que inicia a se instalar com a introdução das fazendas. Como a exploração da erva mate não implicava em derrubada da mata, os índios permaneceram na medida do possível plantando suas roças, armando suas armadilhas de caça e, dessa forma, reproduzindo seu modo de vida tradicional, mesmo que parcela considerável da população se envolvesse no trabalho de extração da erva. Com a saída da Cia e a entrada das fazendas de criação de gado ou agricultura, tudo isto se tornaria inviável. Vários documentos evidenciam que os Kaiowá não aceitaram passivamente a saída das terras que tradicionalmente ocupavam. O Diretor da Colônia Agrícola Federal de Dourados, queixa-se no Ofício n.º 4724 de 1951 de que os Kaiowá não se sujeitam ao aldeamento, que freqüentemente abandonam a vida disciplinada do Posto Indígena do SPI e retornam as suas matas de origem, mesmo na reserva de Dourados que considera uma “terra ampla e esplêndida” (Apud, Brand, 1997;104). O processo de retirada dos índios dos fundos das fazendas onde permaneceram refugiados em trechos de matas, se prolonga até a década de 1980. Assim, Brand (1997:104) cita a Comunicação de Serviço n.º 211/9/DR/81, onde o delegado da FUNAI determina o deslocamento de um motorista e de um caminhão por um período de três dias para o P.I. de Caarapó, “objetivando efetuar o transporte de índios que desejam regressar ao P.I., provenientes de fazendas circunvizinhas”. Esse desejo de regressar (mesmo que nunca estivessem residido no local), expressa a ideologia que orienta a prática do confinamento dos índios nas reservas, pois segundo o consenso não explicitado nos documentos, lugar de índio era na reserva e eles não poderiam desejar outra coisa. Cabe ressaltar que as reservas de Caarapó e Dourados são justamente aquelas que receberão o maior número de Kaiowá expulsos de Guyraroká. O chefe de Posto do P. I. Dourados solicita através do Ofício n.º 046/79, a cedência de uma Kombi para “atender aos vários problemas que surgem com indígenas desaldeados, principalmente no transporte destes índios no retorno à aldeia” (Apud, Brand, 28 1997: 105). Aqui aparece a idéia de “índio desaldeado”, categoria forjada para dar conta daqueles casos em que os Kaiowá continuam insistindo em não aceitar a vida na reserva sob a proteção e assistência do Estado. A idéia de “retorno” à reserva desempenha assim a função de ocultar o confinamento desses índios, que é o que está realmente acontecendo no período. É revelador o fato de que o crescimento demográfico nas reservas demarcadas pelo SPI atinge seu índice mais alto a partir da década de 1970, quando desaparecem os últimos refúgios dos índios que ainda viviam nos fundos de fazendas. Vale lembrar ainda que o aumento da população nas reservas supera em muito as possibilidades de crescimento vegetativo nas décadas de 1960, 70 e 80. Fica claro que a atuação do SPI e depois FUNAI, foram no sentido de deslocar para o interior das reservas a população guarani dispersa por um território muito mais amplo, ocupado segundo sua forma tradicional de residência. Este procedimento permitia liberar as terras para a ocupação pelas empresas privadas. Enquanto puderam os Kaiowá resistiram ao confinamento nas reservas, como observa Gressler e Swensson (1988:48) quando afirmam que: “o problema na região não era simplesmente o fato de doar terras aos índios, mas principalmente, recrutá-los para essas terras, tendo em vista a enorme dispersão em que os grupos indígenas do Sul de Mato Grosso viviam”. Como não houve o reconhecimento das terras tradicionais ocupadas pelos Guarani, o problema da demarcação das terras indígenas se estende até os dias atuais. As comunidades que de alguma maneira se mantiveram estruturadas e não perderam os vínculos históricos com a terra de origem, passaram a reivindicar a demarcação, tendo em vista a maior abertura da legislação atual para o reconhecimento de seus direitos. A atuação do SPI e depois FUNAI foram marcadas pela ineficiência, negligência e má fé no cumprimento das obrigações constitucionais atribuídas a estas instituições. A atual situação dos Guarani em Mato Grosso do Sul e os inúmeros conflitos pela posse da terra entre índios e fazendeiros, com prejuízo para ambas as partes, é resultado da incapacidade do órgão indigenista oficial em reconhecer e demarcar as terras indígenas, antes da efetiva ocupação da terra pelas atividades agropecuárias. Obviamente que se as terras indígenas tivessem sido demarcadas antes da titulação das mesmas para particulares, o que na maioria dos casos aconteceu só a partir da década de 1940, muitos prejuízos teriam sido evitados. Tomáz de Almeida em artigo publicado no ACONTECEU (1991: 547-549), conclui que: 29 “O Serviço de Proteção ao Índio e posteriormente a Fundação Nacional do Índio efetivamente constituíram-se num braço governamental de pouca ou nenhuma participação para garantir as terras e os direitos Guarani na região. O desempenho de seus funcionários no decorrer do século revela profundas dificuldades em desempenhar a função de proteção que lhes fora designada oficialmente. A indiferença e omissão nos processos jurídicos levados a cabo por fazendeiros contra os índios por parte do SPI e FUNAI é flagrante; a condescendência em reduzir paulatinamente as terras indígenas fica clara na demarcação de todas as oitos terras no início do século: os traslados ilegais de comunidades inteiras de seus legítimos e tradicionais espaços de ocupação foi corriqueiro durante os últimos vinte anos” I – 4 A expulsão dos Kaiowá de Guyraroká: doenças, violência física e simbólica A expulsão dos Kaiowá de Guyraroká combina uma série de fatores que merecem uma reflexão mais detalhada: a) a introdução de doenças até então desconhecidas e para as quais os tratamentos da medicina tradicional se mostravam pouco eficazes; b) a violência física exercida pelos fazendeiros que compraram a terra do Estado e pressionavam os Kaiowá para que saíssem; c) violência simbólica que implicava em não reconhecimento de seus líderes, desrespeito às formas de organização e aos valores que regulam a sociedade kaiowá. Isto abalou profundamente a auto-estima da sociedade. Desmoralizados e expostos as mais diversas formas de exploração e preconceito, ficava quase impossível reivindicar seus direitos, tanto é assim, que definem o tempo atual como “o tempo do direito”, em contraposição as situações vividas no passado quando “o índio não tinha direito”. Nas primeiras décadas do século XX apareceram na região surtos epidêmicos de doenças como sarampo, catapora, varíola, gripes e tuberculose. Os estudos demográficos revelam que doenças vitimaram um contingente expressivo da população, principalmente na década de 1930/40. As tentativas frustradas de tratamento pelos xamãs, muito contribuiu para a queda do prestígio e poder que tradicionalmente acumulavam. Aldeias inteiras foram dizimadas, em muitos casos os sobreviventes tiveram que recorrer a Missão Caiuá (que atua em Dourados e região desde 1928) e aos postos do SPI, para que recebessem atendimento 30 médico. Pressionados pela situação precária em que viviam em seus locais de origem, e seduzidos pela promessa de atendimento médico e apoio para o plantio de lavouras que receberiam nos postos, boa parte da população acabou forçosamente optando por se mudar para as reservas. Para piorar ainda mais a situação, o desconhecimento das causas dessas doenças levou o grupo a atribuí-las à prática de feitiço, segundo os valores que conformam sua cosmologia. Isto desencadeou infindáveis acusações recíprocas entre parentelas distintas que antes viviam em relativa harmonia, interrompeu os ritos e cerimoniais e desorganizou as atividades produtivas, resultando em fome e mortes. Assim, essa situação contribuiu para a dispersão da população, pois muitas famílias se viram forçadas a deixar a localidade devido aos atritos com os vizinhos. Foi por motivos dessa natureza que muitas parentelas tiveram que procurar os Postos do SPI, ou parentes que lá viviam, para solicitar que providenciassem sua mudança para as reservas demarcadas: não suportavam mais a pressão externa dos fazendeiros, nem a acusações internas de outras parentelas de que estariam provocando a morte das pessoas pela prática da feitiçaria. Para o Kaiowá, as parentelas que compõem um tekoha devem manter entre si um grau satisfatório de coesão e solidariedade política e religiosa. Quando isso não acontece pode acontecer substituição da liderança e/ou re-arranjo da composição das parentelas, não sendo fato extraordinário a expulsão da parentela responsabilizada pelas dificuldades de convivência no tekoha. Brand (1997: 6) analisa a distinção entre índio aldeado e índio desaldeado forjada pelo modelo de relação que se estabelece entre a sociedade nacional e a população guarani. Segundo o autor, esse modelo comportava a presença indígena, desde que se sujeitassem a abandonar seus locais tradicionais de moradia e passassem a viver no interior das reservas demarcadas. Acredito que a distinção estabelecida pelo autor é importante para ampliar a compreensão da forma como opera o modelo de exclusão dos direitos indígena na região. Assim a análise do processo de confinamento da população guarani nas reservas, revela que o mesmo se deu pela conjunção de vários fatores externos, que dizem respeito diretamente à sociedade nacional, e internos, que dizem respeito a forma de organização social e a cosmologia guarani. 31 A violência física se materializa nas pressões e ameaças dos fazendeiros para que os Kaiowá deixassem a terra. Nesse processo, os velhos de Guyraroká lembram que nas primeiras décadas do século XX, homens foram mortos e suas mulheres roubadas pelos ervateiros que trabalhavam para a Cia Mate Larangeiras. Na década de 1940, com a chegada dos fazendeiros que vieram ocupar a terra, a violência assume proporção insustentável. Em 28 de janeiro de 1947, justamente no ano em que são expedidos os primeiros títulos particulares sobre a Terra Indígena Guyraroká, o agente do SPI Acácio de Arruda, do P. I. Francisco Horta, escreve o Ofício de n.º 2, informando ao chefe da I.R. 5º que a “perseguição em Dourados contra os índios é quaze geral”. Vale lembrar que a Terra Indígena Guyraroká fica a apenas quarenta quilômetros do referido posto indígena. Por outro lado, a violência simbólica implica no desrespeito às formas de organização próprias à sociedade guarani e a imposição de categorias pensamento oriundas da sociedade colonial, para definir o lugar que ela passa a ocupar no sistema multiétnico que se instaura na região. Outro fator importante a ser considerado é que o SPI a partir da década de 1940 já vivia uma situação de sucateamento e enfraquecimento em suas funções de proteção efetiva aos índios e acaba não tendo como resistir às pressões políticas que defendiam os interesses dos fazendeiros. Aliando-se aos interesses dos fazendeiros e políticos regionais, o SPI adota uma política sistemática de transferência da população das aldeias dispersas pelas terras pretendidas pelos fazendeiros para o interior das reservas. A partir daí, a reserva passa a ser compreendida como espaço destinado a recolher os índios de toda a região, liberando as terras que até então ocupavam para as atividades agro-pastoris. Aos índios que viviam nas reservas assegurava-se a ação tutelar do Estado, o que lhes garantia assistência e a proteção, embora na maioria dos casos precária. Aos que insistiam em permanecer em seus antigos locais de moradia não se oferecia nenhum tipo de apoio, ficavam a mercê da pressão e violência que caracterizavam o processo de disputa pela posse da terra. É, assim, que as reservas que mais podiam oferecer assistência, foram justamente aquelas que receberam um maior fluxo das população expulsas de suas terras tradicionais: a reserva de Dourados é até hoje a mais populosa (cerca de 8000 pessoas), o que pode facilmente ser compreendido pela presença da Missão Caiuá, aí instalada desde 1928, que sempre prestou assistência médica a população indígena. O Posto do SPI (depois FUNAI) de Dourados, sempre foi um 32 dos mais bem aparelhados da região. Os antigos moradores de Guyraroká e atuais moradores da reserva de Dourados que entrevistei durante o levantamento, deixaram claro em seus relatos que saíram de sua terra porque “não tinham nenhuma assistência, o fazendeiro não deixava mais plantar, dava tiro, ameaçava, mandava sair...aí falaram para nós que lugar de índio é na reserva, que tem recurso, aí nós mudamos pra cá, alguns ainda ficaram mais um tempo, trabalhando para os fazendeiros” (relato de Teresa, 62, antiga moradora de Guyraroká que vive hoje na reserva de Dourados). Acredito que a distinção criada entre índio aldeado, que vive na reserva, e desaldeado, que vive em fazendas, é importante para compreender a atual situação das terras Kaiowá no Estado. Relacionando o significado dessas categorias regionais com outros fatores que compõem o processo de expulsão dos Guarani de suas terras, é possível demonstrar que elas integram um conjunto de idéias e práticas, que dão a esse processo, características de um modelo que combina a violência física e simbólica exercida contra as comunidades indígenas. A evolução demográfica na Reserva de Dourados ou Posto Indígena Francisco Horta demonstra que ela cumpriu bem o papel de se constituir em pólo de atração dos índios, dentro do planejamento estratégico do governo para a região. Schaden (1974: 09) realizou trabalhos de pesquisa nessa reserva entre 1949 e 1951 e afirma que na primeira visita (1949), a população era de 548 índios, entre Kaiowá, Ñandeva e Terena, mas que nos anos seguintes ela diminuiu “consideravelmente, sobretudo em conseqüência da tuberculose pulmonar e outras doenças”. Provavelmente Dourados já teria recebido o fluxo da população de diversas aldeias, pois a Missão Caiuá e o SPI atuavam na reserva há vários anos. A despeito da alto índice de mortalidade adulta e infantil12, a população da Reserva de Dourados continuou crescendo, pois o processo de confinamento nas reservas se intensifica na região, principalmente nas décadas de 1960, 70 e 80, isto leva a Reserva de Dourados a atingir sua atual população de mais de 8000 índios. A consumação do processo de confinamento coincide com o crescimento do número de suicídios, que atinge índices 12 Identifiquei uma senhora de cerca de 68 anos que afir ma não ter pa rentes pois é a única sobrevi vente de sua aldeia, todos morreram de doenças. 33 alarmantes a partir de meados da década de 1980, como bem demonstrou Brand (1997). Coincide também com a mobilização dos Kaiowá para retomarem alguns locais de ocupação tradicional, a partir da descoberta de seus direitos, e da situação social insustentável que acaba se criando no interior das reservas demarcadas. I. 5 - A situação atual A situação dos Kaiowá de Guyraroká começa a se transformar quando começam a pressionar a FUNAI para que faça a identificação da terra. A pressão maior ocorre quando fazem as tentativas de reocupação. Em resposta ao conflito criado, a FUNAI (com a colaboração do IDATERRA) realizou levantamento preliminar na Terra Indígena Guyraroká durante o mês de junho de 2000. O antropólogo Carlos Alexandre da FUNAI elaborou um relatório sobre o estudo preliminar. Os Kaiowá informaram que durante o período de realização desse estudo, não puderam acompanhar os técnicos porque não havia uma Portaria que garantisse o acompanhamento. Atualmente parte das parentelas de Guyraroká estão no acampamento, enquanto outras aguardam os procedimentos demarcatórios instaladas provisoriamente em reservas da região, conforme descrito em outras partes do presente relatório. I. 6 - tentativas de reocupação recentes O acampamento reúne parte dos remanescentes da antiga população de Guyraroká desde 19 de junho de 2000. Surgiu como resultado de tentativas de reocupação da ter ra, frustadas pela reação esboçada por parte dos fazendeiros que, em defesa de suas propriedades, dispuseram de seguranças armados e do apoio da Polícia Civil e Militar de Caarapó. Impossibilitados de permanecer na terra, os Kaiowá acamparam como forma de se manterem próximo à terra reivindicada e deixar os fazendeiros sempre apreensivos com a possibilidade de novas tentativas de reocupação. Dessa 34 maneira esperavam pressionar as autoridades na busca de uma solução definitiva para o conflito. A primeira tentati va de ocupação ocorreu no dia 04/01/2000, sendo que os Kaiowá permaneceram dois dias no interior da propriedade de José Roberto Teixeira. Aceitaram sair mediante um acordo efetuado entre eles e o proprietário, com a intermediação do Chefe do Núcleo de Apoi o Local da FUNAI de Dourados. Pelo acordo os Kaiowá receberiam cestas básicas do proprietário e, num período de 90 dias, um Grupo Técnico realizaria um estudo para atestar se de fato havia provas da presença indígena no local. Como o tempo passou e as cond ições do acordo não foram integralmente cumpridas, os Kaiowá resolveram fazer uma nova tentativa de ocupação. Em 04/04/2000, o memorando 135/2000, assinado pelo chefe do Núcleo de Apoio da FUNAI em Dourados, Wilson Matos da Silva, informa o Presidente da FUNAI que os Kaiowá haviam ocupado a fazenda. Desta vez lograram permanecer uma semana, quando uma operação conjunta entre fazendeiros e polícia força a retirada. O delegado, Eder Luiz Redó da Polícia Civil de Caarapó, comandou pessoalmente uma operação de despejo no dia 19 de junho de 2000. Segundo relatório do funcionário da FUNAI, Alexandre Croner de Abreu (em anexo), foram utilizadas balas de borracha que atingiram várias pessoas, causando ferimentos leves. Foi muito difícil conseguir documentos relativos ao conflito. O Delegado da Polícia Civil de Caarapó se negou a prestar qualquer informação, tratou -me mal alem de me alertar que o assunto envolvia gente poderosa, usando o jargão policial afirmou: “é o seguinte meu rapaz, é melhor você ir devagar com e sse caso”. Como não sou investigador, mas antropólogo, resolvi apenas mencionar os fatos no relatório, já que o caso estava sendo tratado pelas autoridades competentes. Entretanto, nessa mesma operação, segundo o relato dos Kaiowá e o depoimento que fizeram na Procuradoria, houve um trágico acidente: na correria, provocada pelo tiroteio, a índia kaiowá Gilma Paulo Modesto tropeçou e caiu sobre o filho, Edileuzo Modesto, recém nascido. A queda provocou traumatismo craniano e morte da criança. O 35 corpo foi levado até a cidade de Caarapó, onde o médico Edivaldo Cáçaro expediu atestado como sendo morte por "causa desconhecida". Inconformados com o Laudo os Kaiowá levaram o corpo até a cidade de Dourados onde o exame do Instituto Médico Legal revelou que a criança teria sofrido traumatismo craniano. A situação confusa gerada pela existência de dois laudos conflitantes sobre a mesma morte e as denúncias que os kaiowá fizeram junto a Procuradoria da República sobre o envolvimento da Polícia Civil, acabaram gerando um inquérito na Polícia Federal de Dourados. Os documentos oficiais a que tive acesso, as declarações dos Kaiowá e as reportagens de jornais da época que dizem respeito ao conflito, constam como anexo ao presente relatório. A criança morta foi enterrada no próprio acampamento, ao lado da estrada e os Kaiowá esperam a demarcação para transferir o corpo para o interior da terra indígena. 36 II - PARTE II. 1 - Habitação permanente Procurei indicar na introdução os procedimentos metodológicos adotados no estudo que serve como base para redação do presente relatório. O tópico anterior apresentou informações relativas as especificidades culturais dos Kaiowá, a história da ocupação indígena e as transformações provocadas pela chegada das frentes de colonização. O presente tópico trata da descrição da distribuição dos locais de habitação permanente pelas parentelas que viviam em Guyraroká antes da ocupação agropecuária, bem como dos critérios aplicados por parte dessa população para escolha desses locais de moradia. II. 2 – Localização na imagem de satélite das principais referências de ocupação tradicional A imagem de satélite foi um recurso muito útil no trabalho de identificação. Permitiu identificar as pequenas cabeceiras que não aparecem no mapa do IBGE, onde se localizavam a maioria das antigas residências. Isto facilitou o reconhecimento desses locais, bem como a checagem das informações junto aos diversos informantes quanto aos nomes desses locais, sua exata localização e nomes dos moradores. A terra delimitada inclui os locais de antigas moradias, os espaços ocupados para o desenvolvimento de práticas produtivas e acidentes geográficos que se constituem em referências míticas importantes para os Kaiowá. Evidentemente, muitos locais que antigamente eram utilizados como locais de caça, pesca, coleta e mesmo moradia ficaram fora do perímetro delimitado como de ocupação tradicional. Isto foi feito com base na legislação atual e contou com a anuência dos Kaiowá que reconhecem que a ocupação 37 agropecuária da região inviabiliza política e economicamente a demarcação da Terra Indígena com as dimensões ocupadas no passado. Ficaram fora: a) as cabeceiras dos córregos Ypytã, Caracu e Lucero; c) o curso médio do córrego Caarapó (Torõrõ); c) terras da margem esquerda do córrego Caracu e; d) a região da foz dos córregos Ypytã e Caracu, próximo ao rio Dourados. A despeito dessas perdas, consideram que a terra é suficiente para manterem seu modo de vida tradicional, desde que seja implementado um plano de recuperação ambiental, já que restam poucas áreas de vegetação nativa. As informações levantadas junto aos Kaiowá dão conta da concentração expressiva de população Kaiowá residindo na terra reivindicada em caráter permanente até o início da década de 1940. A partir dessa época as pressões dos fazendeiros que começam a comprar as terras na região tomaram inviável a permanência dos Kaiowá no local. São várias famílias extensas relacionadas entre si por fortes laços de sociabilidade (parentesco, aliança política e religiosa), caracterizando um tekoha guasu ou tekoha pavêm (conforme descrição que aparece na I parte do relatório). Os dados caracterizam a região como de ocupação tradicional, constituindo ainda um centro religioso importante para vários outros nucleamentos populacionais que ocupavam terras não muito distantes de Guyraroká, sendo que entre esses diversos núcleos de povoamento existia um constante intercâmbio matrimonial e religioso. Entre essas localidades podemos destacar Taquara, as aldeias situadas ao longo do córrego Caarapó e do São Francisco, Kurupi e a aldeia do Km20. Jorge lembra que na época em que era criança, o maior xamã na região da Lagoa de Ouro era Xiru Tiku13, aprendeu com ele muito do ofício. Jorge afirma que pretende juntar seus yvyraidja (auxiliares) e reestruturar seu grupo de reza. Atualmente divide seus dias entre o acampamento e a reserva de Dourados onde vive discretamente com uma de suas filhas. Ambrósio, que é seu genro, demonstra grande preocupação com sua saúde, pois segundo informou, em Dourados oferecem-lhe muita cachaça como pagamento por serviços de cura, o que debilita muito sua saúde. 13 Ainda tem um filho vivo (Maurílio) que mora na reserva de Caarapó. 38 Papito Vilharva, com cerca de 78, nasceu no Guyraroká, nas margens do riacho Koguery, que deságua no Riacho Ypytã. Segundo seu relato, o primeiro branco que apareceu na região com o intuito de ocupá-la foi um senhor apelidado Alemão, depois vieram o Antônio Afram e o Albuquerque. No início pareciam amistosos, mas logo passaram a dar tiros sobre a casa grande (ogapysy) onde morava sua família extensa, sendo que um índio de nome Santiago foi atingido na perna. O líder religioso do grupo -xamã, notando a gravidade da situação, disse que "era necessário que deixassem do local" (oikotevem jahape), aí começou o esparramo. Os locais de residência da maioria dos antigos moradores estão identificados com números na imagem. Os locais de moradia correspondem também a locais de cemitérios, já que segundo o costume kaiowá, os mortos são enterrados próximo ao local onde viviam. Não existem cemitérios com um grande número de sepulturas, pois os Kaiowá tinham o costume de mudar a localização da casa (a localização da nova casa poderia estar a apenas algumas centenas de metros da antiga), sempre que morria uma pessoa de maior prestígio. Com a mudança da casa mudava também o local destinado a sepultar os mortos. Os cemitérios estão indicados com pequenas cruzes na imagem de satélite. Consultando os diagramas de parentesco que constam no final do relatório (anexo 02), é possível ter uma idéia da composição da população de Guyraroká. Todas as famílias manifestaram a intenção de retornar à terra a partir do momento que o acesso lhes seja assegurado, embora não estejam vivendo no acampamento liderado por Papito e Ambrósio Vilharva. Algumas das principais referências da ocupação tradicional, mencionadas a seguir, são discutidas mais detalhadamente no item seguinte e em outras partes do relatório: 1- cabeceira Mutunry: (bebedouro do mutum), era o local da casa grande ogapysy da família de Airton ou Biguá, que vive em Limão Verde. Outros moradores dessa cabeceira vivem atualmente na reserva de Dourados; 2- cabeceira Ñundi‟ary: (local onde existia muitos bagres denominados ñundi‟a14), e cabeceira Koguery (cabeceira do Juá). Ali existia a casa grande – ogapysy da família de Papito Vilharva, seus pais e avós. No local nasceram 14 Em português esse peixe é denominado j undiá ou chorão. 39 Papito, seu irmão Felipe (vive no acampamento), sua irmã Cândida (vive na reserva de Dourados), seu irmão, João Vilharva (vive na reserva de Caarapó) e, seu primo, Paulo Vilharva (vive na reserva de Dourados); 3- cabeceira Tapytã: é um local sagrado, como será descrito adiante. Na foz dessa cabeceira com o córrego Ypytã, era o local onde existia a casa grande de um antigo cacique chamado Féli Karaguatá, já falecido. Remanescentes dessa parentela são Miguela (mulher de Papito Vilharva), seu irmão Aurélio (mora na reserva de Caarapó), e sua irmão Carmem (que é xamã e vive no acampamento). Os três nasceram e viveram a infância e a juventude no local até que foram expulsos pelos fazendeiros. Outro importante xamã que viveu no local foi Karapé, que possui muitos descendentes na reserva de Caarapó; 4- Arroio Ynambu ou Guyra Varero: (local onde os pássaros bebem água), nessa cabeceira existia uma casa grande –ogapysy. Antigos moradores são Tereza Gonçalves (moradora atual da reserva de Dourados) e Mário Gonçalves (morador atual da reserva de Caarapó). Os dois nasceram no local e possuem vários filhos e netos. Nas imediações morava Ranulfo Sousa (atual morador da reserva de Taquapery); 5- córrego Chagua‟yry: é um pequeno córrego que deságua no Ypytã, o nome é devido a grande ocorrência da planta denominada chagua‟y, da qual os Kaiowá utilizam os frutos como alimento e a casca como remédio. Ali morava a família extensa do pai de Elia Ramires, Getúlio Ramires, e mais dois irmão que vivem atualmente na reserva de Dourados, com seus filhos e netos. Esse grupo se juntou ao pessoal do Chagua‟yry depois que foram expulsos do Torõrõ, seu antigo local de moradia; 6- cabeceira Mbyry‟y: (uma espécie de palmeira) nas imediações desse local morava a família da mãe dos irmãos Ramires, citados no item anterior. Moravam ainda Horácio (atualmente vivendo na reserva de Caarapó, com filhos, filhas e netos), Locrorykue e Locária, ambos já falecidos, mas com muitos descendentes vivendo nas reservas de Caarapó e Dourados; 40 7- Lagoa de Ouro: nesse local, e em suas proximidades, morava a família extensa de Jorge Paulo, o mais velho xamã ainda vivo, com seus filhos e filhas, a maioria deles vivendo atualmente na reserva de Caarapó. É o lugar em que nasceu a mulher de Ambrósio Vilharva; 8- Kurusu Ambá: é uma importante referência mítica como se verá adiante. É o local onde morava um ramo da família de Doraline Martins (outra parte morava nas margens do córrego Caarapó ou Torõrõ). Como vimos, atualmente vive com sua família na periferia do distrito de Três Irmãs, no município de Vicentina –MS; 9- Cabeceira Ñurumim: local onde morava a família de Viviano Vilharva. Seu filho, Maurílio Vilharva, nasceu no local e vive atualmente com sua família na reserva de Caarapó. Remício tinha uma casa grande -ogapysy nas imediações dessa cabeceira, seus filhos e netos estão trabalhando em fazendas no município de Laguna Caarapã e aguardam o retorno para a área; 10- local onde vivia a família de Ramona, mãe de Maurílio Vilharva, citado no item anterior. Também faz parte da região do Kurusu Ambá; 11- o médio curso do Ypytã era ocupado pela família de Conceição Sangrina, atuais moradores da reserva de Caarapó; 12- acampamento liderado por Papito e Ambrósio Vilharva; 13- jacu jeroky: (local onde o jacu realiza sua dança), é o lugar onde morava um xamã de nome Mainõ (beija flor), tinha quatro mulheres15 e 15 filhos. Seus descendentes vivem atualmente na reserva de Caarapó, e em fazendas da região; 14- cabeceira Mboreviry (lugar onde fica o bebedouro da anta) e Yvypajere (formato de uma ilha): morava a família do Manuel Chikuara Pium, em uma casa grande –ogapysy. Formam atualmente a grande família Quevedo, que vive na reserva de Caarapó; 15 Os Kaiowá praticavam a poligamia, hoj e pouco freq üente. 41 15- Mborevy Rijuaju (barra da cabeceira Mborevy): local de residência de Huvito com sua família, tem só um filho vivo, de nome Getúlio, que vive na reserva de Caarapó com seus cinco filhos; 16- Lucero Varra (Barra do Lucero): Nesse local existiam muitos moradores antigos, como Vregório, Chiru Urutau, Guachi, Chucarro (parte de seus filhos e netos vivem na reserva de Caarapó, outros estão dispersos trabalhando em fazendas da região), Chavarõ (os descendentes vivem nas reservas de Dourados e Caarapó), Miguel Guaqui (seus filhos João Alvarenga e Florêncio Alvarenga vivem atualmente na reserva de Caarapó); 17- Ypo‟i (água estreita): local onde morava o Cavalheiro que vive atualmente na reserva de Caarapó com a mulher, oito filhos e vários netos. Na cabeceira desse córrego morava a parentela de João puku, o grupo foi reduzido a três famílias que vivem atualmente na reserva de Porto Lindo. Na margem direita do mesmo córrego morava Antônio Aju‟i e Luíz Piru. Na confluência com o Ypytã morava a família do Manuel Pitô; 18- Ytu: (cachoeira): existe uma pequena cachoeira no Ypytã onde os Kaiowá acreditam existir seres míticos que cuidam dos animais que vivem na água, ou em ambiente alagado, adiante serão fornecidas mais informações sobre essas crenças. II. 2.1 - Demografia Falta, até o momento, um estudo demográfico da população Kaiowá em Mato Grosso do Sul que possa servir de referência para trabalhos que enfoquem outros aspectos da vida dessa população. Os dados disponíveis são poucos e descontínuos no tempo, o que impede a percepção da evolução das transformações demográficas. Além disso, a maioria dos dados foram confeccionados por funcionários despreparados e desinteressados. O que apresento aqui são apenas alguns indicadores gerais e tendências, baseado na leitura das pesquisas disponíveis e no levantamento realizado com a população de Guyraroká. 42 Os pesquisadores da região16 são unânimes em afirmar que a partir de meados da década de 1960 ocorre a diminuição da taxa de mortalidade, que se acentua nas décadas seguintes, como resultado da extensão de cuidados médicos e assistência a saúde preventiva (vacinação, pré-natal, etc.,). A taxa de natalidade é alta, sendo que a conjugação das duas variáveis (alta taxa de natalidade X diminuição da taxa de mortalidade) configuram um quadro de acentuado aumento da população nas últimas décadas. Esta conclusão só seria válida quando se considera o conjunto da população, ou seja, tanto a que vive nas reservas, quanto a que vive fora delas, principalmente nas fazendas da região. Os pesquisadores também são unânimes em afirmar que o aumento de população nas reservas é resultado direto da transferência de comunidades que foram deslocadas de suas terras de habitação tradicional para o interior das reservas, dando lugar a exploração agropecuária. Os dados apresentados por Brand (1993: 166 e ss) sobre o aumento da população em algumas reservas demonstra muito bem esse fenômeno. Nele se pode ver que o aumento abrupto em poucos anos, esgota qualquer possibilidade desse crescimento ter se dado via crescimento vegetativo. Assim, pegando apenas os exemplos das reservas de Dourados e Caarapó, para onde se deslocou a maior parte dos habitantes de Guyraroká temos: Reserva de Dourados (P.I) - dados registrados por Brand (1993:166) Ano População Fonte 1969 1600 Funai 1975 2150 Funai 1977 2700 Funai 1979 3750 Sucam 1984 4500 Funai 1991 6300 Funai 16 Thomaz de Almeida (1991), Brand (1993, 1997) e Pereira (1999), identificam estas características no perfil da população guarani de MS. 43 Reserva de Caarapó (P.I) - dados registrados por Brand (1993:166-67) Ano População Fonte 1975 921 Funai 1977 1250 Cimi 1980 1271 Funai No caso específico da população de Guyraroká, que vive no acampamento, o levantamento realizado pelo antropólogo Carlos Alexandre dos Santos apontou os seguintes números. Dados registrados por Santos (2001:51) Dados censitários - Terra Indígena Guyraroká - 2000 Idades Homem Mulher Total 0-5 4 4 8 6-10 2 2 4 11-15 6 3 9 16-20 1 1 2 21-25 2 1 3 26-30 1 31-35 1 2 2 36-40 1 1 41-50 1 1 51-60 2 2 + de 60 2 1 3 Total 20 16 36 44 Os dados que aparecem na tabela de Santos se restringe a população que vivia no acampamento ao lado da Terra Indígena Guyraroká no momento em que ele realizou o levantamento preliminar. O autor afirma ainda que "não foram contabilizadas 12 pessoas, sendo 6 mulheres e 7 homens, que não sabiam suas idades por isto estas pessoas não foram relacionadas na tabela censitária" (Santos, 2001:51). A dificuldade encontrada pelo autor das pessoas não saberem exatamente sua idade se deve ao fato de que os Kaiowá não contam a idade da pessoa somando cronologicamente os anos vividos, mas sim incorporando as pessoas em categorias de idade, como acontece em diversas sociedades indígenas. Essa sem dúvida seria mais uma dificuldade para a realização de um censo demográfico minucioso. Confirmando a tendência ao crescimento da população já apontada anteriormente, 25% das pessoas que vivam no acampamento tinham entre 0 a 10 anos (Santos, 2001: 50). Garantir a demarcação da terra é de fundamental importância para o futuro dessa população jovem. A seguir apresento os dados sobre a população que levantei durante a pesquisa de campo. II. 2. 2 - Censo da população de Guyraroká A tabela apresentada a seguir procura dar uma idéia aproximada do número de pessoas que estarão retornando para Guyraroká com a demarcação da terra. Digo aproximada porque as parentelas que aí viviam foram impedidas de permanecer na terra nas últimas décadas, sendo que em conseqüência muitas delas se integraram parcialmente à outras parentelas que residem em reservas demarcadas. Conforme já foi mencionado em outras partes do presente relatório, as características próprias à estrutura social kaiowá permitem que uma pessoa possa pertencer à mais de uma parentela e, portanto, possa optar com qual delas prefere residir. O número de pessoas que cada uma das parentelas reunirá, irá variar de acordo com o número de parentes que cada líder dispõe, e com sua capacidade de "juntar os parentes" ou "levantar um te'yi", como afirmam os Kaiowá. A composição de uma parentela não se resume meramente ao fato da existência de laços genealógicos, 45 embora esses sejam necessários, mas sofre a influência de fatores políticos que são por natureza dinâmicos e mutáveis no tempo. A projeção é feita de acordo com o número de pessoas que, em cada parentela, manifestaram o desejo de retornar à terra. Assim, temos: População atual da Terra Indígena Guyraroká - dados de 2001 Localização geográfica na Terra Indígena Mutunry Ñundiary e Koguery Nome do hi'u ou 'cabeça de parentela', local onde se Total encontra atualmente e número de pessoas que reúne pessoas Airton Biguá , reserva de Limão Verde, 55 a) Papito, acampamento, 32; b) Felipe, reserva de Caarapó, 46; c) Cândida, reserva de Dourados, 23; d) Paulo, reserva de Dourados, 34; e) João, reserva de Caarapó, 14. Tapytã a) Miguela, acampamento, 11; b) Aurélio, reserva de Caarapó, 27; c) Carmem, acampamento, 17. Ynambu e a) Tereza, reserva de Dourados, 49; b) Mário, reserva de Guyra Varero Caarapó, 41; c) Ranulfo, reserva de Taquapery, 28. Chagua'yry Elia (e irmãos), reserva de Dourados, 83 Mbyry'y Horácio, reserva de Caarapó, 21 Lagoa de Ouro Jorge, reserva de Dourados e reserva de Caarapó, 180 Kurusu Ambá Doraline, Três Irmãs, 26 Médio Ypytã Sangrina, reserva de Caarapó, 14 Mboreviry Quevedo, reserva de Caarapó, 33 Mboreviry Getúlio, reserva de Caarapó, 9 Rijuaju Lucero Alvarenga e Florêncio, reserva de Caarapó, 19 Ypo'i Cavalheiro, reserva de Caarapó, 79 Total geral da população estimada de 55 149 55 118 83 21 180 26 14 33 9 19 79 841 É importante deixar claro que a população de Guyraroká tende a ser bem maior do que os números que aparecem na tabela. A superpovoação das reservas demarcadas motivará muitas pessoas aparentadas com as famílias de Guyraroká a se deslocarem para lá, a partir da atualização das relações de parentesco17. Guyraroká era originalmente o centro político e religioso de um tekoha guasu que reunia um conjunto de aldeias relacionadas, dispostas principalmente ao longo dos rios Ypytã, Caracu e Caarapó. A recomposição dessas aldeias, terá como base a atualização das relações políticas e demais formas de sociabilidade que unem estas parentelas. Isto 46 provavelmente fará com que surjam disputas e conflitos entre facções e seus líderes. É necessário que a FUNAI designe técnico capacitado para acompanhar e apoiar as parentelas e seus líderes no processo de recomposição do tekoha. Isto poderá prever e evitar prejuízos para essa população, já tão penalizada por anos de exílio forçado de seu território. II - 3 O eixo das águas A distribuição das antigas moradias dos Kaiowá que compunham o tekoha guasu de Guyraroká seguia basicamente o eixo dos córregos Ypytã, Torõrõ (atual córrego Caarapó) e Karaku, incluindo seus afluentes e cabeceiras. Afora estes locais, ocupavam também o entorno da Lagoa de Oro, que fica entre os córregos Ypytã e Caarapó (Torõrõ). Chama a atenção o fato de que os locais de moradia apresentam características semelhantes: a) estão próximos a minas d‟água potável, sempre limpa e fresca. Acreditam que a água extraída de minas d‟água (ayvu) é a única apropriada para consumo humano e só muito à contragosto consomem outro tipo de água, sempre associada à origem de doenças; b) o local da casa, embora próximo à água, situa-se sempre numa elevação do terreno, alguns metros acima do curso d‟água e com topografia com inclinação suficiente para garantir um bom escoamento da água das chuvas; c) ficam à pouca distância de terras férteis, próprias para o cultivo de milho, que juntamente com a mandioca, constituem a base da alimentação de origem vegetal; d) em boa parte dos casos, a casa fica à pouca distância de região de transição entre formações florestais distintas: ciliar, mata e cerrado. Isto permite explorar recursos vegetais e animais próprios à cada um desses tipos de vegetação; e) para a escolha do lugar de construção da casa, observam ainda a ocorrência e concentração de alguns tipos de vegetais que atraem caça, como determinadas espécies de árvores cujos frutos ou sementes são apreciados por determinados animais. Todas estas observações estão em consonância com as características observadas quanto a localização de sítios arqueológicos ocupados pela população kaiowá (e guarani em geral), antes do 17 Este tema é amplamente discutido em Pereira (1999), e constitui um fenômeno típico da organização social kaiowá que regula os procedimentos de circulação de pessoas entre parentelas relacionadas. 47 período colonial. Nesse sentido, os estudos de etnohistória e arqueologia são uma referência importante para identificar a continuidade histórica e cultural entre os atuais kaiowá e as populações que lhes deram origem. Antes da expulsão da terra, os Kaiowá estavam dispersos em grupos locais (parentelas) cuja população dificilmente ultrapassava uma centena de pessoas, morando em uma única casa comunal –ogapysy. Como mencionei anteriormente, alguns locais de antiga moradia ficaram fora da terra delimitada. Isto porque não foi possível localizar parentes vivos dos antigos moradores ou porque os representante das famílias originárias desses locais, sendo em pequeno número, preferiram se aliar aos vizinhos, com o intuito, segundo entendem, de tornar mais plausível a demarcação e a recomposição das unidades sociológicas que compõem e configuram o tekoha. Muitas dessas parentelas passaram por drásticas redução populacional devido aos conflitos que caracterizaram o período da chegada dos fazendeiros: a) alguns foram assassinados; b) outros morreram por doenças como sarampo, catapora, varíola e tuberculose, o que era agravado pela fome, já que em certos casos a doença atingia à todos, e os doentes morriam por falta de cuidados e alimentos; c) mas a maior número de óbitos com certeza foi em virtude da desarticulação do sistema produtivo devido à perda do território e ao desordenamento da vida social. Isto se reflete nos casos de suicídios que ocorreram com moradores de Guyraroká que vivem na reserva de Dourados. Alegam que dentro das reservas é impossível a prática de seu sistema cultural. A habitação tradicional era a casa grande comunal, denominada ogapysy ou ogajekutu. A casa tinha cerca de 10 metros de largura e comprimento variável, de acordo com o número de pessoas que nela residiam, podendo atingir 40 metros, aproximadamente. A arquitetura combinava parede e teto, ou seja, as vigas que formavam as paredes eram curvadas até se encontrarem e formarem o teto. A casa constituía uma unidade social formada por um número variável de fogos domésticos relacionados entre si por vínculos de parentesco bilateral (consangüinidade e afinidade), formando a parentela. Alguns nomes de antigos chefes de família que eram donos de casas grandes – ogapysy, são constantemente lembrados em Guyraroká, como: Aguara Guasu, Karaguatá, Xukarro, Locro Rykue e outros. As pessoas que ocupavam uma dessas casas eram 48 identificadas pela figura de seu líder, sendo que para isso utilizavam vários termos. Assim, “Xukarro ijypykuera”, significa “os que são descendentes do Xukarro”, e “Xukaro Kentekuera” significa “o pessoal do Xukarro”, enquanto “Xukarro hekohaguepe” significa “os que seguem o sistema ou a orientação do Xukarro”. A casa grande funcionava também como unidade política, econômica e às vezes religiosa. Era comum que dispusesse de um rezador que resolvia as questões referentes ao contato com o sobrenatural. O prestígio de uma parentela aumentava com o seu tamanho e pelo fato dela dispor de um rezador de prestígio, capaz de realizar os grandes cerimônias, para as quais concorriam um grande número de parentelas. As casas estavam dispostas ao longo dos três riachos mencionados anteriormente e seus respectivos afluentes (cabeceiras). O domínio da hidronímia é total. Os Kaiowá possuem nomes na própria língua para todos os rios, córregos, nascentes e cabeceiras da região. Os regionais adotaram a nomenclatura kaiowá para os córregos Pytã e o Karacu, apenas aproximaram a pronúncia e a escrita para a forma da língua portuguesa. A notável memorização da toponímia testemunha a ocupação em caráter permanente da região por um longo período. Não raro, a origem dos nomes dos locais são referências importantes para acontecimentos situados em tempos remotos, extrapolando o campo da memória vivida e adentrando-se pelo tempo dos antepassados míticos. A memória das referências geográficas remete aos seus antigos ocupantes e, em muitos casos, são designadas pelo nome de um antigo morador de elevado prestígio, que liderava uma parentela. No curso do riacho Ypytã entre as cabeceiras Koguery e Jundiary existiam, até 1950, várias casas grandes (ogapysy). Estas parentelas eram lideradas por Manuelito (avô de Miguela), Xiru Xupe, Ava Guasu, Juan Antônio (bisavô de Papito) e Avelino. Segundo os velhos (que na época eram jovens), as casas estavam dispostas à uma distância que variava de um a três quilômetros uma da outra. Papito Vilharva conta que em 1948-9 foram expulsos da cabeceira Ñundiary, que fica na margem direita do Ypytã, por fazendeiros que deram tiros sobre suas casas. Papito e seus irmãos18 nasceram nesse local, assim como seu pai e o pai de seu pai. Nessa época, 18 Os irmãos de Papito são: Felipe, que está com ele no acampamento, Cândida que mora na reserva de Dourados, João e Inês, que moram na reserva de Caarapó. 49 passaram a residir na cabeceira Yvykua Guasu ou Tapytã, morando próximo dos remascentes das parentelas de Silvério, Francisco, Karapé, Vusu, Aguara Guasu e Ava Pytã. Na região delimitada pela confluência do Ypoi e Lucero com o riacho Ypytã, nas imediações das coordenadas geográficas S: 22 29. 32. 6 e W: 54 39 13.7, existiam duas casas grandes (ogapysy), uma chefiada por Sebatiano e outra por Jary Cachimbo, uma viúva que tinha nove filhos e que era xamã muito conceituada, principalmente como médica. No Y Poi morava Inácia, sogra de Jorge Paulo. Também era do local o Cavalheiro, que atualmente mora em Caarapó, com a mulher, oito filhos adultos e vários netos. Essas famílias só saíram da terra quando as pressões se tornaram insuportáveis. No curso do Lucero existiam vários moradores. Alguns desses lugares ficam na margem direita da estrada que liga Dourados-Juti. Na cabeceira do Lucero morava João Puku, que hoje vive na reserva de Jacarei. Na cabeceira do Y Poi, morava Vregório com 13 pessoas. Os descendentes desses moradores vivem hoje na região de Navirai, onde trabalham em fazendas. Conversei com alguns desses integrantes e eles manifestaram ansiedade em retornar ao seu antigo território, de onde afirmam terem sido expulsos “debaixo de bala”. No curso do Lucero morava Xucaro com 18 pessoas, localizei boa parte dessas pessoas vivendo na reserva de Caarapó e em fazendas da região, os mais velhos ainda nasceram no local. Na mesma situação encontra-se os descendentes dos familiares de Miguel Guagui, que morava com 12 pessoas. Ao longo do Lucero morava Xiru Urutau com 25 pessoas, na margem esquerda. Enquanto que na margem direita, morava Xavarõ com 10 pessoas, sendo que dois de seus filhos moram hoje na reserva de Dourados e um na reserva de Caarapó. Ambos possuem vários filhos e netos, conforme pode ser visto nos diagramas em anexo. Na parte superior da confluência do Chagua Yry com o Ypytã, moravam Kicho, Agostina e Chico (que tinha treze filhos). Na parte inferior dessa mesma confluência, morava Rivero. A cabeceira Mboreviry fica na margem direita do Ypytã. No local compreendido entre essa cabeceira e uma pequena nascente que nela deságua, denominada Yvypajere. Aí morava Emílio com um grupo de 20 pessoas. Abaixo morava Manuel Xikuarapeum com 17 50 pessoas, tinha casa grande (ogapysy), seus descendentes são bastante numerosos, moram na reserva de Caarapó e utilizam o sobrenome Quevedo. Na confluência do Mboreviry (Mboreviry Varra ou Mborevi Rijuaju) com o Ypytã, morava Ruvito com 13 pessoas, tinha casa grande ou ogapysy, seus descendentes moram hoje na reserva de Caarapó. Seu filho Getúlio que ainda nasceu no local, tem dois filhos e cinco netos. Nesse local moravam ainda outras famílias, cujos líderes eram Secre, Dona Santa, Ramona Kue19 (uma viúva com 10 filhos). No Ypytã, um pouco acima da cachoeira Ytu, existiam duas casas grandes – ogapysy. Na margem esquerda ficava a casa de Luca Guasu e com ele moravam cerva de 30 pessoas. Na margem direita morava Chico Pi‟a com cerca de 15 pessoas. Os descendentes dessas famílias vivem hoje na reserva de Caarapó. A cabeceira Passo Fundo fica na margem direita do Ypytã. Descendo o Ypytã, ainda pela margem direita, encontramos a cabeceira Tapytã ou Yvykua Guasu (grande buraco na terra), nesse local, próximo ao leito do Ypytã, morava Guilhermo Karape com sua parentela. Mais abaixo no curso do Ypytã, ainda na sua margem direita, encontramos a cabeceira Ñundiary, local onde até o início da década de 1950 havia um grande número de moradores, entre eles: Pedro, Loreta, Nicanor, Vito, Filomena, Inácio Kyinhry, Romona Guasu, Elsa e Raúlho. Antes que a vida comunitária fosse desarticulada pela ocupação dos fazendeiros, existia no local duas casas grandes -ogapysy: a) uma chefiada por Karapé com cerca de 25 pessoas e; b) outra por Féli Karaguata, onde chegaram a morar Miguela (mãe de Ambrósio, está no acampamento), suas irmãs Carmem (também residindo no acampamento) e Amélia (que vive na reserva de Caarapó). Isto aconteceu quando já estava em curso o processo de expulsão dos Kaiowá. Nas margens do córrego Caracu existe um grande número de cabeceiras que eram locais de residência de várias parentelas. A cabeceira Ynambu foi assim nomindada porque no lugar viveu um antigo morador, líder de uma grande parentela. Quando ele faleceu seus descendentes passaram a denominar o lugar pelo seu nome, em homenagem póstuma. Na 19 A maioria dos descendentes de dona Ramona Kue estão dispersos em fazendas da região de Naviraí, onde trabalham como bóia-fria. É uma das famílias originárias do local que mais sofreu o efeito desestruturador no exílio do território. 51 cabeceira Ynambu morava a família de Ranulfo Sousa (Maragato), que vive hoje com seus filhos e netos na reserva de Takuapery. Na cabeceira Ñurumi morava Remício com cerca de 17 pessoas, tinha uma casa grande (ogapysy), os filhos e os netos estão trabalhando em fazendas na região de Laguna Carapã, já entraram em contato com Ambrósio e esperam a demarcação da terra para retornar ao local de seus antepassados. Nas cabeceiras Kure Varero (lugar onde os queixadas tomam água) e Guyra Varrero (lugar onde os pássaros tomam água), moravam os parentes da esposa de Ranulfo Sousa ou Maragato (ver diagrama), que hoje vivem nas reservas de Taquapery e Caarapó. Na cabeceira Jacu Jeroky (lugar onde os jacus rezam), vivia um cabeça de parentela de nome Mainõ (beija flôr), com suas quatro mulheres e quinze filhos. No local denominado Mutunry (local onde o mutum toma água), morava um chefe de família com o mesmo, que reunia em torno de si cerca de 40 famílias. Com a entrada dos brancos na região nome, a casa grande (ogapysy), onde todos residiam coletivamente, foi abandonada, e as famílias dispersas, passaram a morar em pequenas casas, construídas ao estilo cabloco. Em frente ao Mutunry, mas na margem direita do Karaku, morava a família do Xiru Kaguare, também com várias famílias. No local denominado Kurusu Ambá fica a cabeceira Mbyry‟y (um tipo de coco). Do lado esquerdo dessa cabeceira morava Lacário com cerca de 15 pessoas. Do lado direito da mesma cabeceira morava Locrorykue com cerca de 20 pessoas. Tinha também um morador de nome Horácio, cuja família reside hoje na reserva de Caarapó. Na Lagoa de Ouro morava Jorge Paulo e Zé de Oro (que aí faleceu e deu o nome ao local), com sua mulher de nome Carlota. Zé de Oro teria encontrado ouro escondido durante a Guerra do Paraguai, daí o seu apelido, e a denominação da lagoa até a data de hoje. Foi um dos locais onde primeiro ocorreu a expulsão, ficando apenas algumas famílias nucleares residindo como empregados dos fazendeiros. A mulher do Ambrósio nasceu quando o pais ainda residia próximo à Lagoa de Ouro. II. 4 - Localização atual da população originária de Guyraroká A expulsão das famílias que viviam em Guyraroká provocou a dispersão dessa população por diversos lugares. O levantamento procurou identificar essas famílias. Foi 52 possível constatar que a despeito das situações adversas que viveram durante todos esses anos, a maioria delas mantêm sua forma própria de organização e o firme propósito de retornar ao seu local de origem. A seguir são apresentados dados sobre as principais famílias. Dados adicionais sobre a população do local encontram-se no item “Localização na imagem de satélite das principais referências de ocupação tradicional” e no anexo 02. II. 4. 1 - O acampamento No dia 11 de fevereiro iniciei o processo de identificação me dirigindo até o local onde estava situado o acampamento dos Kaiowá que fica do lado direito da rodovia (MS 163) que liga a cidade de Dourados à Juti, a cerca de 40 km da cidade de Dourados. O acampamento tem um número variável de barracos, em junho/2001 eram 38, com uma população em torno de 70 pessoas. Os barracos são construídas de lona preta, fornecida pela FUNAI, em média com 5 a 8 metros quadrados cada um. As fogueiras servem tanto para cozinhar os alimentos quanto para aquecer as pessoas à noite. Uma caixa d‟água abastecida pela prefeitura de Caarapó fornece água para o preparo de alimentos, lavagem de roupa e higiene pessoal. O cotidiano das mulheres é marcado pelos cuidados com as crianças, lavagem de roupas, preparo de alimentos, costura e limpeza dos barracos. As crianças brincam entre as árvores ou caçam pequenos animais ou pássaros em volta do acampamento, enquanto que os homens buscam lenha e cuidam da segurança. Eventualmente fazem algum artesanato e também pode acontecer de alguns homens jovens saírem por alguns dias para trabalhar em fazendas da região. Retornei ao acampamento várias vezes e os Kaiowá construíram uma barraca de lona preta que permitiu que, protegido das constantes chuvas que caíram na região entre os meses de fevereiro e março, eu armasse minha rede entre duas árvores. Estando entre eles por longos períodos, comendo, tomando banho e pernoitando, pude constatar as precárias condições do acampamento. Esta convivência íntima se impôs como um “dever de casa do antropólogo”, pois não há como fazer etnografia sem estabelecer um contato próximo e continuado com os informantes. Assim, pude observá-los em seu cotidiano, coletando as informações em situações mais espontâneas, evitando as perturbações de formalidades, 53 intimidações e constrangimentos, normalmente impostos pela distância cultural entre a sociedade indígena e a sociedade nacional, da qual o antropólogo é um representante. Foi possível também fazer as mesmas perguntas à diferentes informantes, para checar e complementar dados. Compartilhar da intimidade dos Kaiowá foi fundamental para a apreender a maneira como pensam e vivem seu modo de vida tradicional e atual. Constituíram momentos privilegiados para a coleta das informações especialmente: a) o cair da noite quando podia ouvir as rezas e conversar longamente com os xamãs; b) as rodas de mate ao amanhecer, onde geralmente se conversa assuntos mais íntimos e sérios e, as rodas de tereré ao longo do dia, onde as conversas giram em torno de assuntos de caráter público ou assumem um tom mais jocoso. Os Kaiowá insistiram que eu deveria visitar seus parentes, também originários de Guyraroká, que por razões diversas não estavam residindo no acampamento. A confecção das genealogias dos antigos moradores da área também apontava para um grande número de pessoas residindo principalmente nas reservas. Foi assim que decidi me dirigir até esses locais e coletar informações sobre a história das famílias originárias de Guyraroká e dos motivos de abandono do local. Dessa forma, a população da área identificada se mostrou muito superior àquela que habita o acampamento, como será demostrado adiante. O acampamento é ocupado por famílias pertencentes a algumas das parentelas que residiram em décadas passadas na Terra Indígena Guyraroká, sendo que a parentela principal é liderada por Papito Vilharva. Outras parentelas enviaram para o acampamento apenas algumas pessoas, sendo que os demais integrantes estão trabalhando em fazendas, usinas de álcool ou permaneceram nas reservas demarcadas onde plantam roças de subsistência. Essas pessoas ajudam a manter os parentes no acampamento, onde sempre aparecem em visitas que podem durar alguns dias; há assim, um constante fluxo de parentes que chegam e que saem, trocam bens e informações. Todas as pessoas que estão no acampamento estão de alguma forma relacionados por laços de parentesco com Papito Vilharva ou sua esposa. Papito é atualmente o hi’u da parentela mais importante. Literalmente a palavra pode significar avô, mas é usada pelos kaiowá como um termo de respeito, aplicado como vocativo para a pessoa que é considerada o principal organizador da parentela, conforme foi descrito no breve esboço 54 sociológico. O hi’u é o “cabeça da parentela”, sempre um homem de idade avançada que gerou muitos filhos e filhas e, conseguiu, através dos serviços religiosos que presta e da habilidade política para resolver os problemas de relacionamento entre as pessoas, manter os parentes unidos sob sua liderança. Existem vários velhos considerados hi’u na população originária de Guyraroká. Todos eles nasceram no local e mesmo com as peripécias vividas nos anos em que estiveram fora da terra, conseguiram manter pelo menos parte de suas parentelas unidas. Papito e Jorge Paulo20 são dois desses personagens que residem no acampamento, mas existem outros residindo em reservas demarcadas e, segundo afirmaram, prontos para retornar ao local, assim que lhes seja assegurado o acesso. Farei menção a eles quando tratar das parentelas que residem fora do acampamento. É impossível um homem chegar a se constituir como um cabeça de parentela, sem contar com uma esposa que esteja capacitada com as mesmas habilidades. A mulher do hi’u deve ser uma ha’i21, termo que é usado no sentido de mãe ou avó da parentela. Em certos casos o prestígio da ha’i pode inclusive extrapolar o de seu esposo, principalmente quando trata-se de mulher xamã. Via de regra, a ha’i é parteira e conhecedora de remédios para tratamento dos incômodos femininos, principalmente relativos à gestação e problemas ginecológicos. Assim, cada uma dessas parentelas é organizada por um ancião ou anciã de prestígio (ou ambos). Este executa rituais de cura dentro círculo de seus parentes, reza e aconselha os parentes com o objetivo de manter o ambiente necessário ao desenvolvimento, sem maiores percalços, das atividades cotidianas. Manter a estabilidade política e conjugal, resolver problemas que resultam em falatórios e fofocas, planejar e organizar as atividades produtivas e, propiciar a segurança em relação às ameaças sobrenaturais, estão entre as mais difíceis tarefas de um líder de parentela. Se ele não demonstrar essa capacidade, seus parentes vão saindo aos poucos e se incorporando em outras parentelas, com as quais tenham algum vínculo de parentesco. Embora a parentela tenda a apresentar estabilidade e 20 Jorge Paulo alterna a presença no acampamento com períodos em que reside com uma das filhas na reserva de Dourados. 21 É por esse motivo que algumas mulheres figuram como "cabeça de parentela" no item da tabela onde este dado é apresentado para a população de Guyraroká. Elas são maior referência para suas parentelas que seus respectivos maridos. 55 durabilidade no tempo, enquanto uma unidade sociológica, sua composição se altera no tempo, tanto pelas mortes e nascimentos, quanto pela incorporação de membros via casamento ou perda por relações conjugais desfeitas. Além disso, as pessoas sempre podem optar por permanecer na própria parentela ou mudar para junto da parentela do cônjuge, já que entre os Kaiowá não existe uma regra unilateral de residência. Ficou evidente desde o primeiro contato o forte sentimento religioso da comunidade. Construíram quebra molas (redutores de velocidade) cavando valetas na rodovia de terra que passa em frente ao acampamento e instalaram objetos de proteção ritual em frente ao acampamento. De cada lado do quebra mola armaram dois grandes arcos, do mesmo formato do que usam para atirar flecha, com a diferença que, nesse caso, cumpre apenas a função de proteção ritual. Acreditam que esse tipo de arco baliza e delimita o espaço que ocupam, sendo identificado por suas divindades que não permitem que nenhum mal acometa as pessoas, que estão assim protegidas dentro daquele espaço. Isto remete a importantes fundamentos da cosmologia kaiowá, que tem no arco e na flecha um dos principais elementos constitutivos de sua identidade étnica, conforme será mais bem descrito adiante, no item brancos e índios. Até fevereiro de 2001 haviam nascido 3 crianças no acampamento. Como resultado das pressões que receberam dos fazendeiros, uma parte das famílias retornou para a reserva de Caarapó, onde aguarda o desfecho do processo de demarcação. Ambrósio também afirma que não existem recursos para manter muitas pessoas no acampamento e por isso pede que as pessoas aguardem onde estão. Muitas famílias originárias de Guyraroká que identifiquei morando em outras localidades queriam se mudar imediatamente para o acampamento, entendiam que o Grupo de Identificação estava demarcando a terra. Sempre que possível procurei desestimular essa transferência, tendo em vista a precária situação no acampamento, onde não dispõem de alimentos e nem mesmo de lenha para cozinhar ou para aquecer-se, esclarecendo também que a demarcação só ocorreria caso se cumprisse todos os requisitos que compõem o complexo processo, composto de várias etapas. Vários homens jovens deixaram suas famílias na reserva de Caarapó, onde podem contar com mais recursos (lenha, pequenas roças, assistência à saúde, escola, etc.), e foram 56 trabalhar no corte de cana em uma usina de álcool na região. Foram contratados por um empreiteiro regional que mora na cidade de Caarapó de nome Ivo, que também tem um comércio e fornece mercadorias para as famílias dos trabalhadores. Segundo informação de Ambrósio, o comerciante costuma “prender” o cartão dos aposentados e a identidade de quem está trabalhando para ele, para dessa forma, assegurar o recebimento das mercadorias que fornece. Constatei que tal procedimento é comum na região, a despeito da coação que eventualmente a FUNAI e a Polícia Federal realizam em alguns estabelecimentos. Estive com algumas das famílias desses trabalhadores em Caarapó e elas demonstram intenção de retornar à Guyraroká assim que possam ter acesso à terra. Algumas dessas famílias já estiveram por algum tempo vivendo no acampamento, mas não suportaram as duras condições de vida e a completa dependência em relação ao auxílio da FUNAI e das cestas básicas que eventualmente recebem do governo estadual. As parentelas Kaiowá que vivem nas reservas demarcadas, mas são originários de Terras Indígenas não reconhecidas pelo governo, ficam obrigadas a se sujeitar a dominação dos líderes políticos das famílias originárias do lugar. Explicando os moti vos que levaram sua comunidade a retornar para Guyraroká, Ambrósio afirmou que “na terra (reserva) demarcada a gente entra sem direito à nada, se vai plantar tem que pedir autorização para o pessoal de lá”. Assim, a comunidade deslocada de seu território vive em uma completa sujeição política, ficando excluída do acesso aos parcos recursos que adentram na reserva através dos programas de apoio das instituições governamentais ou de outras organizações da sociedade civil. A superpovoação nas reservas demarcad as resulta em uma disputa acirrada por escassos recursos naturais tais como, terras próprias para agricultura e mesmo lenha. Acusações e conflitos de toda ordem marcam a relação entre parentelas no interior dessas reservas, já que convivem lado a lado grupos de pessoas originários de distintas localidades, sem vínculos históricos e sociais de alianças entre eles. Pelos padrões de organização social kaiowá, a convivência entre distintas parentelas kaiowá é marcada pela polarização entre aliança e hostilidade . Historicamente os grupos 57 aliados residiam próximo uns dos outros, praticando intenso intercâmbio matrimonial e religioso. Várias parentelas residindo próximas umas das outras e relacionadas entre si por forte coesão social e solidariedade política, formavam o que denominam de tekoha. A convivência com as parentelas que estavam fora desse círculo era marcada pela hostilidade. A reserva demarcada se distingue do tekoha justamente porque as parentelas que aí residem foram forçadas a conviver em um mesmo espa ço, sendo que esse ajuntamento não leva em conta seus padrões tradicionais de organização social, o que resulta em constantes conflitos 22. A distribuição espacial dos barracos de lona é, aparentemente, aleatória. Entretanto, a observação mais atenta revela que ela segue o padrão da organização, que é baseada no parentesco e na existência de unidades sociológicas típicas da sociedade kaiowá. Assim, analisando a planta do acampamento é possível identificar uma série de características que passo a descrever. Os círculos que tracei na figura delimitam o espaço ocupado pelo grupo de parentes próximos que cooperam entre si nas atividades cotidianas. Na língua guarani são denominados de jehuvy, composto por um ou mais fogos domésticos. Esta unidade integra um conjunto de espaços com funções sociais e/ou rituais distintas. Assim: -K = koty: é o local onde dormem; -C= corresponde ao local onde acendem o fogo culinário (tata ou kozina), onde preparam os alimentos; -N= o ñungatuha é o local onde guardam os alimentos e outros pertences. Serve também para hospedagem de parentes que estão em visita; -B= banheiro, onde tomam banho, já que não dispõem de mina ou córrego. Tem um caráter semi-público, já que pode ser utilizado por mais de um jehuvy; 22 Atualmente os conflitos entre parentelas que vivem em determinadas reservas desarticulam os mecanismos de controle social próprios à sociedade kaiowá, resultando em alto grau de violência interna, que se expressa em índices elevados de alcoolismo, estupros, assassinatos e suicídios. 58 -Oká = é o espaço público que funciona como pátio onde recebem as visitas que não fazem parte do círculo de convivência mais próximo. Local em que passam a maior parte do dia. O espaço entre os barracos também cumpre funções sociais e rituais. Toda essa distribuição espacial é respeitada por todos no acampamento, pois compõem um conjunto de normas que norteiam a vida das pessoas, como parte de um corpus de regras e valores que rege e atribui sentido a vida social de uma comunidade kaiowá. Deve ficar claro que a vida no acampamento é artificial, resultado de contingências históricas, mas mesmo assim, reúne elementos básicos do modo característico da vida tradicional, relativos às categorias de tempo e espaço social. II. 4. 2 - Famílias originárias do Guyraroká que estão fora do acampamento O processo de perda da terra resultou na dispersão de famílias extensas por várias localidades. A seguir descrevo as localidades em que encontrei algumas dessas famílias durante os trabalhos de identificação da Terra em questão. Procuro apresentar um pouco da história de deslocamento dessas famílias da terra tradicional, as estratégias de sobrevivência e inevitáveis impactos desestruturadores que sofreram em sua organização social. II. 4. 3 – Famílias que vivem na reserva de Dourados Em Dourados localizei Tereza Nilson Gonçalves, 60, que nasceu nas margens do Caracu. Ela casou-se no Caracu e os seus dois filhos mais velhos nasceram no local. Saiu de lá por volta de 1975, quando foi abandonada pelo marido, vindo morar na reserva de Dourados. Imaginava que na reserva de Dourados encontraria mais facilidade para viver. Sabia do apoio que os índios aí recebiam da Missão Caiuá que prestava assistência à saúde e escolar e do apoio que recebiam de outras instituições para o cultivo de roças. Na época em que deixou a região do Caracu a situação das famílias que lá residiam era bastante difícil: trabalhavam para os fazendeiros como forma de permanecer na terra de seus 59 antepassados, mas já não tinham nenhum controle sob o território, não podiam caçar ou plantar. Na época em que foi para Dourados, seus pais já haviam falecido, e isto foi mais um motivo para a mudança (ambos estão enterrados no Caracu). Quando estivemos em sua casa (Ambrósio e eu), ela de início não reconheceu Ambrósio, fazia 20 anos que não se encontravam, na época em que se separou do marido, chegou a morar um tempo na casa da mãe do Ambrósio, antes de se decidir mudar para a reserva de Dourados. Logo que entabularam conversa se reconheceram, e passaram a relembrar dos personagens vivos e mortos com os quais conviveram no tempo em que residiam em Guyraroká. Ficou muito feliz em saber que a terra estava sendo identificada e da possibilidade de retorno. O pai de Tereza era xamã na cabeceira Mbyry‟y, que fica abaixo do Ynambu, na margem direita do Caracu. Tereza segue a vocação do pai, praticando serviços religiosos em benefício de parentes e vizinhos. Na reserva de Dourados localizei também um grupo de quatro irmãos, filhos de Elia Ramire e Rozalina Vera: Brasilino, Ventura, Getúlio e Valdomiro. Eles são originários da margem do riacho Caarapó23, e estão dispostos a retornar para Guyraroká, onde viviam inicialmente com seus parentes. Ventura Ramires passou pelo pesadelo do suicídio de três de seus filhos em Dourados. Isto aconteceu entre os anos de 1990 e 1996, dois morreram por enforcamento e um por envenenamento. Uma das filhas de Getúlio também morreu por enforcamento. É de se supor que o fato de serem considerados “sapo de fora”, ou seja, não originários do local, contribui para o surgimento desses desajustamentos sociais. Esta família é bastante tradicional, os quatro irmãos são bastante unidos, mas vivem uma existência discreta, com pouca influência na política local. São todos velhos com mais de 60 anos, com muitos descendentes que pretendem acompanhá-los no retorno. Marciano Paulo, 75, também é atual morador da reserva de Dourados. É irmão de Jorge Paulo e antigo morador da margem do Pytã, nas proximidades da Lagoa de Ouro. Um dos seus filhos de nome Tomás também se suicidou na reserva de Dourados em 1987, não suportou a perda da mulher que se enforcou antes dele e praticou o mesmo ato. A relação 23 Córrego Caarapó é o nome dado pelos colonizadores da região. Os Kaiowá chamavam de Torõrõ, que quer dizer goteira. Este córrego fica a cerca de três quilômetros da Lagoa de Ouro. 60 entre a epidemia de suicídio que assola os Guarani a partir da década de 1980, segundo o exaustivo estudo de Brand (1997:14), “coincide com o agravamento do confinamento. Trata-se, portanto, de um sintoma relevante..(e) ..remete para o contexto histórico e atual de perda da terra”. II. 4. 4 - Famílias que vivem em Três Irmãs Existem várias famílias originárias de Guyraroká que embora estejam vivendo entre os regionais há várias décadas, ainda conservam um grande número de vínculos societários que caracterizam a vida comunitária típica dos Guarani. É o caso da família extensa de Doraline Martins, 62, prima paralela patrilateral de Papito Vilharva, pai de Ambrósio Vilharva. Após a expulsão de Guyraroká ela se dirigiu para a região de Três Irmãs, um pequeno distrito do município de Vicentina, com o objetivo de encontrar parentes que viviam na região, pois seu marido se recusava a ir viver dentro de uma reserva. Doraline Martins é viúva e possuí cinco filhos, quatro filhas, vinte um netos e sete bisnetos. Uma parte da família extensa mora com a matriarca no vilarejo de Três Irmãs, outra parte, composta por filhos e filhas casadas, moram em propriedades rurais da região ou em outros vilarejos. Alguns filhos/as de Doraline se casaram com regionais, todos muito pobres, que como os índios, vivem do trabalho agrícola volante ou seja, como bóia-fria. Mesmo assim, uma parte considerável da família se reconhece como indígena e como tal é reconhecida par parte dos parentes que permaneceram nas reservas ou que estão acampados ao lado da terra que reivindicam. Foram os líderes do acampamento que insistiram em que eu deveria ajudá-los a encontrar esses parentes com os quais não tinham contato há muito tempo, já que eu dispunha de veículo e estava ali para identificar a terra e os moradores antigos. Doraline e seus filhos nasceram nas proximidades do córrego Caarapó ou Torõrõ. Seu marido, já falecido, também era da mesma localidade. Todos os filhos/as falam a língua guarani e identificam claramente os vínculos parentais com a população indígena que vive nas aldeias e no acampamento. O mesmo não acontece com a maioria dos netos 61 que expressam dificuldade de falar e entender a língua, o que demonstra a desarticulação dos mecanismos de reprodução da cultura. Particularmente Doraline ficou muito feliz em receber notícias dos parentes, demonstrando grande esperança com a possibilidade de retornar para sua antiga terra e para o convívio dos parentes. Atualmente a família de Doraline vive praticamente sem assistência em barracos da periferia do pequeno vilarejo de Três Imãs. É importante observar que casos como esse, em que ainda é possível identificar os vínculos de índios “desaldeados” com comunidades estruturadas, é provável que elas venham, com relativa facilidade, novamente se incorporar às suas comunidades originárias. Isto proporcionaria escapar da constrangedora situação em que vivem na periferia desses vilarejos pobres, expostos ao convívio com o preconceito, a miséria, o alcoolismo e a prostituição. Oferecer esta oportunidade para essas pessoas é resgatar a possibilidade de que reencontrem a dignidade que subitamente lhes foi roubada, no processo de esbulho de suas terras. Ambrósio desabafou: “o que vamos fazer, são nossos parentes, agora alguns estão um pouco misturados (miscigenados) com branco, mas vamos aceitá-los assim mesmo, eles não tem culpa de todo esse sofrimento que pesa sobre eles, o que importa é reorganizar a nossa aldeia e retomar a nossa vida, muita coisa os rezadores (xamãs) vão trazer de volta, mas teremos que conviver com muitas perdas, não há como recuperar tudo”. Nos distritos rurais do município de Vicentina há casos de famílias com traços físicos e culturais reconhecidos pela população local como nitidamente indígenas (inclusive muitos deles falam a língua), mas que, quando os entrevistei, preferiram não se identificar como indígenas. Na verdade ficaram aterrorizados com nossa presença24, o que demonstra que um levantamento da situação requer uma convivência mais prolongada e discreta, para conseguir a confiança das pessoas. Esta desconfiança pode estar relacionadas com traumas das violências sofridas no passado e ao extremo preconceito de que são vítimas no presente, 24 Nossa equipe no momento era composta pelo Chefe do Núcleo de Apoio da FUNAI em Dourados, um índio Kaiowá que conhecia a região e eu. Também nos acompanhava o Presidente da Câmara Municipal de Vicentina que havia solicitado que a FUNAI fizesse um reconhecimento das populações indígenas que vivem no Município. 62 o que os coloca em uma situação de inferioridade social e de suspeita em relação à qualquer iniciativa de instituições públicas. À primeira vista, apresentam traços de organização social guarani, vivendo em parentelas aglomeradas em pequenas casas ocupadas por parentes próximos e sob a liderança de um casal de velhos, que constituem os organizadores das relações que se estabelecem entre os componentes do grupo. Em alguns casos a porcentagem de deficientes físicos é alta, o que contrasta com a situação encontrada nas comunidades guarani e kaiowá de Mato Grosso do Sul, onde tais casos são pouco freqüentes. Tal fato pode estar relacionado com a carência alimentar e o alcoolismo. Propostas para casos como esses só poderão ser elaboradas após levantamento mais detalhado que permita identificar: 1) a origem exata desses grupos; 2) se ainda existe vínculos com comunidades organizadas; 3) se a situação requer procedimentos de melhoria das condições de vida no próprio local, ou se seria o caso de deslocamento dessas populações para possíveis locais de origem. Considerando as dificuldades na identificação das características dessas populações dentro do prazo previsto para a entrega do relatório, elas ficaram fora do levantamento da população tradicional de Guyraroká. Brand registra o termo “esparramo” com o qual os Kaiowá se referem a expulsão de suas terras tradicionais. Segundo o autor, o sentido dessa palavra, “mais do que a perda da terra, significa a dispersão e o desmantelamento das famílias extensas. Ou seja, a perda da terra traduziu-se na dispersão dos seus moradores e não simplesmente em sua transferência para dentro das Reservas”. Brand (1997:89) A flagrante desestruturação das famílias que vivem atualmente em Três Irmãs evidencia o quanto a perda da terra impede que os mecanismos de reprodução social atuem dentro dos moldes tradicionais. Ocorre a quebra da conexão entre as gerações e faz com que os princípios de organização social percam o sentido e a eficácia. II. 4.5 - Famílias que vivem a reserva de Limão Verde Airton ou Biguá, nasceu nas margens do Caracu de onde saiu em 1965 quando tinha 14 anos. Segundo informou, a maior parte de sua família optou em ir para a reserva de 63 Dourados, onde acreditava que encontraria melhores condições de vida, já que os fazendeiros estavam pressionando para deixar o local. Sua mãe nasceu nas margens do Caracu, seu pai era do Kurupi, uma aldeia próxima, com a qual tinham constantes relações. Antes de saírem, uma de suas irmãs faleceu e foi enterrada no local. O seu avô (pai de sua mãe), de nome Karape, era quem rezava no local. Seu pai morreu em Dourados, por volta de 1968, ou seja, três anos depois que saíram do Guyraroká. Ireneu, irmão da mãe do Bigua resistiu na terra por mais tempo, ficou lá até 1974, mas apareceu morto à facadas, em circunstâncias desconhecidas. Biguá foi avisado da morte do tio (Irineu), fretou um carro e trouxe seus familiares para a reserva de Dourados, onde residem até hoje. Biguá vive hoje na reserva de Limão Verde, mas está disposto a reunir seus familiares e retornar para o antigo local de moradia. Parte de seus parentes também vivem hoje na reserva de Caarapó, onde casaram e tiveram filhos e netos. II. 4. 6 - Famílias que vivem na reserva de Caarapó A maior parte da população originária de Guyraroká vive hoje na reserva de Caarapó. A família de Jorge Paulo chega à centenas, mas existe um grande número de parentes de Papito e sua esposa. São três parentelas relacionadas entre si por vínculos matrimoniais e alianças políticas. Estive com várias famílias pertencentes a estas parentelas, em diversas localidades. Grande parte delas demonstraram interesse imediato em retornar para Guyraroká, mas algumas preferem aguardar o andamento dos fatos, embora não abram mão de seu direto de retorno à terra. A volta dessas famílias dependerá de complexos arranjos políticos entre as parentelas e exigirá acompanhamento especializado por parte da FUNAI, para apoiar as lideranças das diversas parentelas na resolução dos inevitáveis conflitos que deverão advir de o processo de recomposição do tekoha. 64 II. 4. 7 - Famílias que vivem na reserva de Taquapery Na reserva de Taquapery vive a parentela de Souza Margato, ele é irmão de Jorge Paulo, com idade muito avançada. Junto dele estão seus filhos e netos. Demonstraram interesse em retornar para Guyraroká, entretanto grande parte da família é convertida ao pentecostalismo e sofrem alguma rejeição das lideranças ligadas ao sistema tradicional. Algumas delas afirmaram categoricamente que se quiserem voltar terão que deixar a religião do branco, sem dúvida este será mais um problema para reorganização do tekoha. 65 III - PARTE - Atividades produtivas A conduta econômica entre os Kaiowá não se pauta por uma reciprocidade generalizada. Na verdade, combina a existência de pequenos círculos de pessoas que se consideram próximos e entre os quais existe um alto grau de solidariedade, com unidades sociológicas maiores e mais abrangentes, conforme ficou caracterizado no breve esboço sociológico que aparece na I PARTE do presente relatório. Nestas últimas, a solidariedade tende a ser mais difusa, só se expressando nos momentos de realização de certos rituais ou ajuntamentos políticos. O desenvolvimento de atividades produtivas está diretamente conectado com as unidades sociológicas a partir das quais essa sociedade está organizada. Cada parentela – te‟yi, é estruturada em torno de um líder de expressão político/religiosa –hi‟u, tendo como base relações de parentesco cognático. A parentela ocupa um porção de terra vizinha à outras parentelas, com as quais estabelece intercâmbio matrimonial e ritual, compondo assim uma unidade mais abrangente denominada tekoha. Cabe aqui fazer apenas uma breve referência às principais atividades econômicas desenvolvidas pelos Kaiowá, já que em várias partes do presente relatório aparecem dados sobre a vida econômica do grupo. A base da produção de alimentos entre os Kaiowá é a agricultura, principalmente o milho e a mandioca, mas também em menor escala aparece o cultivo do amendoim, feijões, cana-de-açúcar, carás, batatas, Mbacucu (uma espécie de tubérculo), e algumas frutíferas como o mamão, a melancia e plantas introduzidas como a manga, a laranja e a banana. Dessa forma, são definidos como agricultores de floresta tropical. A escolha dos locais de moradia leva sempre em conta a presença de solos que possam garantir um boa produtividade agrícola. Cultivam também algumas espécies não comestíveis como o urucum, o fumo e o algodão. 66 III. 1 – descrição da atividades produtivas e formas de manejo do meio ambiente A maior parte do solo em Guyraroká é considerado de alta fertilidade agrícola. Em meio às pastagens e lavouras que hoje dominam a paisagem, existem muitas árvores de cebolão ou embu que foram poupadas do desmatamento pois são consideradas símbolo dessa fertilidade. Em sua maior parte apresenta latossolo roxo ou vermelho estruturado, denominados regionalmente de terra roxa. Originalmente a região era coberta por floresta tropical bastante densa, com madeiras de lei como a peroba, cedro, angelim, aroeira e o ipê, com características muito semelhante às da mata atlântica, só que menos úmida, principalmente durante o período de inverno (junho a agosto). Apresenta em menor escala áreas de cerrado alto (cerradão) e cerrado, com solos mais arenosos e ácidos. Os Kaiowá dão grande importância às matas ciliares pois consideram como espaço de concentração de muitos recursos animais e vegetais. Em conjunto, esses três tipos de formação florestal proporcionavam recursos variados em termos de alimentos, remédios e objetos rituais. Abaixo da cachoeira Ytu existe a cabeceira Mborevyry (bebedouro da anta), também denominada de Yvytã Kytã ( torrão de terra), pelo fato de que as antas pisoteavam o local e deixavam a terra desnuda. Esse lugar era estimado pela grande concentração de caça então existente, capturadas com laço (mondé) ou caçadas com flecha. Na cabeceira Mboreviry existia uma grande concentração de taja‟o (mesmo com o desmatamento, ainda é possível encontrar muitas dessas plantas no local), regionalmente denominada de taioba, muito utilizada pelos Kaiowá na alimentação. Refogavam a folha e faziam uma espécie de farofa com farinha de milho branco. A região interfluvial (espigão) era utilizada como áreas de caça, coleta e preparo de roças. Hoje estão ocupadas por pastagens e agricultura, restando poucos capões de mato. Um plano de manejo deveria prever a recuperação dessas áreas. A carne do jacaré é usada na alimentação, a banha e a couraça do abdome para remédio e os dentes para confecção de colares. Dizem que antigamente encontravam o jacaré principalmente na Lagoa de Ouro. O muçum ou pirambóia também era mais freqüente na lagoa, utilizavam a carne fresca como alimento ou secavam, guardando-a na forma de pó, com o qual fazem um chá, utilizado como remédio. 67 Os Kaiowá praticamente não conhecem interdição alimentar com respeito ao aproveitamento de proteínas de origem animal. Os únicos animais que afirmaram categoricamente não utilizarem na alimentação foram cobras (com exceção da sucuri, que apreciam muito a carne) e o sapo cururu que consideram agourento e veículo para feitiçaria. Enquanto hábeis agricultores, como deixa claro a bibliografia histórica e atual, os sítios de assentamento estão onde a terra fértil possibilita uma produtividade alta nas culturas de milho, mandioca, carás, batatas, feijão, amendoim, algodão e outras espécies que cultivavam. Mudavam a localização das roças a cada período que variava de dois a quatro anos, assim que a terra começasse a se infestar com ervas daninhas. A antiga roça era então abandonada para repouso e regeneração e uma área de mata próxima era desmatada para dar lugar a nova roça. A antiga roça ainda servia por alguns anos como local de coleta e de caça. A escolha do local para a nova roça levava em consideração o acordo tácito entre as diversas parentelas que ocupavam uma região. No caso de Guyraroká as parentelas tinham direitos exclusivos sobre determinados trechos dos córregos e suas cabeceiras ou nascentes. Tinha o “pessoal do Ypytã”, o “pessoal do Karaku”, o “pessoal da Lagoa de Ouro”, etc. Cada uma dessas parentelas detinham direitos exclusivos quanto a exploração dos recursos presentes no ambiente, mas ocasionalmente, faziam festas e rituais conjuntos que congregavam os esforços de várias parentela relacionadas por vínculos de alianças políticas, matrimoniais ou religiosas. O cedro (ygary) é considerada uma planta sagrada para os guarani. A infusão da casca é utilizada no batismo das crianças. O xamã também costuma fazer bocejo com a infusão para melhorar sua voz durante as rezas. As folhas do cedro servem para desviar tempestade, o que é feito agitando um ramo no ar, como se estivesse varrendo o ar, enquanto se profere uma reza. Esse procedimento é denominado Jo‟asa. No acampamento de Guyraroká ao lado do rodovia existia um pé de cedro, ele morreu, pois os Kaiowá retiraram toda sua casca para usar como remédio nas rezas e pajelâncas que faziam durante quase todas as noites em que lá permaneci. Essa planta tem uma boa capacidade de regeneração e, quando dispõem de mata onde abundam os cedros, esse fenômeno dificilmente acontece. Ademais, costumam plantar pés de cedro no entorno de suas casas. Lamentam que hoje praticamente não existe mais cedro dentro de seu território, as matas deram lugar as pastagens e a agricultura mecanizada. 68 A agricultura entre os Kaiowá chamou a atenção dos primeiros viajantes pelo alto grau de desenvolvimento e eficácia, capaz de proporcionar um suprimento farto de alimentos mesmo em se tratando de aldeias numerosas. A miséria em que vivem hoje em dia é fenômeno recente e está diretamente ligada à perda da terra e à imposição de novas formas de conduta econômica. Antigamente os Kaiowá faziam três tipos de roça25: a) próximo às casas cultivavam principalmente plantas medicinais ou voltada para a prática de rituais, já que essas duas práticas muitas vezes se apresentam intrinsecamente relacionadas no pensamento kaiowá. Algumas dessas plantas eram domesticadas, mas a maioria delas era retida dos lugares em que ocorrem na natureza durante as expedições de caça e coletas e, transplantadas no entorno da casa (ogajere), para assim estarem disponíveis sempre que delas tivessem necessidade. Como esse tipo de vegetação praticamente não difere da vegetação nativa é quase imperceptível. O observador externo terá dificuldade em identificar que trata-se de uma ordenação vegetal provocada por uma interferência intencional humana. Entretanto, os Kaiowá identificam facilmente esses locais, e consideram que os recursos aí concentrados são importante fator na qualidade de vida. Também é comum plantarem alguma frutífera ou tubérculos, que exigem poucos cuidados; b) à pouca distância da casa (menos de 300 metros), costumam plantar uma pequena roça com alimentos para serem eventualmente consumidos em dias que por algum motivo não seja possível ir buscar os alimentos na roça principal (em dias de muita chuva por exemplo); c) a roça principal, aquela que garante o alimento farto durante todo o ano, geralmente é feita a dois ou três quilômetros da casa, de preferência dentro da mata. Essa roça além de produzir alimentos tem a função de atrair a caça. É no entorno da roça principal que armam os mondés (armadilhas), nas trilhas que os animais utilizam para transitar entre a mata e a roça. A caça é a atividade que fornece o principal suprimento de proteína animal, atividade também muito desenvolvida, já que possuem um sofisticado conhecimento sobre a fauna regional. O emprego de várias técnicas de caça e captura de animais garantem 25 Ainda praticam estes três tipos de cultivo, sempre que as condições ecológicas e demográficas permitem. 69 considerável eficácia nessas atividades. Mesmo com a escassez de animais provocado pelo desmatamento em grande escala, os Kaiowá sempre conseguem alguma caça, como pude atestar no acampamento, onde consumiram vários tipos de caça (pássaros, paca, tatu, lagarto, capivara, ema, etc.). A pesca e a coleta são atividades subsidiárias cuja participação na dieta alimentar não deve ser menosprezada, embora na hierarquia de valores do grupo não goze do mesmo status que a caça. Informações adicionais sobre as atividades produtivas são apresentadas no ítem seguinte, quando trato do manejo do meio ambiente. No tempo em que viviam em Guyraroká os Kaiowá praticavam três tipos de pesca nos córregos Ypytã, Karaku e lagoa de Ouro. A) com flecha para peixe maiores: piau, corimba, dourado que subiam o curso do rio no período da piracema; b) com anzol para peixe como lambaris, carás e pequenos piaus. Os anzóis eram fabricados com agulha de costura. Esquentavam a agulha com vela de cera de jateí (iraity ou jateí iñarantãngue), o calor tornava o metal maleável e assim era possível dar-lhe o formato de anzol; c) com fisga feita com cerne de alecrim (uma madeira) costumavam pescar cascudo (yñiãm), espécie que apreciam muito. Não fazem menção ao uso do cipó venenoso (timbó) que retira o oxigênio da água e mata os peixes por intoxicação, embora tenham conhecimento dessa técnica de pesca. Isso deve ser devido ao fato da pouca ocorrência de pequenas lagoas na região, locais onde dizem que a pesca com cipó é mais apropriada. III. 1. 1 - mudanças ocorridas na economia a partir do contato A ocupação da região pelas frentes de agropecuária ocorre de forma gradual, sendo que à medida que as fazendas iam sendo implantadas, diminuía o trânsito dos Kaiowá no interior de seu território tradicional. Várias dos informantes mais antigos mudaram várias vezes fugindo das fazendas que os atingia, até que finalmente tiveram que se mudar para outra região, quanto a terra foi tomada totalmente por fazendas, cujos proprietários não queriam mais saber da presença indígena dentro de suas terras. Os Kaiowá mais velhos dizem que ficaram desorientados com a velocidade com que o mato ia sendo derrubado, segundo Jorge Paulo “um fazendeiro chegava e começava derrubar o mato, logo outro se instalava do lado e também começava a derrubada, o índio ia afastando, 70 em pouco tempo não tinha mais lugar para ele”. Do acampamento ao lado da rodovia, o mesmo informante contemplava a terra que antigamente ocupavam e afirmou: “ o branco devorou completamente o nosso mato –karai ro‟upa ñande ka‟aguype”. A destruição do ambiente atinge em cheio as atividades produtivas dos Kaiowá, que se viram reduzidos à peões nas fazendas implantadas no território em que antes viviam. Chama a atenção a capacidade inventiva dos Kaiowá no sentido de seguir vivenciando aspectos de seu modo de ser tradicional a despeito das condições históricas adversas. Trabalhando nas fazendas e sítios da região, como diaristas ou por tarefa, conseguem manter uma constante perambulação pelo território, o que lhes permite acesso a locais de caça e coleta de frutos e plantas medicinais. A presença desses recursos é um critério sempre levado em conta quando procuram trabalho nas fazendas, bem como a permissão do fazendeiro para que possam dispor de algum tempo livre para se dedicar as atividades de caça, pesca e coleta. A remuneração é pouca, a diária variando entre R$ 8,00 e R$ 15,00, mas lhes permite, em alguma medida, comprar os bens industrializados que necessitam, como calçados, roupas, panelas e alimentos (arroz, feijão, óleo, sal, macarrão, carne etc.). A mobilidade do trabalho volante, ou changa como é denominada regionalmente, lhes dá a sensação de controle sobre o território. Em ambiente aparentemente inóspito em termos de recursos naturais, porque quase totalmente tomado por pastagens ou agricultura mecanizada, os Kaiowá mobilizam os seus conhecimentos tradicionais sobre o meio ambiente para conseguir os bens de que necessitam para continuar existindo e mantendo sua identidade cultural. No período em que freqüentei o acampamento encontrei filhotes de papagaio e tucano, criados como animais de estimação, fato intrigante, pois esses animais dificilmente são vistos na região. Os velhos como Papito, Carmen, Miguela, Jorge, Sousa e outros lembram com saudosismo o tempo em que os animais eram encontrados em abundância em toda a região, alguns como a arara azul, anta, onça, veado mateiro, entre outros já podem ser considerados extintos. O apego dos Kaiowá a tradição é tamanho que mesmo na situação precária e improvisada do acampamento é possível identificar uma série de elementos da cultura tradicional: em cada barraco era possível encontrar cascas e raízes utilizadas como 71 medicamento. Dados complementeres sobre a relação com o meio ambiente aparecem em várias partes do presente relatório e no relatório ambiental. A implantação das fazendas colocou um impasse para a continuidade das atividades produtivas tradicionais. Hoje os Kaiowá incorporaram uma série de necessidades de bens oriundos da sociedade nacional, ao mesmo tempo aprenderam a produzir bens (principalmente produtos agrícolas) destinados ao comércio, o que lhes possibilita acesso ao dinheiro necessário para a aquisição de roupas, calçados, utensílios domésticos, alimentos e ferramentas. Existem várias formas de entradas de dinheiro nas comunidades entre elas merece destaque o significativo número de velhos que conseguiram os benefícios da aposentadoria rural e de jovens que trabalham como mão-de-obra volante em usinas de álcool e fazendas da região. Paralelamente a esta inserção na economia regional, sempre que as condições são propícias, os Kaiowá seguem praticando sua forma característica agricultura, a caça, a pesca e a coleta, atividades que colocam em operação as formas próprias de reciprocidade do grupo, baseadas em relações de parentesco e aliança. Independente do rendimento econômico essas atividades cumprem funções rituais fundamentais na vida de qualquer indivíduo, pois estão diretamente relacionadas aos processos de construção social da pessoa. III. 1. 2 - relações sócio-econômico-culturais com outros grupos indígenas e com a sociedade envolvente Guyraroká fica no interior do território ocupado pelos Kaiowá em M S. É por este motivo eles não tinham muito contato com outros grupos indígenas, embora soubessem da existência dos Terena e dos Kadiwel, por exemplo. Guardam uma certa distância mesmo em relação aos Ñandeva, com quem os Kaiowá dividem muitas aldeias (tekoha), como acontece em Dourados, Amambai e Caarapó. A despeito da dispersão das famílias, existe atualmente poucos casamentos entre estes dois subgrupos. Explicam que isto é devido ao forte sentimento religioso e consciência de que são portadores de tradições e rezas exclusivas que não querem perder. Entretanto, falam uma língua comum, apenas com diferenças dialetais que não dificulta a compreensão e se relacionam com desenvoltura com 72 os Ñandeva quando se encontram. Também não desenvolveram relações mais próximas com os Terena que se instalaram na reserva de Dourados no início do século XX. Desenvolvem intensas relações econômicas com a sociedade envolvente, da qual se reconhecem dependentes dos produtos industrializados, uma vez que perderam suas terras e a ausência de matas os impede de praticar plenamente seu modo de vida. Trabalham como peões nas fazendas, usinas de álcool, e mesmo em serviços braçais nas cidades da região. Essa interação freqüente não exclui o sentimento de pertencimento a um grupo étnico distinto: pelo contrário, parece reforçá-lo. Têm consciência de que são considerados como seres submissos e inferiores, apegando-se à sua língua e religião como forma de defesa de sua auto-estima e identidade. Na medida do possível procuram preservar sua vida comunitária, dentro de espaços em que possam se resguardar da interferência direta dos brancos. Todo o esforço do grupo para que o governo demarque suas terras aponta nessa direção. A intensidade das relações com a sociedade envolvente aparece em diversos aspectos da cultura atual dos Kaiowá, como por exemplo: a) no vestuário; b) no uso de ferramentas metálicas, veículos, bicicletas, rádios, relógios etc.; c) nos gostos musicais e no uso de expressões vernaculares do português; d) no cultivo de plantas adotadas da sociedade envolvente como, milho híbrido, arroz, feijão, frutas etc., como pode ser visto nas tabelas de plantas cultivadas que aparecem no relatório ambiental; e) na criação de animais como galinha, porco, cavalo, gato, cachorro etc. Esta intensidade é maior entre os homens jovens, que estão mais expostos ao contato e que, pela própria divisão do trabalho, possuem maior mobilidade espacial. 73 IV - PARTE - MEIO AMBIENTE IV. 1 - descrição das áreas imprescindíveis à preservação dos recursos necessários ao bem estar econômico e cultural do grupo indígena A imagem de satélite ajuda a visualizar a localização dos principais recursos presentes na terra reivindicada pelos Kaiowá. Assim, podemos assinalar algumas características relativas à formação geológica do solo, à maior ou menor ocorrência de recursos hídricos, os tipos de formações vegetais originais e as alterações provocadas pela colonização agropecuária e, finalmente, a existência de recursos remanescentes de pesca, caça e coleta. De fundamental importância serão os dados que constam nas tabelas que aparecem no relatório ambiental e informações adicionais prestadas pela bióloga responsável pelo referido relatório. Com relação a formação geológica e vegetal a terra delimitada apresenta as seguintes características: a) A região nº 1 corresponde aos locais onde predomina os solos originados da decomposição de rochas de arenito. Isto resulta em solos porosos, sujeitos à lixiviação e, portanto, com acidez elevada e baixa fertilidade para o padrão requerido para a atividade agrícola das culturas mais exigentes como por exemplo o milho. Originalmente essa região era coberta pela vegetação de cerrado baixo, do qual restam alguns remanescentes vegetais, o que permite identificar a vegetação que aí existia. O cerrado apresenta grande biodiversidade que é explorada pelos Kaiowá através da coleta de frutos como guavira, pitanga, araticum etc., e plantas utilizadas como medicinais pelo grupo indígena, recursos de caça de animais como, veado do campo, tatu, ema, seriema etc. b) A região nº2 corresponde aos locais onde predominam os solos mistos, resultado da combinação de resíduos de rochas de arenito, com partículas 74 limo/argilosas e resíduos de rochas de origem vulcânica. São solos de transição que formam um mosaico pela alteração da proporção das partículas que entram na sua composição. São solos menos sujeitos à lixiviação, e com acidez um pouco mais próxima daquela requerida para o cultivo agrícola. Originalmente predominava a vegetação de cerrado com estatura e formação vegetal bastante variável, o que se refletia em uma gama enorme de possibilidades de exploração de recursos. Era o local de maior concentração de erva mate (explorada pela Cia Mate Larangeira), da qual foram conservados apenas poucos exemplares em algumas propriedades. Da mesma forma que no item anterior, essa área concentrava muitos recursos que eram utilizados pelos Kaiowá. c) Na região nº3 corresponde aos locais onde predomina o latossolo roxo e vermelho estruturado, de origem vulcânica. A cobertura vegetal primitiva era mata tropical, com características semelhantes às da mata atlântica, só que menos úmida, com cedros, jequitibás, peroba, angelim etc. São solos férteis e de pouca acidez. Amostras desta cobertura vegetal resta apenas nas pequenas manchas, conforme se vê na imagem, grande parte é ocupada atualmente com cultivo de soja, milho e pastagens. Era nesses locais onde, segundo os Kaiowá, eles preferencialmente cultivavam suas roças de milho. d) A região nº4 corresponde aos locais da mata ciliar que preenche o entorno dos cursos d'água. Grande parte da mata ciliar também foi destruída, em prejuízo da qualidade e da quantidade da água que neles escoam. Essa mata ciliar concentra uma série de espécies de plantas que exigem ambiente mais úmidos para a sua proliferação. Como uma área de biodiversidade específica, concentra recursos de coleta, pesca e caça, imprescindíveis ao bem estar e reprodução física e cultural da comunidade. As tabelas apresentadas a seguir foram confeccionadas pela bióloga Maria José Neto e ilustram essas formas de conhecimentos e usos. 75 QUADRO 1 Plantas cultivadas26 Nomes populares Abóbora Algodão Batata doce Banana Cabaça Cana-de-açúcar Feijão Mamão Mandioca Melancia Milho Milho pipoca Moranga Pepino Quiabo Tabaco Urucum Nomes científicos Cucúrbita pepo Gossypium barbadense Ipomoea batatas Musa spp Lagenaria vulgaris Saccharum officinarum Phaseolus vulgaris Carica papaya Manihot esculenta Citrulus lanatus Zea mays Zea mays Cucurbita maxima Cucumis sativus Hibiscus esculentus Nicotiana tabacum Bixa orelana 26 Gurani Anda‟i Poková Takuare „e Kumanda Momone Mandi‟o Avati soboró Avati Pixinga Kuare Pepe Pety Uruku Obviamente que atualmente os Kaiowá de Guyraroká não plantam todas essas culturas pelo simples fato de não disporem de terra. Em torno de suas casas no acampamento existiam apenas algumas plantas de milho e mandioca. 76 QUADRO 2 amendoim araça araticum cumbari erva-mate erva-mate genipapo goiaba guaimbê guavidiu ingá jabuticaba jaracatia jatobá limãozinho macaúba maracujá marmelo pindó pitanga pitomba taiova urucum açoita cavalo angico vermelho ata brava canela carrapateira cebolão chapéu-de-couro lixeira pau-de-tucano pau-terra pequi peroba pimenta-do-macaco taboa vassourinha alecrim espeteiro ipê peroba Extrativismo vegetal Arachis hypogaea Psidium guineensis Annona coriacea Capsicum praetemissum llex paraguariensis Ilex affinis Genipa americana Psidium guayava Philodendrum selloum Myrcranthes purgens Inga uruguensis Myrciaria cauliflora Jaracatia corumbensis Hymenaea courbaril Ximenia americana Acrocomia aculeata Passiflora edulis Alibertia edulis Syagrus romanzoffiana Eugenia uniflora Talisia esculenta Colocasia antiquorum Bixa orelana Luehea divaricata Anadenanthera falcata Duquetia furfuracea Ocotea corymbosa Sapium haemastopermum Phytolacca dioica Echinodorus grandiflorus Curatella americana Vochysia cinnamonea Qualea grandiflora Caryocar brasiliense Aspidosperma cylindrocarpum Xilopia aromatica Typha angustifolia Bacharis dracuculifolia Holocalix balansae Casearia gossypiosperma Tabebuia avellanedae Aspidosperma cylindrocarpon 77 QUADRO 3 Nomes populares água pomba aguapé alecrim de campinas algodãozinho amora branca angico angico branco aroeira barbatimão barreirinho cana-de-macaco canafístula cancorosa caraguatá caraguatá cedro cocum copaiba embaúba erva-de-índio fava de anta figueira gervão guavira guavirinha hortelã do campo japecanga japecanga junco leiteiro língua de vaca mamica de porca mamica de porca melancia de pacu nó-de-cachorro Continuação do quadro 3 pariparoba sangra d‟água sapé tarumã ximbuva Plantas Medicinais Nomes científicos Melicoccus lepdopetalus Nymphaea ampla Holocalix. Balansae Cochlospermum regium Maclura tinctoria Albizia hasslerii Albizia polycephala Myracrodruon urundeuva Stryphnoderndrum adstringens Machaerium hirtum Costus arabicus Peltophorum dubium Maytenus ilicifolia Ananas ananassoides Bromelia balansae Cedrela fissilis Allophyllus edulis Capaifera langsdorffii Cecropia pachystachya Clavija nutans Dimorphandra mollis Ficus sp. Heliotropium indicum Campomanesia xanthocarpa Eugenia sp.. Hyptis suaveolens Dioscorea trifida Smilax fluminense Juncus sp. Peschieria fuchsiaefolia Chaptalia nutans Zanthoxyllum riedelianum Zanthoxyllum hasslerianum Cayaponia podantha Heteropteris aphorodisiaca Pothomorphhe umbellata Croton urucurana Imperata brasiliensis Vitex cimosa Enterolobium contortisiliquum 78 QUADRO 4 Animais usados na alimentação Peixes bagre cascudo curimba inguila lambari piau piraju pirapuitã jacaré teju arara arara curiango curiango ema inhambú jacu jacutinga jaó juriti maritaca mutum papagaio perdiz periquito pomba rolinha saracura siriema tucano anta bugio capivara cateto cervo cutia lobo-guará onça parda onça pintada paca Rhamdía spp. Plecostomus commersoni Prochilodus reticulatus Symbranchus vulgaris Astyanax sp. Leporinus friderici Salminus maxillosus Brycon sp. Répteis C. crocodilus yacare Tupinambis teguichin Aves Ara ararauana Ara chloptera Caprinulgos sp. Nictydromus sp. Rhea americana Crypturellus parvirostris Penelope sp. Pepile pipile Crypturellus undulatus Leptotila verreauxi Pionus menstrus Crax fasciolata Amozona spp. Rhynchotus rufescens Brotogeris spp. Coumba cayannensis Columbina minuta Aramides cajanea Cariama cristata Ramphastos toco Mamíferos Taparus terrestris Allouatta caraya Hydrochaeris hydrochaeris Tayassu tajacu Ozotocerus bezoarticus Dasyprocta punctata Chrysocyon brachyrus Felis concolor Panthera onça Cuniculus paca 79 porco monteiro quati queixada tamanduá Tatu galinha tatu peba Mamíferos Sus scrofa forma feral Nasua nasua Tayassu pecari Mymecophaga tridactila Dasypus novencintus Euphractus sexcinetus IV. 2 - explicações das razões pelas quais tais áreas são imprescindíveis e necessárias O estudo baseado na formação geológica e na cobertura vegetal, permite aferir que Guyraroká originalmente concentrava grande diversidade biológica. A ocupação agropecuária reduziu as áreas de vegetação original à pequenas reservas, muitas delas alteradas para a retirada de madeira ou outros recursos. Mesmo assim, os Kaiowá fizeram questão de andar pela terra com os técnicos (bióloga e antropólogo) que realizavam o levantamento, para mostrar que mantêm o conhecimento que lhes permite reconhecer os recursos e suas formas de utilização. Isto fica evidente no uso de plantas medicinais. Vale lembrar, embora isto já tenha sido mencionado em diversas partes do presente relatório, que a cobertura vegetal original, foi quase que totalmente destruída para a implantação das lavouras (principalmente de milho e soja) e para a formação de pastagens (principalmente braquiária e brizantão). Os Kaiowá encaram estas transformações no ambiente como um enorme prejuízo e um entrave para a realização das atividades produtivas condizentes com seu sistema cultural. Como forma de superar estas dificuldades esperam receber apoio na recomposição ambiental e no desenvolvimento de atividades produtivas de criação de animais e cultivo de lavouras comerciais. Reconhecem consternados que isto não faz parte seus costumes tradicionais, mas que, sem isto, correriam o risco de passar fome na terra devastada. As lideranças mais jovens alegam que a destruição ambiental não é responsabilidade deles e consideram um escândalo o governo pagar para os fazendeiros pelo estrago que fizeram. Esperam que o governo se responsabilize pelo ocorrido e se empenhe na resolução do problema ambiental criado em sua terra. Disseram que uma das formas seria desenvolver um programa de recomposição da vegetação original, aliado ao incremento de atividades produtivas que pudessem 80 assegurar a manutenção da comunidade. Uma das formas seria através do replantio da ervamate. Os recursos presentes no ambiente, embora escassos, são necessários e imprescindíveis para que o grupo continue praticando seus usos e costumes. As poucas áreas remanescentes de vegetação nativa podem servir como bando de sementes para a extensão da cobertura vegetal. Enfim, a terra e os recursos aí presentes, são necessários para que as parentelas de Guyraroká possam recompor suas relações societárias em conformidade com as formas de alianças que caracterizam a constituição de um tekoha. 81 V - PARTE V. 1 - Reprodução física e cultural No presente tópico identifico a) alguns fatores de desequilíbrios provocadas pelo exílio das famílias de Guyraroká de sua terra tradicional; b) aspectos cosmológicos do grupo relacionado ao território que reivindicam; c) alguns motivos pelos quais a terra em questão é necessária à reprodução física e cultural dessa população. V. 2 - O efeito desestruturador da perda da terra sobre a população de Guyraroká A situação atual das famílias de Guyraroká que ficaram anos fora de sua terra demonstra o quanto o exílio da Terra implicou na impossibilidade de colocar plenamente em operação os mecanismos que asseguram a reprodução física e cultural. Conforme ficou demonstrado em várias partes do presente relatório, a perda da terra desorganizou a vida econômica impondo fome e miséria, que associadas as novas doenças, eliminou um contigente significativo da população que anteriormente ocupava Guyraroká. Meliá (1988b: 106) afirma que para o Guarani “sem tekoha não há teko”, ou seja, sem o espaço físico que reúne as condições ambientais necessárias para a realização do modo de vida guarani (tekoha), o próprio modo de ser guarani (teko), entra em colapso. Dessa forma, o Guarani só pode manter-se enquanto tal, quando dispõe de um espaço que reúne as condições que lhe permita pôr em prática sua organização social, cerimonial e ritual. Assim, a perda da terra representa um golpe fatal, que coloca um impasse para a continuidade de sua cultura. A falta de terras é um fator gerador da inviabilidade para a reprodução da cultura indígena, como reconhece Martins (1986:35-36), para quem a insuficiência terras “decorrente do cercamento territorial aparece como específica insuficiência para continuar sendo índio”. 82 O trabalho de identificação representou para a maioria dos antigos moradores uma espécie de viagem no tempo. Relembrar a história trazia de volta à mente lugares, pessoas e eventos. O olhar distante e compenetrado evidenciava que a lembrança aos poucos dissipava a névoa do esquecimento e, junto com os nomes, surgiam os personagens de um mundo há muito desaparecido. Às vezes se emocionavam, falavam com tanta empolgação e clareza que pareciam se referir a um vizinho com quem se encontraram há pouco tempo, mesmo se tratando de pessoas mortas há décadas. Também era comum que durante as entrevistas os olhos dos informantes lacrimejassem quando lembravam das atrocidades que sofreram ou quando a lucidez os trazia de volta para a realidade e percebiam que falavam de um mundo que não mais existe. Muitas falas terminavam com a frase “agora tudo acabou”. V. 3 - Referências mitológicas dentro do perímetro da terra identificada Existem alguns locais que são de grande importância para os Kaiowá dentro dos limites da terra proposta. Estes locais se constituem em importantes referências míticas que estão relacionadas a uma série de rituais religiosos, pois são vestígios físicos no espaço geográfico que remetem diretamente à presença dos deuses na terra. Esses pontos geográficos estão em íntima relação com elementos da cosmologia, sendo fundamentais para o equilíbrio psicológico dos indivíduos que compõem essa comunidade. O próprio nome do terra indígena que reivindicam já é uma referência mítica, pois Guyraroká, na linguagem religiosa utilizada pelo xamã para estabelecer contato com as divindades, significa o lugar do batismo. É o pátio em frente a casa do rezador principal onde se realizam as cerimônias mais importantes de batismo das crianças e das plantas. Crianças e plantas cultivadas são considerados seres delicados, tanto quanto os passarinhos, e por isso necessitam de cuidados práticos e rituais para que cresçam saudáveis. Assim, Guyraroká é a metáfora religiosa com que designam o local onde realizavam estes importantes rituais, podendo ser traduzida também como o "quintal do passarinho", ou seja, "o pátio onde esses seres são batizados". 83 Na margem direita do Karaku encontramos a cabeceira Kurusu Amba (objetos sagrados), onde, segundo os Kaiowá, foram depositados objetos religiosos deixados escondidos no mato. Isto aconteceu durante o período em que os primeiros fazendeiros que pretendiam tomar posse da terra atacaram os Kaiowá, atirando sobre as casas (mais ou menos por volta de 1952). Afirmaram esconderam os objetos rituais no mato já que não era seguro deixa-los guardados nas casas, pois algumas delas haviam sido incendiadas pelos invasores. Quando foram recolher tais objetos eles haviam desaparecido misteriosamente, sem deixar nenhum vestígio. Os Kaiowá acreditam que eles foram recolhidos pelas divindades. Esse sumiço dos objetos rituais deixou as pessoas muito confusas, pois não sabiam quais as conseqüências que poderiam daí advir, muitos com medo fugiram para outros locais. Para os Kaiowá de Guyraroká a cabeceira Tapytã é de importância fundamental. Ela é constituída por uma voçoroca de cerca de uns 30 metros de profundidade por quase 100 de largura, começa repentinamente em um espigão. A água que brota dos barrancos corre em seu leito, formando um pequeno riacho que deságua no Ypytã. Próximo ao Ypytã a voçoroca desaparece e se transforma em um riacho com leito comum. Segundo a bióloga que fez o estudo ambiental da terra, tudo indica que trata-se de uma falha geológica. A erosão parece estabilizada há centenas de anos, a vegetação densa com árvores lenhosas cobriu todo o barranco, ocultando o leito d‟água. Segundo os Kaiowá no Tapytã mora o so‟o jara (literalmente o dono da caça ou da carne) uma espécie de divindade respeitada e temida. Jamais um Kaiowá penetra nessa voçoroca por respeito ao dono dos animais e porque é perigoso, pois o so‟o jara recebe muitos visitantes, outros deuses e espíritos, alguns deles canibais. Esses visitantes podem estranhar algum humano desavisado que adentre os limites da casa do so‟o jara. Só o xamã quando reza (portanto, em transe xamãnico) visita o local porque se entende bem com os estes seres perigosos. O xamã quando reza também pode receber a visita do so‟o jara em sua própria casa. Nestas ocasiões de contato com o dono da caça o xamã aproveita para perguntar-lhe sobre seus animais, em que direção eles se encontram ou pede-lhe que libere mais animais, caso estejam escassos para a caça. O so‟o jara que mora no Tapytã é denominado de Ka‟aguy Pore e detém o controle da cutia, tatu, paca, macaco, bugio, lagarto, cateto, queixada, veado, ema, seriema etc. Enquanto caminhávamos em volta da 84 cabeceira Tapytã os Kaiowá identificaram rastros de tatu, paca e cutia, na estreita faixa de vegetação nativa (cerrado) ainda existente. Imediatamente relacionaram tal fato à presença do Ka‟aguy Pore, expressando um sentimento de alívio por ele ainda não haver deixado o local: “ele é delicado”, afirmaram, “não suporta a proximidade do branco ou o cheiro do veneno de suas lavouras, quando perturbado muda de lugar e leva os bichos com ele”. No córrego Ypytã existe uma pequena cachoeira (Ytu) que os Kaiowá identificam como sendo morada de outro tipo de dono da caça (so‟o jara), mas que vive na água. Esse ser mítico de nome Kaja‟a comanda e controla o fluxo de todos animais aquáticos e daqueles que vivem no “barranco do rio”. Assim, são seus animais de estimação os mamíferos como capivara e lontra, as cobras d‟água e sucuris, e todas as espécies de peixe. Trata-se de local sagrado que desperta sentimentos de respeito e temor. Sempre evitaram visitar a cachoeira, embora todos conheçam sua localização e saibam de sua importância. Quando falaram sobre sua importância, demonstrei interesse em conhecer a cachoeira, eles consentiram após discutirem entre si sobre a conveniência de tal visita. Fazia muito tempo que eles não visitavam o local, pois como foi dito anteriormente, eles viveram várias décadas fora do território. Ao chegar na pequena cachoeira ficaram chocados e perplexos pois estava em meio de uma pastagem, os fazendeiros retiraram toda a vegetação, inclusive a mata ciliar, o gado bebe água ao lado da cachoeira. Consternados, comentaram em voz baixa entre si, que com certeza o Kaja‟a teria se mudado do local. “É por isso que a caça e os peixes sumiram daqui, não se vê nem rastros”, afirmaram, já que acreditam que esse ser controla a quantidade dos animais. Os Kaja‟a têm aparência semelhante a dos humanos, usam adornos semelhantes aos dos Kaiowá e cabelos compridos, tanto os homens como as mulheres. São perigosos para os humanos pois os atraem para o mundo aquático de onde nunca mais retornam. Só os xamãs poderosos podem com eles estabelecer contato sem correr perigo, já que gozam de familiaridade com o mundo dos deuses e dos espíritos, sabendo como tratá-los e deles conseguir benefícios para a vida dos humanos. O xiru é um bastão feito do cerne de uma madeira muito dura. O xiru tem uma grande importância ritual, ocupa um papel de destaque em um altar construído no interior da casa do xamã, que com ele conversa e para ele reza quase que cotidianamente. Os 85 Kaiowá alegam que os xiru não são confeccionados por mão humana, mas que foram os próprios deuses que os entregaram aos antepassados. Papito Vilharva disse que o xiru é feito da madeira yvyra ñakua, inclusive me apresentou a planta. No acampamento, Papito e Jorge Paulo eram portadores de xiru. Portar xiru é uma grande responsabilidade. Segundo dizem “tem que conhecer as rezas e sempre rezar para ele, conversar com ele, assim ele protege e segura as doenças, cobra, enxame de abelha e outras calamidades que podem se abater sobre a comunidade”. Caso os cuidados não sejam suficientes, ele pode liberar esses males, provocando grandes prejuízos, não só aos índios, mas também aos brancos. Os Kaiowá acreditam que existe um tipo de cobra parecida com a jibíoa, só que não é um ser da natureza, mas constitui uma espécie de espírito. Ela na verdade pertence ao mesmo gênero que engloba um tipo de cobra cega, ambas pois pertencentes ao universo mítico do grupo. São seres extremamente nocivos pois costumam mamar no peito da mulher e quando isso acontece é sinal de que os parentes vão terminar, vão morrer um após o outro, sem nenhuma causa justificada. Quando alguém descobre que isto está acontecendo com pessoas de sua família fica extremamente apavorado, pois sabe que vai ficar sem parente, vai sobrar só ele. Os Kaiowá tem verdadeiro pavor à perda dos parentes. Segundo os informantes mais velhos isso teria acontecido na comunidade que morava no córrego Torõrõ (atualmente denominado de córrego Caarapó), cerca de 100 anos atras, “é por isso que muitos de seus moradores se dispersaram, assustados com o perigo eminente de morte” justificaram. Segundo acreditam, “depois que essa cobra fez o trabalho dela não tem como remediar, pois esses seres pertencem ao Ka‟aguy Pore e Ka‟aguy Ryta (espécie de pai do mato)”. Explicam que o motivo desse ataque é que o dono dos animais fica irritado sabendo que o mato vai acabar, “é um sinal que ele passa para o cacique (xamã), um aviso para que ele faça alguma coisa para impedir que os brancos continuem destruindo a mata”. Na compreensão dos kaiowá, esses seres míticos não medem as conseqüências de seus atos, querem que os xamãs usem o poder de que são portadores para destruir os brancos, mas os xamãs sempre relutam, pois sabem que muitos inocentes morreriam. 86 V. 4 - Religião e território Os Kaiowá têm uma noção clara do território amplo ocupado pela etnia. Esta noção se aproxima da idéia de país ou pátria, sendo por eles denominada de tetã. Os Kaiowá lamentam que a demarcação da fronteira entre o Brasil e o Paraguai, após a Guerra do Paraguai, tenha cortado ao meio o seu território. Em conseqüência disso, quando vão visitar os parentes que vivem do outro lado da fronteira são tratados como estrangeiros, o mesmo acontecendo quando os Kaiowá que vivem no Paraguai visitam os que vivem no Brasil. É nesse amplo território que estavam distribuídas suas comunidades, sempre seguindo o curso dos córregos. Consideram que foi o próprio deus criador que deixou esse território para usufruto dos membros da etnia. O território é dividido em regiões, identificadas como espécies de províncias, com forte sentido religioso. Expressam com a idéia de província uma noção próxima da divisão em diocese com a qual a igreja católica reúne um certo número de comunidades católicas sob a responsabilidade de um bispo. Aliás, vários aspectos da noção de diocese e paróquia podem ser instrutivos para compreender as concepções kaiowá de que estamos tratando. No modelo tradicional kaiowá, os serviços religiosos de cada comunidade kaiowá são ministrados por um xamã que está filiado a uma unidade religiosa mais ampla, dirigida por um líder religioso de maior prestígio, considerado um xamã principal mais poderoso e antigo, que comandou a iniciação de um certo número de auxiliares (yvyraja), que depois se tornarão xamãs. Esses desenvolvem para com o antigo mestre uma relação de respeito e dependência, só podendo realizar os rituais mais importantes sob a sua supervisão ou autorização. A esfera de abrangência da influência de um xamã não é permanente, existem disputas freqüentes entre xamãs rivais, o que gera uma dinâmica constante dessas esferas. Os Kaiowá consideram Cerro Guasu (Grande Cerro) no Paraguai como o centro da terra (Yvy Pyte). Foi nesse local que o deus criador realizou feitos extraordinários no tempo dos antepassados míticos, fundando os princípios que organizam a sociedade kaiowá atual, “la é a nossa capital, da mesma forma que vocês tem a capital de vocês em Brasília, eu já fui em Brasília. A maioria dos brasileiros (brancos) não conhece 87 a cidade de Brasília, mas sabe que é um lugar importante, tem o reconhecimento. Para nós, é em Yvy Pyte que estão nossos caciques (xamãs) mais importantes, que tem mais poder, que falam diretamente com deus, são eles que cuidam de nós e nos protegem contra doenças e até contra os brancos. Eles têm o controle do mundo na mão, isso não atingi só os Kaiowá, é geral, eles têm o poder de sustentar o mundo ou de destruí-lo, se eles pedirem o deus atente” (entrevista com Ambrósio Vilharva, líder da comunidade). Embora Ambrósio tenha usado como recurso explicativo a comparação com o centro político nacional, que fica na cidade de Brasília, talvez o modelo que mais se aproxima da organização religiosa kaiowá seja, mais uma vez, o modelo de organização da igreja católica. É semelhante a idéia do Vaticano como centro religioso, onde estão reunidos os sacerdotes mais importantes. Uma distinção significativa é que os Kaiowá não teriam a figura do Papa, como único líder instituído da prerrogativa exclusiva de representar Deus na terra, esta representação estaria dividida entre um conjunto de líderes religiosos. Isto é facilmente compreensível considerando que os Kaiowá não conhecem a centralização política: o Vaticano é a sede da Igreja Católica Universal, mas ao mesmo tempo é a sede de um Estado. Outro aspecto importante é que Yvy Pyte se constitui como uma espécie capital religiosa, onde os Kaiowá que aspiram o desempenho de atribuições coletivas, principalmente de liderança religiosa devem, de preferência, fazer uma espécie de peregrinação. Essa peregrinação tem um caráter instrutivo, de aprendizagem e formação dos valores autênticos da sociedade kaiowá. A peregrinação à Yvy Pyte representa para os Kaiowá, o que a visita à Meca representa para os muçulmanos. “Fui lá para aprender o que é, para defender meu povo”, afirmou um dos líderes da comunidade de Guyraroká. Da mesma forma que o papa se considera responsável por tudo que acontece no mundo católico, os grandes xamãs formados em Yvy Pyte, se consideram responsáveis pelos problemas enfrentados nas comunidades kaiowá, independente do lugar em que elas vivem ser considerado Brasil ou Paraguai. Assim, Ambrósio afirmou que quando iniciou o trabalho de reorganizar as famílias para retomar o território, sentiu necessidade de aprender mais sobre o sistema dos antigos. Disse que com o expulsão da comunidade de Guyraroká e a vida errante pelas fazendas e 88 reservas demarcadas, a família de seus pais, que pertence a uma linhagem de rezadores renomados, foi obrigada a interromper muitos ciclos de rezas. Dessa forma, as pessoas de sua geração ficaram com uma lacuna na formação. Para resolver o problema, Ambrósio começou sua iniciação religiosa com o pai (Papito Vilharva) e com o sogro (Jorge Paulo), ambos reconhecidos como xamãs importantes. Em determinado momento, sentiu necessidade de se dirigir até o Paraguai, segundo disse, em busca do conhecimento dos caciques antigos (xamãs), que existem em pequeno número no Brasil hoje. Na verdade, os poucos que existem alegam que não dá para rezar mais, pois vivem em reservas superpovoadas, com conflitos políticos, interferência de crentes, dependência do branco e falta de recursos ambientais como caça, mel e cultivos de plantas agrícolas tradicionais, imprescindíveis para a realização dos rituais nos quais as rezas são executadas. No Paraguai, Ambrósio procurou os velhos, rezou com eles e expôs as dificuldades que teria pela frente na retomada da terra. Os velhos xamãs deram as instruções de como ele haveria de proceder e após algum tempo de preparação retornou ao Brasil, “aí tudo ficou mais fácil, o que parecia impossível começou a acontecer, a FUNAI criou o Grupo de Identificação e vocês estão aqui para realizar o trabalho”. Ambrósio (e a comunidade como um todo) encara a retomada da terra tradicional como um movimento de reativação do sistema tradicional, pois “na reserva demarcada não tem ambiente, as pessoas não se envolvem com a reza, as crianças quando vão para a escola são discriminadas pelos filhos dos índios crentes que costumam chamá-las de demônios, só depois que viemos para o acampamento é que as crianças passaram a se envolver mais com a reza”. A mobilização em torno da reconquista do território é, assim, uma ação no sentido de colocar novamente em operação os mecanismos de reprodução social, uma tentativa de reposição de formas de sociabilidade. Os Kaiowá buscam, com o retorno ao seu território tradicional, reconstituir formas de “solidariedades danificadas”, no sentido que Giddens (1996) atribui a essa expressão. Entretanto, na compreensão dos Kaiowá, a recuperação das rezas, é uma condição primeira e necessária para o retorno à terra, só quando deus ouvir as rezas é que poderão recuperar as terras de onde foram expulsos. 89 As rezas teriam ainda o poder de fazer a mata crescer novamente, trazer de volta os animais de caça e tornar as pessoas novamente fortes, saudáveis e calmas. Mas que definir a condição humana ideal, as rezas possibilitam superar os condicionamentos históricos atuais. Acreditam que por seu intermédio os homens mantêm um contato direto com as divindades e podem conseguir que elas atuem em seu favor. V. 5 - Brancos e índios Os xamãs afirmam que no momento da criação da humanidade deus perguntou aos antepassados dos atuais kaiowá se preferiam a posse dos instrumentos de ferro ou madeira. Como os antepassados eram sábios xamãs, logo perceberam que o ferro, embora fosse mais resistente e possibilitasse um maior domínio sobre a natureza, (poupando inclusive trabalho no preparo das roças), estava intrinsecamente relacionado a uma índole violenta, o que provocaria infindáveis disputas, mortes e infelicidade. Optaram então pelos objetos de madeira e por um estilo de vida mais simples e pacífico. Os brancos surgiram logo em seguida, e preferiram os objetos de ferro, mais condizentes com a índole violenta de que eram portadores. Isto explica a atual distinção entre os índios e os brancos: os Kaiowá são pobres, mas calmos e tranqüilos, enquanto os brancos são ricos e agitados, empreendedores, mas infelizes. Os xamãs construíram uma elaboração da situação histórica de dominação branca que parte de um realismo evidente: os Kaiowá são efetivamente dominados dentro do território que historicamente ocupavam. Entretanto, o reconhecimento dessa realidade não implica na aceitação de sua legitimidade. Acreditam que a anterioridade de sua criação (os Kaiowá surgiram primeiro), e sua índole mais pacífica, proporcionam uma maior proximidade com as divindades, que em momentos cruciais, podem interferir em sua proteção. Acreditam que os Kaiowá antigos ao escolherem os instrumentos de madeira e um estilo de vida mais pacífico, tomaram essa decisão com a convicção de que esta seria a melhor opção: “o que o antigo fala é aquilo mesmo, não dá para discutir”, afirmou categoricamente um dos xamãs. 90 O apego à religião tradicional foi com certeza um dos motivos que levou a comunidade a tomar a decisão de retomar seu antigo território. V. 6 - A ameaça de destruição do mundo A destruição do mundo é um tema recorrente na mitologia guarani. Os Kaiowá de Guyraroká insistiram muito sobre o assunto e, como notaram que eu não atribuía ao tema a importância que julgavam que ele merecia, certa noite os xamãs se reuniram e fizeram questão de que eu lhes assegurasse que o tema apareceria no relatório: “isto é para você anotar!” disseram. Acreditam que uma ameaça paira sobre a terra “e que está na mão dos caciques (xamãs) o poder de controlar essas forças destrutivas”. Os xamãs retomaram o assunto inúmeras vezes, insistindo em que eu entendesse o significado de suas crenças e as relatasse. Sabem que nós não-kaiowá temos dificuldade de compreendê-las, mas são irredutíveis em que o Governo saiba da ameaça que paira sobre a nação e considere que o poder para livrar o povo brasileiro da catástrofe “está na mão dos caciques”. Consideram que este é um bom motivo para começar a “respeitar mais o direito do índio, pois o cacique está cansado de ver seu povo sofrer e pode um dia resolver rezar e pedir que Deus destrua o mundo de uma vez e acabe com tanto sofrimento”. Assim, demonstram firme convicção de que seus caciques podem desencadear o processo de destruição da terra, o que mataria todos os brancos e pouparia apenas os kaiowá, porque eles “conhecem as rezas que garantiriam sua proteção”. O cacique dispõe de um arsenal destrutivo que ele deve acionar um a um, através de rezas específicas que só ele conhece, quando decidir que chegou o momento de destruição final da terra. São os seguintes: - as rezas do arco íris, uma divindade denominada de Ju‟y, que tem a capacidade de fazer com que caiam raios sobre a terra, queimando e destruindo tudo que atingem; - o Chiru Hiapu Guasu é considerado a principal divindade, responsável direto pela existência dos Kaiowá, “sem ele nós não existiríamos”, afirmam. Os xamãs insistem 91 que conhecem um sistema de rezas pertencentes a essa divindade que tem a finalidade exclusiva de provocar a destruição da terra por vários processos, entre eles: a) tempestade sem controle –yvytu guasu, que destrói tudo, derruba árvores, prédios etc. Essa tempestade pode ser acompanhada por chuva de pedra, aumentando ainda mais o seu poder destrutivo. Como é comandada pelo Xiru Hiapu Guasu, ninguém pode impedir sua progressão; b) em certos casos a tempestade pode ser acompanhada de uma grande chuva –oky guasu que dura dias seguidos provocando uma inundação que cobre toda a terra. No caso da grande inundação, acreditam que quando a água escoa para o mar, leva consigo toda a imperfeição da terra, que então se regenera; c) pode provocar também uma seca prolongada, seguida de fogo voraz que queima tudo, inclusive a terra; d) pragas de madorová (yso karu), gafanhoto (tuku), abelha (eirague), mala vision, pai do mato e pé de garrafa27; e) uma grande escuridão pode envolver a terra e com ela aparecerão enormes morcegos carnívoros -mbopy guasu, acompanhados de outros monstros carnívoros que se apresentam como cópias dos animais que vivem na terra, mas são seres deformados, possuem asas, dentes e garras afiadas. Os elementos que compõem o universo religioso Kaiowá não se restringem a meros rótulos distintivos entre índios e brancos. São fundamentos efetivamente presentes na memória coletiva que orientam a conduta e a prática social. É por comportar elementos significativos para a vida social que sua compreensão exige o esforço interpretativo da análise antropológica. Como o aprofundamento dessa questão exigiria um tratamento teórico/metodológico que fugiria aos objetivos do presente relatório, faço aqui apenas uma breve menção ao assunto, atendendo assim a exigência que os próprios kaiowá estabeleceram. O relatório preliminar do antropólogo Carlos Alexandre (Santos, 2001: 44), também aponta aspectos da cosmologia relacionados as ameaças de destruição do mundo. Segundo o autor: 27 Alguns seres originários da mitologia kaiowá fundiram-se com crenças originárias do catolicismo popular, criando pontos de conexão entre os dois sistema de crenças, embora a representação desses seres no pensamento kaiowá apresenta distinções significativas. 92 “Percebemos que na atualidade a representação do paraíso aparece em estreita ligação com a cataclismologia. Formar aldeias nesses lugares „eleitos‟ como é o caso da Terra Indígena Guyraroká, significa estar mais perto do mundo celestial, uma vez que, para muitos, é a partir desses locais que o acesso celestial é facilitado. Uma terra inclui a floresta (ka‟aguy) e todo o ecossistema a ela referido como caça, pesca, água, espaço para cultivo de roças e para educarem suas crianças dentro dos principios culturais Guarani”. Assim, não resta dúvida que para a comunidade de Guyraroká retornar a sua terra original representa a tentativa de reaproximação com as divindades, já que as rezas poderão novamente ser praticas. Representa também a tentativa de recompor relações sociais que se tornaram inviáveis dentro das reservas demarcadas. Antes do desmatamente a Terra Indígena de Guyraroká era farta em recursos e os Kaiowá podiam aí realizar plenamente seu modo de ser. A situação hoje é bastante diversa (e adversa): embora os riachos, as matas ciliares e os pequenos capões de mato preservados como reserva ainda forneçam alguns recursos de caça, pesca e coleta. Fica evidente a necessidade de recomposição ambiental da terra para não provocar a exaustão desses recursos, mas a comunidade está segura de que poderá recompor suas relações de sociabilidade e com o meio ambiente. As áreas necessárias a reprodução física e cultural do grupo indígena e que reúne os locais de moradia, caça, pesca e coleta estão identificadas na análise da imagem de satélite. A proposta de delimitação, que será apresentada no próximo tópico, busca incorporar estes locais dentro do perímetro da terra identificada e delimitada. 93 VI – PARTE VI. 1 - Levantamento fundiário O GT realizou a identificação e censo dos ocupantes não índios, bem como vistoria, análise e descrição das benfeitorias nas propriedades que incidem sobre a terra identificada como de ocupação tradicional pelas parentelas originárias de Guyraroká. Estes dados seguem na forma de anexo. O levantamento da cadeia dominial das propriedades identifica a origem e a qualificação dos títulos de propriedades que incidem sobre a Terra Indígena. Como mencionamos em outras partes do presente relatório, as terras foram tituladas a partir da década de 1940, quando estas voltam ao domínio da União, com o fim dos contratos de arrendamento pela Cia Mate Larangeiras. Os primeiros proprietários adquiriram as terras junto ao Governo do Estado de Mato Grosso através de compra. O Estado titulou as terras para particulares sem antes se certificar da ocupação indígena, o SPI se omitiu no papel de defesa dos direitos indígenas, já que o relatório de um servidor desse órgão, datado de 1927 (anexo 01), atesta a presença indígena em Guyraroká (Ypytan). O Relatório do Levantamento Fundiário será anexado posteriormente (anexo 05), com as informações detalhadas sobre as benfeitorias das propriedades, registradas através do preenchimento de formulários específicos. 94 VII – PARTE - CONCLUSÕES VII. 1 - Conclusões Caminhar pela mata é uma atividade profundamente enraizada na cultura kaiowá. Quando alguém sente necessidade de aguata (literalmente significa caminhar ou passear), simplesmente arranja um pretexto qualquer e sai, sendo logo compreendido pelos companheiros. Isto corresponde a necessidades psíquicas e sociais inerentes ao modo de ser guarani, satisfazer essa necessidade pode ser inclusive uma forma de colocar-se em contato com as divindades. Quando se caminha sozinho surgem condições para que importantes acontecimentos tenham lugar na vida da pessoa. É também um momento de aliviar as tensões sociais, pois escapando por alguns momentos do convívio íntimo com os parentes, a pessoa pode: a) ouvir suas próprias vozes interiores (oñomongeta ojerehe); b) ouvir o que as divindades querem comunicá-las, muitas vezes utilizando de um ser da própria natureza (ohendu); c) refletir sobre sua própria vida, meditar e contemplar (ojapysaka), já que a pessoa pode interromper sua caminhada e sentar-se sob uma sombra e ficar o tempo que julgar necessário absorta em seus próprios pensamentos. Assim, para o Kaiowá, o mato é um lugar povoado de seres espirituais, malfazejos e benfazejos, cuja presença aguça a sensibilidade28. Dispor de uma área de mata é fundamental para o bem estar e para a instabilidade política de uma comunidade kaiowá porque a mata está relacionada à estas características de fundamental importância para a vida social. Alegam que a ausência de mata é um dos empecilhos ao desenvolvimento de uma vida saudável nas reservas demarcadas. O relatório ambiental (em anexo) apresenta uma lista sumária de alguns recursos ainda disponíveis na Terra Indígena Guyraroká que os Kaiowá efetivamente conhecem e deles fazem uso, de acordo com seus saberes tradicionais. O léxico zoobotânico e 28 Acreditam que é principalmente por não saber lidar com estas forças que os brancos detestam tanto o mato e tem tanto ímpeto em derrubá-lo. 95 etnobotânico do grupo menciona um grande número de animais plantas, especificando suas características, propriedades e formas de uso particularidades, práticos e rituais. Esses recursos (plantas nativas e animais) presentes basicamente nas estreitas faixas das matas ciliares e nos pequenos capões de mato deixados como reserva florestal, são necessários a subsistência e a reprodução social do grupo. O relatório também aponta a necessidade de um plano de manejo e recomposição destes recursos, já que sobraram poucas terras que não foram totalmente alteradas pelo desmatamento. Os Kaiowá de Guyraroká evidenciam, em relação a terra que reivindicam, um conhecimento da toponímia que revela uma profunda familiaridade com os locais das antigas roças, residências, cemitérios, itinerários de caça, coleta, pesca e referências míticas. Foi possível identificar também que o conhecimento e nominação do território tem uma relação direta com a histórica dos Kaiowá e suas formas de representação simbólica. Por sua vez, a ocupação do território remete às unidades sociológicas, que se mantêm estruturadas, a despeito das décadas de exílio do território. A distribuição das unidades sociológicas no espaço antes que ocorresse a expulsão da terra pelas frentes de ocupação agropecuária evidencia que a organização social apresenta uma moldura territorial. Este é o motivo pelo qual a saída da terra representou o comprometimento dos mecanismos de reprodução social, pois no período do exílio muitas famílias tiveram sua configuração alterada. O modelo de ocupação da terra que os Kaiowá historicamente desenvolveram em Guyraroká é perfeitamente compatível com as condições ambientais aí presentes antes do desmatamento e com a sua organização social tradicional, constituindo uma evidência concreta de que a comunidade estava fixada nessa região muito antes da ocupação agropecuária. Isto também é referendado pela sedimentação de um corpus de crenças, tradições e relatos míticos que remetem à características e recursos presentes no meio natural, com o qual os Kaiowá demonstram ter uma relação íntima e prolongada. Os dados apresentados e analisados no presente relatório permitem afirmar sem nenhuma dúvida que a região denominada de Guyraroká pelos Kaiowá é território tradicionalmente ocupado por um conjunto de parentelas desse grupo étnico. Esta ocupação é anterior a década de 1940, quando o Governo começou a vender e titular as terras para 96 particulares, portanto, constitui medida justa, legal e legítima a sua identificação, delimitação e posterior demarcação como Terra Indígena. Muitas gerações de Kaiowá aí viveram antes que fossem desalojadas pelas frentes de ocupação para extração de erva mate, criação de gado e prática de agricultura. Tradição oral e documentação escrita são construções sociopolíticas que estão intimamente relacionadas com as necessidades dos agentes históricos e com o ambiente da época em que vivem. Por esse motivo foi necessário realizar a crítica metodológica dessas fontes para identificar a existência de possíveis inconsistências. O enfoque ideológico dos registros documentais sobre a presença kaiowá em Mato Grosso do Sul assume um caráter dramático, como foi suficientemente esclarecido ao longo do relatório. Foi possível demonstrar a existência de um consenso entre agentes da sociedade nacional no sentido construir a invisibilidade das comunidades kaiowá que se encontravam fora das reservas. O consenso tem por objetivo negar a existência das comunidades kaiowá enquanto sujeitos coletivos com vínculos históricos, sociais e cosmológicos com as terras que tradicionalmente ocupavam. Assim, as fontes documentais foram questionadas objetivando esclarecer: a) quem escreveu (quais os agentes históricos envolvidos); b) por que escreveu (a que interesses atendia); e c) a maneira como foram coletados os dados. Igualmente reveladoras são as ausências e os silêncios que se somam a intenção de ocultamento da população indígena. Assim, a tão almejada neutralidade axiológica não é um dado natural do documento escrito, ele também deve passar pelo crivo da crítica metodológica. O mesmo procedimento foi adotado em relação às fontes orais. A comparação das histórias de vida dos informantes Kaiowá revelou uniformidade quanto aos nomes dos locais e de seus antigos moradores, mesmo em se tratando de informantes que residem atualmente distantes entre si e não se visitam há vários anos 29. Estes dados foram checados também através da aplicação de outros procedimentos metodológicos de pesquisa de campo 29 Entrevistei anti gos moradores de Guyraroká que vi vem atualmente nos municípios de Dourados, Caarapó, Amambai, Brasilândia, Cor onel Sapucaia e Vicentina. 97 em antropologia30. O estudo constatou ainda que os Kaiowá em questão são detentores de uma considerável capacidade de memorizar a geografia de seu território, não tendo a mínima dificuldade em identificar os locais que haviam descritos verbalmente antes que visitássemos a terra. Os dados apresentados no presente relatório permitem concluir que Guyraroká se enquadra perfeitamente no conceito de Terra Indígena, segundo o estabelecido na Constituição Federal no parágrafo 1º do artigo 231 onde se afirma que: “São terras tradicionais ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Poderia se objetar que eles estão fora da terra há muitos anos, mas conforme foi amplamente demonstrado, os Kaiowá só deixaram o território devido às pressões que receberam dos colonizadores, principalmente a partir da década de 1940. Também não havia no período instituições às quais pudessem recorrer para assegurar seus direitos, já que havia um consenso na região de que todos os índios deveriam ser transferidos para os postos indígenas, ou seja, para as reservas demarcadas pelo SPI. Os próprios Kaiowá afirmam que antigamente não tinham nenhum direito reconhecido pelas autoridades do Estado e nem havia organizações da sociedade civil às quais pudessem pedir qualquer tipo de apoio. A cobertura vegetal e a fauna sofreram o forte impacto da ocupação agropecuária, mas isto não retira a legitimidade do direito de ocupação de terras pelos índios. Os Kaiowá encaram as alterações no ambiente como “mais um prejuízo” que terão que enfrentar e acreditam que se os brancos forem retirados e eles retornarem para seu antigo lugar “os rezadores (xamãs) vão rezar para o mato crescer e para trazer os bichos de volta”. Ficou evidenciado também que os Kaiowá ocupavam em caráter permanente toda a terra identificada e delimitada no presente relatório, segundo suas formas tradicionais de 30 Utilizei principal mente o método genealógico e o cruzamento com as infor mações etnográfi c as registrada na literatura sobre os Guarani. 98 residência em pequenos grupos locais ou parentelas, distribuídas ao longo de cursos d‟água, onde desenvolviam atividades de subsistência (roça, caça, pesca e coleta) e rituais, de acordo com seus usos e costumes. A análise racional e reflexiva, através da observação controlada dos fatos etnográficos e históricos, tornou possível demostrar que a Terra reivindica é de fato Terra Indígena, e que as pessoas que estão mobilizadas em torno da reivindicação da demarcação, constituem de fato uma comunidade com vínculos históricos reconhecíveis com a mesma. Foi possível demonstrar também, a existência de relações de parentesco e outras formas de sociabilidade que, de um ponto de vista lógico, pressupõem a existência de unidades sociológicas típicas da forma de organização social kaiowá. Assim, é possível concluir favoravelmente ao direito desses Kaiowá reaverem a terra que reivindicam já que constatase: a) a identidade do grupo enquanto comunidade indígena estruturada segundo seus usos e costumes tradicionais; b) a permanência cultural já que os Kaiowá insistem em manter seu modo de ser, e a reivindicação do território cumpre justamente a exigência de reaverem o espaço físico para continuarem realizando suas práticas culturais; c) a presença tradicional da comunidade de Guyraroká na terra em questão, da qual foi expulsa pelos fazendeiros que adquiriram as terras do Estado. VII. 2 – Memorial descritivo de identificação e delimitação O memorial descritivo apresenta a proposta de limites para a Terra Indígena Guyraroká. Cumpri esclarecer que se tornou necessário a definição de limites com linha seca como forma de incluir no perímetro delimitado locais de moradia e outras referências de ocupação tradicional. Isto ocorreu porque os Kaiowá ocupavam as duas margens dos córregos Ypytã e Caracu e seus pequenos afluentes e cabeceiras. A seguir é apresentada a proposta de limites, conforme levantamento topográfico realizada por profissional da área: DENOMINAÇÃO Terra Indígena Guyraroká 99 ALDEIAS INTEGRANTES Obs.: os Kaiowá se encontram fora da terra reivindicada, uma parte vivendo no acampamento ao lado da Terra e outra dispersa por reservas demarcadas, fazendas, periferia de cidades e vilas, conforme descrito em outras partes do relatório. Antes da expulsão as parentelas estavam distribuídas ao longo dos rios Caracu, Ypytã e Lucero, e em suas respectivas cabeceiras, formando o tekoha Guyraroká. GRUPO INDÍGENA Guarani/Kaiowá MUNICÍPIO: Caarapó – MS Núcleo de Apoio de Dourados - FUNAI - MS COORDENADA DOS EXTREMOS EXTREMOS LTITUDE LONGITUDE NORTE 22º28‟41,3” 54º40‟23,6” LESTE 22º34‟27,7” 54º33‟57,7” SUL 22º33‟56,5” 54º37‟33,3” OESTE 22º29‟39,8” 54º40‟48,2” BASE CARTOGRÁFICA NOMECLATURA: MI 2722 / MI 2692 ESCALA: 1:100.000 ORGÃO: DSG ANO: 1972 SUPERFICIE: 11.401 ha aproximadamente. PERÍMETRO: 49.603 Km MEMORIAL DESCRITIVO DESCRIÇÃO DO PERÍMETRO 100 NORTE Partindo do ponto 01 de coordenadas geográficas aproximadas 22º 28’ 41, 3”S e 54º 40’ 23,6” Wgr, localizado na margem direita da estrada que liga à cidade de Juti a Dourados, daí, segue pela citada estrada no sentido Juti até encontrar o ponto 02 de Coordenadas Geográficas aproximadas 22º 29’ 11,1”S e 54º 40’ 26,2’Wgr, localizado no trevo das estradas que liga as cidades Fátima do Sul à Vila Cristalina e Juti `Dourados. Do ponto antes descrito, segue por uma linha reta, até encontrar o ponto 03 de Coordenadas Geográficas aproximadas de 22º 28’ 39,2”S e 54º 38’ 46,3”Wgr, localizado na margem direita do córrego Ipuitá, daí, segue por uma linha reta, até encontrar o ponto 04 de Coordenadas Geográficas aproximadas de 22º 29’ 00,4”S e 54º 33’ 07,5”Wgr, localizado na margem direita da estrada que liga Fátima do Sul à Vila Cristalina na entrada da Fazenda Lago de Outo, daí, segue pela citada estrada, até encontrar o ponto 05 de Coordenadas Geográficas aproximadas de 22º 28’ 18,8”S e 54º 35’15,3” Wgr, localizado na margem esquerda da já citada estrada e entrada da Fazenda Castelo, daí, segue por uma linha reta, até encontrar o ponto 06 de Coordenadas Geográficas aproximadas 22º 28’ 09,5”S e 54º 34’ 35,0” Wgr, localizado na margem esquerda do Córrego Caracu, daí, segue por uma linha reta até encontrar o ponto 07 de Coordenadas Geográficas aproximadas 22º 28’ 36,1”S e 54º 34’ 15,7” Wgr, localizado na margem esquerda da estrada que liga a cidade Fátima do Sul á Vila Cristalina, da, segue por uma lina reta até encontrar o ponto 08 de Coordenadas Geográficas aproximadas 22º 32’ 01,2” S e 54º 34’ 59,1” Wgr, localizado no canto de um capão de mato na Fazenda São João. LESTE Do ponto antes descrito, segue por uma linha reta, até encontrar o ponto 09 de Coordenadas Geográficas aproximadas de 22º 34’ 27,7”S e 54º 33’ 57,7” Wgr, localizado na confluência do Córrego Nanbú com o Ribeirão Caracú, daí, segue por uma linha reta até encontrar o ponto 10 de Coordenadas Geográficas |aproximadas 22º 35’ 26,4”S é 54º 37’ 14,6”Wgr, localizado na margem direita do Córrego Passo Fundo. 101 SUL Do ponto antes descrito segue a jusante o citado córrego, até encontrar o ponto 10A de Coordenadas Geográficas aproximadas 22º 35’ 10,”S é 54º 37’ 30,2” Wgr, localizado na confluência do Córrego Passo Fundo com Ipuitã, daí, segue a jusante o Ipuitã até encontrar o ponto 11 de Coordenadas Geográficas aproximadas 22º 33’ 56,5”S é 54º 37’ 33,3”Wgr, localizado na margem esquerda do citado córrego, daí, segue pela estrada que liga a Fazenda Cabo de Aço à confluência da estrada que liga às cidades Jutí a Dourados, até encontrar o ponto 12 de Coordenadas Geográficas aproximadas de 22º 33’ 05,5”S é 54º 38’ 48,2”Wgr, localizado na curva da citada estrada, daí, continua a estrada até encontrar o ponto 13 de Coordenadas Geográficas aproximadas 22º 34’ 1’3,0”S é 54º 39’ 06,1” Wgr, localizado em outra curva sobre a ponte do Córrego Chaguayay, daí, segue pela a mesma estrada, até encontrar o ponto 14 de Coordenadas Geográficas aproximadas 22º 33’ 44,3”S é 54º 40’ 20,9” Wgr localizado na margem direita da citada estrada ao lado de uma plantação de eucalipto, daí, segue por uma linha reta até encontrar o ponto 15 de Coordenadas Geograficas aproximadas 22º 33’ 33,5”S é 54º 40’ 50,7” Wgr, localizado na margem direita da estrada que liga as cidade de Jutí e Dourados. OESTE Do ponto antes descrito segue pela citada estrada, até encontrar o ponto 16 de Coordenadas Geográficas aproximadas 22” 29’ 39,8”S é 54º 40’ 48,2”Wgr, localizado na margem direita da citada estrada, daí, segue pôr uma linha reta até encontrar o ponto 17 de Coordenadas Geográficas aproximadas 22º 29’16,4’S é 54º 40” 59,4” Wgr, localizado na margem esquerda da estrada que liga a Vila Cristalina à cidade Fátima do Sul, daí, segue em linha reta até encontrar o ponto 01, inicio da presente descrição. Goiânia, 06 de Julho de 2001 Doralício Dornelas da Costa Técnico Em Agrimensura – responsável pelo levantamento topográfico CREA – 8607 Levi Marques Pereira Antropólogo Coordenador do Grupo Técnico Portaria Nº 083/PRES/FUNAI – 31 – 01 – 2001 Três Lagoas, 13 de Março de 2002 102 Glossário Aldeia: se refere a comunidades kaiowá que gozam de autonomia política e religiosa. Tradicionalmente cada aldeia dispunha de um território próprio. Changa: trabalho volante nas fazendas. Guyraroká: literalmente significa o quintal ou terreiro do passarinho, lugar onde havia uma grande concentração de jacu, jaó, jacutinga, macuco, pássaro campana, sabiá, tucano, siriema, ema, guacho, jacuça, mutum, papagaio, arara, periquito, maritaca, uru, curiango (yvy ja‟u), urutau, juriti, pomba, sarakura, nambu (tatá upa), e uma infinidade de outros pássaros. Na vocabulário religioso do xamã, significa o pátio onde se realizam o batismo das crianças e das plantas, considerados seres delicados que requerem cuidados especiais para crescerem bem. Guyra (pássaro) é uma metáfora para dizer criança. Ka’aguy Pore: literalmente, aquele que tem o controle sobre o mato. Ser mítico que controla os animais que vivem mata no ambiente seco, fora da água. Pode ser maléfico ou benfazejo com os humanos, dependendo do tipo de relação que com eles se estabeleça. Kaja’a: conjunto de divindades que formam populações semelhante a humana (kaiowá), vivem submersas na água, emergindo só nos horários de sol mais quente (meio dia), e por poucos instantes. Estas divindades detêm o controle sobre os animais aquáticos e aqueles que passam a maior parte do tempo na beira d‟água. É o “dono” desse tipo de caça, e pode ser perigoso para os humanos não iniciados no xamanismo. Parentela: designa o grupo familiar extenso, composto por vários fogos domésticos. É formado por parentes cognáticos e aliados reunidos em torno de um líder de expressão. Constitui um grupo local de residência e de atuação política. Reserva: o termo é utilizado exclusivamente para designar as terras demarcadas pelo SPI entre as décadas de 1920-30. Isto porque esses espaços acabam se transformando em lugares para os quais serão deslocadas as populações das aldeias cujas terras não foram nem identificadas, nem reconhecidas como terras indígenas. 103 Sociedade nacional: o termo implica na sociedade inclusiva, que a partir do Estado, incorpora as funções de controle e administração sobre todas as populações que vivem no interior do território sob sua jurisdição, independente de suas diferenças étnicas, históricas ou culturais. No caso da sociedade Kaiowá em questão, a sociedade nacional se faz sentir a partir do momento em que a região passa a ser incorpora política e economicamente, através das frentes de expansão colonizadoras. O contato da população kaiowá com as frentes de expansão da sociedade nacional é marcado pela assimetria e confronto de interesses. Tekoha: conjunto de parentelas relacionadas por laços de parentesco, aliança política e/ou religiosa, que configura uma população com forte identidade e sentimento de exclusividade enquanto grupo social. Normalmente os estudiosos dos Guarani traduzem como comunidade. A população de um tekoha tem forte sentimento de identificação com o território que ocupa, cuja toponímia e outras características físicas do ambiente se inserem como referencias para a constituição da memória histórica do grupo. Tekoha Guasu: ocorre quando as lideranças políticas e principalmente religiosas de um determinado tekoha estende seu prestígio e influência por uma região mais ampla do que aquela normalmente ocupada por um tekoha. Este era o caso de Guyraroká antes da expulsão da comunidade do território. Xamã: em português os Kaiowá denominam seus xamãs de cacique ou rezador, na língua nativa existe uma série de termos que possibilitam especificar a especialidade do xamã e sua identificação dentro de uma hierarquia que os diferencia segundo o tipo de relacionamento que desenvolvem com o mundo sobrenatural. Ytu: y (água), tu (canto ou grito). Literalmente água que canta ou cachoeira. É uma referência mítica importante para os Kaiowá do local. Ypytã: y (água), pytã (vermelho), portanto água vermelha. Nome do riacho principal que corta a terra indígena Guyraroká. Os Kaiowá afirmam que os antepassados diziam que antigamente a água desse riacho tinha uma coloração avermelhada. O motivo provável seria a grande erosão que existe numa de suas cabeceiras (Tapytã), que antes de estabilizar-se, provavelmente deveria despejar no curso do riacho um suprimento constante de sedimentos. Era também o nome do tekoha Guyraroká utilizado pelos Kaiowá na relação 104 com os brancos (por esse motivo o termo aparece nos relatórios), já que Guyraroká é um termo do vocabulário religioso, na época restrito ao uso interno do grupo. 105 Bibliografia ARRUDA, Gilmar. Heródoto. 1986. In: Ciclo da erva-mate em Mato Grosso do Sul 18831947. Campo Grande: Inst. Euvaldo Lodi, p.195-310 (Série Histórica. Coletânea). BARBOSA, Cerenio Pimentel. Relatório apresentado pelo auxiliar Cerenio Pimentel Barbosa ao Sr. Dr. Antônio Martins Vianna Estigarribia, Inspetor do Serviço de Proteção aos Índios do Estado de Matto-Grosso, sobre serviços procedidos em anno de 1927. BRAND, A. J. 1993. O confinamento e seu impacto so bre os Paì-Kaiowá. Porto Alegre.Dissertação (mestrado) Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre. BRAND, A. J. 1997. O impacto da perda da terra sobre a tradição kaiowá/guarani: os difícies caminhos da palavra. Porto Alegre.Tese (doutorado em Histó ria) - PUC/RS. 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