Três pensadores brasileiros Prof. João Borba — Set./2010 Três pensadores costumam ser estudados como os principais autores brasileiros a escreverem sobre a formação do Brasil e da cultura política da nação: Gilberto Freyre (1900-1987), Sérgio Buarque de Holanda (19021982) e Caio Prado Jr (1907-1990). Os livros mais influentes publicados por esses três pensadores, nesse sentido, foram Casa grande e senzala (por Freyre, em 1933), Raízes do Brasil (por Buarque de Holanda, em 1936) e Formação do Brasil contemporâneo (por Prado Jr., em 1942). 1. De onde surgiu a obra de Gilberto Freyre Gilberto Freyre, o primeiro desses três pensadores a realmente se destacar com estudos desse tipo, estudou antropologia nos Estados Unidos com o antropólogo Boas, e de volta ao Brasil, escreveu uma obra que acabou por se tornar internacionalmente reconhecida, traduzida para muitas línguas: Casa grande e senzala, publicada em dezembro de 1933. Na época, havia uma nova tendência na antropologia norte-americana, promovida por Boas. A antropologia tradicional da época costumava apoiar-se com bastante frequencia na teoria da evolução e em estudos das diferenças fisiológicas entre os povos: a forma do crânio, os traços faciais típicos de cada povo, a cor da pele etc. Os antropólogos que seguiam a nova linha defendida por Franz Boas se concentravam mais na maneira como as pessoas de cada cultura viviam sua vida diária, considerando importante o esforço para compreender as diferenças e evitar o “etnocentrismo” (isto é, evitar estudar outras culturas a partir da nossa própria, para não enxergarmos essas outras culturas de maneira distorcida; e principalmente evitar avaliar essas outras culturas, diferentes da nossa, a partir dos nossos próprios padrões, como se fossem mais corretos, mais civilizados ou melhores). Freyre foi fortemente influenciado por essa proposta. Mas em seu livro, Freyre foi além da antropologia, e a combinou com estudos de diversas outras áreas, como história, sociologia, psicologia etc., fazendo uma espécie de mistura de tudo, sem separar essas áreas umas das outras. Ele procurou entender a formação dos brasileiros, de seu modo de pensar, sentir e viver as coisas, sem se prender a um campo científico ou a outro. Considerou o assunto como uma realidade integral, que não se divide desse modo, e que deve ser estudada ao mesmo tempo de todos os ângulos possíveis. Mas concentrou a sua atenção principalmente na vida cotidiana das pessoas durante o período em que o Brasil era colônia de Portugal e desenvolvia o cultivo de café e cana-de-açúcar usando mão-de-obra escrava trazida principalmente da áfrica. Como o próprio título do livro já sugere, Freyre quis mostrar as relações entre os brancos portugueses (que moravam com alguns escravos domésticos na “casa grande” dos engenhos de café e cana-de-açúcar) e os negros africanos (cuja maioria vivia, nessas fazendas de engenho, em galpões chamados “senzalas”). 2. O contexto que levou Caio Prado Jr. a valorizar o livro de Gilberto Freyre Quando o livro Casa grande e senzala foi publicado, recebeu elogios de Caio Prado Jr., famoso membro do partido comunista, que na época já era um intelectual respeitado e uma espécie de referência para pensadores esquerdistas em geral, por seus cuidadosos estudos sobre Marx. Hoje, Gilberto Freyre costuma ser considerado um pensador politicamente direitista, e o apoio do esquerdista Caio Prado Jr. ao seu livro naquela época parece um pouco estranho. Para entender por que um comunista marxista famoso como Caio Prado Jr. Aplaudiu a publicação de Casa grande e senzala, é preciso entender um pouco melhor a situação em que o livro foi escrito. Na época, havia uma tendência muito forte entre os estudiosos no sentido de valorizar a nação brasileira, uma tendência para o nacionalismo, e todos os três autores (Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e inclusive Caio Prado Jr.) participaram disso. Mas no campo político, muitos jovens empolgados com essa ideia de valorizar o Brasil vinham se ligando a um movimento chamado integralismo, que imitava um movimento político nacionalista de extrema direita que estava começando a ficar forte na Itália: esse movimento italiano era o fascismo. O integralismo pode ser considerado uma espécie de fascismo à brasileira, mais moderado que o italiano. O fascismo italiano vinha de uma ideia militar muito antiga, da época dos imperadores romanos: a ideia de que a união faz a força e de que é preciso que um povo se mantenha unido sob o comando de um mesmo lider, sem divergência de opiniões, para poder enfrentar com mais força os inimigos externos. A palavra “fascismo” vem de uma ideia usada para passar essa imagem de união forte: a ideia de que um feixe de gravetos amarrados juntos é muito mais resistente e difícil de arrebentar do que os gravetos separados, que podem ir sendo quebrados um a um. Da palavra “feixe” veio a ideia de “feixismo”, de onde acabou surgindo a palavra “fascismo”. O fascismo italiano ficou muito forte graças a um lider chamado Mussoline, que se tornou aliado de um movimento político e militar alemão de extrema direita também muito forte: o nazismo. Mais conhecido e estudado que o fascismo italiano, o nazismo alemão nasceu e cresceu ligado a um outro movimento, quer tinha uma proposta claramente racista, o movimento da “eugenia”. A ideia dos defensores da eugenia era a de que as pessoas de “raça pura” são superiores aos mestiços, e com base nisso, eles propunham que fossem incentivados os casamentos entre pessoas que eram de descendência “pura” só do seu país, sem nenhuma descendência estrangeira, e que as pessoas de famílias mestiças fossem incentivadas a não terem filhos ou a irem embora do país. Nos casos mais extremos, os “eugenistas” defendiam que os estrangeiros e pessoas de famílias mestiças deveriam ser proibidos de terem filhos, ou até mesmo deveriam ser mortos, a fim de deixar no mundo apenas os seres humanos “geneticamente mais puros”. Um desses casos extremos foi o da eugenia nazista, na Alemanha. Mas o movimento eugenista ficou também forte em outros países, principalmente a Holanda (onde havia uma postura menos agressiva contra os “impuros”) e os Estados Unidos. Na Itália, o fascismo, como aliado do nazismo, acabava servindo como uma porta de entrada para esse racismo eugenista no país. No Brasil, portanto, a porta de entrada para isso era o integralismo, que imitava o fascismo italiano. O movimento nacionalista brasileiro, que estava ficando forte, começava aos poucos a valorizar a ideia de que era preciso localizar quem seriam os brasileiros “puros”, a “raça pura” brasileira, e entusiasmados com essa ideia, alguns intelectuais e artistas brasileiros começavam a valorizar a imagem do indígena brasileiro, mas não era uma imagem muito realista, imaginavam o indígena de maneira fantasiosa, para passar a partir dessa imagem a ideia de uma raça brasileira “pura” que seria superior, mais forte, mais saudável, mais ligada à natureza etc. Não se tratava de examinar realmente as condições de vida dos indígenas, por exemplo, nque não eram condições nada boas. Tratava-se apenas de um esboço de eugenia racista que estava começando a aparecer no Brasil. Foi nesse contexto que Gilberto Freyre publicou Casa grande e senzala: no meio dessa onda de entusiasmo nacionalista em busca da “raça brasileira”, o livro assumia declaradamente a ideia de que o que a “raça brasileira” tem de bom é justamente o fato de não ser uma raça “pura”, mas muito pelo contrário, uma raça de mestiços. E nessa mestiçagem que formou o brasileiro, principalmente a partir de brancos portugueses, negros africanos e indígenas locais, Freyre valorizou acima de tudo os negros — que em países como Alemanha, Holanda e Estados Unidos estavam entre os mais perseguidos pelo movimento eugenista. Era uma resposta contra essa tendência racista. É interessante notar, aliás, que mais tarde, em 1942, Freyre chegou a ser preso em Recife por ter escrito um artigo denunciando publicamente atividades racistas e nazistas promovidas às escondidas pelo governo pernambucano. As atitudes anti-racistas de Freyre, a começar pelo seu famoso livro, foram enxergadas por intelectuais comunistas como Caio Prado Jr., por exemplo, como uma postura de esquerda — já que em geral eram direitistas radicais (como os nazistas alemães) que defendiam a eugenia e o racismo, e que a mestiçagem da população brasileira estava bem mais presente naquela imensa maioria que forma as classes mais baixas do que nas elites ricas. Isso quer dizer que, além dessa tomada de posição contra o racismo, defender o valor da cultura negra na formação do brasileiro, como Freyre fazia, era ao mesmo tempo defender o valor das classes sociais mais baixas no país. Mas o que mais atraiu leitores para o livro foi o método usado por Gilberto Freyre, que misturava livremente as mais variadas ciências sem separá-las e chegava inclusive a usar, junto com tudo isso, recursos que não eram científicos, mas de literatura — como metáforas, linguagem emotiva etc. E usando tudo isso, Freyre se dedicou a examinar não a atuação de grandes líderes ou pessoas consideradas importantes, mas a simples vida cotidiana das pessoas em geral naquela época, tentando passar uma imagem fiel do modo de pensar, agir, sentir e viver, enfim, dos que habitavam o Brasil colonial. Esse método tornou o livro de Gilberto Freyre famoso em todo o mundo, de modo que não era possível ignorá-lo aqui no Brasil. A leitura de Casa grande e senzala, então, acabou provocando um impacto no movimento integralista que vinha crescendo aqui. Muita gente passou a rejeitar a eugenia, e outros chegaram a abandonar o integralismo, depois de estudarem o livro. 3. Por que o método de Gilberto Freyre fez sucesso no mundo, e como esse método se compara ao de Caio Prado Jr. e outros marxistas Em 1919, um historiador holandês chamado Johan Huizinga havia publicado um livro sobre os últimos séculos da Idade Média que ficou muito famoso: O outono da Idade Média. A grande importância desse livro está no fato de propor uma nova maneira de se estudar História: uma maneira bem parecida com essa que, pouco mais de 10 anos depois, Gilberto Freyre acabou utilizando no livro Casa grande e senzala. Até aquela época, os historiadores se dividiam em geral entre duas grandes alternativas: a historiografia (ou método para se estudar história) tradicional e a historiografia marxista. Huizinga trouxe uma terceira alternativa. A historiografia tradicional contava a história a partir das grandes realizações de líderes ou pessoas consideradas importantes, ou das grandes realizações de certas nações e governos, e às vezes a partir de grandes movimentos intelectuais (como por exemplo o Iluminismo, que valorizava o progresso e defendia que era preciso ensinar as pessoas a usarem “as luzes da razão”). Esse modo de se estudar história acabava ignorando o estudo das condições concretas de vida do povo e também os movimentos sociais de luta contra a desigualdade entre ricos e pobres, e acabava valorizando muito os que saiam vitoriosos nas grandes lutas históricas, e desprezando os derrotados nessas lutas e os que, apesar de lutarem apoiando os vencedores, eram manipulados por eles, e no final, acabavam continuando “por baixo”. Era uma história só dos “vencedores”, bem ajustada ao mundo competitivo do capitalismo. A esquerda marxista acusava essa historiografia tradicional de ser pouco científica, de falsificar os fatos para valorizar os vencedores, os poderosos e os ricos, ou para valorizar as grandes ideias ignorando os fatos concretos, como se os grandes gênios pudessem mudar o mundo somente com seus pensamentos (como se fossem uma espécie de inspiração divina, modo de pensar típico da Igreja, que quase sempre se aliava com as forças políticas de direita). Essa esquerda defendia, contra isso tudo, a historiografia desenvolvida pelo teórico comunista Karl Marx. Marx prupunha que os estudos de História fossem feitos de outro modo: era preciso examinar as condições materiais que as pessoas da sociedade estudada tinham para viver (comida, moradia, roupas, meios de transporte etc.), e o modo como era organizada, no campo da economia, a produção dessas condições materiais. Era preciso, portanto, estudar as estruturas de produção econômica e de distribuição de bens econômicos da sociedade. Como essas coisas (roupas, comida etc.) eram produzidas? E como se tornavam acessíveis para a população? Através do mercado (das compras e vendas) ou por outro meio? Até que ponto a população tinha realmente acesso a esses bens necessários? Se o acesso aos bens se dá através do mercado, como funciona esse mercado? Até que ponto e de que modo o sistema de produção e de distribuição desses bens (por exemplo via mercado) na sociedade acabava prejudicando a população em favor de apenas alguns? Examinando as carências da população, até que ponto poderíamos dizer que essa população estava em condições de se organizar e lutar contra aquela situação e aquela minoria de poderosos para resolver suas carências? — Esse era o tipo de problemas que um historiador deveria tentar responder, segundo Marx. Nessa historiografia esquerdista de Marx, não era preciso nem mesmo citar o nome dos “grandes homens”, porque os grandes líderes e grandes gênios eram irrelevantes. Na historiografia marxista — defendida por Caio Prado Jr. —, tudo depende principalmente das situações econômicas que fazem acontecer a produção e a distribuição de bens necessários na sociedade. As ideias políticas, religiosas, artísticas, filosóficas etc. — tudo isso, dependia em última instância da economia. Tudo isso acabava sendo resultado das condições materiais, isto é, dos bens econômicos produzidos e acessados pelas pessoas, e das condições de trabalho de quem fazia acontecer essa produção e esse acesso. O modo como pensamos, sentimos e vivemos, segundo os marxistas, depende disso. Os tais “grandes homens” tão valorizados na historiografia tradicional, então, só se tornaram “grandes” ou porque a historiografia tradicional os imaginou grandiosos, ou porque souberam fazer o que a situação econômica exigia, e estavam no lugar certo na hora certa para fazê-lo. Mas se não o fizessem, outra pessoa qualquer ocuparia o seu lugar e faria — porque a situação concreta exigia que fosse feito, não importa por quem. Em outras palavras, para a historiografia tradicional, os grandes líderes e grandes gênios faziam tudo, e a população servia como massa de manobra. Para a historiografia marxista e de Caio Prado Jr., as situações concretas, econômicas, é que faziam tudo acontecer: os líderes e “gênios” (se é que ainda seria possível chamá-los assim), eram apenas um instrumento, um joguete, uma “massa de manobra” dessas situações concretas, que exigiam que alguém, não importa quem, estivesse ali para fazer o que fizeram. E se não houvesse ninguém para fazer o que era necessário? Neste caso, talvez houvese, no máximo, algum pequeno desvio ou atraso no caminho. Mas logo a própria situação econômica faria aparecer alguém em condições de fazer o que era necessário. A História, segundo os marxistas, seguia sempre um mesmo mecanismo de funcionamento, e sempre achava algum meio de continuar em sua direção original — nenhum desvio ou atraso era para sempre. As coisas acabariam fatalmente caminhado na direção em que tinham que ir. Mas que direção era essa? — A direção do comunismo. Com essa linha de pensamento, os historiadores marxistas mais cuidadosos (como o próprio Caio Prado Jr., aqui no Brasil) acabavam fazendo um trabalho bem mais científico do que dos historiadores tradicionais. Mas os menos cuidadosos acabavam muitas vezes deturpando o trabalho científico e distorcendo os fatos em favor dos trabalhadores e das ideias comunistas — do mesmo modo como acusavam os historiadores tradicionais de distorcerem os fatos em favor do capitalismo, das classes dominantes, dos mais ricos e mais poderosos. O próprio Caio Prado chegou a criticar esse tipo de atitude pouco científica entre seus colegas marxistas. Afastando-se da influência de Marx, o historiador Johan Huizinga preferiu se apoiar no pensamento do filósofo Friederich Nietzsche — que colocava no centro da sua atenção os valores que orientavam as ações humanas. Fazendo isso, abriu uma nova alternativa, um novo modo de se estudar história. Essa nova proposta conquistou rapidamente em todo o mundo a simpatia de esquerdistas que não aceitavam a historiografia tradicional, mas também não estavam satisfeitos com a proposta marxista; e às vezes chegou a conquistar até mesmo a simpatia de alguns marxistas que tinham mentalidade mais aberta para novidades. Entretanto essa nova historiografia não deixou de interessar também alguns direitistas que, apesar de seu posicionamento político, reconheciam a seriedade científica das críticas originais de Marx, e a falta de uma História que não ficasse presa somente aos grandes feitos de líderes e gênios. A ideia de Huizinga era a de estudar não a vida e as realizações dos “grandes homens”, nem as estruturas econômicas das sociedades, suas transformações e o que elas forçavam a acontecer — mas a vida diária e cotidiana das pessoas comuns de uma sociedade, sua cultura e seus valores. Isto significava, por exemplo, estudar aquilo em que as pessoas de uma sociedade acreditavam, seus sentimentos e costumes, seu modo de pensar e de agir no dia a dia. No entanto, apesar do entusiasmo de historiadores de todo o mundo pela historiografia de Huizinga, ele teve poucos seguidores. Não se sabia muito bem como colocar aquela proposta em prática. Era preciso mais exemplos de aplicação prática além do livro O outono da Idade Média (publicado em 1919, como já foi dito), e poucos se arriscavam a tomar iniciativa. Inclusive porque esse modo de se fazer história exigia uma pesquisa muito demorada e trabalhosa de pequenos documentos e registros históricos — e às vezes até arqueológicos — que pudesem atestar como viviam as pessoas da sociedade estudada, na época estudada. Não era algo que pudesse ser rápida e facilmente imitado por qualquer outro historiador logo depois de ler o livro de Huizinga. Colocar isso em prática exigia anos de preparação e amadurecimento das pesquisas. Em 1929 — quase 4 anos antes da publicação de Casa grande e senzala — foi fundada na França uma linha de pensamento em historiografia chamada “escola dos Annales”. Esses historiadores se propunham a examinar menos os acontecimentos que ocorrem em certos momentos em cada sociedade, e mais os processos de longo prazo, que vão formando as mentalidades das diferentes sociedades e as grandes civilizações. Para isso, se dedicaram a examinar o modo como viviam as pessoas comuns nas sociedades examinadas, tentando retomar a obra de Johan Huizinga. Esses historiadores esrtavam desenvolvendo seus primeiros trabalhos, em geral curtos, tratando de pequenos detalhes da vida em uma outra época, quando emergiu do Brasil aquela extensa e detalhadíssima obra — Casa grande e senzala — de Gilberto Freyre. O livro, traduzido para dezenas de línguas diferentes, entusiasmou muitos historiadores que já sentiam alguma simpatia pela escola dos Annales. Freyre parecia ter mostrado com toda clareza que era perfeitamente possível fazer uma pesquisa extensa, profunda e densa usando um método bem parecido, e havia oferecido um excelente modelo de como fazer isso. Então passou a ser imitado em estudos sobre a história de outros países. Atualmente, no Brasil, muitos historiadores marxistas tem tendido a “rechear” seus próprios estudos históricos das grandes transformações nas estruturas econômicas com um trabalho de história da “vida cotidiana” à maneira daquela proposta de Huizinga e dos Annales. Um grande impulso para essa nova historiografia mais tarde, aliás, durante as décadas de 60 e 70, foi a filosofia política de um nietzscheano bastante influenciado por Marx, chamado Michael Foucault (1926-1984). A combinação das filosofias de Marx e Nietzsche, com uma dose maior de Nietzsche do que de Marx e com ambos lidos de maneira esquerdista, normalmente acaba se aproximando bastante do pensamento anarquista. Foi o que Foucault fez. Com isso, a partir da influência de Foucault, muitos historiadores anarquistas, como por exemplo a famosa Margareth Rago, passaram também a simpatizar com essa nova historiografia “da vida cotidiana”. 4. A reviravolta que afastou os simpatizantes de Caio Prado Jr. (os marxistas) da obra de Gilberto Freyre Gilberto Freyre não era apenas um estudioso: participou ativamente da política nacional ocupando cargos governamentais, chegando a ser deputado federal. Suas posturas políticas não eram sempre tão claramente de esquerda quanto se esperava com base em sua obra teórica, e quando ocorreu o golpe militar de 1964, Freyre, chocando e decepcionando fortemente os esquerdistas, se mostrou a favor daquela ditadura de extrema direita. Chegou até a declarar ter esperança de conseguir um alto cargos político pela via indireta, escolhido pelos militares, já que era amigo pessoal do presidente Castelo Branco, o primeiro da ditadura militar no Brasil. Diante disso, os estudiosos esquerdistas do Brasil passaram a rever sua obra, examinando o quanto ela era realmente tão à esquerda como se julgava. Começou-se a perceber que no próprio Casa grande e senzala havia passagens nas quais Gilberto Freyre parecia simpatizar com aqueles senhores de escravos portugueses que dominavam o Brasil na época da colonização. Além disso, começou-se a suspeitar que a obra dele não era tão científica afinal, já que misturava as ciências com alguns elementos de literatura, e em muitos momentos deixava transparecerem os seus sentimentos e opiniões pessoais. E finalmente, surgiu a crítica de que, ao mesmo tempo que parecia lutar contra o racismo, Freyre acabava passando uma imagem falsa a respeito do preconceito no Brasil. Segundo essa crítica, sua “falsa ciência” acabava passando a ideia de que nesse Brasil “dos mestiços” não havia racismo, e pessoas de todos os tons de pele entre o branco e o negro viviam harmoniosamente, sem conflitos — o que era claramente falso, e só servia para mascarar a realidade e esconder o racismo brasileiro “debaixo do tapete”, por assim dizer. Contudo é preciso observar que essa última crítica tem alguma injustiça: ela simplesmente ignora a situação em que o livro Casa grande e senzala foi escrito, e o papel importante que ele teve contribuindo para deter no Brasil a tendência para a eugenia racista que vinha crescendo no mundo e começanmdo a chegar aqui. Também ignora, por exemplo, que Freyre chegou a ser preso por denunciar atividades racistas promovida pelo governo pernambucano, de modo que não era um homem do tipo que propositalmente procurasse “esconder” ou “maquiar”os preconceitos dos seus conterrâneos, muito pelo contrário. É possível que a crítica esteja correta, e que o livro tenha contribuído para formar um mito mentiroso de que no Brasil há uma harmonia não-preconceituosa entre as pessoas. Mas se isso aconteceu, foi mais tarde: quando foi escrito, o livro serviu claramente como uma arma na luta contra o racismo. Como resultado, ficou a polêmica: Gilberto Freyre era, afinal, um pensador de direita ou de esquerda? Sua vida pessoal como político que apoiou a ditadura militar aponta numa direção, seu método histórico não-tradicional, utilizado logo de saída, além disso, como arma para combater uma tendência racista que vinha junto com os movimentos ditatoriais nazista e fascista, imitados no Brasil pelos integralistas, aponta contraditoriamente na direção oposta. 5. As Raízes do Brasil segundo Sérgio Buarque de Holanda e sua reinterpretação do método de Freyre, misturando-o com uma influência de Max Weber Três anos depois de publicado o livro Casa grande e senzala, quando Gilberto Freyre ainda era celebrado como um pensador de esquerda e não havia tanta polêmica em torno de sua obra, Sérgio Buarque de Holanda publicou um livro que acabaria se tornando também bastante famoso: Raízes do Brasil. Se Freyre havia falado sobre a “mestiçagem” típica do brasileiro, e sobre a importância dos negros na formação dessa mestiçagem, Sérgio Buarque procurou completar o seu estudo com um exame mais cuidadoso do outro lado apontado por Freyre nessa mestiçagem: o lado português. A influência do próprio Freyre sobre a obra de Sérgio Buarque é bastante evidente, mas nem por isso se pode dizer que sejam iguais. Raízes do Brasil está longe de ser apenas um “complemento” do estudo apresentado em Casa grande e senzala. Em primeiro lugar porque, examinando a cultura portuguesa no Brasil na época da colonização, Sérgio Buarque, diferentemente de Freyre, chega a uma avaliação pessimista a respeito da presença portuguesa aqui. Segundo ele, nossas elites econômicas, formadas desde o início por essa presença portuguesa, se acostumaram a uma atitude que foi sempre bastante ruim para o desenvolvimento do país. Além disso, Sérgio Buarque desenvolveu seu próprio método, que no fundo é bem diferente daquele de Freyre, embora superficialmente parfeçam métodos bem semelhantes. Em segundo lugar, Sérgio Buarque é diferente de Freyre porque o método utilizado em Raízes do Brasil tem uma forte influência da sociologia de Max Weber, que não aparece em Freyre. De que maneira, exatamente, a influência weberiana aparece no método de Sérgio Buarque? — Através do método dos “tipos ideais” criado por Weber. Segundo esse método weberiano, a cada realidade deve ser examinada a partir de sua comparação com certos “tipos” dessa realidade. Por exemplo: examinando as diferentes formas de dominação que tem sido postas em prática na história das sociedades humanas, Weber chega à conclusão de que é possível compreendê-las a partir de três grandes “tipos ideais” de dominação: o tipo “carismático”, em que o lider tem poder porque sua personalidade atrái seguidores; o tipo “tradicional ou patriarcal”, em que o lider representa tradições e costumes que os liderados querem seguir; e o tipo “burocrático ou racional”, em que o líder é apenas o ocupante de um cargo definido por normas racionais, criadas com um certo objetivo, de modo que quem realmente domina são as normas, e não o lider, que está lá apenas para cumpri-las. Todos os três tipos de dominação têm seus defeitos e suas qualidades, embora o mais irracional e cheio de defeitos seja o tipo “carismático”, e o menos defeituoso e mais racional seja o “burocrático”. Isso passa a impressão de que são tipos “reais”, mas não são: são apenas ideias criadas pelo estudioso de maneira realista — isto é, de maneira que pareçam reais — e a partir de uma primeira observação geral dos fatos. Depois de criar esses “tipos” apenas ideais (e não reais), o estudioso deve tratar de examinar os fatos reais, comparando-os com esses tipos ideais. Deste modo, poderá compreender o quanto cada realidade estudada se aproxima mais de um tipo ou mais do outro, e quais características aquela realidade tem de um dos tipos ou de outro. 6. De que modo exatamente Sérgio Buarque de Holanda aplicou o método de Max Weber ao estudo do Brasil? O que Sérgio Buarque de Holanda fez em seu livro Raízes do Brasil foi algo bastante parecido: a partir de um primeiro exame geral da história do Brasil colonial, levantou alguns “tipos” que ajudariam a entender melhor aquela realidade. Sérgio Buarque pensou primeiro em dois tipos de colonizadores: o “ladrilhador” e o “semeador”. Segundo ele, o “ladrilhador” procura planejar racionalmente a colonização e ocupar o território como quem está “colocando ladrilhos” em um terreno, isto é, dividindo-o de maneira calculada em partes similares, geralmente geométricas, para estabelecer o seu controle do modo de povoamento e/ou de exploração de cada parte desse território. Já o tipo “semeador” age como se estivesse “lançando sementes” em um território: ele “planta” um começo de povoação e\ou exploração em um lugar que parece adequado para isso, depois deixa aquela “semente” de povoamento e\ou exploração ir se desenvolvendo sozinha, enquanto vai repetindo isso em outros lugares que pareçam igualmente adequados, e de vez em quando visita esses lugares para “regar” um pouco, isto é, para verificar como as coisas estão andando, corrigir desvios (como quem poda uma planta) e estimular como for necessário o que estiver precisando de estímulo. Segundo Sérgio Buarque, os colonizadores espanhóis geralmente se aproximavam mais do tipo “ladrilhador”, enquanto os portugueses (que colonizaram o Brasil), se aproximavam mais do tipo “semeador”. Depois de examinar essa forma “semeadora” de colonização praticada pelos portugueses no Brasil, Sérgio Buarque levanta dois tipos de pessoas, orientadas por valores morais diferentes, que vieram da Europa para as Américas para praticarem essas formas de colonização: as do tipo “aventureiro” e as do tipo “trabalhador”. Esses dois “tipos ideais”, pensados por Sérgio Buarque para servirem ao entendimento do processo de formação da nação Brasileira, aparecem bem resumidos no prefácio O significado de “Raízes do Brasil”, escrito para o livro por Antonio Candido. Segundo ele, os dois “tipos” representam éticas quase opostas: “uma, busca novas experiências, acomoda-se no provisório e prefere descobrir a consolidar; outra, estima a segurança e o esforço, aceitando as compensações a longo prazo” (p.14 do prefácio de A. Candido a Raizes do Brasil). Candido cita também logo em seguida (p. 14) uma passagem da página 44 do livro, escrita pelo próprio Sérgio Buarque, que vale a pena reproduzir. Nela, Sérgio Buarque diz que ambos os tipos “participam, em maior ou menor grau, de múltiplas combinações, e é claro que, em estado puro, nem o aventureiro nem o trabalhador possuem existência real fora do mundo das ideias”. Isso mostra claramente a relação entre o seu método e o método weberiano, que também trabalha com tipos puramente “ideais” para entender a partir da comparação com eles as realidades complexas estudadas, que na verdade acabam tendo sempre uma mistura ou combinação muito particular desses tipos, nunca se enquandrando puramente em um ou puramente em outro deles. Segundo Sérgio Buarque, o tipo de ética que orientou os colonizadores portugueses no Brasil (e também os espanhóis em outras partes da América Latina, e até mesmo os ingleses em algumas regiões da América do Norte), combinado com a colonização de tipo “semeador”, acabou sendo benéfico para a formação brasileira, apesar da atuação desleixada e dos portugueses aqui, deixando muitas regiões da colônia se desenvolverem por conta própria, em um certo abandono. Mesmo que isso tenha formado elites econômicas e políticas pouco interessadas nos destinos do país, por outro lado formou também uma população com com características muito peculiares e interessantes. Para entender esse modo de ser peculiar e interessante dos brasileiros, Sérgio Buarque pensaou em mais um “tipo ideal”, do qual nos brasileiros em geral dtenderiam a se aproximar bastante: o tipo “cordial” — e essa foi a contribuição mais famosa de Sérgio Buarque para os estudos sobre a formação da cultura brasileira. 7. O que é o tipo “cordial” de pessoa, que segundo Sérgio Buarque de Holanda ajuda a entender o modo de ser do brasileiro, e como isso se relaciona com a teoria weberiana dos “tipos de dominação”? A ideia de que o brasileiro tende a ser um pessoa de tipo “cordial” não deve ser confundida com a imagem que temos de uma pessoa “polida” ou “educada”. Sérgio Buarque usou a palavra “cordial” tendo em mente que ela vem de “córdio”, que quer dizer coração. Trata-se portanto de um tipo humano que age movido mais pelo “córdio” do que pela razão, um tipo mais afetivo e emocional do que racional. Na verdade, essa “cordialidade” típica do brasileiro, segundo Sérgio Buarque, se encontra na forma de “comportamentos de aparência afetiva”(p. 17), independentemente de serem comportamentos sinceros ou não. Esses comportamentos aparentemente afetivos e amigáveis tendem inclusive a romper com os rituais de polidez e boa educação, e levar a uma postura informal, descontraída, que para outros povos às vezes pode parecer até grosseira à primeira vista — embora tenda a gerar entre os estrangeiros, num segundo momento, uma ilusão de intimidade e afetividade que tende a parecer simpática (e com a qual os mesmos estrangeiros podem se decepcionar num terceiro momento, ao perceberem que é apenas uma maneira tipicamente brasileira de tratar as pessoas e conduzir as relações sociais. Do ponto de vista político, é importante então observar que brasileiro típico, segundo Sérgio Buarque, tende a não gostar de normas e formalidades, e “não acha agradáveis as relações impessoais, características do Estado, procurando reduzi-las ao padrão pessoal e afetivo” (p. 17). Isto dificulta para os brasileiros saírem daquelas formas de organização e dominação que Weber chama de “tradicionais ou patriarcais” e de “carismáticas” — as duas formas mais irracionais de dominação e organização social, segundo Weber. Na avaliação de Sérgio Buarque, o interessante “tipo cordial” do brasileiro, que tende inclusive a gerar simpatia em outros povos, por outro lado contribui para manter a população brasileira oscilando entre esses dois tipos mais primitivos de dominação. Seguindo essa linha de raciocínio, é mais difícil para o brasileiro do que para outros povos aceitar organizações que funcionem friamente de maneira mais “burocrática e racional”, que segundo o sociólogo alemão é a maneira característica do tipo mais avançado de dominação e organização. O que mais provoca a atenção e o interesse, no entanto, é o fato de que Sérgio Buarque não deixa de mostrar uma certa simpatia por esse lado “cordial” (e pouco racional) do brasileiro. Ele não é um puro weberiano. O próprio Max Weber, apesar de valorizar muito a racionalidade, já mostra algum fascínio e interesse pelo lado irracional das organizações humanas — e Sérgio Buarque vai um pouco mais longe do que Weber nessa direção: não apenas mostra interesse por essa faceta irracional do brasileiro, mas também chega a valorizá-la. O tipo “cordial” do brasileiro não é completamente condenado por ele: pelo contrário, é mostrado como uma espécie de contribuição brasileira para a humanidade. É verdade que Sérgio Buarque não deixa muito claro o que pode haver de benéfico nessa contribuição, ou o quanto ela pode ser realmente uma contribuição benéfica, mas não deixa de sugerir isso. Assim, a leitura de Raízes do Brasil nos provoca a pensar nesse sentido, nos provoca a investigar mais cuidadosamente se não há mesmo algo de bom, de benéfico, nessa cordialidade brasileira, afinal de contas. Esse detalhe no pensamento de Sérgio Buarque aparece provavelmente por influência de um outro sociólogo também muito lido por ele: Georg Simmel. Tanto Weber quanto Simmel se apoiam bastante na filosofia de Nietzsche, que que muitas vezes costuma ser considerada como uma filosofia de defesa do irracional e de crítica à tradição racional das nossas sociedades ocidentais. Mas Weber faz uma leitura estranha de Nietzsche, misturando-o com outro filósofo, Kant, para quem a razão é fundamental. Como resultado, Weber reconhece que nenhuma racionalidade é pura, e que há sempre algo de irracional por detrás ou ao lado do que parece racional. Mas continua valorizando a razão contra esse lado irracional das coisas. Georg Simmel, por outro lado, mostra uma simpatia muito maior pelo lado irracional das culturas humanas. Sérgio Buarque pode ter herdado daí a suam simpatia especial pelo lado “cordial”, afetivo e irracional, do brasileiro. Uma crítica possível a Sérgio Buarque de Holanda é a seguinte: segundo ele, o “tipo cordial” que descreve tão bem o brasileiro seria uma herança do modo de ser dos portugueses que vieram colonizar o Brasil. No entanto, existe uma lenda indígena bem mais antiga, e de forte difusão entre tribos as mais variadas no país, que já apresenta, inclusive com muito mais clareza, um herói indígena (ou melhor dizendo uma espécie de anti-herói malandro) dotado dos mesmos traços que Sérgio Buarque descreve como herdados por nós dos portugueses. Essa lenda é bem anterior à colonização portuguesa (apesar de mais tarde ter incorporado novos elementos a partir do contato com os brancos). Trata-se da lenda de Macunaíma, que foi transformada em um belo romance de literatura pelo escritor Mário de Andrade, e mais tarde em um filme. Parece que algo de afetivo e irracional típico das relações humanas entre os portugueses, como bem observou Sérgio Buarque, pode ter se combinado com algo ainda mais afetivo e irracional (e bem mais parecido com a “cordialidade” típica brasileira) que já existia aqui entre os índios. A influência de Simmel no pensamento de Sérgio Buarque talvez o levasse a aceitar bem uma crítica como esta — quem sabe? Mas o ponto interessante dessa crítica é que ela afeta diretamente a teoria de Weber: segundo Weber, a democracia é um tipo de organização que exige o predomínio da racionalidade, na forma de leis racionais, e que leva a uma diminuição desse lado afetivo e irracional nas relações. Ainda segundo Weber, as organizações baseadas no lado mais afetivo dos seres humanos tendem a ser as mais autoritárias, as menos democráticas. No entanto, ao contrário do que isso levaria a crer, a vida social dos tupis-guaranis era extremamente igualitária e livre, e chegou a fornecer um modelo para os pensadores políticos contratualistas da Europa pensarem no desenvolvimento da ideia de igualdade cristã — que parecia utópica antes de conhecerem a cultura indígena brasileira — como base de sustentação para o direito e a política. 8. Como Caio Prado Jr. retomou a historiografia marxista depois de Sérgio Buarque O prefácio de Antonio Candido ao livro Raizes do Brasil termina qualificando Sérgio Buarque de Holanda como um do “radicais da democracia” no Brasil. Mas é uma qualificaçãop que precisa ser pensada com um pouco mais de cuidado. O radicalismo democrático, mais característico das esquerdas democráticas do que das direitas democráticas, normalmente está ligado à defesa de maiores espaços de participação popular no política, apontado portanto no sentido da democracia participativa, em que pesa menos a simples autoridade dos representantes eleitos, que passam a depender mais da consulta à população. Nos casos realmente mais radicais, é possível falar na defesa de uma “democracia direta” — inteiramente organizada na forma de debates e plebiscitos em meio à população, no limite sem representantes eleitos que tenham qualquer poder de decisão independente desses debates e assembléias populares. É mesmo isso o que Antonio Candido quer dizer quando chama Sérgio Buarque de um dos “radicais da democracia”? — Não, de maneira nenhuma. O que ocorre é que, do ponto de vista das referências teóricas mais utilizadas no mundo para o exame das relações políticas, as teorias de Karl Marx e de Max Weber tendem a aparecer como rivais. Marx vinha sendo utilizado principalmente por comunistas de extrema esquerda que defendiam uma linha autoritária, orientada pela estatização e planejamento racional da sociedade por um governo de representantes dos trabalhadores, com pouco espírito democrático (postura diferente daquela dos comunistas com espírito democrático e daquela dos anarquistas). Weber vinha sendo utilizado na maior parte do mundo principalmente por defensores de uma democracia moderada, de centro, ou no máximo de “centro-esquerda”, que não se entusiasmava tanto com a ideia de participação popular. Em outras palavras, o livro de Sérgio Buarque de Holanda representava a introdução no Brasil — brilhantemente realizada e inclusive com alguma originalidade — da teoria de Max Weber que era uma referência teórica tipicamente democrática, moderada, e rival da referência marxista. Além disso, a obra Raízes do Brasil se apresentava como uma espécie de complemento de casa grande e senzala, de Gilberto Freyre, que como vimos, acabou se revelando um direitista. Essas duas eram reconhecidas como as principais obras escritas no Brasil para o entendimento da formação da nossa cultura e inclusive do nosso comportamento político. Nesse estado de coisas, Caio Prado Jr., famoso como um dos nossos mais sérios estudiosos marxistas, não poderia deixar de se manifestar. Apesar de valorizar também o trabalho de Sérgio Buarque (como já havia valorizado antes o de Gilberto Freyre), e de até utilizar indiretamente as informações trazidas no livro Raízes do Brasil, Caio Prado procurou reforçar o pensamento de Marx, do qual a teoria weberiana trazida para o Brasil por Sérgio Buarque era rival. Escreveu então o livro Formação do Brasil contemporâneo. O livro de Caio Prado não chega a ser original, porque é simplesmente uma aplicação do pensamento marxista ao estudo da formação do nosso país. Mas nem sempre originalidade é o mais importante: trata-se não só de uma aplicação muito bem feita do pensamento de Marx, mas além disso da primeira grande obra escrita por um brasileiro a fazer isso, e com esse nível de profundidade. Caio Prado procurou ressaltar menos o posicionamento político esquerdista e comunista que estava por detrás de seu estudo, e mais a postura científica que era valorizada por Marx — porque o próprio Marx dizia defendia a ideia de que, apesar de as teorias servirem para apoiar posicionamentos políticos, elas deveriam ser feitas da maneira mais consistente, cuidadosa e científica possível, compreendendo a realidade como ela é, antes de pensarmos como gostaríamos que ela fosse. O livro se tornou muito famoso, e sua principal marca foi justamente esse espírito científico, de pesquisador sério. Deste modo, a obra se destacou em relação àquela de Gilberto Freire, por exemplo, que misturava uma postura científica com literatura e deixava transparecer sentimentos, simpatias e antipatias pessoais do autor. Caio Prado procurou ser realista, frio e objetivo, como um bom trabalho puramente científico, e seu livro foi reconhecido como um grande sucesso nesse sentido. 9. quais foram as principais contribuições do livro Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Jr., nos estudos sobre a formação do Brasil e dos brasileiros? Caio Prado começa o seu livro com a ideia de que para entender o processo de formação do Brasil é preciso entender qual foi o sentido geral da sua colonização pelos portugueses. E para encontrar esse “sentido” é preciso buscá-lo onde a teoria de Marx diz que se encontra o sentido geral do desenvolvimento de qualquer sociedade: na sua economia, principalmente no modo como essa sociedade se organiza economicamente para produzir os bens materiais necessários para a vida da população, como roupa, comida etc. O primeiro ponto a observar nisto, é que o sentido da colonização do Brasil, segundo ele, está ligado ao sentido de desenvolvimento da economia mundial na época, e especialmente da economia portuguesa. O que Caio Prado quer dizer com isto é que não basta estudarmos uma sociedade isoladamente e “por dentro” (como Gilberto Freyre fez) para entendermos o sentido do seu desenvolvimento, porque qualquer sociedade está ligada a outras no mundo. Os weberianos (e com eles Sérgio Buarque), embora não ignorassem as influências externas sobre uma sociedade, também costumavam dar muito mais atenção à formação “interna” da sociedade estudada do que a essas influências externas. Caio Prado, seguindo uma linha mais típica de Marx, procurou chamar a atenção para esses fatores externos. A combinação dessa atenção à formação do sistema de produção de bens econômicos no Brasil com o estudo das influências externas nessa formação, acabou levando Caio Prado Jr. À seguinte conclusão: o Brasil desenvolveu, ao longo da história, uma forte tendência para sempre “chegar atrasado” nas grandes mudanças econômicas que foram acontecendo no mundo. Ele observa, neste sentido, que Portugal começou a dar atenção a estas terras com atraso, porque no começo só as via como um posto avançado para tentar conseguir chegar até as Índias, visando o comércio de especiarias vindas de lá. Quando passou a dar atenção ao Brasil, demorou a instalar alguma forma de produção aqui, porque começou interessado apenas na extração de pau-Brasil para a produção de tinta vermelha na Europa a partir dessa madeira brasileira. Quando começou a produzir cana e café, foi com mão-de-obra escrava, e demorou muito mais que outras colônias para abolir a escravatura. Normalmente, essa abolição vinha junto com as pressões da industrialização, que precisava de trabalhadores assalariados para depois comprarem os produtos consumidos, e no Brasil, a abolição veio sem a industrialização, por pressões políticas principalmente da Inglaterra sobre Portugal (a Inglaterra já estava industrializada, precisava de mercado consumidor, e sua guerra contra a França de Napoleão estava dificultando muito a venda de seus produtos na Europa, então começaram a pensar no Brasil). Quando começou a industrialização no Brasil, foi com enorme atraso, e ao invés de um conflito entre os que queriam essa industrialização e os antigos senhores de terras e escravos (de famílias de origem portuguesa), esses senhores de terras e escravos espertamente começaram a negociar e se associar com os que queriam a industrialização, inclusive financiando-a, e como resultado... o país começou a se industrializar mas mantendo uma classe empresarial com mentalidade de senhor de escravo, que considera o fato de ter trabalhadores a seu serviço sendo pagos como se fosse, no fundo, uma espécie de “favor” seu (de ceder esses empregos a eles e ainda por cima pagando). Uma ideia que de Caio Prado Jr. colocada por ele em uma entrevista para o jornal Folha de São Paulo, na década de 70, que ficou muito famosa, foi a de que o Brasil “perdeu o bonde do capitalismo”. Quando a maioria dos países do mundo já estavam desenvolvendo uma forma de capitalismo avançado, o brasil ainda estava começando o seu capitalismo, e muito devagar. Para um comunista marxista, isto é péssimo, porque segundo Marx o próprio comunismo só seria possíve quando o capitalismo tivesse se desenvolvido ao máximo no país, a ponto de criar uma maioria de trabalhadores com força e capacidade de organização para lutarem pelos seus direitos e tomarem o poder. Seguindo Caio Prado Jr., pessimista na sua avaliação, o Brasil não vai conseguir se desenvolver de verdade enquanto não conseguir vencer essa sua “tendência histórica para o atraso”.