RELATÓRIO CIRCUNSTANCIADO DE IDENTIFICAÇÃO E DELIMITAÇÃO DA
TERRA INDÍGENA GUARANI-KAIOWÁ GUYRAROKÁ
Levi Marques Pereira
Antropólogo Coordenador do Grupo Técnico
Portaria Nº 083/PRES/FUNAI – 31 – 01 – 2001
Três Lagoas, 13 de Março de 2002
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Índice
Agradecimentos
Introdução
Procedimentos metodológicos adotados na pesquisa
I – PARTE
I. 1 – Informações gerais sobre os Kaiowá
I. 2 – Histórico
I. 3 – A atuação do SPI e FUNAI
I. 4 – A expulsão dos Kaiowá de Guyraroká: doenças, violência física e simbólica
I. 5 – A situação atual
I. 6 - Tentativas recentes de reocupação
II - PARTE
II. 1 - Habitação permanente
II. 2 – Localização na imagem de satélite das principais referências de ocupação
tradicional
II. 2.1 - Demografia
II. 2. 2 - Censo da população de Guyraroká
II. 3 - O eixo das águas
II. 4 - Localização atual da população originária de Guyraroká
II. 4. 1 - O acampamento
II. 4. 2 - Famílias originárias do Guyraroká que estão fora do acampamento
II. 4. 3 – Famílias que vivem na reserva de Dourados
II. 4. 4 - Famílias que vivem em Três Irmãs
II. 4. 5 - Famílias que vivem a reserva de Limão Verde
II. 4. 6 - Famílias que vivem na reserva de Caarapó
II. 4. 7 - Famílias que vivem na reserva de Taquapery
III - PARTE - Atividades produtivas
III. 1 – descrição da atividades produtivas e formas de manejo do meio ambiente
III. 1. 1 - mudanças ocorridas na economia a partir do contato
III. 1. 2 - relações sócio-econômico-culturais com outros grupos indígenas e com a
sociedade envolvente
IV - PARTE - Meio Ambiente
IV. 1 - descrição das áreas imprescindíveis à preservação dos recursos necessários
ao bem estar econômico e cultural do grupo indígena
IV. 2 - explicações das razões pelas Quais tais áreas são imprescindíveis e
necessárias
V - PARTE
V. 1 - Reprodução física e cultural
V. 2 - O efeito desestruturador da perda da Terra sobre a população de Guyraroká
V. 3 - Referencias mitológicas dentro do perímetro da Terra identificada
V. 4 - Religião e território
V. 5 - Brancos e índios
V. 6 - A ameaça de destruição do mundo
VI – PARTE
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VI. 1 - Levantamento fundiário
VII – PARTE - Conclusões
VII. 1 - Conclusões
VII. 2 – Memorial descritivo
Glossário
Bibliografia
Anexo 01 – Fontes documentais que fazem referência a antiga ocupação da Terra
Indígena Ypytã/Guyraroká pelos Kaiowá
Anexo 02 – Diagramas de parentesco e dados demográficos complementares
Anexo 03 – Documentos e reportagens que versam sobre as tentativas recentes dos
Kaiowá de reocuparem a terra
Anexo 04 – Relatório ambiental
Anexo 05 – Relatório fundiário e patrimonial
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Agradecimentos
Agradeço ao Centro de Documentação do Programa Guarani (Kaiowá/Ñandeva)
da Universidade Católica Dom Bosco, ao Centro de Trabalho Indigenista e ao Conselho
Indigenista Missionário, por terem franqueado seus arquivos para a realização da pesquisa
documental. Isto tornou o trabalho mais ágil, permitindo encontrar os documentos em
arquivos organizados, o que facilitou o acesso às informações de que necessitava. Se não
fosse a colaboração dessas organizações da sociedade civil, com certeza a pesquisa
documental levaria meses e seria menos completa.
No Núcleo de Apoio Local da FUNAI em Dourados, o GT contou com a
prestimosa colaboração da funcionária Maria Telma Alencar Ohira, sempre solícita na
resolução dos encaminhamentos práticos, o que facilitou em muito nosso trabalho.
Os técnicos do GT, que constam na Portaria, demonstraram profissionalismo,
dedicação e companheirismo, o que muito contribuiu para o bom andamento dos trabalhos.
A colaboração do INCRA de Dourados foi imensamente importante, forneceu as
imagens de satélite. Da mesma forma, o IDATERRA-MS forneceu documentos sobre a
cadeia dominial, além de ceder um técnico para compor o GT.
De muita utilidade foi o relatório preliminar do antropólogo Carlos Alexandre B.
P. dos Santos, pois grande parte dos dados foram incorporados ao presente relatório.
Finalmente, a participação indígena foi fundamental para a realização do trabalho,
especialmente dos xamãs Papito, Jorge Paulo, Carmem, Teresa e Miguela. Ambrósio, o
líder político, foi fundamental para esclarecer os acontecimentos mais recentes, além de
servir de companhia na localização das pessoas originárias de Guyraroká que vivem fora do
acampamento, como ainda a colaboração de sua esposa e filhas prepararam com carinho
nossas refeições.
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Introdução
O presente relatório atende às exigências da Portaria do Presidente da FUNAI, n.º
083/2001, que instituiu o GT para Identificar e Delimitar a Terra Indígena Guyraroká,
situada no município de Caarapó–MS. Além do relatório antropológico, foram elaborados
também os relatórios ambiental, fundiário, cartorial e das benfeitorias, que seguem na
forma de anexos, cumprindo assim as determinações da mesma Portaria. O trabalho do GT
começou no dia 09/02/2001. Cheguei em Dourados sozinho (a bióloga responsável pelo
relatório ambiental iniciou seu trabalho no dia 11/02/2001), procurei o Núcleo de Apoio
Local de Dourados da FUNAI. Lá encontrei-me com o administrador, Sr. Jonas
Nascimento, para discutir os procedimentos relativos ao trabalho que se iniciava. Fizemos
uma reunião da qual participou também o administrador da regional da FUNAI em
Amambai, Sr. Pedro Franco e o ex-administrador do Núcleo de Apoio Local Dourados, Sr.
Wilson de Matos. Esses funcionários da FUNAI expuseram as dificuldades que o GT
provavelmente teria na realização dos trabalhos de identificação, devido ao clima tenso que
caracterizava a disputa pela posse da terra entre Kaiowá e fazendeiros. Estas dificuldades
não se confirmaram no caso de Terra Indígena Guyraroká, onde de um modo geral,
pudemos contar com a compreensão e apoio dos proprietários, principalmente do Sr. José
Teixeira, que também exerce o cargo de deputado estadual e é importante liderança política
na região.
Com o objetivo de levantar dados sobre a terra a ser identificada, conversei com
antropólogos,
historiadores,
representantes
de
organizações
não-governamentais,
universidades, INCRA, delegados de polícia, funcionários da FUNAI, moradores regionais
etc., que forneceram informações sobre a população da Terra Indígena Guyraroká. Além
das informações transmitidas oralmente, em alguns locais foi possível encontrar
documentos importantes que ajudaram a construir a história da população em questão.
Guyraroká é o nome religioso como os Kaiowá denominam o local e, Ypytã é o
nome do córrego que corta o interior do Terra Indígena. É este último termo que aparece
nos documentos que fazem referência ao local, pois a primeira denominação era restrita ao
uso interno da comunidade. Os anexos 01 e 02 são de leitura obrigatória para a
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compreensão do presente relatório: no anexo 01, discute-se os documentos escritos que
fazem referência direta à Terra Indígena Guyraroká, enquanto local de ocupação indígena
tradicional; no anexo 02, discute-se alguns diagramas de parentesco e trazem informações
fundamentais sobre o impacto da perda da terra sobre a estrutura social da comunidade.
Na redação do laudo antropológico, procuro adotar um "estilo" direto e claro, já
que trata-se de um documento com finalidades administrativas; ao mesmo tempo, primo
pelo cuidado na aplicação dos conceitos e pela coerência teórica, de forma a cumprir as
exigências técnicas e científicas que caracterizam o estudo antropológico. No final do texto
é apresentado um glossário com os principais expressões em guarani e termos técnicos ou
regionais, a finalidade é facilitar a leitura, considerando que o texto se dirige a um público
nem sempre familiarizado com a etnografia da região. Fica fora do glossário os termos que
são suficientemente explicados no próprio corpo do texto.
A Terra Identificada e Delimitada localiza-se nas bacias dos Córregos Ypytã e
Caracu, abrangendo parte do curso de riachos secundários, ou cabeceiras, formadores
desses córregos, como o Ypo‟i (água estreita), o Chagua Yry (riacho da pitanga, por causa
da grande concentração dessa planta em suas margens) e o Lucero.
Procedimentos metodológicos adotados na pesquisa
A aplicação de uma série de procedimentos de pesquisa antropológica permite que
as informações oriundas de fontes orais e escritas sejam apresentadas e analisadas. A
pesquisa combina: a) pesquisa de campo junto aos Kaiowá e outros informantes; b)
pesquisa documental junto aos arquivos, imprensa e processos administrativos e judiciais; e
c) pesquisa bibliográfica. As informações compõem um quadro analítico e interpretativo
reunindo os elementos que permitem atestar em que medida a localidade denominada de
Guyraroká constitui-se como terra de ocupação tradicional dos Kaiowá que vem tentando
reocupá-la a partir do início de 2000. Para isto, considerando que o grupo está fora do
território nas duas últimas décadas, realizo na II parte do relatório a reconstituição histórica
da ocupação indígena do território antes da expulsão da comunidade. Como será
demonstrado adiante, a história da ocupação indígena de Guyraroká é caracterizada por
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eventos que marcam a presença da sociedade kaiowá e sua interferência no espaço por um
período que antecede em muitas décadas a entrada das frentes colonizadoras na região.
A identificação da série de eventos econômicos, políticos e rituais que marcam a
existência das unidades sociológicas e dos grupos de residência, fornece um caminho
seguro para o entendimento da forma como o tempo se espacializa, ou seja, permite
identificar a trajetória da sociedade no espaço por ela ocupado. Assim, a compreensão das
estruturas que conformam a organização social são imprescindíveis para o entendimento da
ocupação do território, pois estas são esferas da realidade social intrinsecamente
relacionadas e conferem inteligibilidade mútua.
O presente relatório é orientado por um conjunto de procedimentos metodológicos
que permitem demonstrar a maneira como as categorias de pensamento relativas ao espaço
e tempo estão articuladas entre si de forma a compor um modelo que orienta a prática
social. Assim, é possível deixar claro que, em última instância, é justamente essa
articulação que fornece a compreensão do modelo de ocupação tradicional. Adiante essas
formulações serão explicitadas a partir de exemplos concretos.
Este procedimento busca demonstrar como a forma de ocupação reflete o modelo
de organização social típico dessa sociedade, o que permite identificar a relação entre essa
comunidade específica e o território que reivindica. É preciso lembrar que a sociedade
kaiowá é ágrafa, e que portanto, ela não dispõe registros escritos sobre si mesma. A
ausência de narrativas escritas implica que a reconstituição histórica deve ser buscada
através da aplicação de uma série de procedimentos retirados do instrumental teórico/
metodológico da antropologia e da etnohistória, como recursos que permitem um
tratamento científico das narrativas orais para reconstituir a trajetória histórica do grupo.
A coleta, registro, comparação e ordenação das histórias de vida das pessoas mais
velhas da comunidade faz emergir uma história coletiva, baseada na experiência de
participação conjunta em eventos passados que marcaram profundamente a história local,
evidenciando as conexões que juntam as trajetórias individuais em um destino comum.
Assim, a partir das sagas individuais, é possível dizer algo a respeito de tempo biográfico,
de onde surgem as relações sócio-estruturais que caracterizam o tempo histórico da
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sociedade. Os significados atribuídos aos eventos, apresentam-se ancorados na experiência
cultural comum, o que permite ordená-los em uma mesma cadeia semântica.
A história de vida de vários indivíduos de uma mesma faixa etária, no caso as
pessoas com mais de 60 anos, na maioria das vezes ligados por relações de parentesco,
permite reconstituir o ambiente social da época. Concatenados no tempo os eventos
mostram a estrutura social em operação. Aparece em várias partes do relatório evidências
de que os eventos mais marcantes e também os mais traumáticos são aqueles relacionados à
experiência de contato com a sociedade nacional envolvente, que na perspectiva indígena é
considerada invasora e dominadora. Assim, a análise das histórias de vida permite discernir
os fenômenos recorrentes e gerais, daqueles que se referem a idiossincrasia individual de
forma a tornar possível apreender a memória coletiva dos Kaiowá de Guyraroká.
É fato amplamente documentado nas ciências humanas desde Durkheim ([1912]
1988) que os ajuntamentos coletivos produzem fenômenos sui generis, de natureza
diferente dos fenômenos individuais. A reunião de vários informantes para debater um tema
específico, no caso a história de ocupação da terra que reivindicam, gerou uma profunda
discussão cujos resultados parece ter surpreendido os próprios participantes. Os
ajuntamentos de pessoas em torno de um objetivo específico, acaba gerando uma situação,
em certa medida, autônoma em relação às vontades individuais1. As entrevistas coletivas
funcionaram como suporte da memória coletiva, que junta fragmentos de lembranças
individuais e reconstitui o processo da história vivida que não é lembrada integralmente por
nenhum dos participantes devido ao processo seletivo da memória que sofre interferências
das idiossincrasias individuais, ou aos traumas resultados das pressões e mortes no
momento em que foram expulsos da terra.
Paraíso (1994: 50) em Reflexões Sobre Fontes Orais e Escritas na Elaboração de
Laudos Periciais afirma que “a desesperança numa solução é uma das causas principais do
desestímulo em relembrar as antigas aldeias e sua localização, assim como a história do
contato e suas malezas”. Assim, o momento de falar sobre os acontecimentos vividos
transforma-se, para a sociedade, em uma espécie de acerto de contas com o passado e com
1
Thonson (1990) discute em profundidade as características e implicações metodológicas da
entrevista coletiva.
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a própria história, um momento de elaboração das experiências passadas, compreensão da
situação presente e projeção do futuro.
O levantamento e análise das genealogias de parentesco, segundo os parâmetros
consagrados pela antropologia contemporânea, demonstra ser instrumento chave para a
compreensão das relações sociais entre os Kaiowá (Pereira, 1999). Como recurso
metodológico, permitiu construir uma rede de informantes constituída pelos antigos
moradores de Guyraroká, relacionados entre si por laços de parentesco próximo, mas que
em certos casos faziam muitos anos que não se encontravam devido a dispersão que
sofreram com a saída das famílias da terra que ocupavam. Esses reencontros e redescoberta
dos parentes, proporcionado pela mobilização em torno do estudo de identificação da terra,
reacendeu em muitos deles o desejo de novamente viverem juntos. As genealogias
expressam também a continuidade histórica entre esses antigos moradores e seus atuais
descendentes, que estão mobilizados em termos da reivindicação da terra. Os vínculos de
parentesco estão sendo relembrados e reatualizados. Através das genealogias foi possível
também traçar uma cadeia de informantes baseada em critérios como faixa etária, grau de
parentesco, vizinhança, alianças políticas e religiosas.
A descrição da toponímia kaiowá, por um lado, tornou possível identificar o
conhecimento e controle que exerciam sobre o território e, por outro, forneceu elementos
para a identificação da maneira como os nomes na língua indígena estavam relacionados
com eventos que dizem respeito a história de ocupação.
O recurso à memória coletiva, no caso das sociedades ágrafas, aciona espaços
cognitivos ausentes nas sociedades que pensam sua existência no tempo a partir do registro
escrito. A forma de pensar-se no tempo é tão distinta daquela que estamos acostumados.
Situada dentro da vertente de pensamento ocidental, de nossa ótica, temos dificuldade de
conceber historicidades que não recorram à escrita. A própria noção de sociedades ágrafas,
como signo de uma ausência2, que gozou de grande aceitação na produção historiográfica
2
A tentativa de definir as sociedades indígenas pelo que nelas estaria ausente é tão antiga quanto o
exercício de elaborar uma compreensão sobre elas. Já os primeiros cronistas que aportaram em
nossas praias afirmaram que seriam sociedades “sem fé, sem lei e sem rei”. Posteriormente, foram
também definidas como sociedades sem Estado, economia, escrita e história. Uma critica
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durante muitas décadas é colocada em questão por estudos de historiadores que incorporam
contribuições mais recentes da lingüística, filosofia da linguagem e antropologia.
A reconstituição da memória coletiva dos Kaiowá de Guyraroká, composta a partir
dos traços comuns presente nas memórias individuais, demonstrou ser um procedimento
fundamental na compreensão dos vínculos existentes entre essa sociedade e a terra que
reivindicam. Assim, a composição da história dos Kaiowá do local incorpora os resultados
de um intenso e profundo debate entre historiadores e antropólogos, cujos principais
marcos teóricos podem ser encontrados nos trabalhos de Vansina (1966), Sahlins (1985),
Rosaldo (1980) e Thonson (1992). Dessa forma, o tratamento metodológico adotado no
presente relatório permite escapar das armadilhas representadas pelas perguntas
condicionadoras que muitas vezes dificultam a coleta de dados fidedignos, principalmente
quando o pesquisador realiza seu estudo em um meio social distinto do seu. Permite
também, superar a fragmentação das informações que surgem nos relatos individuais.
A violência física imposta aos Kaiowá de Guyraroká3, no processo de expulsão
das terras que tradicionalmente ocupavam, foi acompanhada por formas de violência
simbólica. A sociedade nacional impôs um completo ocultamento da sociedade indígena
em sua alteridade, para assim negar-lhe o estatuto de comunidade organizada a partir de
suas formas próprias de sociabilidade e com vínculos históricos com determinados
territórios. A partir do momento em que as terras foram ocupadas pelos colonizadores, as
comunidades guarani passam a ser tratadas apenas como “um bando de índios” que estão
no lugar inadequado, e que por isso, devem ser deslocados para o interior das reservas,
idealizadas justamente para receber essa população dispersa pelo território que deveria dar
lugar a pastagens e agricultura. Construi-se, assim, um "ideário", compartilhado por
fazendeiros, funcionários do governo e pelo próprio SPI, onde se entendia que “lugar de
contundente sobre a impropriedade dessas formas de classificações é formulada pelo antropólogo
francês Pierre Clastres em “A Sociedade contra o Estado”.
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O que se afirma aqui é válido para quase todas as comunidades Guarani de Mato Grosso do Sul
que não tiveram suas terras reconhecidas pelo SPI, nas demarcações ocorridas entre as décadas de
1910-20.
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índio é na reserva”, todos os que não residiam em reservas estavam ilegais e deveriam à
elas se recolher.
Adiante desenvolvo o argumento de que a existência desse consenso entre os
principais agentes históricos da sociedade nacional que então se estabelecia na região, é o
fato que explica a quase inexistência de documentos que versam sobre as expulsões e
violência sofridas pelos Kaiowá nesse período. Nada de extraordinário acontecia quando
ocorria a expulsão de índios de uma localidade na qual sempre viveram e era feito seu
recolhimento forçado em uma das reservas demarcadas pelo SPI. Era acontecimento
comum que não merecia o desprendimento da atenção e esforço de um Delegado de
Polícia, ou até mesmo de um funcionário do SPI, para redigir um relatório descrevendo o
acontecido.
Quando alguém adquiria uma terra e descobria que ela era habitada por índios,
simplesmente reunia alguns homens armados e os expulsava, ou, quando era mais correto
para o padrão moral da época, comunicava ao Chefe do Posto do SPI da reserva mais
próxima, que ele mesmo trataria da transferência dos índios para a reserva. Nesse sentido, o
caso de Taquara é paradigmático: ali o Chefe de Posto da reserva Caarapó fez um acordo
com o fazendeiro onde ele indenizava os Kaiowá pelo prejuízo do abandono das roças com
o deslocamento para a reserva. Tal procedimento deveria parecer tão correto e justo para o
padrão da época (e por isso extraordinário), que o Chefe de Posto elaborou um documento
com o nome dos moradores e os valores que cada um recebeu pela indenização das perdas.
Esta forma de relação entre os agentes da sociedade nacional e a sociedade indígena,
configura uma situação onde se constrói a invisibilidade das comunidades indígenas que
estavam fora das reservas. Estes “índios de fazendas” como comumente passam a ser
denominados na região, são vistos com certa ambigüidade: por um lado constituem a
principal força de trabalho para realizar a derrubada de mato e o plantio de pastagens ou a
formação de agricultura, por outro lado, poderiam se tornar um problema se eles insistissem
em continuar na propriedade assim que sua mão de obra se tornasse dispensável.
Argumento, a partir dos dados expostos até aqui e daqueles que serão
acrescentados ao longo do relatório, que a inexistência de documentos escritos que atestam
a presença indígena em determinado território, não é, no caso dos Kaiowá de Mato Grosso
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do Sul, fato suficiente para assegurar que o local não é de ocupação indígena tradicional.
Daí a necessidade de utilizar outros procedimentos metodológicos. No caso de Guyraroká
foi possível encontrar dois documentos (veja anexo 01) que registram a presença indígena
na terra reivindicada, mas caso essa documentação não tivesse sido encontrada, as
informações coletadas através do conjunto de procedimentos metodológicos aqui adotado,
já seriam suficientes para propor a delimitação e demarcação da terra.
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I - PARTE
I. 1 Informações gerais sobre os Kaiowá
Os Kaiowá são um povo do tronco Tupi, da família lingüística Tupi-Guarani, que
no Brasil engloba os Kaiowá, os Ñandeva e os Mby‟a. A literatura costuma designar estes
três subgrupos como Guarani. Apresentam grandes similaridades do ponto de vista
lingüístico, da organização social e do sistema religioso. Os Kaiowá ocupam, atualmente,
pequenas aldeias situadas em uma faixa de terra de cerca de 150 quilômetros de cada lado
da região de fronteira do Brasil com o Paraguai, onde são denominados Pãi Tavyterã. Para
os Kaiowá a faixa de terra acima descrita compõe o território historicamente ocupado pelo
grupo e é por eles denominado de tetã, que pode ser traduzido como país ou pátria.
Tradicionalmente são agricultores de floresta tropical, praticando a caça como principal
fonte de proteína, e a pesca e a coleta como atividades subsidiárias. Segundo Brand (1997:
01), a população guarani (Kaiowá e Ñandeva) em MS “está distribuída em 22 terras
indígenas e é estimada em 25 mil pessoas”.
A bibliografia guarani, tanto histórica como atual, é vasta e cobre um longo
período que vai desde os primeiros momentos da colonização até a atualidade. Pesquisas
arqueológicas, como, por exemplo, a de Brochado (1982) e a de Noeli (1993), trazem
informações detalhadas sobre a maneira como os Guarani do passado relacionavam-se com
o meio ambiente e atestam a presença dessa população no território que eles identificam
como pertencente aos seus antepassados. Sobre o quadro atual, destacam-se os estudos de
Meliá, Cadogan, Nimuendaju, Susnik, Schaden, e as dissertações e teses de Tomáz de
Almeida (1991), Brand (1993 e 1997) e Pereira (1999).
A ocupação do território se dá com base em unidades sociológicas típicas da
organização social. Assim, para a compreensão da distribuição espacial, é importante
considerar a forma de estruturação dessas unidades, que apresentam distintos graus de
amplitude (número de pessoas) e de solidariedade interna. As formas de composição dessas
unidades e as relações que estabelecem entre si, articulam as noções de tempo e espaço
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social próprias aos Kaiowá, tal como desenvolvo extensamente em outro lugar (Pereira,
1999). Como recurso metodológico inicio a descrição pelas unidades de menor
abrangência, passando para as categorias mais gerais, dentro de um modelo que poderia ser
identificado como concêntrico, onde algumas categorias são englobadas por outras de
maior amplitude.
Che ypyky kuera4 é como o Kaiowá se refere ao grupo de parentes próximos,
reunidos em torno de um fogo doméstico, onde são preparadas as refeições consumidas
pelos integrantes do fogo. Numa primeira acepção, ypy significa “proximidade”, “estar ao
lado”, ressaltando o fato da convivência íntima e continuada. O termo pode significar ainda
“princípio” ou “origem”. Assim, a expressão che ypyky kuera retém os dois sentidos do
termo ypy, referindo-se aos ascendentes diretos, com os quais se compartilham os
alimentos, a residência e os afazeres do dia-a-dia; enfim, denota proximidade, intimidade e
fraternidade, ponto focal da descendência e da ascendência. O fogo doméstico constitui-se
como unidade sociológica no interior do grupo familiar extenso ou parentela, composto por
vários fogos, interligados por relações de consangüinidade, afinidade ou aliança política. O
pertencimento a um fogo é pré-condição para a existência humana na sociedade kaiowá. O
fogo prepara os alimentos, protege contra o frio e, em torno dele, as pessoas reúnem-se para
tomar mate ao amanhecer e ao anoitecer. Para o Kaiowá, é impensável a condição de saúde
física e estabilidade emocional fora da sociabilidade livre e descontraída que ocorre no
círculo de parentes próximos.
O núcleo central de um fogo doméstico é o casal em torno do qual se reúnem os
filhos e agregados. Portanto, o fato fundador de um fogo é uma relação de conjugalidade,
da qual depende sua existência: a separação do casal implica a dissolução do fogo e a
dispersão de seus integrantes por outros fogos relacionados. O fogo doméstico, visto a
partir da ótica de seus integrantes, é um espaço de conjunção, entretanto, se considerarmos
a relação entre os fogos, ele é um espaço de disjunção, pois o ingresso do forasteiro é
sempre marcado por sentimentos de receio, constrangimento e vergonha –atim.
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A língua kaiowá obriga a colocar um pronome como che (meu, minha) ou nde (teu, tua) antes da
expressão, quando se quer referir-se ao fogo doméstico, pois, sem o pronome, a expressão significa
antepassados. Uma tradução aproximada de che ypyky kuera seria “meus descendentes diretos”.
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A relação entre pessoas que não convivem no mesmo fogo caracteriza-se pelo
comedimento e por um protocolo que evita que se penetre em espaços ou assuntos que se
julguem relacionados à intimidade do outro. Olhar nos olhos entre homens pode significar
sinal de hostilidade e entre homem e mulher pode expressar desejo, motivo por que este
tipo de olhar deve ser evitado. Os integrantes do fogo doméstico (homem, mulher e
crianças) desenvolvem uma série de atividades complementares necessárias à vida
cotidiana, de acordo com a divisão do trabalho por sexo e faixa etária. Esta unidade
sociológica goza de grande liberdade para se deslocar de uma parentela à outra, desde que
possa atualizar relações de parentesco baseadas na consangüinidade e na afinidade, dessa
maneira, é comum que ao longo da história de vida de uma pessoa, ela faça parte de
distintas parentelas, o que implica também em mudança do local de residência.
É comum que os membros de um fogo doméstico dirijam-se para a floresta em
uma expedição de caça ou coleta de um ou dois dias de duração. Esses momentos cumprem
funções de importância crucial para o equilíbrio psíquico das pessoas que compõem uma
comunidade kaiowá, pois: a) é um momento de grande intimidade; b) podem saciar desejo
de comer carne, mel e outros produtos sem as obrigações de repartir tais produtos com uma
quantidade maior de pessoas como sempre acontece quando estão no convívio mais amplo
dos parentes e aliados; c) é uma ocasião propícia para a troca de conhecimentos entre o
casal e de transmissão desses conhecimentos para os membros mais jovens do fogo. Os
Kaiowá de Guyraroká que vivem confinados nas reservas demarcadas, na periferia de
pequenas vilas, e os que vivem no acampamento, reclamaram do tédio dos dias
intermináveis, e da impossibilidade de deslocamento no território; d) existe um grande
quantidade de ensinamentos secretos que não podem ser socializados para todos os
membros da comunidade. Essas ocasiões são propícias para que os pais identificam entre os
filhos aqueles que demonstram maior capacidade para assimilar e lidar com o saber mais
sofisticado, a transmissão é sempre seguida da recomendação de que não se repasse essas
informações a qualquer pessoa, principalmente “brancos”, que são classificados como
inimigos por excelência.
A despeito dos problemas atuais colocados pela situação do contato, os Kaiowá
seguem morando em fogos, sempre controlados por mulheres, o que lhes assegura o poder
de unir e alimentar seus integrantes. Sem mulher não há fogo, reconhecem os Kaiowá.
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Assim, ele está associado a uma horizontalidade sociológica que, em cada momento,
institui e organiza a vida social das pessoas, impondo ritmo e sentido à vida cotidiana.
Remete também aos princípios cosmológicos e aos princípios fundadores da sociedade
humana, que se espelha na conduta dos deuses que vivem junto com suas esposas ao redor
de seus fogos. É nessas pequenas unidades sociológicas onde a prática das atividades
produtivas, como agricultura, caça e coleta, atinge também um grau satisfatório de
convivência com o meio ambiente. Além disso, possibilita um padrão de exploração
considerado ideal pelo grupo, por ser pautado no modelo instituído socialmente e
ecologicamente viável dentro do padrão tradicional de ocupação do espaço.
Che ñemoñá, che jehuvy ou che re'yi kuera é como um determinado ego denomina
sua parentela, ou grupo familiar extenso5. Os Kaiowá utilizam alternativamente qualquer
uma das três expressões. Em conjunto, elas expressam aspectos de uma mesma instituição:
che ñemoñá expressa o fato natural da consangüinidade (fecundidade, procriação,
descendência), podendo, em certos contextos, ser entendida como fogo doméstico; che
jehuvy expressa a idéia da convivência e auto-ajuda (jehu=ajuda), ressaltando os laços de
solidariedade presentes no interior dessa instituição; che re'yi kuera, além da parentela
bilateral, designa também a autodenominação Kaiowá, o que demonstra que a parentela
constitui-se como um núcleo de identidade social. Che re’yi remete à idéia de
companheirismo e compromisso no trato das questões consideradas de interesse coletivo da
parentela -te’yi. Por cobrir um leque semântico mais amplo, a expressão te'yi (forma não
flexionada de re'yi) é mais freqüentemente utilizada como categoria nativa de grupo
familiar extenso, ou família extensa6.
Os Kaiowá definem como hi’u ou Tamõi o homem de idade avançada, com muitos
filhos e netos, que assume a responsabilidade de organizar a parentela. Dizem que ele é o
5
Na literatura antropológica, instituições semelhantes ao te’yi são descritas como a extended family
(formada a partir de kinship and alliance), o kinship group, a extended consanguine family e o
grupo doméstico (household ou domestic group). Utilizo “parentela” para facilitar a leitura,
entretanto é importante delimitar as características desta instituição dentro do sistema social kaiowá.
6
Watson (1952), Schaden (1974) e Brand (1993, 1997) utilizam o termo “família extensa” para o
que denomino “parentela”.
16
“tronco”, ou o “esteio da casa”, “é nele que nos encostamos”, afirmam. Dessa forma, ele se
constitui no elemento integrador da parentela, sendo que a ocorrência de sua morte implica
na escolha de um novo líder, ou na divisão da parentela, caso o cargo seja reivindicado por
líderes rivais emergentes. É em torno do cabeça de parentela –hi’u, que os vários fogos que
compõem uma parentela desenvolvem a maior parte de sua existência coletiva. As
parentelas que residiam em determinada região estabelecem entre si relações de
proximidade baseadas em trocas matrimoniais, visitas e participação conjunta em festas e
cerimoniais religiosos, constituindo unidades sociológicas mais amplas. As principais
atribuições de um cabeça de parentela são a escolha do local das roças e de construção das
casas. Antigamente, quando toda a parentela vivia na casa grande –ogapysy, era ele quem
decidia o momento de construção de uma nova casa e coordenava os trabalhos. Hoje,
mesmo com a alteração do padrão de residência devido as interferências do contato, o
cabeça de parentela mantém basicamente as mesmas funções, sendo respeitado e sempre
consultado pelos fogos que compõem uma parentela. Estes residem sempre próximos uns
dos outros, só que no momento atual ocupando pequenas moradias construídas ao estilo
caboclo, distribuídas em torno do local de residência do cabeça de parentela.
Os trabalhadores na Cia Mate Larangeira e mais tarde os funcionários do SPI e
outros regionais com os quais os Kaiowá conviveram nas primeiras fases do contato,
reprovavam o estilo de residência comunal –ogapysy, que reunia vários fogos vivendo sob
o mesmo teto. Por falta de conhecimento, imaginavam que no seu interior reinava a
completa promiscuidade. Assim, para fugir do preconceito, tiveram que mudar o padrão de
residência. Atualmente, as poucas casas grandes que ainda existem são mais para uso ritual
do que para residência. A mudança no padrão de construção não alterou profundamente a
ordem social, manteveram-se basicamente intactos os vínculos de obrigações e direitos que
caracterizam as relações entre os parentes que antes residiam em única casa comunal e
passaram a ser vizinhos em casas construídas ao estilo caboclo.
É importante deixar claro que os Kaiowá nunca foram nômades, como
erroneamente muitas vezes se propaga. Após 4 a 6 anos de uso, a casa era abandona por
estar com a cobertura muito estragada, infestada de insetos (principalmente baratas), ou por
17
motivo de morte de um morador ilustre7, que no costume tradicional era enterrado no
interior da própria casa. É por esse motivo também que antigamente não existiam
cemitérios permanentes, eles eram abandonados junto com as antigas moradias.
As casas eram feitas com material orgânico (madeira, capim e cipó) e como, no
caso de Guyraroká, já se passaram muitos anos desde a saída da terra, a ação do tempo já
decompôs esse material, além de que a terra foi desmatada, queimada e arada muitas vezes
para dar lugar as atividades agrícolas e pastoris. Mesmo assim, fizeram questão de mostrar
o local onde existiam as antigas residências. Muitas vezes essas visitas remetiam a
lembrança dos parentes mortos, e à noite, no acampamento, voltavam à memória dos velhos
antigos acontecimentos que se tornavam relatos cheios de emoção, algumas vezes com
pranto. Em algumas dessas ocasiões os xamãs (Jorge, Papito e Carmem) lembravam
também de cantos de antigos xamãs falecidos, que passavam a entoar, provocando um
misto de admiração e medo nos presentes.
A parentela -te'yi pode ser descrita como: a) um grupo de residência8, já que ocupa
uma parte das terras de uma aldeia e detém uma noção clara deste território; b) um grupo de
atuação econômica, pois no seu interior desenvolve-se intenso intercâmbio de bens e
serviços, dentro dos princípios que regem a economia de reciprocidade kaiowá; c) um
grupo de atuação política, pois é a base do sistema de representação por intermédio do
cabeça de parentela -hi’u, que reúne seus descendentes e aliados pelo carisma, representaos e por eles fala nas reuniões gerais (aty), as quais reúnem os representantes de todas as
parentelas-te’yi que dividem uma mesma aldeia -tekoha, devendo defender os interesses do
seu grupo familiar acima de qualquer outro interesse. Não existe um padrão instituído de
sucessão na parentela, embora seja comum que um cabeça de parentela dê preferência a um
filho ou genro, este só ocupará o cargo se de fato demonstrar possuir as habilidades que o
cargo requer, que se resumem basicamente na capacidade de reunir pessoas e de coordenar
ações coletivas.
7
O anguery, uma espécie de duplo da alma, costuma afligir os vivos e é temido pelos Kaiowá.
Quanto mais importante a pessoa é em vida, mais perigoso e temido será seu anguery.
8
Tomáz de Almeida (1991:242) denomina de cantão a porção de terra ocupada por determinado
te’yi. O autor não registra um termo na língua para designar esta parte do território.
18
A parentela é uma instituição que extrapola os limites tradicionalmente definidos
como domínios típicos do parentesco, embora as relações situadas neste âmbito sejam os
ingredientes básicos de sua constituição e base de formação. Mesmo gozando de
considerável estabilidade no tempo (uma parentela tende a continuidade ao longo de várias
gerações), o deslocamento de fogos domésticos alterara constantemente a sua composição.
Ao longo de sua existência, uma pessoa pode nascer em uma parentela e vir a pertencer a
outras, mobilidade permitida pela existência de mecanismos como a adoção de crianças, o
casamento fora da parentela e alianças políticas ou religiosas circunstanciais. As separações
também implicam, com freqüência, mudança de um dos cônjuges (o que veio de outra
parentela). Em todas estas modalidades de deslocamentos, é comum que solteiros ou fogos
domésticos atualizem relações de parentesco distantes, havendo a clara interferência de
escolhas políticas e estratégias individuais. Esta é uma característica estrutural da
organização social, encontrada em Guyraroká, como em qualquer comunidade guarani de
MS.
A noção de tekoha é adotada pela maioria dos trabalhos recentes sobre os Kaiowá.
Para B. Meliá, tekoha “é a comunidade semi-autônoma dos Pãi” (Meliá, Grünberg &
Grünberg, 1976:218). Etimologicamente, a palavra é composta pela fusão de teko -sistema
de valores éticos e morais que orientam a conduta social, ou seja, tudo o que se refere à
natureza, condição, temperamento e caráter do ser e proceder kaiowá -, e ha, que, como
sufixo nominador, indica a ação que se realiza. Assim, tekoha, pode ser entendido como o
lugar (território), no qual uma comunidade kaiowá (grupo social composto por diversas
parentelas) vive de acordo com sua organização social e seu sistema cultural (cultura). A
formação de um tekoha implica a reunião e cooperação entre várias parentelas -te’yi,
aliadas ou aparentadas. Susnik afirma que o tekoha surgia da “associação dos te‟yy no
„teko‟a‟ acondicionava vários elementos de uma maior coesão sócio-política” (Susnik,
1979-1980: 19).
A análise das relações entre as parentelas que compõem um tekoha revela que ele
se constitui como uma unidade político/religiosa e que comporta grande dinamismo no que
diz respeito ao número e à forma de articulação das parentelas que entram na sua
composição, tendendo a assumir uma configuração flexível e variada.
19
Teko porã é, para o Kaiowá, uma noção semelhante àquela registrada para os
Achuar como Shiir waras e que significa “o bem viver” (Descola, 1988:147). É, portanto,
um sistema moral que orienta a conduta social. Os Piro, descritos por Gow, também
expressam uma noção semelhante. Acredito que entre os Kaiowá, é nas pequenas unidades
(fogo doméstico -ypyky kuera e parentela –ñemoñá, jehuvy, te’yi), que a economia de
reciprocidade pode atingir o grau máximo de eficácia. Por conseguinte, é nestas unidades
que o teko porã atinge sua expressão mais comum, em ações que acontecem no dia a dia,
no convívio freqüente entre um grupo restrito de pessoas. No fogo doméstico (menor
unidade), as pessoas estão livres das tensões provocadas por disputas, conflitos políticos e
toda sorte de forças disjuntivas predominantes nas relações no interior das unidades sociais
de maior abrangência, como a parentela -te’yi, e o tekoha.
A descrição das unidades sociológicas kaiowá, como o fogo doméstico –ypyky
kuera, a parentela -ñemoñá, jehuvy ou te’yi, e o tekoha, constitui-se num procedimento
metodológico que permite identificar dados esclarecedores da maneira como o modelo de
organização social conecta-se a uma forma de manejo do meio ambiente. Seguindo este
procedimento, será possível demonstrar o modo como as diversas parentelas originárias de
Guyraroká constituem uma única comunidade ampla, e também os vínculos históricos que
ligam essa comunidade ao território que reivindicam. Procuro demonstrar também, como a
organização social e as formas de manejo encontram-se encompassadas por um sistema
simbólico que apresenta internamente grande coerência lógica, e por isso é capaz de atribuir
sentido às ações humanas em seus diversos planos.
A formação florestal do território tradicional kaiowá é caracterizada pela presença
da mata sub-tropical, (é evidente que esse clima é considerado sub-tropical para dar ênfase
ao inverno, que chega a ser rigoroso na região), combinada com extensos campos e espaços
de transição entre campo e cerrado. Meliá esclarece que esta vegetação, a primeira vista
heterogênea, comporta certas “constantes ambientais” que torna possível identificar um
“mapa ecológico” que caracteriza o território tradicionalmente ocupado pelos Kaiowá
(Meliá, 1987:82). A localização das aldeias obedece a certos critérios ecológicos como: a)
estão sempre próximas a cabeceiras ou nascentes d'água; b) preferencialmente próximas a
recursos florísticos e faunísticos distintos como os vários tipos de cerrado, mata alta, mata
de terra da região inter-fluvial, matas ciliares, etc. Isto permite uma versatilidade na
20
exploração dos recursos ambientais, embora, como se verá adiante, considerem
imprescindível que a localização da aldeia esteja próxima a solos férteis, que garantam um
boa produtividade da cultura do milho, bastante exigente em termos da qualidade do solo.
I – 2 Histórico
Segundo Meliá, Grünberg & Grünberg (1976:155) o mundo colonial terá
conhecimento dos atuais Kaiowá ou Pãi-Tavyterã, como são denominados no Paraguai, por
ocasião da execução do tratado de Madri em 1750-60. Nesse momento os Kaiowá são
identificados como índios “infiéis” e culturalmente “bárbaros” pois, refugiados nas matas
altas de difícil acesso, haviam ficado fora do processo de cristianização desenvolvido pelos
jesuítas e do contato direto com os colonizadores (Op. Cit. p.169). Para esses autores, o
território tradicional kaiowá estendia-se ao norte até as bacias dos rios Apa e Dourados,
sendo que ao sul, até a Serra de Maracaju e os afluentes do Jejui, compreendendo uma faixa
de mais de cem quilômetros de cada lado da atual fronteira entre Brasil e Paraguai,
abrangendo uma extensão aproximada de 40 mil quilômetros quadrados9(Op. Cit. p. 217).
O estudo antropológico de Identificação e Delimitação da Terra Indígena
Guyraroká levantou de uma série de dados históricos da região e do grupo indígena,
visando identificar a possível existência dos fundamentos que permitissem caracterizar essa
terra como um local de ocupação tradicional por comunidades kaiowá. Em primeiro lugar,
apresento a ocupação indígena e em seguida, o processo de incorporação da terra pelas
frentes de ocupação agropecuária.
Apoiado nas fontes escritas e no relato das circunstâncias históricas vividas pelos
Kaiowá de Guyraroká nos últimos dois séculos, é possível, do ponto de vista analítico,
9
Assim, a terra de Guyraroká pretendida pela comunidade de Guyraroká está localizada no interior
do amplo território tradicionalmente ocupado pelos Kaiowá antes do período colonial. Entretanto,
será necessário traçar os vínculos específicos entre a comunidade e a terra pretendida, o que é o
objetivo geral do presente relatório.
21
dividir a história local em quatro períodos distintos, segundo o estilo de vida que levaram
em cada um desses períodos e o tipo de relação que estabeleceram com a sociedade
envolvente. Assim, é possível distinguir: a) o período anterior a guerra do Paraguai; b) o
período da Cia Matte Larangeiras; c) A ocupação agropatoril; d) a reconquista das terras
tradicionalmente ocupadas:
a) antes da Guerra do Paraguai e subsequente instauração da Cia Matte
Larangeiras, segundo Gressler e Swensson (1988:20), a região sul de Mato Grosso
“permanecia quase despovoada‟‟... “apesar do surto colonizador do ciclo do gado” que
havia se iniciado já na década de 1830. O mesmo fato é confirmado por Campestrini e
Guimarães (1991:92), que afirmam que até 1870 os Kaiowá mantinha total domínio sobre
seu território: “as terras ao longo do Ivinhema, do Brilhante, do Dourados, do
Pardo...(eram) ...vistas apenas como território de índios”. Até esse período gozavam de
livre trânsito e controlavam praticamente todo o seu território tradicional, sendo que a
presença de não-índios na região era esparsa e esporádica, pois poucos aventureiros se
dispunham a entrar nessas terras até então consideradas como sertão ermo e “terra de
índio”. Embora esses contatos pudessem eventualmente fornecer a oportunidade de
aquisição de bens industrializados como ferramentas metálicas que os Kaiowá já conhecem
de longa data, podiam ser facilmente evitados, caso se julgassem prejudicados. Na memória
dos velhos esse tempo se funde ao tempo dos antepassados reais e míticos, tempo do ser
pleno kaiowá, quando não havia mistura de costumes, “era só Kaiowá puro”, afirmam. Esse
tempo é lembrado e imaginado como um tipo de jardim do Éden, para usar uma imagem
bíblica, tempo da completa solidariedade entre os membros da aldeia, da fartura de
alimentos, da saúde, das festas e dos xamãs poderosos, que curavam e protegiam a
comunidade. É o tempo da autonomia dos Kaiowá sobre sua forma de vida, podendo
decidir livremente sobre as regras que regulavam o funcionamento de sua sociedade;
b) Com a Guerra do Paraguai o panorama se alterou completamente. Campestrini e
Guimarães (1991) estimam que cerca de 1200 soldados paraguaios marcharam pelo
território kaiowá em Mato Grosso do Sul, sendo que após a guerra um número significativo
deles fixou-se no território como empregados da Cia Matte Larangeiras. Será justamente
essa população paraguaia que fará a intermediação entre os trabalhadores indígenas e a Cia,
pois apesar das diferenças dialetais falavam um língua comum: o guarani. Se durante a
22
Guerra do Paraguai os Kaiowá conseguiram ficar fora dos embates, desviando-se das tropas
que marcharam sobre seu território, a introdução da Cia Mate Larangeira representará a
imposição definitiva do contato e dependência em relação a sociedade nacional. A entrada
da Cia Matte Larangeiras marca um período de grande transformação social na maioria das
comunidades kaiowá. Embora o interesse da Cia estivesse voltado para a atividade extrativa
da erva mate, o que não requeria uma ocupação em caráter continuado de toda a região,
pois apenas as regiões de maior concentração de erva foram efetivamente ocupadas, os
Kaiowá foram amplamente incorporados como mão de obra, conforme veremos adiante.
Este tipo de ocupação iniciou-se na década de 1890, teve seu auge na década de 1920 e
predominou até o início da década de 1940, quando o contrato de arrendamento foi
suspenso pelo então governador Dr. Arnaldo Estevão Figueiredo em 1947. Daí em diante a
Cia segue na região apenas como proprietária de algumas fazendas;
c) a ocupação agropatoril da Terra Indígena Guyraroká ocorre a partir de 1947,
coincidindo com o fim da monopólio da Cia Matte Larangeira. Causará maior impacto na
comunidade a partir de meados da década de 1950, quando toda a terra é efetivamente
ocupada e, conforme dizem os Kaiowá “não tinha mais lugar para o índio 10”. Com o fim do
monopólio da Cia Mate Larangeiras, novamente as terras voltam para o domínio da União,
que passa a vendê-las e aliena-las como propriedades privadas para fazendeiros e colonos
que se deslocaram para a região, estimulados pela política de integração das fronteiras,
desenvolvida pelo governo nacionalista de Vargas. Nesse momento, segundo a
compreensão desses Kaiowá, inicia-se a fase mais difícil de sua história, pois resultou na
expulsão das terras que tradicionalmente ocupavam e no conseqüente confinamento nas
reservas demarcadas pelo SPI. Os dois fenômenos acontecem como processos simultâneos.
A implantação das fazendas exigia o fim do tipo de ocupação e manejo do ambiente que
historicamente caracterizara a presença indígena no território. Este não era compatível com
a forma de exploração que os fazendeiros passavam a implantar. Os poucos Kaiowá que
10
Estratégias indi viduai s de aliança com fazendeiros, muitas vezes se oferecendo
para executar trabalhos a preç os abaixo do mercado, per mitiram que algumas
famílias se manti vessem na terra até meados da década de 1970, mas vi viam como
peões, j á que essas famílias só participavam da vida comunitária ( rituais festivos
e religiosos), quando visitavam os parentes que vi v iam nas reser vas.
23
permanecerão por algum tempo na terra, serão submetidos à condição de peão, trabalhando
na derrubada de matas ou plantio de pastagens e lavouras para os novos proprietários;
d) a reconquista das terras tradicionalmente ocupadas inicia-se, ainda segundo os
Kaiowá, com o advento do que os Kaiowá identificam como o “tempo do direito”, quando
o Estado passa a reconhecer e a assegurar aos índios a legitimidade da posse das terras que
tradicionalmente ocupavam. Coincide com a promulgação da atual Constituição Federal e
com a demarcação das primeiras terras kaiowá, desde a demarcação das oito reservas para
os Guarani/Kaiowá e Guarani/Ñandeva, realizadas pelo SPI entre os anos de 1915 e 1928.
É um período marcado por muitos conflitos internos, fome, suicídios e miséria, mas
também pela esperança de dias melhores, já que a reconquista da terra é marcada por forte
revigoramento do sentimento étnico-religioso e pela tentativa de recompor formas de
sociabilidade atualmente quase em desuso no interior das reservas demarcadas, onde
segundo dizem, o modo de vida tradicional se tornou inviável, principalmente pela presença
das igrejas pentecostais e da escola.
A divisão acima esboçada reaparecerá várias vezes ao longo do texto, será
retomada, ampliada e discutida. A idéia é que ela sirva para balizar a discussão, tornando a
exposição mais didática, pois facilitará a compreensão dos dados resultados do
levantamento antropológico.
As duas últimas fases são as que mais diretamente interessam ao presente
relatório, tendo em vista que é nesse período que ocorre a expulsão da comunidade e a
posterior tentativa de retorno. A colonização agropastoril ocorre em períodos variados e de
maneiras distintas, atingindo desigualmente o território guarani. Resulta daí que algumas
aldeias foram de imediato atingidas e deslocadas, ainda nas décadas de 1930-40, enquanto
outras lograram permanecer na terra por mais tempo. É o caso da aldeia de Rancho Jacaré
que se manteve no local até final da década de 1970, quando a Cia Matte Larangeira
queimou as casas e, aliada à FUNAI, providenciou a transferência da comunidade para a
reserva de Bodoquena, distante centenas de quilômetros e pertencente a outro grupo étnico.
Isto demonstra que a sistemática de trabalho adotada pelo SPI, no sentido de transferir as
comunidades cujas terras não foram demarcadas para o interior das reservas, se consolida
24
como prática permanente do órgão tutor. Essa prática também é adotada pela FUNAI na
região até o final da década de 1980.
Thomás Larangeiras forneceu víveres para a Comissão que demarcou a fronteira
entre Brasil e Paraguai, após o término da Guerra do Paraguai. Percorrendo a região da
então quase desabitada fronteira entre os dois países, identificou o extraordinário potencial
econômico que comportava a exploração da erva mate nativa, abundante na região.
Terminada a demarcação da fronteira consegue do Governo Federal (em 1882) o
arrendamento de terras para exploração de erva-mate e, em 1892, funda a Cia Matte
Larangeiras. Nas décadas seguintes, usando de seu prestígio, que cresce junto com sua
fortuna, consegue estender cada vez mais o domínio de sua Companhia, chegando a
abranger grande parte do sul do então estado de Mato Grosso. Em 1895 a Cia amplia seu
arrendamento para mais de 5.000.000 ha (Arruda, 1986).
O força de trabalho indígena foi amplamente empregada nos trabalhos dos ervais
(Brand, 1997). Praticamente todos os homens Kaiowá de Guyraroká com mais de 60 anos
trabalharam na coleta, processamento e transporte da erva-mate, afirmando que
“antigamente só existia trabalho na erva”. Assim, empregar-se na Cia era a única forma de
conseguir roupas e ferramentas, bens que já conheciam, e dos quais se tornam cada vez
mais dependentes. Os velhos costumam dizer também que muitos dos problemas de saúde
que enfrentam é devido ao grande esforço que realizavam transportando fardos pesados de
erva e ao trabalho nos fornos (mbarbaqua) em noites de frio.
Segundo Serejo (1986: 110) coube a Marcelino Pires, fundador de Dourados, uma
participação determinante na introdução dos “bugres mansos e de bom trabalho” na
extração de erva-mate. Para isto teria estabelecido um acordo com Thomás Larangeiras,
proprietário da Cia para realizar a “seleção rigorosa, entre bugres não aldeados, portanto,
livres para se locomoverem”. Com certeza os índios não aldeados estavam fora da tutela do
Estado, exercida através do SPI, assim ficava mais fácil de submetê-los aos interesses da
Cia. Cita também que Marcelino Pires “sabia por onde andavam os bugres caçadores” ( Op.
Cit. p.110). “Bugres caçadores” se refere aqui aos Guarani (Kaiowá e Ñandeva) que viviam
segundo seu modo tradicional de vida, morando em suas terras tradicionais, plantando suas
pequenas lavouras e praticando a caça, pesca e coleta de forma independente. O
25
recrutamento desses índios para o trabalho na erva mate significará um golpe fatal em sua
autonomia política e no controle do território que até então exerciam. O mesmo autor
afirma ainda que houve muitos conflitos entre os Kaiowá e a Cia, e que Thomás
Larangeiras “teve que se empenhar em duras refregas contra os índios habitantes da
região”, pois “estes silvícolas –verdadeiros donos da terra (...) achavam-se no direito de
defender as matas, os campo, as aguadas e os ervais nativos” (Op. Cit. p.107-108).
Os velhos de Guyraroká dizem que demorou um tempo até se entenderem com a
Cia, relatam que no início houve muitos conflitos. Isto demonstra que os Kaiowá não
aceitaram passivamente a perda de autonomia sobre seu território, antes reagiram
recorrendo muitas vezes à violência. Por outro lado, se levarmos em consideração as falas
dos Kaiowá, perceberemos que não eram “bugres mansos”, como cita Serejo, mas que
foram “amansados”, pois as constantes perdas demonstravam que a única saída era se
adaptar aos novos tempos e sujeitar-se aos desígnios da Cia.
Os Kaiowá mais velhos de Guyraroká (como Jorge Paulo) contam que primeiro a
Cia instalou um acampamento próximo ao riacho Caracu, um pouco distante de suas casas.
Nesse tempo ainda viviam nas casas grandes –ogapysy e praticavam a poligamia. Uma
dessas casas teria sido atacada por trabalhadores paraguaios da Cia, que mataram o dono da
casa e raptaram suas quatro mulheres. A partir desse período, por motivo de segurança,
passaram a construir as casas mais próximas umas das outras. Os paraguaios empregados
da Cia passaram a visitá-los para conversar, instalaram um alambique que fornecia
generosamente cachaça aos Kaiowá, e em pouco tempo os homens jovens passaram a
trabalhar para a Cia, engajando-se na coleta da erva e desenvolvendo formas de
convivência pacíficas com os trabalhadores paraguaios.
O convívio íntimo dos Kaiowá com os paraguaios, ambos falantes da língua
guarani, contribui para a construção da invisibilidade da presença indígena nos
acampamentos da Cia, que incorporava uma parcela significativa dos índios que viviam
fora das reservas. Em muitos casos os índios que trabalhavam na erva eram confundidos
com paraguaios e essa fusão de certa forma interessava aos Kaiowá pois, mesmo os
paraguaios sendo um grupo discriminado, a discriminação sobre o índio era ainda maior.
26
Brand (1997:72) suspeita que a Cia tivesse interesse nesse ocultamento “para assim poder
considerar a região como desocupada e, portanto, passível de ser arrendada”.
Outro problema enfrentado pelos Kaiowá e Guarani eram as condições
extremamente desfavoráveis dos contratos de trabalho a que tinham que se submeter. Brand
(1997:68) cita o Relatório de 1927 em que o auxiliar Genésio Pimentel Barbosa, informa o
Inspetor do SPI, Dr. Antônio Martins Estigarribia, que “o índio nesse armazém assume um
compromisso do qual jamais se libertará a não ser pela fuga11” e que é necessário que o SPI
tome uma decisão no sentido de libertar essas tribos “do domínio dos ervateiros
paraguayos, fazendo cessar o regime de escravidão em que vivem”.
I – 3 - A atuação do SPI e FUNAI
A análise da presença do SPI no sul do então Estado de Mato Grosso permite notar
que ao longo de sua existência ele acaba incorporando, em sua sistemática de atuação junto
a população guarani, a distinção entre índio aldeado e desaldeado, embora não faltaram
vozes dissonantes, como se pode apreender da leitura de relatórios de alguns funcionários
do órgão. Se nas décadas de 1920-30 a demarcação das terras pode ter sido pensada por
alguns indigenistas do SPI como uma maneira de garantir a presença indígena nas terras
que tradicionalmente ocupavam, ficará evidente nas décadas seguintes que a população
guarani estava distribuída em um território de grandes dimensões, cujas terras eram
requeridas pelas novas frentes de ocupação econômica. Assim, o território de ocupação
guarani extrapolava em muito as terras que lhes haviam sido destinadas como reserva e o
grande problema prático a ser então enfrentado será como deslocar inúmeras comunidades
para as reservas, definidas como “o lugar de índio”.
Uma voz dissonante que merece destaque é o relatório de Joaquim Fausto Prado
de ([1948:110] Apud, Brand, 1997:117). Aí o funcionário do SPI reconhece o grande
número de índios e afirma que se o órgão fosse efetivamente cumprir aquilo que era
11
Os Kaiowá dizem que quem fugia era perseguido pela Polícia da Cia, denominada de
“comitiveiros” e, caso fosse pego, era punido com castigos físicos ou até com a morte.
27
entendido como sendo sua função, ou seja, recolher os índios para as reservas, “então os
postos onde se encontram serão pequenos para eles” e identifica o problema que surge para
a população indígena com a ocupação efetiva da terra, pois “o vale do Iguatemy e outras
zonas que eram ocupadas pela Cia Matte Larangeiras e das quais estão sendo dados
títulos”. Afirma ainda que os índios estão se recusando a deixar as terras. Aqui é indicada a
diferença entre modelo de ocupação realizado pela Cia e o que inicia a se instalar com a
introdução das fazendas. Como a exploração da erva mate não implicava em derrubada da
mata, os índios permaneceram na medida do possível plantando suas roças, armando suas
armadilhas de caça e, dessa forma, reproduzindo seu modo de vida tradicional, mesmo que
parcela considerável da população se envolvesse no trabalho de extração da erva. Com a
saída da Cia e a entrada das fazendas de criação de gado ou agricultura, tudo isto se tornaria
inviável.
Vários documentos evidenciam que os Kaiowá não aceitaram passivamente a saída
das terras que tradicionalmente ocupavam. O Diretor da Colônia Agrícola Federal de
Dourados, queixa-se no Ofício n.º 4724 de 1951 de que os Kaiowá não se sujeitam ao
aldeamento, que freqüentemente abandonam a vida disciplinada do Posto Indígena do SPI e
retornam as suas matas de origem, mesmo na reserva de Dourados que considera uma
“terra ampla e esplêndida” (Apud, Brand, 1997;104). O processo de retirada dos índios dos
fundos das fazendas onde permaneceram refugiados em trechos de matas, se prolonga até a
década de 1980. Assim, Brand (1997:104) cita a Comunicação de Serviço n.º 211/9/DR/81,
onde o delegado da FUNAI determina o deslocamento de um motorista e de um caminhão
por um período de três dias para o P.I. de Caarapó, “objetivando efetuar o transporte de
índios que desejam regressar ao P.I., provenientes de fazendas circunvizinhas”. Esse desejo
de regressar (mesmo que nunca estivessem residido no local), expressa a ideologia que
orienta a prática do confinamento dos índios nas reservas, pois segundo o consenso não
explicitado nos documentos, lugar de índio era na reserva e eles não poderiam desejar outra
coisa. Cabe ressaltar que as reservas de Caarapó e Dourados são justamente aquelas que
receberão o maior número de Kaiowá expulsos de Guyraroká.
O chefe de Posto do P. I. Dourados solicita através do Ofício n.º 046/79, a
cedência de uma Kombi para “atender aos vários problemas que surgem com indígenas
desaldeados, principalmente no transporte destes índios no retorno à aldeia” (Apud, Brand,
28
1997: 105). Aqui aparece a idéia de “índio desaldeado”, categoria forjada para dar conta
daqueles casos em que os Kaiowá continuam insistindo em não aceitar a vida na reserva
sob a proteção e assistência do Estado. A idéia de “retorno” à reserva desempenha assim a
função de ocultar o confinamento desses índios, que é o que está realmente acontecendo no
período. É revelador o fato de que o crescimento demográfico nas reservas demarcadas pelo
SPI atinge seu índice mais alto a partir da década de 1970, quando desaparecem os últimos
refúgios dos índios que ainda viviam nos fundos de fazendas. Vale lembrar ainda que o
aumento da população nas reservas supera em muito as possibilidades de crescimento
vegetativo nas décadas de 1960, 70 e 80.
Fica claro que a atuação do SPI e depois FUNAI, foram no sentido de deslocar
para o interior das reservas a população guarani dispersa por um território muito mais
amplo, ocupado segundo sua forma tradicional de residência. Este procedimento permitia
liberar as terras para a ocupação pelas empresas privadas. Enquanto puderam os Kaiowá
resistiram ao confinamento nas reservas, como observa Gressler e Swensson (1988:48)
quando afirmam que: “o problema na região não era simplesmente o fato de doar terras aos
índios, mas principalmente, recrutá-los para essas terras, tendo em vista a enorme dispersão
em que os grupos indígenas do Sul de Mato Grosso viviam”. Como não houve o
reconhecimento das terras tradicionais ocupadas pelos Guarani, o problema da demarcação
das terras indígenas se estende até os dias atuais. As comunidades que de alguma maneira
se mantiveram estruturadas e não perderam os vínculos históricos com a terra de origem,
passaram a reivindicar a demarcação, tendo em vista a maior abertura da legislação atual
para o reconhecimento de seus direitos.
A atuação do SPI e depois FUNAI foram marcadas pela ineficiência, negligência e
má fé no cumprimento das obrigações constitucionais atribuídas a estas instituições. A atual
situação dos Guarani em Mato Grosso do Sul e os inúmeros conflitos pela posse da terra
entre índios e fazendeiros, com prejuízo para ambas as partes, é resultado da incapacidade
do órgão indigenista oficial em reconhecer e demarcar as terras indígenas, antes da efetiva
ocupação da terra pelas atividades agropecuárias. Obviamente que se as terras indígenas
tivessem sido demarcadas antes da titulação das mesmas para particulares, o que na maioria
dos casos aconteceu só a partir da década de 1940, muitos prejuízos teriam sido evitados.
Tomáz de Almeida em artigo publicado no ACONTECEU (1991: 547-549), conclui que:
29
“O Serviço de Proteção ao Índio e posteriormente a Fundação Nacional do
Índio efetivamente constituíram-se num braço governamental de pouca ou
nenhuma participação para garantir as terras e os direitos Guarani na região. O
desempenho de seus funcionários no decorrer do século revela profundas
dificuldades em desempenhar a função de proteção que lhes fora designada
oficialmente. A indiferença e omissão nos processos jurídicos levados a cabo
por fazendeiros contra os índios por parte do SPI e FUNAI é flagrante; a
condescendência em reduzir paulatinamente as terras indígenas fica clara na
demarcação de todas as oitos terras no início do século: os traslados ilegais de
comunidades inteiras de seus legítimos e tradicionais espaços de ocupação foi
corriqueiro durante os últimos vinte anos”
I – 4 A expulsão dos Kaiowá de Guyraroká: doenças, violência física e simbólica
A expulsão dos Kaiowá de Guyraroká combina uma série de fatores que merecem
uma reflexão mais detalhada: a) a introdução de doenças até então desconhecidas e para as
quais os tratamentos da medicina tradicional se mostravam pouco eficazes; b) a violência
física exercida pelos fazendeiros que compraram a terra do Estado e pressionavam os
Kaiowá para que saíssem; c) violência simbólica que implicava em não reconhecimento de
seus líderes, desrespeito às formas de organização e aos valores que regulam a sociedade
kaiowá. Isto abalou profundamente a auto-estima da sociedade. Desmoralizados e expostos
as mais diversas formas de exploração e preconceito, ficava quase impossível reivindicar
seus direitos, tanto é assim, que definem o tempo atual como “o tempo do direito”, em
contraposição as situações vividas no passado quando “o índio não tinha direito”.
Nas primeiras décadas do século XX apareceram na região surtos epidêmicos de
doenças como sarampo, catapora, varíola, gripes e tuberculose. Os estudos demográficos
revelam que doenças vitimaram um contingente expressivo da população, principalmente
na década de 1930/40. As tentativas frustradas de tratamento pelos xamãs, muito contribuiu
para a queda do prestígio e poder que tradicionalmente acumulavam. Aldeias inteiras foram
dizimadas, em muitos casos os sobreviventes tiveram que recorrer a Missão Caiuá (que atua
em Dourados e região desde 1928) e aos postos do SPI, para que recebessem atendimento
30
médico. Pressionados pela situação precária em que viviam em seus locais de origem, e
seduzidos pela promessa de atendimento médico e apoio para o plantio de lavouras que
receberiam nos postos, boa parte da população acabou forçosamente optando por se mudar
para as reservas.
Para piorar ainda mais a situação, o desconhecimento das causas dessas doenças
levou o grupo a atribuí-las à prática de feitiço, segundo os valores que conformam sua
cosmologia. Isto desencadeou infindáveis acusações recíprocas entre parentelas distintas
que antes viviam em relativa harmonia, interrompeu os ritos e cerimoniais e desorganizou
as atividades produtivas, resultando em fome e mortes. Assim, essa situação contribuiu para
a dispersão da população, pois muitas famílias se viram forçadas a deixar a localidade
devido aos atritos com os vizinhos. Foi por motivos dessa natureza que muitas parentelas
tiveram que procurar os Postos do SPI, ou parentes que lá viviam, para solicitar que
providenciassem sua mudança para as reservas demarcadas: não suportavam mais a pressão
externa dos fazendeiros, nem a acusações internas de outras parentelas de que estariam
provocando a morte das pessoas pela prática da feitiçaria. Para o Kaiowá, as parentelas que
compõem um tekoha devem manter entre si um grau satisfatório de coesão e solidariedade
política e religiosa. Quando isso não acontece pode acontecer substituição da liderança e/ou
re-arranjo da composição das parentelas, não sendo fato extraordinário a expulsão da
parentela responsabilizada pelas dificuldades de convivência no tekoha.
Brand (1997: 6) analisa a distinção entre índio aldeado e índio desaldeado forjada
pelo modelo de relação que se estabelece entre a sociedade nacional e a população guarani.
Segundo o autor, esse modelo comportava a presença indígena, desde que se sujeitassem a
abandonar seus locais tradicionais de moradia e passassem a viver no interior das reservas
demarcadas. Acredito que a distinção estabelecida pelo autor é importante para ampliar a
compreensão da forma como opera o modelo de exclusão dos direitos indígena na região.
Assim a análise do processo de confinamento da população guarani nas reservas,
revela que o mesmo se deu pela conjunção de vários fatores externos, que dizem respeito
diretamente à sociedade nacional, e internos, que dizem respeito a forma de organização
social e a cosmologia guarani.
31
A violência física se materializa nas pressões e ameaças dos fazendeiros para que
os Kaiowá deixassem a terra. Nesse processo, os velhos de Guyraroká lembram que nas
primeiras décadas do século XX, homens foram mortos e suas mulheres roubadas pelos
ervateiros que trabalhavam para a Cia Mate Larangeiras. Na década de 1940, com a
chegada dos fazendeiros que vieram ocupar a terra, a violência assume proporção
insustentável. Em 28 de janeiro de 1947, justamente no ano em que são expedidos os
primeiros títulos particulares sobre a Terra Indígena Guyraroká, o agente do SPI Acácio de
Arruda, do P. I. Francisco Horta, escreve o Ofício de n.º 2, informando ao chefe da I.R. 5º
que a “perseguição em Dourados contra os índios é quaze geral”. Vale lembrar que a Terra
Indígena Guyraroká fica a apenas quarenta quilômetros do referido posto indígena. Por
outro lado, a violência simbólica implica no desrespeito às formas de organização próprias
à sociedade guarani e a imposição de categorias pensamento oriundas da sociedade
colonial, para definir o lugar que ela passa a ocupar no sistema multiétnico que se instaura
na região.
Outro fator importante a ser considerado é que o SPI a partir da década de 1940 já
vivia uma situação de sucateamento e enfraquecimento em suas funções de proteção efetiva
aos índios e acaba não tendo como resistir às pressões políticas que defendiam os interesses
dos fazendeiros. Aliando-se aos interesses dos fazendeiros e políticos regionais, o SPI adota
uma política sistemática de transferência da população das aldeias dispersas pelas terras
pretendidas pelos fazendeiros para o interior das reservas. A partir daí, a reserva passa a ser
compreendida como espaço destinado a recolher os índios de toda a região, liberando as
terras que até então ocupavam para as atividades agro-pastoris. Aos índios que viviam nas
reservas assegurava-se a ação tutelar do Estado, o que lhes garantia assistência e a proteção,
embora na maioria dos casos precária. Aos que insistiam em permanecer em seus antigos
locais de moradia não se oferecia nenhum tipo de apoio, ficavam a mercê da pressão e
violência que caracterizavam o processo de disputa pela posse da terra. É, assim, que as
reservas que mais podiam oferecer assistência, foram justamente aquelas que receberam um
maior fluxo das população expulsas de suas terras tradicionais: a reserva de Dourados é até
hoje a mais populosa (cerca de 8000 pessoas), o que pode facilmente ser compreendido
pela presença da Missão Caiuá, aí instalada desde 1928, que sempre prestou assistência
médica a população indígena. O Posto do SPI (depois FUNAI) de Dourados, sempre foi um
32
dos mais bem aparelhados da região. Os antigos moradores de Guyraroká e atuais
moradores da reserva de Dourados que entrevistei durante o levantamento, deixaram claro
em seus relatos que saíram de sua terra porque
“não tinham nenhuma assistência, o fazendeiro não deixava mais plantar, dava
tiro, ameaçava, mandava sair...aí falaram para nós que lugar de índio é na
reserva, que tem recurso, aí nós mudamos pra cá, alguns ainda ficaram mais um
tempo, trabalhando para os fazendeiros” (relato de Teresa, 62, antiga moradora
de Guyraroká que vive hoje na reserva de Dourados).
Acredito que a distinção criada entre índio aldeado, que vive na reserva, e
desaldeado, que vive em fazendas, é importante para compreender a atual situação das
terras Kaiowá no Estado. Relacionando o significado dessas categorias regionais com
outros fatores que compõem o processo de expulsão dos Guarani de suas terras, é possível
demonstrar que elas integram um conjunto de idéias e práticas, que dão a esse processo,
características de um modelo que combina a violência física e simbólica exercida contra as
comunidades indígenas.
A evolução demográfica na Reserva de Dourados ou Posto Indígena Francisco
Horta demonstra que ela cumpriu bem o papel de se constituir em pólo de atração dos
índios, dentro do planejamento estratégico do governo para a região. Schaden (1974: 09)
realizou trabalhos de pesquisa nessa reserva entre 1949 e 1951 e afirma que na primeira
visita (1949), a população era de 548 índios, entre Kaiowá, Ñandeva e Terena, mas que nos
anos seguintes ela diminuiu “consideravelmente, sobretudo em conseqüência da
tuberculose pulmonar e outras doenças”. Provavelmente Dourados já teria recebido o fluxo
da população de diversas aldeias, pois a Missão Caiuá e o SPI atuavam na reserva há vários
anos. A despeito da alto índice de mortalidade adulta e infantil12, a população da Reserva
de Dourados continuou crescendo, pois o processo de confinamento nas reservas se
intensifica na região, principalmente nas décadas de 1960, 70 e 80, isto leva a Reserva de
Dourados a atingir sua atual população de mais de 8000 índios. A consumação do processo
de confinamento coincide com o crescimento do número de suicídios, que atinge índices
12
Identifiquei uma senhora de cerca de 68 anos que afir ma não ter pa rentes pois é
a única sobrevi vente de sua aldeia, todos morreram de doenças.
33
alarmantes a partir de meados da década de 1980, como bem demonstrou Brand (1997).
Coincide também com a mobilização dos Kaiowá para retomarem alguns locais de
ocupação tradicional, a partir da descoberta de seus direitos, e da situação social
insustentável que acaba se criando no interior das reservas demarcadas.
I. 5 - A situação atual
A situação dos Kaiowá de Guyraroká começa a se transformar quando começam a
pressionar a FUNAI para que faça a identificação da terra. A pressão maior ocorre quando
fazem as tentativas de reocupação. Em resposta ao conflito criado, a FUNAI (com a
colaboração do IDATERRA) realizou levantamento preliminar na Terra Indígena
Guyraroká durante o mês de junho de 2000. O antropólogo Carlos Alexandre da FUNAI
elaborou um relatório sobre o estudo preliminar. Os Kaiowá informaram que durante o
período de realização desse estudo, não puderam acompanhar os técnicos porque não havia
uma Portaria que garantisse o acompanhamento. Atualmente parte das parentelas de
Guyraroká estão no acampamento, enquanto outras aguardam os procedimentos
demarcatórios instaladas provisoriamente em reservas da região, conforme descrito em
outras partes do presente relatório.
I. 6 - tentativas de reocupação recentes
O acampamento reúne parte dos remanescentes da antiga população
de Guyraroká desde 19 de junho de 2000. Surgiu como resultado de
tentativas de reocupação da ter ra, frustadas pela reação esboçada por parte
dos fazendeiros que, em defesa de suas propriedades, dispuseram de
seguranças armados e do apoio da Polícia Civil e Militar de Caarapó.
Impossibilitados de permanecer na terra, os Kaiowá acamparam como forma
de se manterem próximo à terra reivindicada e deixar os fazendeiros sempre
apreensivos com a possibilidade de novas tentativas de reocupação. Dessa
34
maneira esperavam pressionar as autoridades na busca de uma solução
definitiva para o conflito.
A primeira tentati va de ocupação ocorreu no dia 04/01/2000, sendo
que os Kaiowá permaneceram dois dias no interior da propriedade de José
Roberto Teixeira. Aceitaram sair mediante um acordo efetuado entre eles e
o proprietário, com a intermediação do Chefe do Núcleo de Apoi o Local da
FUNAI de Dourados. Pelo acordo os Kaiowá receberiam cestas básicas do
proprietário e, num período de 90 dias, um Grupo Técnico realizaria um
estudo para atestar se de fato havia provas da presença indígena no local.
Como o tempo passou e as cond ições do acordo não foram integralmente
cumpridas, os Kaiowá resolveram fazer uma nova tentativa de ocupação. Em
04/04/2000, o memorando 135/2000, assinado pelo chefe do Núcleo de
Apoio da FUNAI em Dourados, Wilson Matos da Silva, informa o
Presidente da FUNAI que os Kaiowá haviam ocupado a fazenda. Desta vez
lograram permanecer uma semana, quando uma operação conjunta entre
fazendeiros e polícia força a retirada.
O delegado, Eder Luiz Redó da Polícia Civil de Caarapó, comandou
pessoalmente uma operação de despejo no dia 19 de junho de 2000.
Segundo relatório do funcionário da FUNAI, Alexandre Croner de Abreu
(em anexo), foram utilizadas balas de borracha que atingiram várias
pessoas, causando ferimentos leves. Foi muito difícil conseguir documentos
relativos ao conflito. O Delegado da Polícia Civil de Caarapó se negou a
prestar qualquer informação, tratou -me mal alem de me alertar que o
assunto envolvia gente poderosa, usando o jargão policial afirmou: “é o
seguinte meu rapaz, é melhor você ir devagar com e sse caso”. Como não
sou investigador, mas antropólogo, resolvi apenas mencionar os fatos no
relatório, já que o caso estava sendo tratado pelas autoridades competentes.
Entretanto, nessa mesma operação, segundo o relato dos Kaiowá e o depoimento
que fizeram na Procuradoria, houve um trágico acidente: na correria, provocada pelo
tiroteio, a índia kaiowá Gilma Paulo Modesto tropeçou e caiu sobre o filho, Edileuzo
Modesto, recém nascido. A queda provocou traumatismo craniano e morte da criança. O
35
corpo foi levado até a cidade de Caarapó, onde o médico Edivaldo Cáçaro expediu atestado
como sendo morte por "causa desconhecida". Inconformados com o Laudo os Kaiowá
levaram o corpo até a cidade de Dourados onde o exame do Instituto Médico Legal revelou
que a criança teria sofrido traumatismo craniano. A situação confusa gerada pela existência
de dois laudos conflitantes sobre a mesma morte e as denúncias que os kaiowá fizeram
junto a Procuradoria da República sobre o envolvimento da Polícia Civil, acabaram
gerando um inquérito na Polícia Federal de Dourados. Os documentos oficiais a que tive
acesso, as declarações dos Kaiowá e as reportagens de jornais da época que dizem respeito
ao conflito, constam como anexo ao presente relatório. A criança morta foi enterrada no
próprio acampamento, ao lado da estrada e os Kaiowá esperam a demarcação para transferir
o corpo para o interior da terra indígena.
36
II - PARTE
II. 1 - Habitação permanente
Procurei indicar na introdução os procedimentos metodológicos adotados no
estudo que serve como base para redação do presente relatório. O tópico anterior
apresentou informações relativas as especificidades culturais dos Kaiowá, a história da
ocupação indígena e as transformações provocadas pela chegada das frentes de
colonização. O presente tópico trata da descrição da distribuição dos locais de habitação
permanente pelas parentelas que viviam em Guyraroká antes da ocupação agropecuária,
bem como dos critérios aplicados por parte dessa população para escolha desses locais de
moradia.
II. 2 – Localização na imagem de satélite das principais referências de ocupação
tradicional
A imagem de satélite foi um recurso muito útil no trabalho de identificação.
Permitiu identificar as pequenas cabeceiras que não aparecem no mapa do IBGE, onde se
localizavam a maioria das antigas residências. Isto facilitou o reconhecimento desses locais,
bem como a checagem das informações junto aos diversos informantes quanto aos nomes
desses locais, sua exata localização e nomes dos moradores.
A terra delimitada inclui os locais de antigas moradias, os espaços ocupados para o
desenvolvimento de práticas produtivas e acidentes geográficos que se constituem em
referências míticas importantes para os Kaiowá. Evidentemente, muitos locais que
antigamente eram utilizados como locais de caça, pesca, coleta e mesmo moradia ficaram
fora do perímetro delimitado como de ocupação tradicional. Isto foi feito com base na
legislação atual e contou com a anuência dos Kaiowá que reconhecem que a ocupação
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agropecuária da região inviabiliza política e economicamente a demarcação da Terra
Indígena com as dimensões ocupadas no passado. Ficaram fora: a) as cabeceiras dos
córregos Ypytã, Caracu e Lucero; c) o curso médio do córrego Caarapó (Torõrõ); c) terras
da margem esquerda do córrego Caracu e; d) a região da foz dos córregos Ypytã e Caracu,
próximo ao rio Dourados. A despeito dessas perdas, consideram que a terra é suficiente
para manterem seu modo de vida tradicional, desde que seja implementado um plano de
recuperação ambiental, já que restam poucas áreas de vegetação nativa.
As informações levantadas junto aos Kaiowá dão conta da concentração
expressiva de população Kaiowá residindo na terra reivindicada em caráter permanente até
o início da década de 1940. A partir dessa época as pressões dos fazendeiros que começam
a comprar as terras na região tomaram inviável a permanência dos Kaiowá no local. São
várias famílias extensas relacionadas entre si por fortes laços de sociabilidade (parentesco,
aliança política e religiosa), caracterizando um tekoha guasu ou tekoha pavêm (conforme
descrição que aparece na I parte do relatório).
Os dados caracterizam a região como de ocupação tradicional, constituindo ainda
um centro religioso importante para vários outros nucleamentos populacionais que
ocupavam terras não muito distantes de Guyraroká, sendo que entre esses diversos núcleos
de povoamento existia um constante intercâmbio matrimonial e religioso. Entre essas
localidades podemos destacar Taquara, as aldeias situadas ao longo do córrego Caarapó e
do São Francisco, Kurupi e a aldeia do Km20.
Jorge lembra que na época em que era criança, o maior xamã na região da Lagoa
de Ouro era Xiru Tiku13, aprendeu com ele muito do ofício. Jorge afirma que pretende
juntar seus yvyraidja (auxiliares) e reestruturar seu grupo de reza. Atualmente divide seus
dias entre o acampamento e a reserva de Dourados onde vive discretamente com uma de
suas filhas. Ambrósio, que é seu genro, demonstra grande preocupação com sua saúde, pois
segundo informou, em Dourados oferecem-lhe muita cachaça como pagamento por
serviços de cura, o que debilita muito sua saúde.
13
Ainda tem um filho vivo (Maurílio) que mora na reserva de Caarapó.
38
Papito Vilharva, com cerca de 78, nasceu no Guyraroká, nas margens do riacho
Koguery, que deságua no Riacho Ypytã. Segundo seu relato, o primeiro branco que
apareceu na região com o intuito de ocupá-la foi um senhor apelidado Alemão, depois
vieram o Antônio Afram e o Albuquerque. No início pareciam amistosos, mas logo
passaram a dar tiros sobre a casa grande (ogapysy) onde morava sua família extensa, sendo
que um índio de nome Santiago foi atingido na perna. O líder religioso do grupo -xamã,
notando a gravidade da situação, disse que "era necessário que deixassem do local"
(oikotevem jahape), aí começou o esparramo.
Os locais de residência da maioria dos antigos moradores estão identificados com
números na imagem. Os locais de moradia correspondem também a locais de cemitérios, já
que segundo o costume kaiowá, os mortos são enterrados próximo ao local onde viviam.
Não existem cemitérios com um grande número de sepulturas, pois os Kaiowá tinham o
costume de mudar a localização da casa (a localização da nova casa poderia estar a apenas
algumas centenas de metros da antiga), sempre que morria uma pessoa de maior prestígio.
Com a mudança da casa mudava também o local destinado a sepultar os mortos. Os
cemitérios estão indicados com pequenas cruzes na imagem de satélite.
Consultando os diagramas de parentesco que constam no final do relatório (anexo
02), é possível ter uma idéia da composição da população de Guyraroká. Todas as famílias
manifestaram a intenção de retornar à terra a partir do momento que o acesso lhes seja
assegurado, embora não estejam vivendo no acampamento liderado por Papito e Ambrósio
Vilharva. Algumas das principais referências da ocupação tradicional, mencionadas a
seguir, são discutidas mais detalhadamente no item seguinte e em outras partes do relatório:
1- cabeceira Mutunry: (bebedouro do mutum), era o local da casa grande ogapysy da família de Airton ou Biguá, que vive em Limão Verde. Outros
moradores dessa cabeceira vivem atualmente na reserva de Dourados;
2- cabeceira Ñundi‟ary: (local onde existia muitos bagres denominados
ñundi‟a14), e cabeceira Koguery (cabeceira do Juá). Ali existia a casa grande –
ogapysy da família de Papito Vilharva, seus pais e avós. No local nasceram
14
Em português esse peixe é denominado j undiá ou chorão.
39
Papito, seu irmão Felipe (vive no acampamento), sua irmã Cândida (vive na
reserva de Dourados), seu irmão, João Vilharva (vive na reserva de Caarapó) e,
seu primo, Paulo Vilharva (vive na reserva de Dourados);
3- cabeceira Tapytã: é um local sagrado, como será descrito adiante. Na foz
dessa cabeceira com o córrego Ypytã, era o local onde existia a casa grande de
um antigo cacique chamado Féli Karaguatá, já falecido. Remanescentes dessa
parentela são Miguela (mulher de Papito Vilharva), seu irmão Aurélio (mora
na reserva de Caarapó), e sua irmão Carmem (que é xamã e vive no
acampamento). Os três nasceram e viveram a infância e a juventude no local
até que foram expulsos pelos fazendeiros. Outro importante xamã que viveu no
local foi Karapé, que possui muitos descendentes na reserva de Caarapó;
4- Arroio Ynambu ou Guyra Varero: (local onde os pássaros bebem água), nessa
cabeceira existia uma casa grande –ogapysy. Antigos moradores são Tereza
Gonçalves (moradora atual da reserva de Dourados) e Mário Gonçalves
(morador atual da reserva de Caarapó). Os dois nasceram no local e possuem
vários filhos e netos. Nas imediações morava Ranulfo Sousa (atual morador da
reserva de Taquapery);
5- córrego Chagua‟yry: é um pequeno córrego que deságua no Ypytã, o nome é
devido a grande ocorrência da planta denominada chagua‟y, da qual os Kaiowá
utilizam os frutos como alimento e a casca como remédio. Ali morava a
família extensa do pai de Elia Ramires, Getúlio Ramires, e mais dois irmão
que vivem atualmente na reserva de Dourados, com seus filhos e netos. Esse
grupo se juntou ao pessoal do Chagua‟yry depois que foram expulsos do
Torõrõ, seu antigo local de moradia;
6- cabeceira Mbyry‟y: (uma espécie de palmeira) nas imediações desse local
morava a família da mãe dos irmãos Ramires, citados no item anterior.
Moravam ainda Horácio (atualmente vivendo na reserva de Caarapó, com
filhos, filhas e netos), Locrorykue e Locária, ambos já falecidos, mas com
muitos descendentes vivendo nas reservas de Caarapó e Dourados;
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7- Lagoa de Ouro: nesse local, e em suas proximidades, morava a família extensa
de Jorge Paulo, o mais velho xamã ainda vivo, com seus filhos e filhas, a
maioria deles vivendo atualmente na reserva de Caarapó. É o lugar em que
nasceu a mulher de Ambrósio Vilharva;
8- Kurusu Ambá: é uma importante referência mítica como se verá adiante. É o
local onde morava um ramo da família de Doraline Martins (outra parte
morava nas margens do córrego Caarapó ou Torõrõ). Como vimos, atualmente
vive com sua família na periferia do distrito de Três Irmãs, no município de
Vicentina –MS;
9- Cabeceira Ñurumim: local onde morava a família de Viviano Vilharva. Seu
filho, Maurílio Vilharva, nasceu no local e vive atualmente com sua família na
reserva de Caarapó. Remício tinha uma casa grande -ogapysy nas imediações
dessa cabeceira, seus filhos e netos estão trabalhando em fazendas no
município de Laguna Caarapã e aguardam o retorno para a área;
10- local onde vivia a família de Ramona, mãe de Maurílio Vilharva, citado no
item anterior. Também faz parte da região do Kurusu Ambá;
11- o médio curso do Ypytã era ocupado pela família de Conceição Sangrina,
atuais moradores da reserva de Caarapó;
12- acampamento liderado por Papito e Ambrósio Vilharva;
13- jacu jeroky: (local onde o jacu realiza sua dança), é o lugar onde morava um
xamã de nome Mainõ (beija flor), tinha quatro mulheres15 e 15 filhos. Seus
descendentes vivem atualmente na reserva de Caarapó, e em fazendas da
região;
14- cabeceira Mboreviry (lugar onde fica o bebedouro da anta) e Yvypajere
(formato de uma ilha): morava a família do Manuel Chikuara Pium, em uma
casa grande –ogapysy. Formam atualmente a grande família Quevedo, que
vive na reserva de Caarapó;
15
Os Kaiowá praticavam a poligamia, hoj e pouco freq üente.
41
15- Mborevy Rijuaju (barra da cabeceira Mborevy): local de residência de Huvito
com sua família, tem só um filho vivo, de nome Getúlio, que vive na reserva
de Caarapó com seus cinco filhos;
16- Lucero Varra (Barra do Lucero): Nesse local existiam muitos moradores
antigos, como Vregório, Chiru Urutau, Guachi, Chucarro (parte de seus filhos
e netos vivem na reserva de Caarapó, outros estão dispersos trabalhando em
fazendas da região), Chavarõ (os descendentes vivem nas reservas de
Dourados e Caarapó), Miguel Guaqui (seus filhos João Alvarenga e Florêncio
Alvarenga vivem atualmente na reserva de Caarapó);
17- Ypo‟i (água estreita): local onde morava o Cavalheiro que vive atualmente na
reserva de Caarapó com a mulher, oito filhos e vários netos. Na cabeceira
desse córrego morava a parentela de João puku, o grupo foi reduzido a três
famílias que vivem atualmente na reserva de Porto Lindo. Na margem direita
do mesmo córrego morava Antônio Aju‟i e Luíz Piru. Na confluência com o
Ypytã morava a família do Manuel Pitô;
18- Ytu: (cachoeira): existe uma pequena cachoeira no Ypytã onde os Kaiowá
acreditam existir seres míticos que cuidam dos animais que vivem na água, ou
em ambiente alagado, adiante serão fornecidas mais informações sobre essas
crenças.
II. 2.1 - Demografia
Falta, até o momento, um estudo demográfico da população Kaiowá em Mato
Grosso do Sul que possa servir de referência para trabalhos que enfoquem outros aspectos
da vida dessa população. Os dados disponíveis são poucos e descontínuos no tempo, o que
impede a percepção da evolução das transformações demográficas. Além disso, a maioria
dos dados foram confeccionados por funcionários despreparados e desinteressados. O que
apresento aqui são apenas alguns indicadores gerais e tendências, baseado na leitura das
pesquisas disponíveis e no levantamento realizado com a população de Guyraroká.
42
Os pesquisadores da região16 são unânimes em afirmar que a partir de meados da
década de 1960 ocorre a diminuição da taxa de mortalidade, que se acentua nas décadas
seguintes, como resultado da extensão de cuidados médicos e assistência a saúde preventiva
(vacinação, pré-natal, etc.,). A taxa de natalidade é alta, sendo que a conjugação das duas
variáveis (alta taxa de natalidade X diminuição da taxa de mortalidade) configuram um
quadro de acentuado aumento da população nas últimas décadas. Esta conclusão só seria
válida quando se considera o conjunto da população, ou seja, tanto a que vive nas reservas,
quanto a que vive fora delas, principalmente nas fazendas da região.
Os pesquisadores também são unânimes em afirmar que o aumento de população
nas reservas é resultado direto da transferência de comunidades que foram deslocadas de
suas terras de habitação tradicional para o interior das reservas, dando lugar a exploração
agropecuária. Os dados apresentados por Brand (1993: 166 e ss) sobre o aumento da
população em algumas reservas demonstra muito bem esse fenômeno. Nele se pode ver que
o aumento abrupto em poucos anos, esgota qualquer possibilidade desse crescimento ter se
dado via crescimento vegetativo. Assim, pegando apenas os exemplos das reservas de
Dourados e Caarapó, para onde se deslocou a maior parte dos habitantes de Guyraroká
temos:
Reserva de Dourados (P.I) - dados registrados por Brand (1993:166)
Ano
População
Fonte
1969
1600
Funai
1975
2150
Funai
1977
2700
Funai
1979
3750
Sucam
1984
4500
Funai
1991
6300
Funai
16
Thomaz de Almeida (1991), Brand (1993, 1997) e Pereira (1999), identificam estas
características no perfil da população guarani de MS.
43
Reserva de Caarapó (P.I) - dados registrados por Brand (1993:166-67)
Ano
População
Fonte
1975
921
Funai
1977
1250
Cimi
1980
1271
Funai
No caso específico da população de Guyraroká, que vive no acampamento, o
levantamento realizado pelo antropólogo Carlos Alexandre dos Santos apontou os seguintes
números.
Dados registrados por Santos (2001:51)
Dados censitários - Terra Indígena Guyraroká - 2000
Idades
Homem
Mulher
Total
0-5
4
4
8
6-10
2
2
4
11-15
6
3
9
16-20
1
1
2
21-25
2
1
3
26-30
1
31-35
1
2
2
36-40
1
1
41-50
1
1
51-60
2
2
+ de 60
2
1
3
Total
20
16
36
44
Os dados que aparecem na tabela de Santos se restringe a população que vivia no
acampamento ao lado da Terra Indígena Guyraroká no momento em que ele realizou o
levantamento preliminar. O autor afirma ainda que "não foram contabilizadas 12 pessoas,
sendo 6 mulheres e 7 homens, que não sabiam suas idades por isto estas pessoas não foram
relacionadas na tabela censitária" (Santos, 2001:51). A dificuldade encontrada pelo autor
das pessoas não saberem exatamente sua idade se deve ao fato de que os Kaiowá não
contam a idade da pessoa somando cronologicamente os anos vividos, mas sim
incorporando as pessoas em categorias de idade, como acontece em diversas sociedades
indígenas. Essa sem dúvida seria mais uma dificuldade para a realização de um censo
demográfico minucioso.
Confirmando a tendência ao crescimento da população já apontada anteriormente,
25% das pessoas que vivam no acampamento tinham entre 0 a 10 anos (Santos, 2001: 50).
Garantir a demarcação da terra é de fundamental importância para o futuro dessa população
jovem.
A seguir apresento os dados sobre a população que levantei durante a pesquisa de
campo.
II. 2. 2 - Censo da população de Guyraroká
A tabela apresentada a seguir procura dar uma idéia aproximada do número de
pessoas que estarão retornando para Guyraroká com a demarcação da terra. Digo
aproximada porque as parentelas que aí viviam foram impedidas de permanecer na terra nas
últimas décadas, sendo que em conseqüência muitas delas se integraram parcialmente à
outras parentelas que residem em reservas demarcadas. Conforme já foi mencionado em
outras partes do presente relatório, as características próprias à estrutura social kaiowá
permitem que uma pessoa possa pertencer à mais de uma parentela e, portanto, possa optar
com qual delas prefere residir. O número de pessoas que cada uma das parentelas reunirá,
irá variar de acordo com o número de parentes que cada líder dispõe, e com sua capacidade
de "juntar os parentes" ou "levantar um te'yi", como afirmam os Kaiowá. A composição de
uma parentela não se resume meramente ao fato da existência de laços genealógicos,
45
embora esses sejam necessários, mas sofre a influência de fatores políticos que são por
natureza dinâmicos e mutáveis no tempo. A projeção é feita de acordo com o número de
pessoas que, em cada parentela, manifestaram o desejo de retornar à terra. Assim, temos:
População atual da Terra Indígena Guyraroká - dados de 2001
Localização
geográfica na
Terra Indígena
Mutunry
Ñundiary
e
Koguery
Nome do hi'u ou 'cabeça de parentela', local onde se Total
encontra atualmente e número de pessoas que reúne pessoas
Airton Biguá , reserva de Limão Verde, 55
a) Papito, acampamento, 32; b) Felipe, reserva de
Caarapó, 46; c) Cândida, reserva de Dourados, 23; d)
Paulo, reserva de Dourados, 34; e) João, reserva de
Caarapó, 14.
Tapytã
a) Miguela, acampamento, 11; b) Aurélio, reserva de
Caarapó, 27; c) Carmem, acampamento, 17.
Ynambu
e a) Tereza, reserva de Dourados, 49; b) Mário, reserva de
Guyra Varero
Caarapó, 41; c) Ranulfo, reserva de Taquapery, 28.
Chagua'yry
Elia (e irmãos), reserva de Dourados, 83
Mbyry'y
Horácio, reserva de Caarapó, 21
Lagoa de Ouro Jorge, reserva de Dourados e reserva de Caarapó, 180
Kurusu Ambá
Doraline, Três Irmãs, 26
Médio Ypytã
Sangrina, reserva de Caarapó, 14
Mboreviry
Quevedo, reserva de Caarapó, 33
Mboreviry
Getúlio, reserva de Caarapó, 9
Rijuaju
Lucero
Alvarenga e Florêncio, reserva de Caarapó, 19
Ypo'i
Cavalheiro, reserva de Caarapó, 79
Total geral da população estimada
de
55
149
55
118
83
21
180
26
14
33
9
19
79
841
É importante deixar claro que a população de Guyraroká tende a ser bem maior do
que os números que aparecem na tabela. A superpovoação das reservas demarcadas
motivará muitas pessoas aparentadas com as famílias de Guyraroká a se deslocarem para lá,
a partir da atualização das relações de parentesco17.
Guyraroká era originalmente o centro político e religioso de um tekoha guasu que
reunia um conjunto de aldeias relacionadas, dispostas principalmente ao longo dos rios
Ypytã, Caracu e Caarapó. A recomposição dessas aldeias, terá como base a atualização das
relações políticas e demais formas de sociabilidade que unem estas parentelas. Isto
46
provavelmente fará com que surjam disputas e conflitos entre facções e seus líderes. É
necessário que a FUNAI designe técnico capacitado para acompanhar e apoiar as parentelas
e seus líderes no processo de recomposição do tekoha. Isto poderá prever e evitar prejuízos
para essa população, já tão penalizada por anos de exílio forçado de seu território.
II - 3 O eixo das águas
A distribuição das antigas moradias dos Kaiowá que compunham o tekoha guasu
de Guyraroká seguia basicamente o eixo dos córregos Ypytã, Torõrõ (atual córrego
Caarapó) e Karaku, incluindo seus afluentes e cabeceiras. Afora estes locais, ocupavam
também o entorno da Lagoa de Oro, que fica entre os córregos Ypytã e Caarapó (Torõrõ).
Chama a atenção o fato de que os locais de moradia apresentam características
semelhantes: a) estão próximos a minas d‟água potável, sempre limpa e fresca. Acreditam
que a água extraída de minas d‟água (ayvu) é a única apropriada para consumo humano e
só muito à contragosto consomem outro tipo de água, sempre associada à origem de
doenças; b) o local da casa, embora próximo à água, situa-se sempre numa elevação do
terreno, alguns metros acima do curso d‟água e com topografia com inclinação suficiente
para garantir um bom escoamento da água das chuvas; c) ficam à pouca distância de terras
férteis, próprias para o cultivo de milho, que juntamente com a mandioca, constituem a
base da alimentação de origem vegetal; d) em boa parte dos casos, a casa fica à pouca
distância de região de transição entre formações florestais distintas: ciliar, mata e cerrado.
Isto permite explorar recursos vegetais e animais próprios à cada um desses tipos de
vegetação; e) para a escolha do lugar de construção da casa, observam ainda a ocorrência e
concentração de alguns tipos de vegetais que atraem caça, como determinadas espécies de
árvores cujos frutos ou sementes são apreciados por determinados animais. Todas estas
observações estão em consonância com as características observadas quanto a localização
de sítios arqueológicos ocupados pela população kaiowá (e guarani em geral), antes do
17
Este tema é amplamente discutido em Pereira (1999), e constitui um fenômeno típico da
organização social kaiowá que regula os procedimentos de circulação de pessoas entre parentelas
relacionadas.
47
período colonial. Nesse sentido, os estudos de etnohistória e arqueologia são uma referência
importante para identificar a continuidade histórica e cultural entre os atuais kaiowá e as
populações que lhes deram origem.
Antes da expulsão da terra, os Kaiowá estavam dispersos em grupos locais
(parentelas) cuja população dificilmente ultrapassava uma centena de pessoas, morando em
uma única casa comunal –ogapysy. Como mencionei anteriormente, alguns locais de antiga
moradia ficaram fora da terra delimitada. Isto porque não foi possível localizar parentes
vivos dos antigos moradores ou porque os representante das famílias originárias desses
locais, sendo em pequeno número, preferiram se aliar aos vizinhos, com o intuito, segundo
entendem, de tornar mais plausível a demarcação e a recomposição das unidades
sociológicas que compõem e configuram o tekoha. Muitas dessas parentelas passaram por
drásticas redução populacional devido aos conflitos que caracterizaram o período da
chegada dos fazendeiros: a) alguns foram assassinados; b) outros morreram por doenças
como sarampo, catapora, varíola e tuberculose, o que era agravado pela fome, já que em
certos casos a doença atingia à todos, e os doentes morriam por falta de cuidados e
alimentos; c) mas a maior número de óbitos com certeza foi em virtude da desarticulação
do sistema produtivo devido à perda do território e ao desordenamento da vida social. Isto
se reflete nos casos de suicídios que ocorreram com moradores de Guyraroká que vivem na
reserva de Dourados. Alegam que dentro das reservas é impossível a prática de seu sistema
cultural.
A habitação tradicional era a casa grande comunal, denominada ogapysy ou
ogajekutu. A casa tinha cerca de 10 metros de largura e comprimento variável, de acordo
com o número de pessoas que nela residiam, podendo atingir 40 metros, aproximadamente.
A arquitetura combinava parede e teto, ou seja, as vigas que formavam as paredes eram
curvadas até se encontrarem e formarem o teto. A casa constituía uma unidade social
formada por um número variável de fogos domésticos relacionados entre si por vínculos de
parentesco bilateral (consangüinidade e afinidade), formando a parentela.
Alguns nomes de antigos chefes de família que eram donos de casas grandes –
ogapysy, são constantemente lembrados em Guyraroká, como: Aguara Guasu, Karaguatá,
Xukarro, Locro Rykue e outros. As pessoas que ocupavam uma dessas casas eram
48
identificadas pela figura de seu líder, sendo que para isso utilizavam vários termos. Assim,
“Xukarro ijypykuera”, significa “os que são descendentes do Xukarro”, e “Xukaro
Kentekuera” significa “o pessoal do Xukarro”, enquanto “Xukarro hekohaguepe” significa
“os que seguem o sistema ou a orientação do Xukarro”. A casa grande funcionava também
como unidade política, econômica e às vezes religiosa. Era comum que dispusesse de um
rezador que resolvia as questões referentes ao contato com o sobrenatural. O prestígio de
uma parentela aumentava com o seu tamanho e pelo fato dela dispor de um rezador de
prestígio, capaz de realizar os grandes cerimônias, para as quais concorriam um grande
número de parentelas. As casas estavam dispostas ao longo dos três riachos mencionados
anteriormente e seus respectivos afluentes (cabeceiras).
O domínio da hidronímia é total. Os Kaiowá possuem nomes na própria língua
para todos os rios, córregos, nascentes e cabeceiras da região. Os regionais adotaram a
nomenclatura kaiowá para os córregos Pytã e o Karacu, apenas aproximaram a pronúncia e
a escrita para a forma da língua portuguesa. A notável memorização da toponímia
testemunha a ocupação em caráter permanente da região por um longo período. Não raro, a
origem dos nomes dos locais são referências importantes para acontecimentos situados em
tempos remotos, extrapolando o campo da memória vivida e adentrando-se pelo tempo dos
antepassados míticos. A memória das referências geográficas remete aos seus antigos
ocupantes e, em muitos casos, são designadas pelo nome de um antigo morador de elevado
prestígio, que liderava uma parentela.
No curso do riacho Ypytã entre as cabeceiras Koguery e Jundiary existiam, até
1950, várias casas grandes (ogapysy). Estas parentelas eram lideradas por Manuelito (avô
de Miguela), Xiru Xupe, Ava Guasu, Juan Antônio (bisavô de Papito) e Avelino. Segundo
os velhos (que na época eram jovens), as casas estavam dispostas à uma distância que
variava de um a três quilômetros uma da outra.
Papito Vilharva conta que em 1948-9 foram expulsos da cabeceira Ñundiary, que
fica na margem direita do Ypytã, por fazendeiros que deram tiros sobre suas casas. Papito e
seus irmãos18 nasceram nesse local, assim como seu pai e o pai de seu pai. Nessa época,
18
Os irmãos de Papito são: Felipe, que está com ele no acampamento, Cândida que mora na reserva
de Dourados, João e Inês, que moram na reserva de Caarapó.
49
passaram a residir na cabeceira Yvykua Guasu ou Tapytã, morando próximo dos
remascentes das parentelas de Silvério, Francisco, Karapé, Vusu, Aguara Guasu e Ava
Pytã.
Na região delimitada pela confluência do Ypoi e Lucero com o riacho Ypytã, nas
imediações das coordenadas geográficas S: 22 29. 32. 6 e W: 54 39 13.7, existiam duas
casas grandes (ogapysy), uma chefiada por Sebatiano e outra por Jary Cachimbo, uma
viúva que tinha nove filhos e que era xamã muito conceituada, principalmente como
médica. No Y Poi morava Inácia, sogra de Jorge Paulo. Também era do local o Cavalheiro,
que atualmente mora em Caarapó, com a mulher, oito filhos adultos e vários netos. Essas
famílias só saíram da terra quando as pressões se tornaram insuportáveis.
No curso do Lucero existiam vários moradores. Alguns desses lugares ficam na
margem direita da estrada que liga Dourados-Juti. Na cabeceira do Lucero morava João
Puku, que hoje vive na reserva de Jacarei. Na cabeceira do Y Poi, morava Vregório com 13
pessoas. Os descendentes desses moradores vivem hoje na região de Navirai, onde
trabalham em fazendas. Conversei com alguns desses integrantes e eles manifestaram
ansiedade em retornar ao seu antigo território, de onde afirmam terem sido expulsos
“debaixo de bala”. No curso do Lucero morava Xucaro com 18 pessoas, localizei boa parte
dessas pessoas vivendo na reserva de Caarapó e em fazendas da região, os mais velhos
ainda nasceram no local. Na mesma situação encontra-se os descendentes dos familiares de
Miguel Guagui, que morava com 12 pessoas.
Ao longo do Lucero morava Xiru Urutau com 25 pessoas, na margem esquerda.
Enquanto que na margem direita, morava Xavarõ com 10 pessoas, sendo que dois de seus
filhos moram hoje na reserva de Dourados e um na reserva de Caarapó. Ambos possuem
vários filhos e netos, conforme pode ser visto nos diagramas em anexo.
Na parte superior da confluência do Chagua Yry com o Ypytã, moravam Kicho,
Agostina e Chico (que tinha treze filhos). Na parte inferior dessa mesma confluência,
morava Rivero.
A cabeceira Mboreviry fica na margem direita do Ypytã. No local compreendido
entre essa cabeceira e uma pequena nascente que nela deságua, denominada Yvypajere. Aí
morava Emílio com um grupo de 20 pessoas. Abaixo morava Manuel Xikuarapeum com 17
50
pessoas, tinha casa grande (ogapysy), seus descendentes são bastante numerosos, moram na
reserva de Caarapó e utilizam o sobrenome Quevedo. Na confluência do Mboreviry
(Mboreviry Varra ou Mborevi Rijuaju) com o Ypytã, morava Ruvito com 13 pessoas, tinha
casa grande ou ogapysy, seus descendentes moram hoje na reserva de Caarapó. Seu filho
Getúlio que ainda nasceu no local, tem dois filhos e cinco netos. Nesse local moravam
ainda outras famílias, cujos líderes eram Secre, Dona Santa, Ramona Kue19 (uma viúva
com 10 filhos).
No Ypytã, um pouco acima da cachoeira Ytu, existiam duas casas grandes –
ogapysy. Na margem esquerda ficava a casa de Luca Guasu e com ele moravam cerva de
30 pessoas. Na margem direita morava Chico Pi‟a com cerca de 15 pessoas. Os
descendentes dessas famílias vivem hoje na reserva de Caarapó.
A cabeceira Passo Fundo fica na margem direita do Ypytã. Descendo o Ypytã,
ainda pela margem direita, encontramos a cabeceira Tapytã ou Yvykua Guasu (grande
buraco na terra), nesse local, próximo ao leito do Ypytã, morava Guilhermo Karape com
sua parentela. Mais abaixo no curso do Ypytã, ainda na sua margem direita, encontramos a
cabeceira Ñundiary, local onde até o início da década de 1950 havia um grande número de
moradores, entre eles: Pedro, Loreta, Nicanor, Vito, Filomena, Inácio Kyinhry, Romona
Guasu, Elsa e Raúlho. Antes que a vida comunitária fosse desarticulada pela ocupação dos
fazendeiros, existia no local duas casas grandes -ogapysy: a) uma chefiada por Karapé com
cerca de 25 pessoas e; b) outra por Féli Karaguata, onde chegaram a morar Miguela (mãe
de Ambrósio, está no acampamento), suas irmãs Carmem (também residindo no
acampamento) e Amélia (que vive na reserva de Caarapó). Isto aconteceu quando já estava
em curso o processo de expulsão dos Kaiowá.
Nas margens do córrego Caracu existe um grande número de cabeceiras que eram
locais de residência de várias parentelas. A cabeceira Ynambu foi assim nomindada porque
no lugar viveu um antigo morador, líder de uma grande parentela. Quando ele faleceu seus
descendentes passaram a denominar o lugar pelo seu nome, em homenagem póstuma. Na
19
A maioria dos descendentes de dona Ramona Kue estão dispersos em fazendas da região de
Naviraí, onde trabalham como bóia-fria. É uma das famílias originárias do local que mais sofreu o
efeito desestruturador no exílio do território.
51
cabeceira Ynambu morava a família de Ranulfo Sousa (Maragato), que vive hoje com seus
filhos e netos na reserva de Takuapery. Na cabeceira Ñurumi morava Remício com cerca
de 17 pessoas, tinha uma casa grande (ogapysy), os filhos e os netos estão trabalhando em
fazendas na região de Laguna Carapã, já entraram em contato com Ambrósio e esperam a
demarcação da terra para retornar ao local de seus antepassados. Nas cabeceiras Kure
Varero (lugar onde os queixadas tomam água) e Guyra Varrero (lugar onde os pássaros
tomam água), moravam os parentes da esposa de Ranulfo Sousa ou Maragato (ver
diagrama), que hoje vivem nas reservas de Taquapery e Caarapó. Na cabeceira Jacu Jeroky
(lugar onde os jacus rezam), vivia um cabeça de parentela de nome Mainõ (beija flôr), com
suas quatro mulheres e quinze filhos. No local denominado Mutunry (local onde o mutum
toma água), morava um chefe de família com o mesmo, que reunia em torno de si cerca de
40 famílias. Com a entrada dos brancos na região nome, a casa grande (ogapysy), onde
todos residiam coletivamente, foi abandonada, e as famílias dispersas, passaram a morar em
pequenas casas, construídas ao estilo cabloco. Em frente ao Mutunry, mas na margem
direita do Karaku, morava a família do Xiru Kaguare, também com várias famílias. No
local denominado Kurusu Ambá fica a cabeceira Mbyry‟y (um tipo de coco). Do lado
esquerdo dessa cabeceira morava Lacário com cerca de 15 pessoas. Do lado direito da
mesma cabeceira morava Locrorykue com cerca de 20 pessoas. Tinha também um morador
de nome Horácio, cuja família reside hoje na reserva de Caarapó.
Na Lagoa de Ouro morava Jorge Paulo e Zé de Oro (que aí faleceu e deu o nome
ao local), com sua mulher de nome Carlota. Zé de Oro teria encontrado ouro escondido
durante a Guerra do Paraguai, daí o seu apelido, e a denominação da lagoa até a data de
hoje. Foi um dos locais onde primeiro ocorreu a expulsão, ficando apenas algumas famílias
nucleares residindo como empregados dos fazendeiros. A mulher do Ambrósio nasceu
quando o pais ainda residia próximo à Lagoa de Ouro.
II. 4 - Localização atual da população originária de Guyraroká
A expulsão das famílias que viviam em Guyraroká provocou a dispersão dessa
população por diversos lugares. O levantamento procurou identificar essas famílias. Foi
52
possível constatar que a despeito das situações adversas que viveram durante todos esses
anos, a maioria delas mantêm sua forma própria de organização e o firme propósito de
retornar ao seu local de origem. A seguir são apresentados dados sobre as principais
famílias. Dados adicionais sobre a população do local encontram-se no item “Localização
na imagem de satélite das principais referências de ocupação tradicional” e no anexo 02.
II. 4. 1 - O acampamento
No dia 11 de fevereiro iniciei o processo de identificação me dirigindo até o local
onde estava situado o acampamento dos Kaiowá que fica do lado direito da rodovia (MS
163) que liga a cidade de Dourados à Juti, a cerca de 40 km da cidade de Dourados. O
acampamento tem um número variável de barracos, em junho/2001 eram 38, com uma
população em torno de 70 pessoas. Os barracos são construídas de lona preta, fornecida
pela FUNAI, em média com 5 a 8 metros quadrados cada um. As fogueiras servem tanto
para cozinhar os alimentos quanto para aquecer as pessoas à noite. Uma caixa d‟água
abastecida pela prefeitura de Caarapó fornece água para o preparo de alimentos, lavagem de
roupa e higiene pessoal. O cotidiano das mulheres é marcado pelos cuidados com as
crianças, lavagem de roupas, preparo de alimentos, costura e limpeza dos barracos. As
crianças brincam entre as árvores ou caçam pequenos animais ou pássaros em volta do
acampamento, enquanto que os homens buscam lenha e cuidam da segurança.
Eventualmente fazem algum artesanato e também pode acontecer de alguns homens jovens
saírem por alguns dias para trabalhar em fazendas da região.
Retornei ao acampamento várias vezes e os Kaiowá construíram uma barraca de
lona preta que permitiu que, protegido das constantes chuvas que caíram na região entre os
meses de fevereiro e março, eu armasse minha rede entre duas árvores. Estando entre eles
por longos períodos, comendo, tomando banho e pernoitando, pude constatar as precárias
condições do acampamento. Esta convivência íntima se impôs como um “dever de casa do
antropólogo”, pois não há como fazer etnografia sem estabelecer um contato próximo e
continuado com os informantes. Assim, pude observá-los em seu cotidiano, coletando as
informações em situações mais espontâneas, evitando as perturbações de formalidades,
53
intimidações e constrangimentos, normalmente impostos pela distância cultural entre a
sociedade indígena e a sociedade nacional, da qual o antropólogo é um representante. Foi
possível também fazer as mesmas perguntas à diferentes informantes, para checar e
complementar dados. Compartilhar da intimidade dos Kaiowá foi fundamental para a
apreender a maneira como pensam e vivem seu modo de vida tradicional e atual.
Constituíram momentos privilegiados para a coleta das informações especialmente: a) o
cair da noite quando podia ouvir as rezas e conversar longamente com os xamãs; b) as
rodas de mate ao amanhecer, onde geralmente se conversa assuntos mais íntimos e sérios e,
as rodas de tereré ao longo do dia, onde as conversas giram em torno de assuntos de caráter
público ou assumem um tom mais jocoso.
Os Kaiowá insistiram que eu deveria visitar seus parentes, também originários de
Guyraroká, que por razões diversas não estavam residindo no acampamento. A confecção
das genealogias dos antigos moradores da área também apontava para um grande número
de pessoas residindo principalmente nas reservas. Foi assim que decidi me dirigir até esses
locais e coletar informações sobre a história das famílias originárias de Guyraroká e dos
motivos de abandono do local. Dessa forma, a população da área identificada se mostrou
muito superior àquela que habita o acampamento, como será demostrado adiante.
O acampamento é ocupado por famílias pertencentes a algumas das parentelas que
residiram em décadas passadas na Terra Indígena Guyraroká, sendo que a parentela
principal é liderada por Papito Vilharva. Outras parentelas enviaram para o acampamento
apenas algumas pessoas, sendo que os demais integrantes estão trabalhando em fazendas,
usinas de álcool ou permaneceram nas reservas demarcadas onde plantam roças de
subsistência. Essas pessoas ajudam a manter os parentes no acampamento, onde sempre
aparecem em visitas que podem durar alguns dias; há assim, um constante fluxo de parentes
que chegam e que saem, trocam bens e informações.
Todas as pessoas que estão no acampamento estão de alguma forma relacionados
por laços de parentesco com Papito Vilharva ou sua esposa. Papito é atualmente o hi’u da
parentela mais importante. Literalmente a palavra pode significar avô, mas é usada pelos
kaiowá como um termo de respeito, aplicado como vocativo para a pessoa que é
considerada o principal organizador da parentela, conforme foi descrito no breve esboço
54
sociológico. O hi’u é o “cabeça da parentela”, sempre um homem de idade avançada que
gerou muitos filhos e filhas e, conseguiu, através dos serviços religiosos que presta e da
habilidade política para resolver os problemas de relacionamento entre as pessoas, manter
os parentes unidos sob sua liderança. Existem vários velhos considerados hi’u na população
originária de Guyraroká. Todos eles nasceram no local e mesmo com as peripécias vividas
nos anos em que estiveram fora da terra, conseguiram manter pelo menos parte de suas
parentelas unidas. Papito e Jorge Paulo20 são dois desses personagens que residem no
acampamento, mas existem outros residindo em reservas demarcadas e, segundo
afirmaram, prontos para retornar ao local, assim que lhes seja assegurado o acesso. Farei
menção a eles quando tratar das parentelas que residem fora do acampamento.
É impossível um homem chegar a se constituir como um cabeça de parentela, sem
contar com uma esposa que esteja capacitada com as mesmas habilidades. A mulher do hi’u
deve ser uma ha’i21, termo que é usado no sentido de mãe ou avó da parentela. Em certos
casos o prestígio da ha’i pode inclusive extrapolar o de seu esposo, principalmente quando
trata-se de mulher xamã. Via de regra, a ha’i é parteira e conhecedora de remédios para
tratamento dos incômodos femininos, principalmente relativos à gestação e problemas
ginecológicos.
Assim, cada uma dessas parentelas é organizada por um ancião ou anciã de
prestígio (ou ambos). Este executa rituais de cura dentro círculo de seus parentes, reza e
aconselha os parentes com o objetivo de manter o ambiente necessário ao desenvolvimento,
sem maiores percalços, das atividades cotidianas. Manter a estabilidade política e conjugal,
resolver problemas que resultam em falatórios e fofocas, planejar e organizar as atividades
produtivas e, propiciar a segurança em relação às ameaças sobrenaturais, estão entre as
mais difíceis tarefas de um líder de parentela. Se ele não demonstrar essa capacidade, seus
parentes vão saindo aos poucos e se incorporando em outras parentelas, com as quais
tenham algum vínculo de parentesco. Embora a parentela tenda a apresentar estabilidade e
20
Jorge Paulo alterna a presença no acampamento com períodos em que reside com uma das filhas
na reserva de Dourados.
21
É por esse motivo que algumas mulheres figuram como "cabeça de parentela" no item da tabela
onde este dado é apresentado para a população de Guyraroká. Elas são maior referência para suas
parentelas que seus respectivos maridos.
55
durabilidade no tempo, enquanto uma unidade sociológica, sua composição se altera no
tempo, tanto pelas mortes e nascimentos, quanto pela incorporação de membros via
casamento ou perda por relações conjugais desfeitas. Além disso, as pessoas sempre podem
optar por permanecer na própria parentela ou mudar para junto da parentela do cônjuge, já
que entre os Kaiowá não existe uma regra unilateral de residência.
Ficou evidente desde o primeiro contato o forte sentimento religioso da
comunidade. Construíram quebra molas (redutores de velocidade) cavando valetas na
rodovia de terra que passa em frente ao acampamento e instalaram objetos de proteção
ritual em frente ao acampamento. De cada lado do quebra mola armaram dois grandes
arcos, do mesmo formato do que usam para atirar flecha, com a diferença que, nesse caso,
cumpre apenas a função de proteção ritual. Acreditam que esse tipo de arco baliza e
delimita o espaço que ocupam, sendo identificado por suas divindades que não permitem
que nenhum mal acometa as pessoas, que estão assim protegidas dentro daquele espaço.
Isto remete a importantes fundamentos da cosmologia kaiowá, que tem no arco e na flecha
um dos principais elementos constitutivos de sua identidade étnica, conforme será mais
bem descrito adiante, no item brancos e índios.
Até fevereiro de 2001 haviam nascido 3 crianças no acampamento. Como
resultado das pressões que receberam dos fazendeiros, uma parte das famílias retornou para
a reserva de Caarapó, onde aguarda o desfecho do processo de demarcação. Ambrósio
também afirma que não existem recursos para manter muitas pessoas no acampamento e
por isso pede que as pessoas aguardem onde estão.
Muitas famílias originárias de Guyraroká que identifiquei morando em outras
localidades queriam se mudar imediatamente para o acampamento, entendiam que o Grupo
de Identificação estava demarcando a terra. Sempre que possível procurei desestimular essa
transferência, tendo em vista a precária situação no acampamento, onde não dispõem de
alimentos e nem mesmo de lenha para cozinhar ou para aquecer-se, esclarecendo também
que a demarcação só ocorreria caso se cumprisse todos os requisitos que compõem o
complexo processo, composto de várias etapas.
Vários homens jovens deixaram suas famílias na reserva de Caarapó, onde podem
contar com mais recursos (lenha, pequenas roças, assistência à saúde, escola, etc.), e foram
56
trabalhar no corte de cana em uma usina de álcool na região. Foram contratados por um
empreiteiro regional que mora na cidade de Caarapó de nome Ivo, que também tem um
comércio e fornece mercadorias para as famílias dos trabalhadores. Segundo informação de
Ambrósio, o comerciante costuma “prender” o cartão dos aposentados e a identidade de
quem está trabalhando para ele, para dessa forma, assegurar o recebimento das mercadorias
que fornece. Constatei que tal procedimento é comum na região, a despeito da coação que
eventualmente a FUNAI e a Polícia Federal realizam em alguns estabelecimentos. Estive
com algumas das famílias desses trabalhadores em Caarapó e elas demonstram intenção de
retornar à Guyraroká assim que possam ter acesso à terra. Algumas dessas famílias já
estiveram por algum tempo vivendo no acampamento, mas não suportaram as duras
condições de vida e a completa dependência em relação ao auxílio da FUNAI e das cestas
básicas que eventualmente recebem do governo estadual.
As parentelas Kaiowá que vivem nas reservas demarcadas, mas são
originários de Terras Indígenas não reconhecidas pelo governo, ficam
obrigadas a se sujeitar a dominação dos líderes políticos das famílias
originárias do lugar. Explicando os moti vos que levaram sua comunidade a
retornar para Guyraroká, Ambrósio afirmou que “na terra (reserva)
demarcada a gente entra sem direito à nada, se vai plantar tem que pedir
autorização para o pessoal de lá”. Assim, a comunidade deslocada de seu
território vive em uma completa sujeição política, ficando excluída do
acesso aos parcos recursos que adentram na reserva através dos programas
de apoio das instituições governamentais ou de outras organizações da
sociedade civil.
A superpovoação nas reservas demarcad as resulta em uma disputa
acirrada por escassos recursos naturais tais como, terras próprias para
agricultura e mesmo lenha. Acusações e conflitos de toda ordem marcam a
relação entre parentelas no interior dessas reservas, já que convivem lado a
lado grupos de pessoas originários de distintas localidades, sem vínculos
históricos e sociais de alianças entre eles. Pelos padrões de organização
social kaiowá, a convivência entre distintas parentelas kaiowá é marcada
pela polarização entre aliança e hostilidade . Historicamente os grupos
57
aliados residiam próximo uns dos outros, praticando intenso intercâmbio
matrimonial e religioso. Várias parentelas residindo próximas umas das
outras e relacionadas entre si por forte coesão social e solidariedade
política, formavam o que denominam de tekoha. A convivência com as
parentelas que estavam fora desse círculo era marcada pela hostilidade. A
reserva demarcada se distingue do tekoha justamente porque as parentelas
que aí residem foram forçadas a conviver em um mesmo espa ço, sendo que
esse
ajuntamento
não
leva
em
conta
seus
padrões
tradicionais
de
organização social, o que resulta em constantes conflitos 22.
A distribuição espacial dos barracos de lona é, aparentemente, aleatória.
Entretanto, a observação mais atenta revela que ela segue o padrão da organização, que é
baseada no parentesco e na existência de unidades sociológicas típicas da sociedade
kaiowá. Assim, analisando a planta do acampamento é possível identificar uma série de
características que passo a descrever. Os círculos que tracei na figura delimitam o espaço
ocupado pelo grupo de parentes próximos que cooperam entre si nas atividades cotidianas.
Na língua guarani são denominados de jehuvy, composto por um ou mais fogos domésticos.
Esta unidade integra um conjunto de espaços com funções sociais e/ou rituais distintas.
Assim:
-K = koty: é o local onde dormem;
-C= corresponde ao local onde acendem o fogo culinário (tata ou kozina), onde
preparam os alimentos;
-N= o ñungatuha é o local onde guardam os alimentos e outros pertences. Serve
também para hospedagem de parentes que estão em visita;
-B= banheiro, onde tomam banho, já que não dispõem de mina ou córrego. Tem
um caráter semi-público, já que pode ser utilizado por mais de um jehuvy;
22
Atualmente os conflitos entre parentelas que vivem em determinadas reservas desarticulam os
mecanismos de controle social próprios à sociedade kaiowá, resultando em alto grau de violência
interna, que se expressa em índices elevados de alcoolismo, estupros, assassinatos e suicídios.
58
-Oká = é o espaço público que funciona como pátio onde recebem as visitas que
não fazem parte do círculo de convivência mais próximo. Local em que passam a maior
parte do dia.
O espaço entre os barracos também cumpre funções sociais e rituais. Toda essa
distribuição espacial é respeitada por todos no acampamento, pois compõem um conjunto
de normas que norteiam a vida das pessoas, como parte de um corpus de regras e valores
que rege e atribui sentido a vida social de uma comunidade kaiowá. Deve ficar claro que a
vida no acampamento é artificial, resultado de contingências históricas, mas mesmo assim,
reúne elementos básicos do modo característico da vida tradicional, relativos às categorias
de tempo e espaço social.
II. 4. 2 - Famílias originárias do Guyraroká que estão fora do acampamento
O processo de perda da terra resultou na dispersão de famílias extensas por várias
localidades. A seguir descrevo as localidades em que encontrei algumas dessas famílias
durante os trabalhos de identificação da Terra em questão. Procuro apresentar um pouco da
história de deslocamento dessas famílias da terra tradicional, as estratégias de sobrevivência
e inevitáveis impactos desestruturadores que sofreram em sua organização social.
II. 4. 3 – Famílias que vivem na reserva de Dourados
Em Dourados localizei Tereza Nilson Gonçalves, 60, que nasceu nas margens do
Caracu. Ela casou-se no Caracu e os seus dois filhos mais velhos nasceram no local. Saiu
de lá por volta de 1975, quando foi abandonada pelo marido, vindo morar na reserva de
Dourados. Imaginava que na reserva de Dourados encontraria mais facilidade para viver.
Sabia do apoio que os índios aí recebiam da Missão Caiuá que prestava assistência à saúde
e escolar e do apoio que recebiam de outras instituições para o cultivo de roças. Na época
em que deixou a região do Caracu a situação das famílias que lá residiam era bastante
difícil: trabalhavam para os fazendeiros como forma de permanecer na terra de seus
59
antepassados, mas já não tinham nenhum controle sob o território, não podiam caçar ou
plantar. Na época em que foi para Dourados, seus pais já haviam falecido, e isto foi mais
um motivo para a mudança (ambos estão enterrados no Caracu). Quando estivemos em sua
casa (Ambrósio e eu), ela de início não reconheceu Ambrósio, fazia 20 anos que não se
encontravam, na época em que se separou do marido, chegou a morar um tempo na casa da
mãe do Ambrósio, antes de se decidir mudar para a reserva de Dourados. Logo que
entabularam conversa se reconheceram, e passaram a relembrar dos personagens vivos e
mortos com os quais conviveram no tempo em que residiam em Guyraroká. Ficou muito
feliz em saber que a terra estava sendo identificada e da possibilidade de retorno. O pai de
Tereza era xamã na cabeceira Mbyry‟y, que fica abaixo do Ynambu, na margem direita do
Caracu. Tereza segue a vocação do pai, praticando serviços religiosos em benefício de
parentes e vizinhos.
Na reserva de Dourados localizei também um grupo de quatro irmãos, filhos de
Elia Ramire e Rozalina Vera: Brasilino, Ventura, Getúlio e Valdomiro. Eles são originários
da margem do riacho Caarapó23, e estão dispostos a retornar para Guyraroká, onde viviam
inicialmente com seus parentes. Ventura Ramires passou pelo pesadelo do suicídio de três
de seus filhos em Dourados. Isto aconteceu entre os anos de 1990 e 1996, dois morreram
por enforcamento e um por envenenamento. Uma das filhas de Getúlio também morreu por
enforcamento. É de se supor que o fato de serem considerados “sapo de fora”, ou seja, não
originários do local, contribui para o surgimento desses desajustamentos sociais. Esta
família é bastante tradicional, os quatro irmãos são bastante unidos, mas vivem uma
existência discreta, com pouca influência na política local. São todos velhos com mais de
60 anos, com muitos descendentes que pretendem acompanhá-los no retorno.
Marciano Paulo, 75, também é atual morador da reserva de Dourados. É irmão de
Jorge Paulo e antigo morador da margem do Pytã, nas proximidades da Lagoa de Ouro. Um
dos seus filhos de nome Tomás também se suicidou na reserva de Dourados em 1987, não
suportou a perda da mulher que se enforcou antes dele e praticou o mesmo ato. A relação
23
Córrego Caarapó é o nome dado pelos colonizadores da região. Os Kaiowá chamavam de Torõrõ,
que quer dizer goteira. Este córrego fica a cerca de três quilômetros da Lagoa de Ouro.
60
entre a epidemia de suicídio que assola os Guarani a partir da década de 1980, segundo o
exaustivo estudo de Brand (1997:14),
“coincide com o agravamento do confinamento. Trata-se, portanto, de um
sintoma relevante..(e) ..remete para o contexto histórico e atual de perda da
terra”.
II. 4. 4 - Famílias que vivem em Três Irmãs
Existem várias famílias originárias de Guyraroká que embora estejam vivendo
entre os regionais há várias décadas, ainda conservam um grande número de vínculos
societários que caracterizam a vida comunitária típica dos Guarani. É o caso da família
extensa de Doraline Martins, 62, prima paralela patrilateral de Papito Vilharva, pai de
Ambrósio Vilharva. Após a expulsão de Guyraroká ela se dirigiu para a região de Três
Irmãs, um pequeno distrito do município de Vicentina, com o objetivo de encontrar
parentes que viviam na região, pois seu marido se recusava a ir viver dentro de uma
reserva.
Doraline Martins é viúva e possuí cinco filhos, quatro filhas, vinte um netos e sete
bisnetos. Uma parte da família extensa mora com a matriarca no vilarejo de Três Irmãs,
outra parte, composta por filhos e filhas casadas, moram em propriedades rurais da região
ou em outros vilarejos. Alguns filhos/as de Doraline se casaram com regionais, todos muito
pobres, que como os índios, vivem do trabalho agrícola volante ou seja, como bóia-fria.
Mesmo assim, uma parte considerável da família se reconhece como indígena e como tal é
reconhecida par parte dos parentes que permaneceram nas reservas ou que estão acampados
ao lado da terra que reivindicam. Foram os líderes do acampamento que insistiram em que
eu deveria ajudá-los a encontrar esses parentes com os quais não tinham contato há muito
tempo, já que eu dispunha de veículo e estava ali para identificar a terra e os moradores
antigos. Doraline e seus filhos nasceram nas proximidades do córrego Caarapó ou Torõrõ.
Seu marido, já falecido, também era da mesma localidade. Todos os filhos/as falam a
língua guarani e identificam claramente os vínculos parentais com a população indígena
que vive nas aldeias e no acampamento. O mesmo não acontece com a maioria dos netos
61
que expressam dificuldade de falar e entender a língua, o que demonstra a desarticulação
dos mecanismos de reprodução da cultura. Particularmente Doraline ficou muito feliz em
receber notícias dos parentes, demonstrando grande esperança com a possibilidade de
retornar para sua antiga terra e para o convívio dos parentes.
Atualmente a família de Doraline vive praticamente sem assistência em barracos
da periferia do pequeno vilarejo de Três Imãs. É importante observar que casos como esse,
em que ainda é possível identificar os vínculos de índios “desaldeados” com comunidades
estruturadas, é provável que elas venham, com relativa facilidade, novamente se incorporar
às suas comunidades originárias. Isto proporcionaria escapar da constrangedora situação em
que vivem na periferia desses vilarejos pobres, expostos ao convívio com o preconceito, a
miséria, o alcoolismo e a prostituição. Oferecer esta oportunidade para essas pessoas é
resgatar a possibilidade de que reencontrem a dignidade que subitamente lhes foi roubada,
no processo de esbulho de suas terras. Ambrósio desabafou:
“o que vamos fazer, são nossos parentes, agora alguns estão um pouco
misturados (miscigenados) com branco, mas vamos aceitá-los assim
mesmo, eles não tem culpa de todo esse sofrimento que pesa sobre eles, o
que importa é reorganizar a nossa aldeia e retomar a nossa vida, muita
coisa os rezadores (xamãs) vão trazer de volta, mas teremos que conviver
com muitas perdas, não há como recuperar tudo”.
Nos distritos rurais do município de Vicentina há casos de famílias com traços
físicos e culturais reconhecidos pela população local como nitidamente indígenas (inclusive
muitos deles falam a língua), mas que, quando os entrevistei, preferiram não se identificar
como indígenas. Na verdade ficaram aterrorizados com nossa presença24, o que demonstra
que um levantamento da situação requer uma convivência mais prolongada e discreta, para
conseguir a confiança das pessoas. Esta desconfiança pode estar relacionadas com traumas
das violências sofridas no passado e ao extremo preconceito de que são vítimas no presente,
24
Nossa equipe no momento era composta pelo Chefe do Núcleo de Apoio da FUNAI em
Dourados, um índio Kaiowá que conhecia a região e eu. Também nos acompanhava o Presidente da
Câmara Municipal de Vicentina que havia solicitado que a FUNAI fizesse um reconhecimento das
populações indígenas que vivem no Município.
62
o que os coloca em uma situação de inferioridade social e de suspeita em relação à qualquer
iniciativa de instituições públicas. À primeira vista, apresentam traços de organização
social guarani, vivendo em parentelas aglomeradas em pequenas casas ocupadas por
parentes próximos e sob a liderança de um casal de velhos, que constituem os
organizadores das relações que se estabelecem entre os componentes do grupo. Em alguns
casos a porcentagem de deficientes físicos é alta, o que contrasta com a situação encontrada
nas comunidades guarani e kaiowá de Mato Grosso do Sul, onde tais casos são pouco
freqüentes. Tal fato pode estar relacionado com a carência alimentar e o alcoolismo.
Propostas para casos como esses só poderão ser elaboradas após levantamento mais
detalhado que permita identificar: 1) a origem exata desses grupos; 2) se ainda existe
vínculos com comunidades organizadas; 3) se a situação requer procedimentos de melhoria
das condições de vida no próprio local, ou se seria o caso de deslocamento dessas
populações para possíveis locais de origem. Considerando as dificuldades na identificação
das características dessas populações dentro do prazo previsto para a entrega do relatório,
elas ficaram fora do levantamento da população tradicional de Guyraroká.
Brand registra o termo “esparramo” com o qual os Kaiowá se referem a expulsão
de suas terras tradicionais. Segundo o autor, o sentido dessa palavra,
“mais do que a perda da terra, significa a dispersão e o desmantelamento das
famílias extensas. Ou seja, a perda da terra traduziu-se na dispersão dos seus
moradores e não simplesmente em sua transferência para dentro das Reservas”.
Brand (1997:89)
A flagrante desestruturação das famílias que vivem atualmente em Três Irmãs
evidencia o quanto a perda da terra impede que os mecanismos de reprodução social atuem
dentro dos moldes tradicionais. Ocorre a quebra da conexão entre as gerações e faz com
que os princípios de organização social percam o sentido e a eficácia.
II. 4.5 - Famílias que vivem a reserva de Limão Verde
Airton ou Biguá, nasceu nas margens do Caracu de onde saiu em 1965 quando
tinha 14 anos. Segundo informou, a maior parte de sua família optou em ir para a reserva de
63
Dourados, onde acreditava que encontraria melhores condições de vida, já que os
fazendeiros estavam pressionando para deixar o local. Sua mãe nasceu nas margens do
Caracu, seu pai era do Kurupi, uma aldeia próxima, com a qual tinham constantes relações.
Antes de saírem, uma de suas irmãs faleceu e foi enterrada no local. O seu avô (pai de sua
mãe), de nome Karape, era quem rezava no local. Seu pai morreu em Dourados, por volta
de 1968, ou seja, três anos depois que saíram do Guyraroká. Ireneu, irmão da mãe do Bigua
resistiu na terra por mais tempo, ficou lá até 1974, mas apareceu morto à facadas, em
circunstâncias desconhecidas. Biguá foi avisado da morte do tio (Irineu), fretou um carro e
trouxe seus familiares para a reserva de Dourados, onde residem até hoje. Biguá vive hoje
na reserva de Limão Verde, mas está disposto a reunir seus familiares e retornar para o
antigo local de moradia. Parte de seus parentes também vivem hoje na reserva de Caarapó,
onde casaram e tiveram filhos e netos.
II. 4. 6 - Famílias que vivem na reserva de Caarapó
A maior parte da população originária de Guyraroká vive hoje na reserva de
Caarapó. A família de Jorge Paulo chega à centenas, mas existe um grande número de
parentes de Papito e sua esposa. São três parentelas relacionadas entre si por vínculos
matrimoniais e alianças políticas. Estive com várias famílias pertencentes a estas
parentelas, em diversas localidades. Grande parte delas demonstraram interesse imediato
em retornar para Guyraroká, mas algumas preferem aguardar o andamento dos fatos,
embora não abram mão de seu direto de retorno à terra. A volta dessas famílias dependerá
de complexos arranjos políticos entre as parentelas e exigirá acompanhamento
especializado por parte da FUNAI, para apoiar as lideranças das diversas parentelas na
resolução dos inevitáveis conflitos que deverão advir de o processo de recomposição do
tekoha.
64
II. 4. 7 - Famílias que vivem na reserva de Taquapery
Na reserva de Taquapery vive a parentela de Souza Margato, ele é irmão de Jorge
Paulo, com idade muito avançada. Junto dele estão seus filhos e netos. Demonstraram
interesse em retornar para Guyraroká, entretanto grande parte da família é convertida ao
pentecostalismo e sofrem alguma rejeição das lideranças ligadas ao sistema tradicional.
Algumas delas afirmaram categoricamente que se quiserem voltar terão que deixar a
religião do branco, sem dúvida este será mais um problema para reorganização do tekoha.
65
III - PARTE - Atividades produtivas
A conduta econômica entre os Kaiowá não se pauta por uma reciprocidade
generalizada. Na verdade, combina a existência de pequenos círculos de pessoas que se
consideram próximos e entre os quais existe um alto grau de solidariedade, com unidades
sociológicas maiores e mais abrangentes, conforme ficou caracterizado no breve esboço
sociológico que aparece na I PARTE do presente relatório. Nestas últimas, a solidariedade
tende a ser mais difusa, só se expressando nos momentos de realização de certos rituais ou
ajuntamentos políticos.
O desenvolvimento de atividades produtivas está diretamente conectado com as
unidades sociológicas a partir das quais essa sociedade está organizada. Cada parentela –
te‟yi, é estruturada em torno de um líder de expressão político/religiosa –hi‟u, tendo como
base relações de parentesco cognático. A parentela ocupa um porção de terra vizinha à
outras parentelas, com as quais estabelece intercâmbio matrimonial e ritual, compondo
assim uma unidade mais abrangente denominada tekoha.
Cabe aqui fazer apenas uma breve referência às principais atividades econômicas
desenvolvidas pelos Kaiowá, já que em várias partes do presente relatório aparecem dados
sobre a vida econômica do grupo. A base da produção de alimentos entre os Kaiowá é a
agricultura, principalmente o milho e a mandioca, mas também em menor escala aparece o
cultivo do amendoim, feijões, cana-de-açúcar, carás, batatas, Mbacucu (uma espécie de
tubérculo), e algumas frutíferas como o mamão, a melancia e plantas introduzidas como a
manga, a laranja e a banana. Dessa forma, são definidos como agricultores de floresta
tropical. A escolha dos locais de moradia leva sempre em conta a presença de solos que
possam garantir um boa produtividade agrícola. Cultivam também algumas espécies não
comestíveis como o urucum, o fumo e o algodão.
66
III. 1 – descrição da atividades produtivas e formas de manejo do meio ambiente
A maior parte do solo em Guyraroká é considerado de alta fertilidade agrícola. Em
meio às pastagens e lavouras que hoje dominam a paisagem, existem muitas árvores de
cebolão ou embu que foram poupadas do desmatamento pois são consideradas símbolo
dessa fertilidade. Em sua maior parte apresenta latossolo roxo ou vermelho estruturado,
denominados regionalmente de terra roxa. Originalmente a região era coberta por floresta
tropical bastante densa, com madeiras de lei como a peroba, cedro, angelim, aroeira e o ipê,
com características muito semelhante às da mata atlântica, só que menos úmida,
principalmente durante o período de inverno (junho a agosto). Apresenta em menor escala
áreas de cerrado alto (cerradão) e cerrado, com solos mais arenosos e ácidos. Os Kaiowá
dão grande importância às matas ciliares pois consideram como espaço de concentração de
muitos recursos animais e vegetais. Em conjunto, esses três tipos de formação florestal
proporcionavam recursos variados em termos de alimentos, remédios e objetos rituais.
Abaixo da cachoeira Ytu existe a cabeceira Mborevyry (bebedouro da anta),
também denominada de Yvytã Kytã ( torrão de terra), pelo fato de que as antas pisoteavam
o local e deixavam a terra desnuda. Esse lugar era estimado pela grande concentração de
caça então existente, capturadas com laço (mondé) ou caçadas com flecha.
Na cabeceira Mboreviry existia uma grande concentração de taja‟o (mesmo com o
desmatamento, ainda é possível encontrar muitas dessas plantas no local), regionalmente
denominada de taioba, muito utilizada pelos Kaiowá na alimentação. Refogavam a folha e
faziam uma espécie de farofa com farinha de milho branco.
A região interfluvial (espigão) era utilizada como áreas de caça, coleta e preparo
de roças. Hoje estão ocupadas por pastagens e agricultura, restando poucos capões de mato.
Um plano de manejo deveria prever a recuperação dessas áreas.
A carne do jacaré é usada na alimentação, a banha e a couraça do abdome para
remédio e os dentes para confecção de colares. Dizem que antigamente encontravam o
jacaré principalmente na Lagoa de Ouro. O muçum ou pirambóia também era mais
freqüente na lagoa, utilizavam a carne fresca como alimento ou secavam, guardando-a na
forma de pó, com o qual fazem um chá, utilizado como remédio.
67
Os Kaiowá praticamente não conhecem interdição alimentar com respeito ao
aproveitamento de proteínas de origem animal. Os únicos animais que afirmaram
categoricamente não utilizarem na alimentação foram cobras (com exceção da sucuri, que
apreciam muito a carne) e o sapo cururu que consideram agourento e veículo para feitiçaria.
Enquanto hábeis agricultores, como deixa claro a bibliografia histórica e atual, os
sítios de assentamento estão onde a terra fértil possibilita uma produtividade alta nas
culturas de milho, mandioca, carás, batatas, feijão, amendoim, algodão e outras espécies
que cultivavam. Mudavam a localização das roças a cada período que variava de dois a
quatro anos, assim que a terra começasse a se infestar com ervas daninhas. A antiga roça
era então abandonada para repouso e regeneração e uma área de mata próxima era
desmatada para dar lugar a nova roça. A antiga roça ainda servia por alguns anos como
local de coleta e de caça. A escolha do local para a nova roça levava em consideração o
acordo tácito entre as diversas parentelas que ocupavam uma região. No caso de Guyraroká
as parentelas tinham direitos exclusivos sobre determinados trechos dos córregos e suas
cabeceiras ou nascentes. Tinha o “pessoal do Ypytã”, o “pessoal do Karaku”, o “pessoal da
Lagoa de Ouro”, etc. Cada uma dessas parentelas detinham direitos exclusivos quanto a
exploração dos recursos presentes no ambiente, mas ocasionalmente, faziam festas e rituais
conjuntos que congregavam os esforços de várias parentela relacionadas por vínculos de
alianças políticas, matrimoniais ou religiosas.
O cedro (ygary) é considerada uma planta sagrada para os guarani. A infusão da
casca é utilizada no batismo das crianças. O xamã também costuma fazer bocejo com a
infusão para melhorar sua voz durante as rezas. As folhas do cedro servem para desviar
tempestade, o que é feito agitando um ramo no ar, como se estivesse varrendo o ar,
enquanto se profere uma reza. Esse procedimento é denominado Jo‟asa. No acampamento
de Guyraroká ao lado do rodovia existia um pé de cedro, ele morreu, pois os Kaiowá
retiraram toda sua casca para usar como remédio nas rezas e pajelâncas que faziam durante
quase todas as noites em que lá permaneci. Essa planta tem uma boa capacidade de
regeneração e, quando dispõem de mata onde abundam os cedros, esse fenômeno
dificilmente acontece. Ademais, costumam plantar pés de cedro no entorno de suas casas.
Lamentam que hoje praticamente não existe mais cedro dentro de seu território, as matas
deram lugar as pastagens e a agricultura mecanizada.
68
A agricultura entre os Kaiowá chamou a atenção dos primeiros viajantes pelo alto
grau de desenvolvimento e eficácia, capaz de proporcionar um suprimento farto de
alimentos mesmo em se tratando de aldeias numerosas. A miséria em que vivem hoje em
dia é fenômeno recente e está diretamente ligada à perda da terra e à imposição de novas
formas de conduta econômica.
Antigamente os Kaiowá faziam três tipos de roça25: a) próximo às casas
cultivavam principalmente plantas medicinais ou voltada para a prática de rituais, já que
essas duas práticas muitas vezes se apresentam intrinsecamente relacionadas no
pensamento kaiowá. Algumas dessas plantas eram domesticadas, mas a maioria delas era
retida dos lugares em que ocorrem na natureza durante as expedições de caça e coletas e,
transplantadas no entorno da casa (ogajere), para assim estarem disponíveis sempre que
delas tivessem necessidade. Como esse tipo de vegetação praticamente não difere da
vegetação nativa é quase imperceptível. O observador externo terá dificuldade em
identificar que trata-se de uma ordenação vegetal provocada por uma interferência
intencional humana. Entretanto, os Kaiowá identificam facilmente esses locais, e
consideram que os recursos aí concentrados são importante fator na qualidade de vida.
Também é comum plantarem alguma frutífera ou tubérculos, que exigem poucos cuidados;
b) à pouca distância da casa (menos de 300 metros), costumam plantar uma pequena roça
com alimentos para serem eventualmente consumidos em dias que por algum motivo não
seja possível ir buscar os alimentos na roça principal (em dias de muita chuva por
exemplo); c) a roça principal, aquela que garante o alimento farto durante todo o ano,
geralmente é feita a dois ou três quilômetros da casa, de preferência dentro da mata. Essa
roça além de produzir alimentos tem a função de atrair a caça. É no entorno da roça
principal que armam os mondés (armadilhas), nas trilhas que os animais utilizam para
transitar entre a mata e a roça.
A caça é a atividade que fornece o principal suprimento de proteína animal,
atividade também muito desenvolvida, já que possuem um sofisticado conhecimento sobre
a fauna regional. O emprego de várias técnicas de caça e captura de animais garantem
25
Ainda praticam estes três tipos de cultivo, sempre que as condições ecológicas e demográficas
permitem.
69
considerável eficácia nessas atividades. Mesmo com a escassez de animais provocado pelo
desmatamento em grande escala, os Kaiowá sempre conseguem alguma caça, como pude
atestar no acampamento, onde consumiram vários tipos de caça (pássaros, paca, tatu,
lagarto, capivara, ema, etc.). A pesca e a coleta são atividades subsidiárias cuja participação
na dieta alimentar não deve ser menosprezada, embora na hierarquia de valores do grupo
não goze do mesmo status que a caça. Informações adicionais sobre as atividades
produtivas são apresentadas no ítem seguinte, quando trato do manejo do meio ambiente.
No tempo em que viviam em Guyraroká os Kaiowá praticavam três tipos de pesca
nos córregos Ypytã, Karaku e lagoa de Ouro. A) com flecha para peixe maiores: piau,
corimba, dourado que subiam o curso do rio no período da piracema; b) com anzol para
peixe como lambaris, carás e pequenos piaus. Os anzóis eram fabricados com agulha de
costura. Esquentavam a agulha com vela de cera de jateí (iraity ou jateí iñarantãngue), o
calor tornava o metal maleável e assim era possível dar-lhe o formato de anzol; c) com
fisga feita com cerne de alecrim (uma madeira) costumavam pescar cascudo (yñiãm),
espécie que apreciam muito. Não fazem menção ao uso do cipó venenoso (timbó) que retira
o oxigênio da água e mata os peixes por intoxicação, embora tenham conhecimento dessa
técnica de pesca. Isso deve ser devido ao fato da pouca ocorrência de pequenas lagoas na
região, locais onde dizem que a pesca com cipó é mais apropriada.
III. 1. 1 - mudanças ocorridas na economia a partir do contato
A ocupação da região pelas frentes de agropecuária ocorre de forma gradual,
sendo que à medida que as fazendas iam sendo implantadas, diminuía o trânsito dos
Kaiowá no interior de seu território tradicional. Várias dos informantes mais antigos
mudaram várias vezes fugindo das fazendas que os atingia, até que finalmente tiveram que
se mudar para outra região, quanto a terra foi tomada totalmente por fazendas, cujos
proprietários não queriam mais saber da presença indígena dentro de suas terras. Os
Kaiowá mais velhos dizem que ficaram desorientados com a velocidade com que o mato ia
sendo derrubado, segundo Jorge Paulo “um fazendeiro chegava e começava derrubar o
mato, logo outro se instalava do lado e também começava a derrubada, o índio ia afastando,
70
em pouco tempo não tinha mais lugar para ele”. Do acampamento ao lado da rodovia, o
mesmo informante contemplava a terra que antigamente ocupavam e afirmou: “ o branco
devorou completamente o nosso mato –karai ro‟upa ñande ka‟aguype”. A destruição do
ambiente atinge em cheio as atividades produtivas dos Kaiowá, que se viram reduzidos à
peões nas fazendas implantadas no território em que antes viviam.
Chama a atenção a capacidade inventiva dos Kaiowá no sentido de seguir
vivenciando aspectos de seu modo de ser tradicional a despeito das condições históricas
adversas. Trabalhando nas fazendas e sítios da região, como diaristas ou por tarefa,
conseguem manter uma constante perambulação pelo território, o que lhes permite acesso a
locais de caça e coleta de frutos e plantas medicinais. A presença desses recursos é um
critério sempre levado em conta quando procuram trabalho nas fazendas, bem como a
permissão do fazendeiro para que possam dispor de algum tempo livre para se dedicar as
atividades de caça, pesca e coleta. A remuneração é pouca, a diária variando entre R$ 8,00
e R$ 15,00, mas lhes permite, em alguma medida, comprar os bens industrializados que
necessitam, como calçados, roupas, panelas e alimentos (arroz, feijão, óleo, sal, macarrão,
carne etc.). A mobilidade do trabalho volante, ou changa como é denominada
regionalmente, lhes dá a sensação de controle sobre o território.
Em ambiente aparentemente inóspito em termos de recursos naturais, porque
quase totalmente tomado por pastagens ou agricultura mecanizada, os Kaiowá mobilizam
os seus conhecimentos tradicionais sobre o meio ambiente para conseguir os bens de que
necessitam para continuar existindo e mantendo sua identidade cultural. No período em que
freqüentei o acampamento encontrei filhotes de papagaio e tucano, criados como animais
de estimação, fato intrigante, pois esses animais dificilmente são vistos na região. Os velhos
como Papito, Carmen, Miguela, Jorge, Sousa e outros lembram com saudosismo o tempo
em que os animais eram encontrados em abundância em toda a região, alguns como a arara
azul, anta, onça, veado mateiro, entre outros já podem ser considerados extintos.
O apego dos Kaiowá a tradição é tamanho que mesmo na situação precária e
improvisada do acampamento é possível identificar uma série de elementos da cultura
tradicional: em cada barraco era possível encontrar cascas e raízes utilizadas como
71
medicamento. Dados complementeres sobre a relação com o meio ambiente aparecem em
várias partes do presente relatório e no relatório ambiental.
A implantação das fazendas colocou um impasse para a continuidade das
atividades produtivas tradicionais. Hoje os Kaiowá incorporaram uma série de necessidades
de bens oriundos da sociedade nacional, ao mesmo tempo aprenderam a produzir bens
(principalmente produtos agrícolas) destinados ao comércio, o que lhes possibilita acesso
ao dinheiro necessário para a aquisição de roupas, calçados, utensílios domésticos,
alimentos e ferramentas. Existem várias formas de entradas de dinheiro nas comunidades
entre elas merece destaque o significativo número de velhos que conseguiram os benefícios
da aposentadoria rural e de jovens que trabalham como mão-de-obra volante em usinas de
álcool e fazendas da região. Paralelamente a esta inserção na economia regional, sempre
que as condições são propícias, os Kaiowá seguem praticando sua forma característica
agricultura, a caça, a pesca e a coleta, atividades que colocam em operação as formas
próprias de reciprocidade do grupo, baseadas em relações de parentesco e aliança.
Independente do rendimento econômico essas atividades cumprem funções rituais
fundamentais na vida de qualquer indivíduo, pois estão diretamente relacionadas aos
processos de construção social da pessoa.
III. 1. 2 - relações sócio-econômico-culturais com outros grupos indígenas e com a
sociedade envolvente
Guyraroká fica no interior do território ocupado pelos Kaiowá em M S. É por este
motivo eles não tinham muito contato com outros grupos indígenas, embora soubessem da
existência dos Terena e dos Kadiwel, por exemplo. Guardam uma certa distância mesmo
em relação aos Ñandeva, com quem os Kaiowá dividem muitas aldeias (tekoha), como
acontece em Dourados, Amambai e Caarapó. A despeito da dispersão das famílias, existe
atualmente poucos casamentos entre estes dois subgrupos. Explicam que isto é devido ao
forte sentimento religioso e consciência de que são portadores de tradições e rezas
exclusivas que não querem perder. Entretanto, falam uma língua comum, apenas com
diferenças dialetais que não dificulta a compreensão e se relacionam com desenvoltura com
72
os Ñandeva quando se encontram. Também não desenvolveram relações mais próximas
com os Terena que se instalaram na reserva de Dourados no início do século XX.
Desenvolvem intensas relações econômicas com a sociedade envolvente, da qual
se reconhecem dependentes dos produtos industrializados, uma vez que perderam suas
terras e a ausência de matas os impede de praticar plenamente seu modo de vida.
Trabalham como peões nas fazendas, usinas de álcool, e mesmo em serviços braçais nas
cidades da região. Essa interação freqüente não exclui o sentimento de pertencimento a um
grupo étnico distinto: pelo contrário, parece reforçá-lo. Têm consciência de que são
considerados como seres submissos e inferiores, apegando-se à sua língua e religião como
forma de defesa de sua auto-estima e identidade. Na medida do possível procuram
preservar sua vida comunitária, dentro de espaços em que possam se resguardar da
interferência direta dos brancos. Todo o esforço do grupo para que o governo demarque
suas terras aponta nessa direção.
A intensidade das relações com a sociedade envolvente aparece em diversos
aspectos da cultura atual dos Kaiowá, como por exemplo: a) no vestuário; b) no uso de
ferramentas metálicas, veículos, bicicletas, rádios, relógios etc.; c) nos gostos musicais e no
uso de expressões vernaculares do português; d) no cultivo de plantas adotadas da
sociedade envolvente como, milho híbrido, arroz, feijão, frutas etc., como pode ser visto
nas tabelas de plantas cultivadas que aparecem no relatório ambiental; e) na criação de
animais como galinha, porco, cavalo, gato, cachorro etc. Esta intensidade é maior entre os
homens jovens, que estão mais expostos ao contato e que, pela própria divisão do trabalho,
possuem maior mobilidade espacial.
73
IV - PARTE - MEIO AMBIENTE
IV. 1 - descrição das áreas imprescindíveis à preservação dos recursos necessários ao
bem estar econômico e cultural do grupo indígena
A imagem de satélite ajuda a visualizar a localização dos principais recursos
presentes na terra reivindicada pelos Kaiowá. Assim, podemos assinalar algumas
características relativas à formação geológica do solo, à maior ou menor ocorrência de
recursos hídricos, os tipos de formações vegetais originais e as alterações provocadas pela
colonização agropecuária e, finalmente, a existência de recursos remanescentes de pesca,
caça e coleta. De fundamental importância serão os dados que constam nas tabelas que
aparecem no relatório ambiental e informações adicionais prestadas pela bióloga
responsável pelo referido relatório.
Com relação a formação geológica e vegetal a terra delimitada apresenta as
seguintes características:
a) A região nº 1 corresponde aos locais onde predomina os solos originados da
decomposição de rochas de arenito. Isto resulta em solos porosos, sujeitos à
lixiviação e, portanto, com acidez elevada e baixa fertilidade para o padrão
requerido para a atividade agrícola das culturas mais exigentes como por
exemplo o milho. Originalmente essa região era coberta pela vegetação de
cerrado baixo, do qual restam alguns remanescentes vegetais, o que permite
identificar a vegetação que aí existia. O cerrado apresenta grande
biodiversidade que é explorada pelos Kaiowá através da coleta de frutos como
guavira, pitanga, araticum etc., e plantas utilizadas como medicinais pelo
grupo indígena, recursos de caça de animais como, veado do campo, tatu, ema,
seriema etc.
b) A região nº2 corresponde aos locais onde predominam os solos mistos,
resultado da combinação de resíduos de rochas de arenito, com partículas
74
limo/argilosas e resíduos de rochas de origem vulcânica. São solos de transição
que formam um mosaico pela alteração da proporção das partículas que entram
na sua composição. São solos menos sujeitos à lixiviação, e com acidez um
pouco mais próxima daquela requerida para o cultivo agrícola. Originalmente
predominava a vegetação de cerrado com estatura e formação vegetal bastante
variável, o que se refletia em uma gama enorme de possibilidades de
exploração de recursos. Era o local de maior concentração de erva mate
(explorada pela Cia Mate Larangeira), da qual foram conservados apenas
poucos exemplares em algumas propriedades. Da mesma forma que no item
anterior, essa área concentrava muitos recursos que eram utilizados pelos
Kaiowá.
c) Na região nº3 corresponde aos locais onde predomina o latossolo roxo e
vermelho estruturado, de origem vulcânica. A cobertura vegetal primitiva era
mata tropical, com características semelhantes às da mata atlântica, só que
menos úmida, com cedros, jequitibás, peroba, angelim etc. São solos férteis e
de pouca acidez. Amostras desta cobertura vegetal resta apenas nas pequenas
manchas, conforme se vê na imagem, grande parte é ocupada atualmente com
cultivo de soja, milho e pastagens. Era nesses locais onde, segundo os Kaiowá,
eles preferencialmente cultivavam suas roças de milho.
d) A região nº4 corresponde aos locais da mata ciliar que preenche o entorno dos
cursos d'água. Grande parte da mata ciliar também foi destruída, em prejuízo
da qualidade e da quantidade da água que neles escoam. Essa mata ciliar
concentra uma série de espécies de plantas que exigem ambiente mais úmidos
para a sua proliferação. Como uma área de biodiversidade específica,
concentra recursos de coleta, pesca e caça, imprescindíveis ao bem estar e
reprodução física e cultural da comunidade.
As tabelas apresentadas a seguir foram confeccionadas pela bióloga Maria José
Neto e ilustram essas formas de conhecimentos e usos.
75
QUADRO 1
Plantas cultivadas26
Nomes populares
Abóbora
Algodão
Batata doce
Banana
Cabaça
Cana-de-açúcar
Feijão
Mamão
Mandioca
Melancia
Milho
Milho pipoca
Moranga
Pepino
Quiabo
Tabaco
Urucum
Nomes científicos
Cucúrbita pepo
Gossypium barbadense
Ipomoea batatas
Musa spp
Lagenaria vulgaris
Saccharum officinarum
Phaseolus vulgaris
Carica papaya
Manihot esculenta
Citrulus lanatus
Zea mays
Zea mays
Cucurbita maxima
Cucumis sativus
Hibiscus esculentus
Nicotiana tabacum
Bixa orelana
26
Gurani
Anda‟i
Poková
Takuare „e
Kumanda
Momone
Mandi‟o
Avati soboró
Avati Pixinga
Kuare Pepe
Pety
Uruku
Obviamente que atualmente os Kaiowá de Guyraroká não plantam todas essas culturas pelo simples fato de
não disporem de terra. Em torno de suas casas no acampamento existiam apenas algumas plantas de milho e
mandioca.
76
QUADRO 2
amendoim
araça
araticum
cumbari
erva-mate
erva-mate
genipapo
goiaba
guaimbê
guavidiu
ingá
jabuticaba
jaracatia
jatobá
limãozinho
macaúba
maracujá
marmelo
pindó
pitanga
pitomba
taiova
urucum
açoita cavalo
angico vermelho
ata brava
canela
carrapateira
cebolão
chapéu-de-couro
lixeira
pau-de-tucano
pau-terra
pequi
peroba
pimenta-do-macaco
taboa
vassourinha
alecrim
espeteiro
ipê
peroba
Extrativismo vegetal
Arachis hypogaea
Psidium guineensis
Annona coriacea
Capsicum praetemissum
llex paraguariensis
Ilex affinis
Genipa americana
Psidium guayava
Philodendrum selloum
Myrcranthes purgens
Inga uruguensis
Myrciaria cauliflora
Jaracatia corumbensis
Hymenaea courbaril
Ximenia americana
Acrocomia aculeata
Passiflora edulis
Alibertia edulis
Syagrus romanzoffiana
Eugenia uniflora
Talisia esculenta
Colocasia antiquorum
Bixa orelana
Luehea divaricata
Anadenanthera falcata
Duquetia furfuracea
Ocotea corymbosa
Sapium haemastopermum
Phytolacca dioica
Echinodorus grandiflorus
Curatella americana
Vochysia cinnamonea
Qualea grandiflora
Caryocar brasiliense
Aspidosperma cylindrocarpum
Xilopia aromatica
Typha angustifolia
Bacharis dracuculifolia
Holocalix balansae
Casearia gossypiosperma
Tabebuia avellanedae
Aspidosperma cylindrocarpon
77
QUADRO 3
Nomes populares
água pomba
aguapé
alecrim de campinas
algodãozinho
amora branca
angico
angico branco
aroeira
barbatimão
barreirinho
cana-de-macaco
canafístula
cancorosa
caraguatá
caraguatá
cedro
cocum
copaiba
embaúba
erva-de-índio
fava de anta
figueira
gervão
guavira
guavirinha
hortelã do campo
japecanga
japecanga
junco
leiteiro
língua de vaca
mamica de porca
mamica de porca
melancia de pacu
nó-de-cachorro
Continuação do quadro 3
pariparoba
sangra d‟água
sapé
tarumã
ximbuva
Plantas Medicinais
Nomes científicos
Melicoccus lepdopetalus
Nymphaea ampla
Holocalix. Balansae
Cochlospermum regium
Maclura tinctoria
Albizia hasslerii
Albizia polycephala
Myracrodruon urundeuva
Stryphnoderndrum adstringens
Machaerium hirtum
Costus arabicus
Peltophorum dubium
Maytenus ilicifolia
Ananas ananassoides
Bromelia balansae
Cedrela fissilis
Allophyllus edulis
Capaifera langsdorffii
Cecropia pachystachya
Clavija nutans
Dimorphandra mollis
Ficus sp.
Heliotropium indicum
Campomanesia xanthocarpa
Eugenia sp..
Hyptis suaveolens
Dioscorea trifida
Smilax fluminense
Juncus sp.
Peschieria fuchsiaefolia
Chaptalia nutans
Zanthoxyllum riedelianum
Zanthoxyllum hasslerianum
Cayaponia podantha
Heteropteris aphorodisiaca
Pothomorphhe umbellata
Croton urucurana
Imperata brasiliensis
Vitex cimosa
Enterolobium contortisiliquum
78
QUADRO 4
Animais usados na alimentação
Peixes
bagre
cascudo
curimba
inguila
lambari
piau
piraju
pirapuitã
jacaré
teju
arara
arara
curiango
curiango
ema
inhambú
jacu
jacutinga
jaó
juriti
maritaca
mutum
papagaio
perdiz
periquito
pomba
rolinha
saracura
siriema
tucano
anta
bugio
capivara
cateto
cervo
cutia
lobo-guará
onça parda
onça pintada
paca
Rhamdía spp.
Plecostomus commersoni
Prochilodus reticulatus
Symbranchus vulgaris
Astyanax sp.
Leporinus friderici
Salminus maxillosus
Brycon sp.
Répteis
C. crocodilus yacare
Tupinambis teguichin
Aves
Ara ararauana
Ara chloptera
Caprinulgos sp.
Nictydromus sp.
Rhea americana
Crypturellus parvirostris
Penelope sp.
Pepile pipile
Crypturellus undulatus
Leptotila verreauxi
Pionus menstrus
Crax fasciolata
Amozona spp.
Rhynchotus rufescens
Brotogeris spp.
Coumba cayannensis
Columbina minuta
Aramides cajanea
Cariama cristata
Ramphastos toco
Mamíferos
Taparus terrestris
Allouatta caraya
Hydrochaeris hydrochaeris
Tayassu tajacu
Ozotocerus bezoarticus
Dasyprocta punctata
Chrysocyon brachyrus
Felis concolor
Panthera onça
Cuniculus paca
79
porco monteiro
quati
queixada
tamanduá
Tatu galinha
tatu peba
Mamíferos
Sus scrofa forma feral
Nasua nasua
Tayassu pecari
Mymecophaga tridactila
Dasypus novencintus
Euphractus sexcinetus
IV. 2 - explicações das razões pelas quais tais áreas são imprescindíveis e necessárias
O estudo baseado na formação geológica e na cobertura vegetal, permite aferir que
Guyraroká originalmente concentrava grande diversidade biológica. A ocupação
agropecuária reduziu as áreas de vegetação original à pequenas reservas, muitas delas
alteradas para a retirada de madeira ou outros recursos. Mesmo assim, os Kaiowá fizeram
questão de andar pela terra com os técnicos (bióloga e antropólogo) que realizavam o
levantamento, para mostrar que mantêm o conhecimento que lhes permite reconhecer os
recursos e suas formas de utilização. Isto fica evidente no uso de plantas medicinais.
Vale lembrar, embora isto já tenha sido mencionado em diversas partes do
presente relatório, que a cobertura vegetal original, foi quase que totalmente destruída para
a implantação das lavouras (principalmente de milho e soja) e para a formação de pastagens
(principalmente braquiária e brizantão). Os Kaiowá encaram estas transformações no
ambiente como um enorme prejuízo e um entrave para a realização das atividades
produtivas condizentes com seu sistema cultural. Como forma de superar estas dificuldades
esperam receber apoio na recomposição ambiental e no desenvolvimento de atividades
produtivas de criação de animais e cultivo de lavouras comerciais. Reconhecem
consternados que isto não faz parte seus costumes tradicionais, mas que, sem isto,
correriam o risco de passar fome na terra devastada. As lideranças mais jovens alegam que
a destruição ambiental não é responsabilidade deles e consideram um escândalo o governo
pagar para os fazendeiros pelo estrago que fizeram. Esperam que o governo se
responsabilize pelo ocorrido e se empenhe na resolução do problema ambiental criado em
sua terra. Disseram que uma das formas seria desenvolver um programa de recomposição
da vegetação original, aliado ao incremento de atividades produtivas que pudessem
80
assegurar a manutenção da comunidade. Uma das formas seria através do replantio da ervamate.
Os recursos presentes no ambiente, embora escassos, são necessários e
imprescindíveis para que o grupo continue praticando seus usos e costumes. As poucas
áreas remanescentes de vegetação nativa podem servir como bando de sementes para a
extensão da cobertura vegetal. Enfim, a terra e os recursos aí presentes, são necessários
para que as parentelas de Guyraroká possam recompor suas relações societárias em
conformidade com as formas de alianças que caracterizam a constituição de um tekoha.
81
V - PARTE
V. 1 - Reprodução física e cultural
No presente tópico identifico a) alguns fatores de desequilíbrios provocadas pelo
exílio das famílias de Guyraroká de sua terra tradicional; b) aspectos cosmológicos do
grupo relacionado ao território que reivindicam; c) alguns motivos pelos quais a terra em
questão é necessária à reprodução física e cultural dessa população.
V. 2 - O efeito desestruturador da perda da terra sobre a população de Guyraroká
A situação atual das famílias de Guyraroká que ficaram anos fora de sua terra
demonstra o quanto o exílio da Terra implicou na impossibilidade de colocar plenamente
em operação os mecanismos que asseguram a reprodução física e cultural. Conforme ficou
demonstrado em várias partes do presente relatório, a perda da terra desorganizou a vida
econômica impondo fome e miséria, que associadas as novas doenças, eliminou um
contigente significativo da população que anteriormente ocupava Guyraroká. Meliá (1988b:
106) afirma que para o Guarani “sem tekoha não há teko”, ou seja, sem o espaço físico que
reúne as condições ambientais necessárias para a realização do modo de vida guarani
(tekoha), o próprio modo de ser guarani (teko), entra em colapso. Dessa forma, o Guarani
só pode manter-se enquanto tal, quando dispõe de um espaço que reúne as condições que
lhe permita pôr em prática sua organização social, cerimonial e ritual. Assim, a perda da
terra representa um golpe fatal, que coloca um impasse para a continuidade de sua cultura.
A falta de terras é um fator gerador da inviabilidade para a reprodução da cultura indígena,
como reconhece Martins (1986:35-36), para quem a insuficiência terras “decorrente do
cercamento territorial aparece como específica insuficiência para continuar sendo índio”.
82
O trabalho de identificação representou para a maioria dos antigos moradores uma
espécie de viagem no tempo. Relembrar a história trazia de volta à mente lugares, pessoas e
eventos. O olhar distante e compenetrado evidenciava que a lembrança aos poucos
dissipava a névoa do esquecimento e, junto com os nomes, surgiam os personagens de um
mundo há muito desaparecido. Às vezes se emocionavam, falavam com tanta empolgação e
clareza que pareciam se referir a um vizinho com quem se encontraram há pouco tempo,
mesmo se tratando de pessoas mortas há décadas. Também era comum que durante as
entrevistas os olhos dos informantes lacrimejassem quando lembravam das atrocidades que
sofreram ou quando a lucidez os trazia de volta para a realidade e percebiam que falavam
de um mundo que não mais existe. Muitas falas terminavam com a frase “agora tudo
acabou”.
V. 3 - Referências mitológicas dentro do perímetro da terra identificada
Existem alguns locais que são de grande importância para os Kaiowá dentro dos
limites da terra proposta. Estes locais se constituem em importantes referências míticas que
estão relacionadas a uma série de rituais religiosos, pois são vestígios físicos no espaço
geográfico que remetem diretamente à presença dos deuses na terra. Esses pontos
geográficos estão em íntima relação com elementos da cosmologia, sendo fundamentais
para o equilíbrio psicológico dos indivíduos que compõem essa comunidade.
O próprio nome do terra indígena que reivindicam já é uma referência mítica, pois
Guyraroká, na linguagem religiosa utilizada pelo xamã para estabelecer contato com as
divindades, significa o lugar do batismo. É o pátio em frente a casa do rezador principal
onde se realizam as cerimônias mais importantes de batismo das crianças e das plantas.
Crianças e plantas cultivadas são considerados seres delicados, tanto quanto os passarinhos,
e por isso necessitam de cuidados práticos e rituais para que cresçam saudáveis. Assim,
Guyraroká é a metáfora religiosa com que designam o local onde realizavam estes
importantes rituais, podendo ser traduzida também como o "quintal do passarinho", ou seja,
"o pátio onde esses seres são batizados".
83
Na margem direita do Karaku encontramos a cabeceira Kurusu Amba (objetos
sagrados), onde, segundo os Kaiowá, foram depositados objetos religiosos deixados
escondidos no mato. Isto aconteceu durante o período em que os primeiros fazendeiros que
pretendiam tomar posse da terra atacaram os Kaiowá, atirando sobre as casas (mais ou
menos por volta de 1952). Afirmaram esconderam os objetos rituais no mato já que não era
seguro deixa-los guardados nas casas, pois algumas delas haviam sido incendiadas pelos
invasores. Quando foram recolher tais objetos eles haviam desaparecido misteriosamente,
sem deixar nenhum vestígio. Os Kaiowá acreditam que eles foram recolhidos pelas
divindades. Esse sumiço dos objetos rituais deixou as pessoas muito confusas, pois não
sabiam quais as conseqüências que poderiam daí advir, muitos com medo fugiram para
outros locais.
Para os Kaiowá de Guyraroká a cabeceira Tapytã é de importância fundamental.
Ela é constituída por uma voçoroca de cerca de uns 30 metros de profundidade por quase
100 de largura, começa repentinamente em um espigão. A água que brota dos barrancos
corre em seu leito, formando um pequeno riacho que deságua no Ypytã. Próximo ao Ypytã
a voçoroca desaparece e se transforma em um riacho com leito comum. Segundo a bióloga
que fez o estudo ambiental da terra, tudo indica que trata-se de uma falha geológica. A
erosão parece estabilizada há centenas de anos, a vegetação densa com árvores lenhosas
cobriu todo o barranco, ocultando o leito d‟água.
Segundo os Kaiowá no Tapytã mora o so‟o jara (literalmente o dono da caça ou da
carne) uma espécie de divindade respeitada e temida. Jamais um Kaiowá penetra nessa
voçoroca por respeito ao dono dos animais e porque é perigoso, pois o so‟o jara recebe
muitos visitantes, outros deuses e espíritos, alguns deles canibais. Esses visitantes podem
estranhar algum humano desavisado que adentre os limites da casa do so‟o jara. Só o xamã
quando reza (portanto, em transe xamãnico) visita o local porque se entende bem com os
estes seres perigosos. O xamã quando reza também pode receber a visita do so‟o jara em
sua própria casa. Nestas ocasiões de contato com o dono da caça o xamã aproveita para
perguntar-lhe sobre seus animais, em que direção eles se encontram ou pede-lhe que libere
mais animais, caso estejam escassos para a caça. O so‟o jara que mora no Tapytã é
denominado de Ka‟aguy Pore e detém o controle da cutia, tatu, paca, macaco, bugio,
lagarto, cateto, queixada, veado, ema, seriema etc. Enquanto caminhávamos em volta da
84
cabeceira Tapytã os Kaiowá identificaram rastros de tatu, paca e cutia, na estreita faixa de
vegetação nativa (cerrado) ainda existente. Imediatamente relacionaram tal fato à presença
do Ka‟aguy Pore, expressando um sentimento de alívio por ele ainda não haver deixado o
local: “ele é delicado”, afirmaram, “não suporta a proximidade do branco ou o cheiro do
veneno de suas lavouras, quando perturbado muda de lugar e leva os bichos com ele”.
No córrego Ypytã existe uma pequena cachoeira (Ytu) que os Kaiowá identificam
como sendo morada de outro tipo de dono da caça (so‟o jara), mas que vive na água. Esse
ser mítico de nome Kaja‟a comanda e controla o fluxo de todos animais aquáticos e
daqueles que vivem no “barranco do rio”. Assim, são seus animais de estimação os
mamíferos como capivara e lontra, as cobras d‟água e sucuris, e todas as espécies de peixe.
Trata-se de local sagrado que desperta sentimentos de respeito e temor. Sempre evitaram
visitar a cachoeira, embora todos conheçam sua localização e saibam de sua importância.
Quando falaram sobre sua importância, demonstrei interesse em conhecer a cachoeira, eles
consentiram após discutirem entre si sobre a conveniência de tal visita. Fazia muito tempo
que eles não visitavam o local, pois como foi dito anteriormente, eles viveram várias
décadas fora do território. Ao chegar na pequena cachoeira ficaram chocados e perplexos
pois estava em meio de uma pastagem, os fazendeiros retiraram toda a vegetação, inclusive
a mata ciliar, o gado bebe água ao lado da cachoeira. Consternados, comentaram em voz
baixa entre si, que com certeza o Kaja‟a teria se mudado do local. “É por isso que a caça e
os peixes sumiram daqui, não se vê nem rastros”, afirmaram, já que acreditam que esse ser
controla a quantidade dos animais.
Os Kaja‟a têm aparência semelhante a dos humanos, usam adornos semelhantes
aos dos Kaiowá e cabelos compridos, tanto os homens como as mulheres. São perigosos
para os humanos pois os atraem para o mundo aquático de onde nunca mais retornam. Só
os xamãs poderosos podem com eles estabelecer contato sem correr perigo, já que gozam
de familiaridade com o mundo dos deuses e dos espíritos, sabendo como tratá-los e deles
conseguir benefícios para a vida dos humanos.
O xiru é um bastão feito do cerne de uma madeira muito dura. O xiru tem uma
grande importância ritual, ocupa um papel de destaque em um altar construído no interior
da casa do xamã, que com ele conversa e para ele reza quase que cotidianamente. Os
85
Kaiowá alegam que os xiru não são confeccionados por mão humana, mas que foram os
próprios deuses que os entregaram aos antepassados. Papito Vilharva disse que o xiru é
feito da madeira yvyra ñakua, inclusive me apresentou a planta. No acampamento, Papito e
Jorge Paulo eram portadores de xiru. Portar xiru é uma grande responsabilidade. Segundo
dizem
“tem que conhecer as rezas e sempre rezar para ele, conversar com ele, assim
ele protege e segura as doenças, cobra, enxame de abelha e outras calamidades
que podem se abater sobre a comunidade”.
Caso os cuidados não sejam suficientes, ele pode liberar esses males, provocando
grandes prejuízos, não só aos índios, mas também aos brancos.
Os Kaiowá acreditam que existe um tipo de cobra parecida com a jibíoa, só que
não é um ser da natureza, mas constitui uma espécie de espírito. Ela na verdade pertence ao
mesmo gênero que engloba um tipo de cobra cega, ambas pois pertencentes ao universo
mítico do grupo. São seres extremamente nocivos pois costumam mamar no peito da
mulher e quando isso acontece é sinal de que os parentes vão terminar, vão morrer um após
o outro, sem nenhuma causa justificada. Quando alguém descobre que isto está
acontecendo com pessoas de sua família fica extremamente apavorado, pois sabe que vai
ficar sem parente, vai sobrar só ele. Os Kaiowá tem verdadeiro pavor à perda dos parentes.
Segundo os informantes mais velhos isso teria acontecido na comunidade que morava no
córrego Torõrõ (atualmente denominado de córrego Caarapó), cerca de 100 anos atras, “é
por isso que muitos de seus moradores se dispersaram, assustados com o perigo eminente
de morte” justificaram. Segundo acreditam, “depois que essa cobra fez o trabalho dela não
tem como remediar, pois esses seres pertencem ao Ka‟aguy Pore e Ka‟aguy Ryta (espécie
de pai do mato)”. Explicam que o motivo desse ataque é que o dono dos animais fica
irritado sabendo que o mato vai acabar, “é um sinal que ele passa para o cacique (xamã),
um aviso para que ele faça alguma coisa para impedir que os brancos continuem destruindo
a mata”. Na compreensão dos kaiowá, esses seres míticos não medem as conseqüências de
seus atos, querem que os xamãs usem o poder de que são portadores para destruir os
brancos, mas os xamãs sempre relutam, pois sabem que muitos inocentes morreriam.
86
V. 4 - Religião e território
Os Kaiowá têm uma noção clara do território amplo ocupado pela etnia. Esta
noção se aproxima da idéia de país ou pátria, sendo por eles denominada de tetã. Os
Kaiowá lamentam que a demarcação da fronteira entre o Brasil e o Paraguai, após a Guerra
do Paraguai, tenha cortado ao meio o seu território. Em conseqüência disso, quando vão
visitar os parentes que vivem do outro lado da fronteira são tratados como estrangeiros, o
mesmo acontecendo quando os Kaiowá que vivem no Paraguai visitam os que vivem no
Brasil. É nesse amplo território que estavam distribuídas suas comunidades, sempre
seguindo o curso dos córregos. Consideram que foi o próprio deus criador que deixou esse
território para usufruto dos membros da etnia. O território é dividido em regiões,
identificadas como espécies de províncias, com forte sentido religioso. Expressam com a
idéia de província uma noção próxima da divisão em diocese com a qual a igreja católica
reúne um certo número de comunidades católicas sob a responsabilidade de um bispo.
Aliás, vários aspectos da noção de diocese e paróquia podem ser instrutivos para
compreender as concepções kaiowá de que estamos tratando. No modelo tradicional
kaiowá, os serviços religiosos de cada comunidade kaiowá são ministrados por um xamã
que está filiado a uma unidade religiosa mais ampla, dirigida por um líder religioso de
maior prestígio, considerado um xamã principal mais poderoso e antigo, que comandou a
iniciação de um certo número de auxiliares (yvyraja), que depois se tornarão xamãs. Esses
desenvolvem para com o antigo mestre uma relação de respeito e dependência, só podendo
realizar os rituais mais importantes sob a sua supervisão ou autorização. A esfera de
abrangência da influência de um xamã não é permanente, existem disputas freqüentes entre
xamãs rivais, o que gera uma dinâmica constante dessas esferas.
Os Kaiowá consideram Cerro Guasu (Grande Cerro) no Paraguai como o centro da
terra (Yvy Pyte). Foi nesse local que o deus criador realizou feitos extraordinários no tempo
dos antepassados míticos, fundando os princípios que organizam a sociedade kaiowá atual,
“la é a nossa capital, da mesma forma que vocês tem a capital de vocês em
Brasília, eu já fui em Brasília. A maioria dos brasileiros (brancos) não conhece
87
a cidade de Brasília, mas sabe que é um lugar importante, tem o
reconhecimento. Para nós, é em Yvy Pyte que estão nossos caciques (xamãs)
mais importantes, que tem mais poder, que falam diretamente com deus, são
eles que cuidam de nós e nos protegem contra doenças e até contra os brancos.
Eles têm o controle do mundo na mão, isso não atingi só os Kaiowá, é geral,
eles têm o poder de sustentar o mundo ou de destruí-lo, se eles pedirem o deus
atente” (entrevista com Ambrósio Vilharva, líder da comunidade).
Embora Ambrósio tenha usado como recurso explicativo a comparação com o
centro político nacional, que fica na cidade de Brasília, talvez o modelo que mais se
aproxima da organização religiosa kaiowá seja, mais uma vez, o modelo de organização da
igreja católica. É semelhante a idéia do Vaticano como centro religioso, onde estão
reunidos os sacerdotes mais importantes. Uma distinção significativa é que os Kaiowá não
teriam a figura do Papa, como único líder instituído da prerrogativa exclusiva de
representar Deus na terra, esta representação estaria dividida entre um conjunto de líderes
religiosos. Isto é facilmente compreensível considerando que os Kaiowá não conhecem a
centralização política: o Vaticano é a sede da Igreja Católica Universal, mas ao mesmo
tempo é a sede de um Estado.
Outro aspecto importante é que Yvy Pyte se constitui como uma espécie capital
religiosa, onde os Kaiowá que aspiram o desempenho de atribuições coletivas,
principalmente de liderança religiosa devem, de preferência, fazer uma espécie de
peregrinação. Essa peregrinação tem um caráter instrutivo, de aprendizagem e formação
dos valores autênticos da sociedade kaiowá. A peregrinação à Yvy Pyte representa para os
Kaiowá, o que a visita à Meca representa para os muçulmanos. “Fui lá para aprender o que
é, para defender meu povo”, afirmou um dos líderes da comunidade de Guyraroká. Da
mesma forma que o papa se considera responsável por tudo que acontece no mundo
católico, os grandes xamãs formados em Yvy Pyte, se consideram responsáveis pelos
problemas enfrentados nas comunidades kaiowá, independente do lugar em que elas vivem
ser considerado Brasil ou Paraguai.
Assim, Ambrósio afirmou que quando iniciou o trabalho de reorganizar as famílias
para retomar o território, sentiu necessidade de aprender mais sobre o sistema dos antigos.
Disse que com o expulsão da comunidade de Guyraroká e a vida errante pelas fazendas e
88
reservas demarcadas, a família de seus pais, que pertence a uma linhagem de rezadores
renomados, foi obrigada a interromper muitos ciclos de rezas. Dessa forma, as pessoas de
sua geração ficaram com uma lacuna na formação. Para resolver o problema, Ambrósio
começou sua iniciação religiosa com o pai (Papito Vilharva) e com o sogro (Jorge Paulo),
ambos reconhecidos como xamãs importantes. Em determinado momento, sentiu
necessidade de se dirigir até o Paraguai, segundo disse, em busca do conhecimento dos
caciques antigos (xamãs), que existem em pequeno número no Brasil hoje. Na verdade, os
poucos que existem alegam que não dá para rezar mais, pois vivem em reservas
superpovoadas, com conflitos políticos, interferência de crentes, dependência do branco e
falta de recursos ambientais como caça, mel e cultivos de plantas agrícolas tradicionais,
imprescindíveis para a realização dos rituais nos quais as rezas são executadas. No
Paraguai, Ambrósio procurou os velhos, rezou com eles e expôs as dificuldades que teria
pela frente na retomada da terra. Os velhos xamãs deram as instruções de como ele haveria
de proceder e após algum tempo de preparação retornou ao Brasil,
“aí tudo ficou mais fácil, o que parecia impossível começou a acontecer, a
FUNAI criou o Grupo de Identificação e vocês estão aqui para realizar o
trabalho”.
Ambrósio (e a comunidade como um todo) encara a retomada da terra tradicional
como um movimento de reativação do sistema tradicional, pois
“na reserva demarcada não tem ambiente, as pessoas não se envolvem com a
reza, as crianças quando vão para a escola são discriminadas pelos filhos dos
índios crentes que costumam chamá-las de demônios, só depois que viemos
para o acampamento é que as crianças passaram a se envolver mais com a reza”.
A mobilização em torno da reconquista do território é, assim, uma ação no sentido
de colocar novamente em operação os mecanismos de reprodução social, uma tentativa de
reposição de formas de sociabilidade. Os Kaiowá buscam, com o retorno ao seu território
tradicional, reconstituir formas de “solidariedades danificadas”, no sentido que Giddens
(1996) atribui a essa expressão. Entretanto, na compreensão dos Kaiowá, a recuperação das
rezas, é uma condição primeira e necessária para o retorno à terra, só quando deus ouvir as
rezas é que poderão recuperar as terras de onde foram expulsos.
89
As rezas teriam ainda o poder de fazer a mata crescer novamente, trazer de volta
os animais de caça e tornar as pessoas novamente fortes, saudáveis e calmas. Mas que
definir a condição humana ideal, as rezas possibilitam superar os condicionamentos
históricos atuais. Acreditam que por seu intermédio os homens mantêm um contato direto
com as divindades e podem conseguir que elas atuem em seu favor.
V. 5 - Brancos e índios
Os xamãs afirmam que no momento da criação da humanidade deus perguntou aos
antepassados dos atuais kaiowá se preferiam a posse dos instrumentos de ferro ou madeira.
Como os antepassados eram sábios xamãs, logo perceberam que o ferro, embora fosse mais
resistente e possibilitasse um maior domínio sobre a natureza, (poupando inclusive trabalho
no preparo das roças), estava intrinsecamente relacionado a uma índole violenta, o que
provocaria infindáveis disputas, mortes e infelicidade. Optaram então pelos objetos de
madeira e por um estilo de vida mais simples e pacífico. Os brancos surgiram logo em
seguida, e preferiram os objetos de ferro, mais condizentes com a índole violenta de que
eram portadores. Isto explica a atual distinção entre os índios e os brancos: os Kaiowá são
pobres, mas calmos e tranqüilos, enquanto os brancos são ricos e agitados, empreendedores,
mas infelizes.
Os xamãs construíram uma elaboração da situação histórica de dominação branca
que parte de um realismo evidente: os Kaiowá são efetivamente dominados dentro do
território que historicamente ocupavam. Entretanto, o reconhecimento dessa realidade não
implica na aceitação de sua legitimidade. Acreditam que a anterioridade de sua criação (os
Kaiowá surgiram primeiro), e sua índole mais pacífica, proporcionam uma maior
proximidade com as divindades, que em momentos cruciais, podem interferir em sua
proteção. Acreditam que os Kaiowá antigos ao escolherem os instrumentos de madeira e
um estilo de vida mais pacífico, tomaram essa decisão com a convicção de que esta seria a
melhor opção: “o que o antigo fala é aquilo mesmo, não dá para discutir”, afirmou
categoricamente um dos xamãs.
90
O apego à religião tradicional foi com certeza um dos motivos que levou a
comunidade a tomar a decisão de retomar seu antigo território.
V. 6 - A ameaça de destruição do mundo
A destruição do mundo é um tema recorrente na mitologia guarani. Os Kaiowá de
Guyraroká insistiram muito sobre o assunto e, como notaram que eu não atribuía ao tema a
importância que julgavam que ele merecia, certa noite os xamãs se reuniram e fizeram
questão de que eu lhes assegurasse que o tema apareceria no relatório: “isto é para você
anotar!” disseram. Acreditam que uma ameaça paira sobre a terra “e que está na mão dos
caciques (xamãs) o poder de controlar essas forças destrutivas”.
Os xamãs retomaram o assunto inúmeras vezes, insistindo em que eu entendesse o
significado de suas crenças e as relatasse. Sabem que nós não-kaiowá temos dificuldade de
compreendê-las, mas são irredutíveis em que o Governo saiba da ameaça que paira sobre a
nação e considere que o poder para livrar o povo brasileiro da catástrofe “está na mão dos
caciques”. Consideram que este é um bom motivo para começar a
“respeitar mais o direito do índio, pois o cacique está cansado de ver seu povo
sofrer e pode um dia resolver rezar e pedir que Deus destrua o mundo de uma
vez e acabe com tanto sofrimento”.
Assim, demonstram firme convicção de que seus caciques podem desencadear o
processo de destruição da terra, o que mataria todos os brancos e pouparia apenas os
kaiowá, porque eles “conhecem as rezas que garantiriam sua proteção”.
O cacique dispõe de um arsenal destrutivo que ele deve acionar um a um, através
de rezas específicas que só ele conhece, quando decidir que chegou o momento de
destruição final da terra. São os seguintes:
- as rezas do arco íris, uma divindade denominada de Ju‟y, que tem a capacidade
de fazer com que caiam raios sobre a terra, queimando e destruindo tudo que atingem;
- o Chiru Hiapu Guasu é considerado a principal divindade, responsável direto
pela existência dos Kaiowá, “sem ele nós não existiríamos”, afirmam. Os xamãs insistem
91
que conhecem um sistema de rezas pertencentes a essa divindade que tem a finalidade
exclusiva de provocar a destruição da terra por vários processos, entre eles: a) tempestade
sem controle –yvytu guasu, que destrói tudo, derruba árvores, prédios etc. Essa tempestade
pode ser acompanhada por chuva de pedra, aumentando ainda mais o seu poder destrutivo.
Como é comandada pelo Xiru Hiapu Guasu, ninguém pode impedir sua progressão; b) em
certos casos a tempestade pode ser acompanhada de uma grande chuva –oky guasu que
dura dias seguidos provocando uma inundação que cobre toda a terra. No caso da grande
inundação, acreditam que quando a água escoa para o mar, leva consigo toda a imperfeição
da terra, que então se regenera; c) pode provocar também uma seca prolongada, seguida de
fogo voraz que queima tudo, inclusive a terra; d) pragas de madorová (yso karu), gafanhoto
(tuku), abelha (eirague), mala vision, pai do mato e pé de garrafa27; e) uma grande
escuridão pode envolver a terra e com ela aparecerão enormes morcegos carnívoros -mbopy
guasu, acompanhados de outros monstros carnívoros que se apresentam como cópias dos
animais que vivem na terra, mas são seres deformados, possuem asas, dentes e garras
afiadas.
Os elementos que compõem o universo religioso Kaiowá não se restringem a
meros rótulos distintivos entre índios e brancos. São fundamentos efetivamente presentes
na memória coletiva que orientam a conduta e a prática social. É por comportar elementos
significativos para a vida social que sua compreensão exige o esforço interpretativo da
análise antropológica. Como o aprofundamento dessa questão exigiria um tratamento
teórico/metodológico que fugiria aos objetivos do presente relatório, faço aqui apenas uma
breve menção ao assunto, atendendo assim a exigência que os próprios kaiowá
estabeleceram.
O relatório preliminar do antropólogo Carlos Alexandre (Santos, 2001: 44),
também aponta aspectos da cosmologia relacionados as ameaças de destruição do mundo.
Segundo o autor:
27
Alguns seres originários da mitologia kaiowá fundiram-se com crenças originárias do catolicismo
popular, criando pontos de conexão entre os dois sistema de crenças, embora a representação desses
seres no pensamento kaiowá apresenta distinções significativas.
92
“Percebemos que na atualidade a representação do paraíso aparece em estreita
ligação com a cataclismologia. Formar aldeias nesses lugares „eleitos‟ como é o
caso da Terra Indígena Guyraroká, significa estar mais perto do mundo
celestial, uma vez que, para muitos, é a partir desses locais que o acesso
celestial é facilitado.
Uma terra inclui a floresta (ka‟aguy) e todo o ecossistema a ela referido como
caça, pesca, água, espaço para cultivo de roças e para educarem suas crianças
dentro dos principios culturais Guarani”.
Assim, não resta dúvida que para a comunidade de Guyraroká retornar a sua terra
original representa a tentativa de reaproximação com as divindades, já que as rezas poderão
novamente ser praticas. Representa também a tentativa de recompor relações sociais que se
tornaram inviáveis dentro das reservas demarcadas. Antes do desmatamente a Terra
Indígena de Guyraroká era farta em recursos e os Kaiowá podiam aí realizar plenamente
seu modo de ser. A situação hoje é bastante diversa (e adversa): embora os riachos, as
matas ciliares e os pequenos capões de mato preservados como reserva ainda forneçam
alguns recursos de caça, pesca e coleta. Fica evidente a necessidade de recomposição
ambiental da terra para não provocar a exaustão desses recursos, mas a comunidade está
segura de que poderá recompor suas relações de sociabilidade e com o meio ambiente.
As áreas necessárias a reprodução física e cultural do grupo indígena e que reúne
os locais de moradia, caça, pesca e coleta estão identificadas na análise da imagem de
satélite. A proposta de delimitação, que será apresentada no próximo tópico, busca
incorporar estes locais dentro do perímetro da terra identificada e delimitada.
93
VI – PARTE
VI. 1 - Levantamento fundiário
O GT realizou a identificação e censo dos ocupantes não índios, bem como
vistoria, análise e descrição das benfeitorias nas propriedades que incidem sobre a terra
identificada como de ocupação tradicional pelas parentelas originárias de Guyraroká. Estes
dados seguem na forma de anexo.
O levantamento da cadeia dominial das propriedades identifica a origem e a
qualificação dos títulos de propriedades que incidem sobre a Terra Indígena. Como
mencionamos em outras partes do presente relatório, as terras foram tituladas a partir da
década de 1940, quando estas voltam ao domínio da União, com o fim dos contratos de
arrendamento pela Cia Mate Larangeiras. Os primeiros proprietários adquiriram as terras
junto ao Governo do Estado de Mato Grosso através de compra. O Estado titulou as terras
para particulares sem antes se certificar da ocupação indígena, o SPI se omitiu no papel de
defesa dos direitos indígenas, já que o relatório de um servidor desse órgão, datado de 1927
(anexo 01), atesta a presença indígena em Guyraroká (Ypytan). O Relatório do
Levantamento Fundiário será anexado posteriormente (anexo 05), com as informações
detalhadas sobre as benfeitorias das propriedades, registradas através do preenchimento de
formulários específicos.
94
VII – PARTE - CONCLUSÕES
VII. 1 - Conclusões
Caminhar pela mata é uma atividade profundamente enraizada na cultura kaiowá.
Quando alguém sente necessidade de aguata (literalmente significa caminhar ou passear),
simplesmente arranja um pretexto qualquer e sai, sendo logo compreendido pelos
companheiros. Isto corresponde a necessidades psíquicas e sociais inerentes ao modo de ser
guarani, satisfazer essa necessidade pode ser inclusive uma forma de colocar-se em contato
com as divindades. Quando se caminha sozinho surgem condições para que importantes
acontecimentos tenham lugar na vida da pessoa. É também um momento de aliviar as
tensões sociais, pois escapando por alguns momentos do convívio íntimo com os parentes,
a pessoa pode: a) ouvir suas próprias vozes interiores (oñomongeta ojerehe); b) ouvir o que
as divindades querem comunicá-las, muitas vezes utilizando de um ser da própria natureza
(ohendu); c) refletir sobre sua própria vida, meditar e contemplar (ojapysaka), já que a
pessoa pode interromper sua caminhada e sentar-se sob uma sombra e ficar o tempo que
julgar necessário absorta em seus próprios pensamentos. Assim, para o Kaiowá, o mato é
um lugar povoado de seres espirituais, malfazejos e benfazejos, cuja presença aguça a
sensibilidade28. Dispor de uma área de mata é fundamental para o bem estar e para a
instabilidade política de uma comunidade kaiowá porque a mata está relacionada à estas
características de fundamental importância para a vida social. Alegam que a ausência de
mata é um dos empecilhos ao desenvolvimento de uma vida saudável nas reservas
demarcadas.
O relatório ambiental (em anexo) apresenta uma lista sumária de alguns recursos
ainda disponíveis na Terra Indígena Guyraroká que os Kaiowá efetivamente conhecem e
deles fazem uso, de acordo com seus saberes tradicionais. O léxico zoobotânico e
28
Acreditam que é principalmente por não saber lidar com estas forças que os brancos detestam
tanto o mato e tem tanto ímpeto em derrubá-lo.
95
etnobotânico do grupo menciona um grande número de animais plantas, especificando suas
características, propriedades e formas de uso particularidades, práticos e rituais. Esses
recursos (plantas nativas e animais) presentes basicamente nas estreitas faixas das matas
ciliares e nos pequenos capões de mato deixados como reserva florestal, são necessários a
subsistência e a reprodução social do grupo. O relatório também aponta a necessidade de
um plano de manejo e recomposição destes recursos, já que sobraram poucas terras que não
foram totalmente alteradas pelo desmatamento.
Os Kaiowá de Guyraroká evidenciam, em relação a terra que reivindicam, um
conhecimento da toponímia que revela uma profunda familiaridade com os locais das
antigas roças, residências, cemitérios, itinerários de caça, coleta, pesca e referências
míticas. Foi possível identificar também que o conhecimento e nominação do território tem
uma relação direta com a histórica dos Kaiowá e suas formas de representação simbólica.
Por sua vez, a ocupação do território remete às unidades sociológicas, que se mantêm
estruturadas, a despeito das décadas de exílio do território.
A distribuição das unidades sociológicas no espaço antes que ocorresse a expulsão
da terra pelas frentes de ocupação agropecuária evidencia que a organização social
apresenta uma moldura territorial. Este é o motivo pelo qual a saída da terra representou o
comprometimento dos mecanismos de reprodução social, pois no período do exílio muitas
famílias tiveram sua configuração alterada.
O modelo de ocupação da terra que os Kaiowá historicamente desenvolveram em
Guyraroká é perfeitamente compatível com as condições ambientais aí presentes antes do
desmatamento e com a sua organização social tradicional, constituindo uma evidência
concreta de que a comunidade estava fixada nessa região muito antes da ocupação
agropecuária. Isto também é referendado pela sedimentação de um corpus de crenças,
tradições e relatos míticos que remetem à características e recursos presentes no meio
natural, com o qual os Kaiowá demonstram ter uma relação íntima e prolongada.
Os dados apresentados e analisados no presente relatório permitem afirmar sem
nenhuma dúvida que a região denominada de Guyraroká pelos Kaiowá é território
tradicionalmente ocupado por um conjunto de parentelas desse grupo étnico. Esta ocupação
é anterior a década de 1940, quando o Governo começou a vender e titular as terras para
96
particulares, portanto, constitui medida justa, legal e legítima a sua identificação,
delimitação e posterior demarcação como Terra Indígena. Muitas gerações de Kaiowá aí
viveram antes que fossem desalojadas pelas frentes de ocupação para extração de erva
mate, criação de gado e prática de agricultura.
Tradição oral e documentação escrita são construções sociopolíticas que estão
intimamente relacionadas com as necessidades dos agentes históricos e com o ambiente da
época em que vivem. Por esse motivo foi necessário realizar a crítica metodológica dessas
fontes para identificar a existência de possíveis inconsistências. O enfoque ideológico dos
registros documentais sobre a presença kaiowá em Mato Grosso do Sul assume um caráter
dramático, como foi suficientemente esclarecido ao longo do relatório. Foi possível
demonstrar a existência de um consenso entre agentes da sociedade nacional no sentido
construir a invisibilidade das comunidades kaiowá que se encontravam fora das reservas. O
consenso tem por objetivo negar a existência das comunidades kaiowá enquanto sujeitos
coletivos com vínculos históricos, sociais e cosmológicos com as terras que
tradicionalmente ocupavam. Assim, as fontes documentais foram questionadas objetivando
esclarecer: a) quem escreveu (quais os agentes históricos envolvidos); b) por que escreveu
(a que interesses atendia); e c) a maneira como foram coletados os dados. Igualmente
reveladoras são as ausências e os silêncios que se somam a intenção de ocultamento da
população indígena. Assim, a tão almejada neutralidade axiológica não é um dado natural
do documento escrito, ele também deve passar pelo crivo da crítica metodológica.
O mesmo procedimento foi adotado em relação às fontes orais. A comparação das
histórias de vida dos informantes Kaiowá revelou uniformidade quanto aos nomes dos
locais e de seus antigos moradores, mesmo em se tratando de informantes que residem
atualmente distantes entre si e não se visitam há vários anos 29. Estes dados foram checados
também através da aplicação de outros procedimentos metodológicos de pesquisa de campo
29
Entrevistei anti gos moradores de Guyraroká que vi vem atualmente nos
municípios de Dourados, Caarapó, Amambai, Brasilândia, Cor onel Sapucaia e
Vicentina.
97
em antropologia30. O estudo constatou ainda que os Kaiowá em questão são detentores de
uma considerável capacidade de memorizar a geografia de seu território, não tendo a
mínima dificuldade em identificar os locais que haviam descritos verbalmente antes que
visitássemos a terra.
Os dados apresentados no presente relatório permitem concluir que Guyraroká se
enquadra perfeitamente no conceito de Terra Indígena, segundo o estabelecido na
Constituição Federal no parágrafo 1º do artigo 231 onde se afirma que:
“São terras tradicionais ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem estar e as
necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições”.
Poderia se objetar que eles estão fora da terra há muitos anos, mas conforme foi
amplamente demonstrado, os Kaiowá só deixaram o território devido às pressões que
receberam dos colonizadores, principalmente a partir da década de 1940. Também não
havia no período instituições às quais pudessem recorrer para assegurar seus direitos, já que
havia um consenso na região de que todos os índios deveriam ser transferidos para os
postos indígenas, ou seja, para as reservas demarcadas pelo SPI. Os próprios Kaiowá
afirmam que antigamente não tinham nenhum direito reconhecido pelas autoridades do
Estado e nem havia organizações da sociedade civil às quais pudessem pedir qualquer tipo
de apoio.
A cobertura vegetal e a fauna sofreram o forte impacto da ocupação agropecuária,
mas isto não retira a legitimidade do direito de ocupação de terras pelos índios. Os Kaiowá
encaram as alterações no ambiente como “mais um prejuízo” que terão que enfrentar e
acreditam que se os brancos forem retirados e eles retornarem para seu antigo lugar “os
rezadores (xamãs) vão rezar para o mato crescer e para trazer os bichos de volta”. Ficou
evidenciado também que os Kaiowá ocupavam em caráter permanente toda a terra
identificada e delimitada no presente relatório, segundo suas formas tradicionais de
30
Utilizei principal mente o método genealógico e o cruzamento com as
infor mações etnográfi c as registrada na literatura sobre os Guarani.
98
residência em pequenos grupos locais ou parentelas, distribuídas ao longo de cursos d‟água,
onde desenvolviam atividades de subsistência (roça, caça, pesca e coleta) e rituais, de
acordo com seus usos e costumes.
A análise racional e reflexiva, através da observação controlada dos fatos
etnográficos e históricos, tornou possível demostrar que a Terra reivindica é de fato Terra
Indígena, e que as pessoas que estão mobilizadas em torno da reivindicação da demarcação,
constituem de fato uma comunidade com vínculos históricos reconhecíveis com a mesma.
Foi possível demonstrar também, a existência de relações de parentesco e outras formas de
sociabilidade que, de um ponto de vista lógico, pressupõem a existência de unidades
sociológicas típicas da forma de organização social kaiowá. Assim, é possível concluir
favoravelmente ao direito desses Kaiowá reaverem a terra que reivindicam já que constatase: a) a identidade do grupo enquanto comunidade indígena estruturada segundo seus usos e
costumes tradicionais; b) a permanência cultural já que os Kaiowá insistem em manter seu
modo de ser, e a reivindicação do território cumpre justamente a exigência de reaverem o
espaço físico para continuarem realizando suas práticas culturais; c) a presença tradicional
da comunidade de Guyraroká na terra em questão, da qual foi expulsa pelos fazendeiros
que adquiriram as terras do Estado.
VII. 2 – Memorial descritivo de identificação e delimitação
O memorial descritivo apresenta a proposta de limites para a Terra Indígena
Guyraroká. Cumpri esclarecer que se tornou necessário a definição de limites com linha
seca como forma de incluir no perímetro delimitado locais de moradia e outras referências
de ocupação tradicional. Isto ocorreu porque os Kaiowá ocupavam as duas margens dos
córregos Ypytã e Caracu e seus pequenos afluentes e cabeceiras. A seguir é apresentada a
proposta de limites, conforme levantamento topográfico realizada por profissional da área:
DENOMINAÇÃO
Terra Indígena Guyraroká
99
ALDEIAS INTEGRANTES
Obs.: os Kaiowá se encontram fora da terra reivindicada, uma parte vivendo no acampamento ao
lado da Terra e outra dispersa por reservas demarcadas, fazendas, periferia de cidades e vilas,
conforme descrito em outras partes do relatório. Antes da expulsão as parentelas estavam
distribuídas ao longo dos rios Caracu, Ypytã e Lucero, e em suas respectivas cabeceiras, formando
o tekoha Guyraroká.
GRUPO INDÍGENA
Guarani/Kaiowá
MUNICÍPIO: Caarapó – MS
Núcleo de Apoio de Dourados - FUNAI - MS
COORDENADA DOS EXTREMOS
EXTREMOS
LTITUDE
LONGITUDE
NORTE
22º28‟41,3”
54º40‟23,6”
LESTE
22º34‟27,7”
54º33‟57,7”
SUL
22º33‟56,5”
54º37‟33,3”
OESTE
22º29‟39,8”
54º40‟48,2”
BASE CARTOGRÁFICA
NOMECLATURA: MI 2722 / MI 2692
ESCALA: 1:100.000
ORGÃO: DSG
ANO: 1972
SUPERFICIE: 11.401 ha aproximadamente.
PERÍMETRO: 49.603 Km
MEMORIAL DESCRITIVO
DESCRIÇÃO DO PERÍMETRO
100
NORTE
Partindo do ponto 01 de coordenadas geográficas aproximadas 22º 28’
41, 3”S e 54º 40’ 23,6” Wgr, localizado na margem direita da estrada que liga à cidade de Juti a
Dourados, daí, segue pela citada estrada no sentido Juti até encontrar o ponto 02 de Coordenadas
Geográficas aproximadas 22º 29’ 11,1”S e 54º 40’ 26,2’Wgr, localizado no trevo das estradas que
liga as cidades Fátima do Sul à Vila Cristalina e Juti `Dourados.
Do ponto antes descrito, segue por uma linha reta, até encontrar o
ponto 03 de Coordenadas Geográficas aproximadas de 22º 28’ 39,2”S e 54º 38’ 46,3”Wgr, localizado
na margem direita do córrego Ipuitá, daí, segue por uma linha reta, até encontrar o ponto 04 de
Coordenadas Geográficas aproximadas de 22º 29’ 00,4”S e 54º 33’ 07,5”Wgr, localizado na margem
direita da estrada que liga Fátima do Sul à Vila Cristalina na entrada da Fazenda Lago de Outo, daí,
segue pela citada estrada, até encontrar o ponto 05 de Coordenadas Geográficas aproximadas de
22º 28’ 18,8”S e 54º 35’15,3” Wgr, localizado na margem esquerda da já citada estrada e entrada da
Fazenda Castelo, daí, segue por uma linha reta, até encontrar o ponto 06 de Coordenadas
Geográficas aproximadas 22º 28’ 09,5”S e 54º 34’ 35,0” Wgr, localizado na margem esquerda do
Córrego Caracu, daí, segue por uma linha reta até encontrar o ponto 07 de Coordenadas
Geográficas aproximadas 22º 28’ 36,1”S e 54º 34’ 15,7” Wgr, localizado na margem esquerda da
estrada que liga a cidade Fátima do Sul á Vila Cristalina, da, segue por uma lina reta até encontrar o
ponto 08 de Coordenadas Geográficas aproximadas 22º 32’ 01,2” S e 54º 34’ 59,1” Wgr, localizado
no canto de um capão de mato na Fazenda São João.
LESTE
Do ponto antes descrito, segue por uma linha reta, até encontrar o
ponto 09 de Coordenadas Geográficas aproximadas de 22º 34’ 27,7”S e 54º 33’ 57,7” Wgr,
localizado na confluência do Córrego Nanbú com o Ribeirão Caracú, daí, segue por uma linha reta
até encontrar o ponto 10 de Coordenadas Geográficas |aproximadas 22º 35’ 26,4”S é 54º 37’
14,6”Wgr, localizado na margem direita do Córrego Passo Fundo.
101
SUL
Do ponto antes descrito segue a jusante o citado córrego, até
encontrar o ponto 10A de Coordenadas Geográficas aproximadas 22º 35’ 10,”S é 54º 37’ 30,2” Wgr,
localizado na confluência do Córrego Passo Fundo com Ipuitã, daí, segue a jusante o Ipuitã até
encontrar o ponto 11 de Coordenadas Geográficas aproximadas 22º 33’ 56,5”S é 54º 37’ 33,3”Wgr,
localizado na margem esquerda do citado córrego, daí, segue pela estrada que liga a Fazenda Cabo
de Aço à confluência da estrada que liga às cidades Jutí a Dourados, até encontrar o ponto 12 de
Coordenadas Geográficas aproximadas de 22º 33’ 05,5”S é 54º 38’ 48,2”Wgr, localizado na curva da
citada estrada, daí, continua a estrada até encontrar o ponto 13 de Coordenadas Geográficas
aproximadas 22º 34’ 1’3,0”S é 54º 39’ 06,1” Wgr, localizado em outra curva sobre a ponte do
Córrego Chaguayay, daí, segue pela a mesma estrada, até encontrar o ponto 14 de Coordenadas
Geográficas aproximadas 22º 33’ 44,3”S é 54º 40’ 20,9” Wgr localizado na margem direita da citada
estrada ao lado de uma plantação de eucalipto, daí, segue por uma linha reta até encontrar o ponto
15 de Coordenadas Geograficas aproximadas 22º 33’ 33,5”S é 54º 40’ 50,7” Wgr, localizado na
margem direita da estrada que liga as cidade de Jutí e Dourados.
OESTE
Do ponto antes descrito segue pela citada estrada, até encontrar o
ponto 16 de Coordenadas Geográficas aproximadas 22” 29’ 39,8”S é 54º 40’ 48,2”Wgr, localizado
na margem direita da citada estrada, daí, segue pôr uma linha reta até encontrar o ponto 17 de
Coordenadas Geográficas aproximadas 22º 29’16,4’S é 54º 40” 59,4” Wgr, localizado na margem
esquerda da estrada que liga a Vila Cristalina à cidade Fátima do Sul, daí, segue em linha reta até
encontrar o ponto 01, inicio da presente descrição.
Goiânia, 06 de Julho de 2001
Doralício Dornelas da Costa
Técnico Em Agrimensura – responsável pelo levantamento topográfico
CREA – 8607
Levi Marques Pereira
Antropólogo Coordenador do Grupo Técnico
Portaria Nº 083/PRES/FUNAI – 31 – 01 – 2001
Três Lagoas, 13 de Março de 2002
102
Glossário
Aldeia: se refere a comunidades kaiowá que gozam de autonomia política e
religiosa. Tradicionalmente cada aldeia dispunha de um território próprio.
Changa: trabalho volante nas fazendas.
Guyraroká: literalmente significa o quintal ou terreiro do passarinho, lugar onde
havia uma grande concentração de jacu, jaó, jacutinga, macuco, pássaro campana, sabiá,
tucano, siriema, ema, guacho, jacuça, mutum, papagaio, arara, periquito, maritaca, uru,
curiango (yvy ja‟u), urutau, juriti, pomba, sarakura, nambu (tatá upa), e uma infinidade de
outros pássaros. Na vocabulário religioso do xamã, significa o pátio onde se realizam o
batismo das crianças e das plantas, considerados seres delicados que requerem cuidados
especiais para crescerem bem. Guyra (pássaro) é uma metáfora para dizer criança.
Ka’aguy Pore: literalmente, aquele que tem o controle sobre o mato. Ser mítico
que controla os animais que vivem mata no ambiente seco, fora da água. Pode ser maléfico
ou benfazejo com os humanos, dependendo do tipo de relação que com eles se estabeleça.
Kaja’a: conjunto de divindades que formam populações semelhante a humana
(kaiowá), vivem submersas na água, emergindo só nos horários de sol mais quente (meio
dia), e por poucos instantes. Estas divindades detêm o controle sobre os animais aquáticos e
aqueles que passam a maior parte do tempo na beira d‟água. É o “dono” desse tipo de caça,
e pode ser perigoso para os humanos não iniciados no xamanismo.
Parentela: designa o grupo familiar extenso, composto por vários fogos
domésticos. É formado por parentes cognáticos e aliados reunidos em torno de um líder de
expressão. Constitui um grupo local de residência e de atuação política.
Reserva: o termo é utilizado exclusivamente para designar as terras demarcadas
pelo SPI entre as décadas de 1920-30. Isto porque esses espaços acabam se transformando
em lugares para os quais serão deslocadas as populações das aldeias cujas terras não foram
nem identificadas, nem reconhecidas como terras indígenas.
103
Sociedade nacional: o termo implica na sociedade inclusiva, que a partir do
Estado, incorpora as funções de controle e administração sobre todas as populações que
vivem no interior do território sob sua jurisdição, independente de suas diferenças étnicas,
históricas ou culturais. No caso da sociedade Kaiowá em questão, a sociedade nacional se
faz sentir a partir do momento em que a região passa a ser incorpora política e
economicamente, através das frentes de expansão colonizadoras. O contato da população
kaiowá com as frentes de expansão da sociedade nacional é marcado pela assimetria e
confronto de interesses.
Tekoha: conjunto de parentelas relacionadas por laços de parentesco, aliança
política e/ou religiosa, que configura uma população com forte identidade e sentimento de
exclusividade enquanto grupo social. Normalmente os estudiosos dos Guarani traduzem
como comunidade. A população de um tekoha tem forte sentimento de identificação com o
território que ocupa, cuja toponímia e outras características físicas do ambiente se inserem
como referencias para a constituição da memória histórica do grupo.
Tekoha Guasu: ocorre quando as lideranças políticas e principalmente religiosas
de um determinado tekoha estende seu prestígio e influência por uma região mais ampla do
que aquela normalmente ocupada por um tekoha. Este era o caso de Guyraroká antes da
expulsão da comunidade do território.
Xamã: em português os Kaiowá denominam seus xamãs de cacique ou rezador, na
língua nativa existe uma série de termos que possibilitam especificar a especialidade do
xamã e sua identificação dentro de uma hierarquia que os diferencia segundo o tipo de
relacionamento que desenvolvem com o mundo sobrenatural.
Ytu: y (água), tu (canto ou grito). Literalmente água que canta ou cachoeira. É uma
referência mítica importante para os Kaiowá do local.
Ypytã: y (água), pytã (vermelho), portanto água vermelha. Nome do riacho
principal que corta a terra indígena Guyraroká. Os Kaiowá afirmam que os antepassados
diziam que antigamente a água desse riacho tinha uma coloração avermelhada. O motivo
provável seria a grande erosão que existe numa de suas cabeceiras (Tapytã), que antes de
estabilizar-se, provavelmente deveria despejar no curso do riacho um suprimento constante
de sedimentos. Era também o nome do tekoha Guyraroká utilizado pelos Kaiowá na relação
104
com os brancos (por esse motivo o termo aparece nos relatórios), já que Guyraroká é um
termo do vocabulário religioso, na época restrito ao uso interno do grupo.
105
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