GT. Nº 7 – EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS A VULNERABILIDADE DA CULTURA NEGRA NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE BRASILEIRA MEDRADO, José de Souza1 [email protected] RESUMO Este estudo buscou uma compreensão dos processos de construção da identidade do povo brasileiro e dos efeitos da mistura das raças, a partir de interpretações das relações entre o branco e o negro apresentadas por Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala fazendo uma aproximação das consequências da escravidão e dos complexos psicoexistencial do negro trazidos por Frantz Fannon em Pele negra, máscaras brancas, elementos que compuseram sistema patriarcal no Brasil. A discussão parte das contribuições do homem negro para as mudanças que compuseram os valores socioculturais, religiosos e políticos desde então estabelecidos, na tentativa de agregar valor às peculiaridades deste indivíduo trazidas no contexto onde a mistura entre as raças já era alvo de críticas entre alguns autores e entendida como uma intoxicação cultural. Segundo Frantz Fanon, os negros oriundos da África já traziam em si complexos de inferioridade, e se apresentavam sempre de forma submissa no que diz respeito aos seus próprios valores culturais e políticos. Gilberto Freyre afirma que o sistema escravocrata é responsável por denegrir e inferiorizar todo o conjunto de valores trazidos pelo negro. Por se tratar de um momento de construção da identidade nacional é importante pensar no modo como os costumes originais dos negros foram essenciais para a composição daquilo que hoje é chamado como identidade nacional e, todavia foram marginalizados e se mantiveram vulneráveis dentro de tal sistema. Palavras-chave: Vulnerabilidade, negros, escravos, passividade, inferioridade. ABSTRACT This text study was make to understand the Brazilian peoples’s identify construction process and the effort of race mix, starting this study by the interpretations between black and white relationships showed by Gilberto Freyre in his book “Casa Grande e Senzala” doing a approximation between slavery consequences and black’s existential psycho complex discussed by Frantz Fannon in his book “Pele negra, máscaras brancas”, that subjects has composed Brazilian patriarchal system. The discussion starts by the contributions of black men for the changes that compound the sociocultural values, religious and political, since then established, trying to aggregate values at individual’s peculiarities brought in the context where the mixing between the races was already criticized by some authors and understood as a cultural poisoning. According Frantz Fanon, black people who comes Africa brought in their self inferiority complex and they ever had in a submitted position. Gilberto Freyre says that the slavery system was responsible for denigrate and abash all the black people values context. Because it is a moment of construction of national identity is important to think about how the unique customs of the blacks were essential to the composition of what is now called as national identity and yet have marginalized and maintained vulnerable within that system. Keywords: vulnerability, black, slaves, passivity, inferiority. 1 Acadêmico do 6º período de Ciências Sociais na UNIMONTES, membro do Programa de Educação Tutorial em Ciências da Religião - PETCRE na mesma instituição. 1 1. INTRODUÇÃO Este estudo buscou uma compreensão dos processos de construção da identidade do povo brasileiro e dos efeitos da mistura das raças, a partir das interpretações das relações entre o branco e o negro apresentadas por Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala, especificamente no IV Capítulo – O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro, fazendo uma aproximação das consequências da escravidão e dos complexos psicoexistencias do negro trazidos por Frantz Fanon em Pele negra, máscaras brancas. Falar do negro se faz necessário para elencar os processos experimentados por este indivíduo tão determinante na construção da identidade nacional, e concomitante suprimido e posto como marginal. É elencar as contribuições e conhecer a vastidão dos elementos culturais que foram trazidos com esse grupo. 2. UMA CULTURA TRANSPLANTADA PARA A VULNERABILIDADE Os processos que se estabeleceram entre a Casa Grande e a Senzala compuseram aquilo que hoje se compreende por identidade do povo brasileiro. Fatalmente houve uma série de supressões dos escravos negros, durante todo o processo de construção da civilização brasileira. Gilberto Freyre faz uma interpretação de forma cuidadosa e detalhada dos elementos da vida cotidiana do homem negro, e refletir sobre sua relação de servidão com os coronéis. Como na apresentação de Casa Grande & Senzala feita por Fernando Henrique Cardoso (2004): “De alguma forma Gilberto Freyre nos faz fazer as pazes com o que somos”. Sobre o processo de escolha de importação, os negros foram escolhidos por serem considerados mais fáceis de adaptação do que os ameríndios, tanto no clima quanto nas imposições que lhe eram feitas nas colônias portuguesas para então compor o cerne do patriarcado brasileiro. O cenário que se encontrava nas colônias brasileiras era de índios introvertidos e não aptos para o trabalho almejado pelos portugueses. Nesse sentido os negros satisfaziam com excelência as tarefas que o trabalho no campo demandava. Tal superioridade dos negros é justificada por Gilberto Freyre devido ao “regime alimentar mais equilibrado e rico que o dos outros, povos ainda nômades, sem agricultura regular nem criação de gado” (FREYRE, 2004 p. 373). E ainda acrescenta que no processo de transplantação para o Brasil, foram mantidos seus hábitos alimentares, “conservaram em grande parte a sua dieta” inclusive dominaram a culinária das casas grandes. A cultura negra é diversificada. Os negros que chegaram ao Brasil vieram de diferentes locais da África e apresentavam diferenças físicas de um grupo para o outro. Nota-se que os que 2 povoaram o sudeste brasileiro eram dotados de capacidades intelectuais, chamados de “homens de talento”. Gilberto Freyre faz uma argumentação sustentada em fatores biológicos para justificar que os negros que vieram para o Brasil foram os mais caros, e dotados de capacidades não somente físicas, mas de qualidades importantes para a organização de uma sociedade – elemento fundamental para difundir e dissipar o modelo de colônia que se pretendia. [...] Interessam-nos menos as diferenças de antropologia física (que ao nosso ver não explicam inferioridades ou superioridades humanas, quando transpostas dos termos de hereditariedade de família para os de raça) que as de antropologia cultural e de história social africana. Estas é que nos parecem indicar ter sido o Brasil beneficiado com um elemento melhor de colonização africana que outros países da América. Que os Estados Unidos, por exemplo. (FREYRE. 2004, p. 387) Em comparação com os negros que foram exportados para as colônias inglesas, onde os critérios de importação utilizados foram diferentes dos critérios utilizados no Brasil. Os ingleses valorizaram a “energia bruta, animal, preferindo-se portanto, o negro resistente, forte e barato” (FREYRE. 2004, p. 388). No rompante que para o Brasil, os critérios de seleção principais foram aqueles que buscassem suprir a falta de mulheres brancas e as necessidades de técnicos em trabalhos de metal para a exploração das minas. Neste sentido, os fula fula dominavam as técnicas com o uso do metal, criação do gado, uso da terra, além do destaque nas atividades domésticas. “As Minas e as Fulas eram as mulheres preferidas, em zonas como Minas Gerais de colonização escoteira, para amigas, mancebas e caseiras dos brancos.” (FREYRE. 2004, p.389). Outra observação que se acrescenta das narrativas de Gilberto Freyre é este elemento nobre peculiar da colonização do Brasil. Os negros que para cá vieram, estão “longe de terem sido apenas animais de tração e operários de enxada, a serviço da agricultura, desempenharam uma função civilizadora” (FREYRE. 2004, p. 390) e constata que a escravidão foi o elemento que degradou os atributos destes indivíduos. O Brasil não se limitou a recolher da África a lama de gente preta que lhe fecundou os canaviais e os cafezais; que lhe amaciou a terra seca; que lhe completou a riqueza das manchas de massapê. Vieram-lhe da África “donas de casa” para seus colonos sem mulher branca; técnicos para as minas; artífices em ferro; negros entendidos na criação de gado e na indústria pastoril; comerciantes de panos e sabão; mestres, sacerdotes e tiradores de reza maometanos. (FREYRE. 2004, p. 391) Dois processos de depreciação citados por Gilberto Freyre valem ser ressaltados, o primeiro a eugenia que seleciona os indivíduos a partir de seus traços físicos, o outro é a 3 escravidão como o sistema que depreciou todas as outras expressões sócio-culturais existentes, fazendo com que a raça e seu conjunto de significados estejam suprimidos e condicionados ao controle de outro grupo. Do processo de escravidão todos os processos de vulnerabilidade são estabelecidos, que aprisiona toda a riqueza cultural e moral que o negro trazia consigo. Fazia com que toda a cultura africana tivesse seu prestígio e seu valor diminuídos. Freyre aponta para a necessidade de fazer a separação do elemento escravocrata para se aproximar da identidade do indivíduo que estava aprisionado naquele sistema – “a escravidão desenraizou o negro do seu meio social e de família, soltando-o entre gente estranha e muitas vezes hostil (...)” (2004, p. 398). Também desempenhando um papel apaziguador na servidão, as amas de leite eram detentoras das técnicas de magia necessárias para proteger os recém-nascidos. Desse modo, toda a proteção mística dos bebês ficava por conta delas. Era com doçura que os filhos dos coronéis eram tratados. Nestes afagos destaca-se a presença latente do uso dos diminutivos que amaciavam e aproximavam a língua portuguesa que então era utilizada e fazia com que ela caracterizasse os sentimentos do indivíduo. “A ama negra fez com as palavras o mesmo que com a comida: machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino branco as sílabas moles” (FREYRE. 2004, p. 414) Assim como diversos outros elementos culturais foram postos a margem deste processo de construção, as palavras originais do dialeto africano foram também dissolvidas e suavemente incorporadas ao idioma dos brancos da Casa Grande. Os meninos brancos eram estimulados por seus pais para criar o mórbido gosto de judiar dos moleques negros. Quando brincavam juntos, o branco fazia do negro o seu cabrito e o montava. “Nas brincadeiras, muitas vezes brutas, dos filhos dos senhores de engenho, os moleques serviam para tudo: eram bois de carro, eram cavalos de montaria, eram bestas de almanjarras”. Além de expressar a passividade com que o negro se portava, tais brincadeiras faziam com que o sistema escravocrata fosse naturalizado no imaginário do branco sádico e dominante, ganhando força e domínio psicológico sobre o negro. Era o típico perfil do menino sadista, “da criança pervertida pelas condições sociais de sua formação entre escravos inermes.” (FREYRE, p. 454) Ressalta-se que o quanto antes o filho do coronel abandonava sua infância e iniciava a sua vida sexual com as mucamas. A relação das mucamas com as sinhás era de companheirismo nas situações mais difíceis. As mucamas conheciam o corpo das sinhás melhor do que os médicos e a alma melhor 4 do que os padres. “Pela negra ou mulata de estimação é que a menina se iniciava nos mistérios do amor” (FREYRE. 2004, p.423). Desta relação, ressalta-se que eram as amas de leite, devido a sua boa adaptação ao clima do Brasil que amamentavam os filhos dos coroneis, uma vez que o calor deixava as mulheres brancas inaptas para alimentarem seus filhos. Com as amas foram trazidos para o Brasil todo o arsenal de rezas, benzeduras, e a cura para doenças ginecológicas das mulheres. Elas sabiam como agir em situações emergenciais - seu papel de servidão foi sempre detalhado com ternura por Gilberto Freyre. A partir das narrativas de Freyre, é possível perceber a passividade com que a servidão negra era difundida, posteriormente o escravo recebe por imposição o batismo no catolicismo – instituição que fez com que ele se sentisse mais humano, menos animal. Gilberto Freyre aponta que o fato do batismo dos negros no catolicismo faz com que seja um avanço na organização da civilização brasileira. A religião vai aproximando os negros à medida que se veem representados por Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, ambos também negros. De pouco a pouco passam a se sentir parte da cultura e das rezas mesmo por terem sido apresentadas de forma tão abrupta. A mulher negra foi martirizada e estigmatizada como a culpada por depravar e antecipar a vida sexual dos meninos brancos. Mas é importante ressaltar que as amas de leite, além de alimentar os meninos, estabeleciam uma conexão de afeto, de proteção e de maternidade. Ressalta-se o afeto então cultivado, como um elemento que vai além da servidão, mas como uma relação concreta que se estabelece entre ama de leite e menino branco, “que recebeu também nos afagos da mucama a revelação de uma bondade porventura maior que a dos brancos; de uma ternura como não a conhecem igual os europeus (FREYRE, 2004 - p. 438)”. Destaca-se para a infância dos meninos que duravam apenas por volta dos 10 anos de idade. Depois disso, eram exigidas de si atitudes de um menino adulto tanto na postura física, no jeito de pentear os cabelos quanto na vida sexual com as mulatas para fazer render o rebanho de escravos dos seus pais. O filho que engravidasse uma mucama era motivo de orgulho para um coronel. Devido a esta cultura de antecipação da sexualidade dos meninos ser estimulada pelo senhor e dono das fazendas, as mulheres negras não podem ser culpabilizadas pelo incentivo sexual dos meninos. Estavam sob uma condição de servidão e desempenhavam um papel sempre de obediência dentro do sistema escravocrata. Entende-se que no meio de todas estas práticas na relação entre o escravo e o homem branco, configuraram-se na igreja, na senzala e na casa grande as três grandes forças que dominaram as riquezas culturais trazidas por aqueles negros recém-chegados; foram tratados 5 como inferiores e aptos para serem civilizados, no processo que Gilberto Freyre chamou de “abrasileiramento” onde as senzalas funcionaram como escolas para isso, estabelecendo assim, o sistema patriarcal brasileiro, tão bem difundido e cristalizado. 3. SOBRE O COMPLEXO DE INFERIORIDADE DO ESCRAVO NEGRO Frantz Fanon é um filósofo martinicano que desenvolveu uma análise na psicanalise sobre o comportamento do negro colonizado. Seus argumentos se encontram e corroboram com as descrições feitas por Gilberto Freyre para entender a passividade com que o negro servia às casas grandes. O complexo de inferioridade sob a ótica do Fannon, se dá após um duplo processo: o primeiro associado aos fatores econômicos e em seguida pela interiorização da inferioridade. Como consequência disso, destaca-se a fragilidade e a vulnerabilidade dos indivíduos que são vítimas de tal processo. Daí então, a necessidade de se conectar a uma cultura dominante para chamar de sua. Todo povo colonizado — isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural — toma posição diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana. Quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será. (FANON, 2008 – p.34) A partir daí entende-se a vulnerabilidade do escravo negro, distante do seu local de origem, obrigado a desenvolver novas formas de desempenhar seus costumes próprios sob o fado da escravidão, onde suas aspirações pessoais são totalmente suprimidas e convertidas no atendimento das necessidades do outro. Quando o negro africano incorpora palavras do português em seu dialeto nativo, e o contrário também acontece. Há uma compartilhamento cultural com base do uso da palavra em Frantz Fannon – são dois universos que constroem um novo significado, uma identidade própria. “Falar é estar em condições de empregar um certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização” (FANON, 2008 – p. 33). O problema apontado por Fannon aqui é que a partir do momento em que o negro adota elementos inerentes dos costumes do colonizador, ele adota também de forma implícita e gradativa toda a sua cultura e de certa forma abdica da sua cultura original. Sobre o batismo imposto e a apropriação do catolicismo, Fannon deixa espaço para que se discuta que talvez participar de tal conjunto de crenças, tenha dado aos escravos a sensação de humanidade que lhes foram tiradas no instante em que foi transformado em mercadoria e 6 comercializado. A religião então, age na ruptura de muitos complexos adquiridos neste processo. O autor pontua sobre a necessidade de autoafirmação de um negro quando esta fora de sua terra. Assim, é possível entender que o comportamento desenvolvido pelos negros num sistema escravocrata, será sempre diferenciado do seu comportamento original. O que se vê é uma consequência e mecanismos de resposta para sobreviver e desempenhar os papeis que lhe foram atribuídos, neste caso de ternura e afabilidade. Em Pele negra, máscaras brancas o martinicano desabafa uma série de situações em que sofreu preconceitos e sobre a dificuldades de aceitação da identidade do negro. Já faz algum tempo que certos laboratórios projetam descobrir um soro para desempretecer; os laboratórios mais sérios do mundo enxaguaram suas provetas, ajustaram suas balanças e iniciaram pesquisas que permitirão aos coitados dos pretos branquear e, assim, não suportar mais o peso dessa maldição corporal. Elaborei, abaixo do esquema corporal, um esquema histórico-racial. Os elementos que utilizei não me foram fornecidos pelos “resíduos de sensações e percepções de ordem sobretudo táctil, espacial, cinestésica e visual”, mas pelo outro, o branco, que os teceu para mim através de mil detalhes, anedotas, relatos. Eu acreditava estar construindo um eu fisiológico, equilibrando o espaço, localizando as sensações, e eis que exigiam de mim um suplemento. (FANON, 2008 – p.104) 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS E se a passividade do negro não tivesse sido uma característica tão latente deste detentor de riquezas culturais? E se tivessem dado um basta ao sadismo dos senhores? E se as amas não tivessem se sujeitado a alimentar e adocicar a vida dos meninos brancos? E se lhe fossem atribuídos estímulos para que não estivessem tão vulneráveis a ruptura dos valores tradicionais? A leitura da narrativa de Gilberto Freyre reforça a noção de humanidade que existe nos indivíduos que se dizem pós-modernos, entender os processos que compuseram o sistema político-social que está implantado e se faz compadecer diante da servidão negra marcada pelo sofrimento - sempre com doçuras e afagos como resposta. Fica evidente a necessidade do afastamento do sistema escravocrata para se aproximar da identidade do negro que existia antes do escravo. É possível então, construir o perfil de um negro que não emite opiniões próprias, que apenas acata, obedece e está sempre pronto pra servir. Eis sua sina. 7 5. REFERÊNCIAS FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. 49ª ed. rev. – São Paulo: Global, 2004 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. 8