UM REDESCOBRIMENTO HISTORIOGRÁFICO DO BRASIL RENATO MOSCATELI Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais do que isto. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Caio Prado Jr., Formação do Brasil Contemporâneo Introdução Determinados períodos da História de um país são especialmente significativos não porque representam um rompimento radical com as estruturas sociais, políticas ou econômicas anteriores, mas porque neles os agentes históricos procuram dar novas dimensões e significados à realidade passada a fim de construírem no presente um mundo adequado a seus próprios projetos. A proximidade do aniversário de 500 anos da viagem de Pedro Álvares Cabral às terras que viriam a ser o Brasil tem chamado a atenção dos historiadores para este fato, reavivando o 188 interesse pelo tema do “descobrimento” e suas conseqüências. Diversas são as faces que se tem procurado enxergar neste marco oficial da história brasileira, e elas estão todas marcadas, de alguma forma, pela maneira como os homens do presente vêem a atualidade e pretendem agir sobre ela. O conteúdo atribuído ao “descobrimento” não está, portanto, apenas no passado, mas também em nosso próprio tempo, e pode-se mesmo dizer que há um redescobrimento do Brasil todas as vezes que se busca rever as características do processo histórico que produziram a realidade de nosso país. Tendo tudo isto em vista, o presente texto abordará um desses “redescobrimentos” do Brasil, aquele que foi realizado por determinados estudiosos do início do século XX, o que pode nos servir de inspiração e fornecer algumas indicações para pensarmos sobre como o nosso próprio tempo tem encarado os cinco séculos de História oficial brasileira que começaram com a chegada de Cabral. A década de 1930 no Brasil é, como foi dito, um desses períodos fecundos de reinterpretação do processo histórico, uma fase que ficou marcada pela produção de correntes explicativas que buscavam compreender a sociedade brasileira à luz de certas teorias e métodos que eram vistos por seus defensores como instrumentos válidos para decifrar o enigma da constituição de sua nação. Os nomes de Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Holanda sobressaem-se neste grupo de estudiosos da história brasileira, tanto pelos novos paradigmas de pesquisa que eles aplicaram, quanto pelo impacto que suas interpretações causaram dentro e fora dos meios acadêmicos1. Sendo o objetivo deste artigo promover uma breve discussão da reconfiguração da historiografia brasileira da década de 30, ele tratará de questionar as obras principais dos três autores mencionados, visando a apreender os componentes principais de suas respectivas visões sobre a História do Brasil. 1 Embora o presente texto trate principalmente do caráter inovador das obras dos autores mencionados, deve ser lembrado que elas não podem ser totalmente desligadas dos trabalhos que as precederam. Dados os limites deste artigo, não se fará uma discussão a respeito da linha de continuidade entre tais obras e os escritos dos diferentes autores que, a partir do final do século XIX, analisaram a realidade brasileira através de uma abordagem ensaística. Tal discussão, de extrema importância, pode ser encontrada na obra de Ana Maria Roland intitulada Fronteiras da palavra, fronteiras da história (1997, p. 135 e seguintes), onde se faz uma crítica das interpretações sociológicas da história do Brasil inauguradas por Caio Prado Jr. na década de 1940, em defesa do ensaísmo moderno presente em obras como Os Sertões de Euclides da Cunha. 189 As três cartas do redescobrimento Em primeiro lugar, enfoquemos a obra de Caio Prado Jr. Entre os trabalhos mais significativos do autor estão Evolução Política do Brasil (1933) e Formação do Brasil Contemporâneo (1942), e será este último o fio norteador de minhas reflexões2. Adotando o modelo teórico do materialismo histórico formulado no século XIX por Karl Marx e Friedrich Engels, Prado Jr. buscou delinear nesta obra o que ele denominou o sentido da colonização do Brasil. Para o autor, a circunstância constitutiva da realidade brasileira, presente mesmo no início do século XX, seria a construção, no período colonial, de uma sociedade e uma economia voltadas acima de tudo para a satisfação do mercado externo. As estruturas da história brasileira teriam sido erguidas sobre os alicerces da dependência em relação aos ditames da economia internacional, e não sobre as bases de um projeto para a formação de uma nação autônoma diante de seus colonizadores. No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial (...) destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução histórica dos trópicos americanos.3 Como se vê, o autor propõe uma interpretação histórica pautada em critérios eminentemente econômicos, isto é, guiada pela constatação de como a (re)produção da vida material determina o caráter das relações sociais. Ao descrever a forma de exploração da terra implantada pelos colonizadores no Brasil, Prado Jr. utiliza o mesmo pressuposto, afirmando que os três elementos principais presentes na agricultura colonial — a grande propriedade, a monocultura e o trabalho escravo — não são opções aleatoriamente combinadas ou passíveis de serem substituídas por outras; elas, em conjunto, são “a conseqüência natural e necessária” das contingências concretas que foram criadas pelo processo 2 A escolha de uma obra de publicação posterior à década de 30 justifica-se, como propõe Carlos Guilherme Mota (cf. 1978, p. 32), pelo fato da mesma ter sido elaborada dentro do período aqui em discussão. 3 PRADO JR., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1971, p. 31. 190 de expansão ultramarina portuguesa4. Em conformidade com este raciocínio, a caracterização do tipo de unidade familiar que, para Prado Jr., está na base da estrutura social da Colônia, também aparece em Formação do Brasil Contemporâneo como um resultado sui generis de um modelo de organização econômica, aquele surgido em torno do grande domínio agrícola: o clã patriarcal, antes de ser uma possível herança das instituições portuguesas, é um fruto do regime econômico do latifúndio agroexportador, uma unidade produtiva que congrega os familiares do grande proprietário e atrai em direção à sua órbita de influência não apenas os escravos, como também as populações vizinhas que buscam no senhor rural a proteção e os favores que a autoridade pública, geralmente distante, não pode oferecer5. Embora, como já foi dito, Prado Jr. tenha fundado sua linha interpretativa no materialismo histórico, uma inovação dentro da historiografia brasileira, a visão deste autor possui uma peculiaridade que suscitou diversas críticas à sua obra. De fato, o ponto de partida do materialismo histórico é a idéia de que são os modos de produção que determinam os demais aspectos da vida social, e, não obstante, em sua análise do sentido da colonização do Brasil, Prado Jr. estabelece que não foi tanto a forma de produzir implantada na Colônia que constituiu a questão mais importante, e sim a circulação comercial dos produtos em direção ao exterior. Segundo Claudinei M. M. Mendes, a razão deste deslocamento encontra-se não em um equívoco teórico, mas no projeto político defendido pelo autor. Se Caio Prado não tomou o mercado interno como objeto central de sua análise nem considerou os sistemas produtivos, isto deriva de que sua interpretação da história do Brasil tinha por objetivo precisamente apontar para o processo de formação deste mercado, cujo crescimento, a ser ver, estava sendo obstaculizado pelas características exportadoras — coloniais — da economia. Na sua opinião, os sistemas produtivos somente se fortaleceriam, o mercado interno se constituiria e a sociedade somente se organizaria com a liquidação deste caráter exportador.6 4 Idem, p. 119. Ibidem, 287. 6 MENDES, Claudinei Magno Magre. Caio Prado Júnior e a história do Brasil. In ALVES, Paulo (org.). Ensaios historiográficos. Assis, Autores Associados, 1997 p. 4079. p. 49. 5 191 Diante das questões nacionalistas postas à intelectualidade na década de 30 pelo governo de Getúlio Vargas, Caio Prado Jr. acreditava que a história do Brasil deveria ser estudada do ponto de vista da formação de sua economia agroexportadora dependente do mercado externo, de modo que a compreensão deste processo possibilitasse o vislumbre de soluções para os problemas enfrentados pelo país no momento em que as obras do autor eram publicadas. Assim como no caso de Prado Jr., a matriz teórica de Sérgio Buarque de Holanda também tinha sua origem no pensamento europeu. Raízes do Brasil (1936), a obra inaugural do autor, foi influenciada sobretudo pelo historicismo alemão, que pode ser descrito como “o método dos historiadores que atribuíam um caráter singular aos fenômenos históricos, propondo-se a entender cada época à luz das idéias correntes nela mesma.”7 Para atingir o intuito de sua investigação, Buarque de Holanda combinou recursos teóricos de diversas disciplinas, especialmente da História Social, da Antropologia, da Sociologia, da Etnologia e da Psicologia, produzindo uma corrente analítica difícil de classificar, mas dotada de uma singular riqueza. Enquanto Prado Jr. buscou delinear o caminho dos processos econômicos que formaram a estrutura da sociedade brasileira, Buarque de Holanda preocupou-se com os aspectos culturais desta mesma sociedade, partindo do pressuposto de que a instalação da cultura européia na Colônia não se fez sem dificuldades, de tal forma que seu julgamento sobre os resultados da colonização levava-o a acreditar que, “trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra.”8 Os termos da análise de Buarque de Holanda são bastante significativos: formas de convívio, instituições, idéias. Longe de representar uma tentativa materialista de compreensão do social, o estudo deste autor constitui uma corrente interpretativa voltada para o conteúdo mental dos atos humanos, considerados mais importantes do que as determinações econômicas. Ao descrever as características assumidas pela colonização portuguesa no Brasil, Buarque de Holanda recorre sempre, como elemento compreensivo, ao caráter cultural do povo 7 CRUZ, Renato. Raízes do Brasil, os 60 anos de um clássico. Diálogos, Maringá, 1997, ano I, n. 1, p. 67-82, pp. 67-68. 8 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p. 3. 192 ibérico que emigrou para as terras coloniais. O primeiro capítulo de Raízes do Brasil deixa isto bem claro, quando o autor refere-se ao “personalismo exagerado” dos portugueses, à sua “tibieza de espírito de organização” e ao seu “sentimento de irracionalidade específica dos privilégios e das hierarquias”. Cada uma destas facetas da mentalidade lusitana seria decisiva não apenas para que Portugal se tornasse uma nação colonizadora, mas também para a configuração cultural da nova nação que surgiria da expansão ibérica, ou seja, o Brasil. Do ponto de vista teórico, essa interpretação, resumida no acima mencionado julgamento de Buarque de Holanda sobre o quanto os brasileiros sentemse como estranhos em sua própria terra, demonstra que para o autor as idéias são tão autônomas em relação ao “mundo material” que toda uma sociedade foi formada a partir de uma cultura importada sem que os aspectos do novo ambiente fossem fortes o bastante para imprimir-lhe uma essência radicalmente própria. Mesmo quando o autor procura definir a identidade do homem brasileiro, ele não desliga tal identidade de sua origem portuguesa. O homem cordial, algo como um “tipo ideal” weberiano que Buarque de Holanda criou, define o ser humano gerado pelo espírito da colonização lusitana. Dado que na Colônia predominava a personificação do poder, a primazia do indivíduo sobre o coletivo, a cordialidade significava a busca por “harmonizar todo direito, personalizar todo conflito, trazendo-os continuamente para a proximidade da influência intimista dos envolvidos imediatos.”9 No interior das elites brasileiras, a “cordialidade” produziu o gosto pelas práticas autoritárias de poder, o qual, aliado ao costume de enxergar a realidade nacional com os olhos da cultura européia, conduzia os governantes a exercer seu mando desconsiderando totalmente os problemas concretos do restante da população. Esta forma de exercício político, Sérgio Buarque de Holanda descreve-a mesmo como uma conseqüência da força cultural do patriarcalismo, uma vez que nos núcleos rurais onde a vontade do senhor sobre os seus subordinados era praticamente inconteste, considera o autor, forjou-se a mentalidade mais difundida no país, pois a família colonial fornecia a idéia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens. O resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos próprios 9 CRUZ, Renato. op. cit, p. 77. 193 à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família.10 É em razão de tais reflexões que Raízes do Brasil pode ser lido, segundo Carlos Guilherme Mota,11 como uma crítica ao autoritarismo e às perspectivas hierárquicas sempre presentes nas explicações do Brasil.12 Se Caio Prado Jr. dirigiu suas preocupações, e sua análise da história brasileira, em função da crítica à dependência econômica do país, Sérgio Buarque de Holanda quis entender, olhando para o passado, o mandonismo político que sua época via intensificar-se sob o governo populista de Vargas. Para este último autor, apenas a compreensão da existência de uma tradição cultural autoritária poderia ajudar a explicar os rumos adotados pela política brasileira no século XX. Antes de entrar no mérito da corrente interpretativa formulada por Gilberto Freyre, em cujo bojo as considerações sobre o elemento racial são de extrema importância, penso ser necessário tratar de ver como este elemento aparece nas visões de Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Holanda. Para o primeiro, a utilização dos negros e dos indígenas como escravos requeria dos mesmos apenas sua força de trabalho, seu potencial físico, e nada mais. Assim, A contribuição do escravo preto ou índio para a formação brasileira, é além daquela energia motriz quase nula. Não que deixasse de concorrer, e muito, para a nossa “cultura”, (...) mas é antes uma contribuição passiva, resultante do simples fato da presença dele e da considerável difusão do seu sangue (...). O cabedal de cultura que traz consigo (...) é abafado, e se não aniquilado, deturpa-se pelo estatuto social, material e moral a que se vê reduzido seu portador. Age mais como fermento corruptor da outra cultura, a do senhor branco que se lhe sobrepõe.13 10 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. 11 Cf. MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974): pontos de partida para uma revisão histórica. São Paulo: Ática, 1978, p. 31. 12 Dante Moreira Leite acredita mesmo que, a despeito da perspectiva sociológica e psicológica de análise adotada por Buarque de Holanda, o objetivo de Raízes do Brasil é fundamentalmente político, voltado para “a discussão de formas de governo e seu ajustamento a determinada população.” (Leite, 1969, p. 286) Assim, para Moreira Leite, o estudo de Sérgio Buarque de Holanda procurava fornecer uma interpretação da crise política brasileira da década de 1930, bem como do prestígio das idéias de extremadireita, voltando os olhos para o passado, a fim mesmo de poder prever o resultado futuro dessa crise. 13 PRADO JR., Caio. op. cit. p. 272. 194 Mais uma vez, as condições da vida material, no ponto de vista de Prado Jr., são mais decisivas do que as interações culturais operadas na sociedade escravocrata, fazendo com que as várias “raças” comuniquem-se mais como partes do processo produtivo do que como representantes de diferentes civilizações.14 O autor leva este ponto de vista tão longe que, baseado em uma escala hierárquica de evolução civilizatória de critérios questionáveis, faz declarações que acabam resvalando para um certo preconceito, pois, comparando a escravidão antiga e a moderna, afirma que enquanto na primeira a os senhores puderam até mesmo aprimorar sua cultura aprendendo com os escravos vindos de civilizações superiores, na segunda ocorreu o inverso, havendo um imenso prejuízo cultural tanto para os dominadores quanto para os dominados. Nas palavras de Prado Jr., “Incorporou [a escravidão] à colônia, (...) um contingente heterogêneo de raças que beiravam ainda o estado de barbárie, e que no contato com cultura superior de seus dominadores, se abastardaram por completo.”15 O raciocínio de Buarque de Holanda, por outro lado, é bem diverso. Considerando a “plasticidade social” dos portugueses como uma virtude cultural, o autor descreve-os como um povo de mestiços, quase sem orgulho racial, de modo que sua obra colonizadora soube aproveitarse dos benefícios da miscigenação entre eles e os povos que conquistaram. Negando interpretações como a de Prado Jr., Buarque de Holanda afirma que o escravo das plantações e das minas não era um simples manancial de energia, um carvão humano à espera de que a época industrial o substituísse pelo combustível. (...) Sua influência penetrava sinuosamente o recesso doméstico, agindo como dissolvente de 14 Uma crítica interessante, ainda que indireta, a esta concepção pode ser encontrada no trabalho do historiador norte-americano Eugene D. Genovese intitulado A Terra Prometida, onde o autor, também partindo do materialismo histórico, discute a escravidão nos Estados Unidos e mostra como houve influências construtivas recíprocas entre a cultura negra e a branca apesar de o tratamento dispensado aos escravos não se afastar muito deste descrito por Prado Jr.. Guardadas as devidas diferenças, pode-se estender ao Brasil aquilo que Genovese afirma sobre o sul dos EUA, isto é, que os senhores, por diversos motivos, contribuíram para a sobrevivência criativa de suas “peças”, e “se impregnaram da cultura e da sensibilidade de seus escravos, ao mesmo tempo em que incutiam neles muito de sua própria cultura.” (1988, p. 13) 15 PRADO JR., Caio, op. cit, p. 275. 195 qualquer idéia de separação de castas ou raças, de qualquer disciplina fundada em tal separação.16 A relevância destas observações num debate sobre as correntes interpretativas propostas pelos autores em questão reside na importância que as discussões sobre a raça adquiriram entre os estudiosos da realidade brasileira nas primeiras décadas do século XX. Para perceber em que medida eles inovaram ou não em suas reflexões sobre a história do Brasil, é preciso comparar seus pontos de vista com aqueles que os antecederam. Segundo Elide Bastos17, a abolição da escravidão colocou o problema da inserção dos negros nos quadros sociais, e as respostas dadas a tal dilema geralmente eram marcadas pelo “racismo científico” que procurava justificar a desigualdade de condições em que os negros e os mestiços se encontravam. Deste modo, as análises de muitos dos intelectuais da década de 20 construíam suas visões sobre a formação nacional tomando como pressuposto a inferioridade física, psicológica e moral das “raças não brancas” e os problemas gerados pela miscigenação. Era a versão brasileira do darwinismo social, o qual surgira na Europa através da vulgarização distorcida da teoria da seleção natural das espécies, e como tal representava um discurso articulado pela intelligentsia com o intuito de defender não apenas a primazia do homem branco como também a necessidade imperiosa da eugenia para purificar a sociedade brasileira e permitir o seu progresso18. Ora, como vimos, ambos, Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Holanda rompem com estas proposições, pois enquanto o primeiro explica a posição social inferior dos negros e de seus descendentes a partir de uma história de séculos de escravização que produziram a subordinação deles para garantir a riqueza dos brancos, o segundo salienta as vantagens da mestiçagem para o processo de colonização do Brasil, não considerando que a miscigenação possa ser vista como um problema para a nação que se havia formado através da “plasticidade social” lusitana. Refletindo sobre o momento em que escrevia sua obra, Prado Jr. diz, inclusive, que a mistura de raças poderia até mesmo ser vantajosa para o Brasil, posto que os negros não seriam dotados de qualquer deficiência orgânica inerente, como propunham os racistas. Se 16 HOLANDA, Sérgio Buarque de. op. cit., p. 24. BASTOS, Elide. Gilberto Freyre e o mito da cultura brasileira. Humanidades, Brasília, ano IV, p. 26-30, 1987/88, p. 27. 17 18 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 196 algum prejuízo houve à nação em virtude da miscigenação, isto se deveu “ao baixo nível” — presume-se que cultural — “das massas escravizadas que constituirão a imensa maioria da população do país.”19 Essa mesma ruptura de interpretação está presente nos trabalhos de Gilberto Freyre, sobretudo em seu livro mais célebre, Casa Grande & Senzala (1933). Logo no primeiro capítulo desta obra, Freyre escreve que a sociedade brasileira desenvolveu-se “defendida menos pela consciência de raça, quase nenhuma no português cosmopolita e plástico, do que pelo exclusivismo religioso desdobrado em sistema de profilaxia social e política.”20 De fato, todo o esforço do autor está em mostrar que o fator mais importante a ser levado em consideração no estudo da formação social do povo brasileiro é a adaptação das diversas culturas em contato na Colônia ao meio ambiente tropical21. Assim, ele formula uma visão da sociedade escravocrata em que os vários grupos raciais que nela se encontravam, apesar de possuírem diferentes práticas culturais, equilibravam seus antagonismos e influenciavam-se uns aos outros continuamente sem criarem entre si oposições absolutas e irreconciliáveis. Mesmo o antagonismo fundador do sistema colonial, o binômio senhor/escravo, teria sido amenizado pelas relações domésticas vigentes na casa grande, através das quais os brancos mantinham contato desde a infância com as tradições culturais africanas. Por meio desta argumentação, Freyre desmonta a possibilidade de se vislumbrar um confronto efetivo entre os grupos raciais/sociais formadores da sociedade brasileira, e fornece, em Casa Grande & Senzala, a idéia de um “paraíso racial”, onde o português criou todo um sistema patriarcal, dispensando ao escravo negro um tratamento “suave”. Isto, segundo ele, devia-se à necessidade de um patriarcalismo “polígamo” para o desenvolvimento de uma sociedade “híbrida”; vale ressaltar que 19 Ver PRADO JR., Caio.op. cit., p. 276. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. In Obra escolhida. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1977, p. 107. 21 Baseado neste princípio, Freyre não enxerga que a escravidão, como uma prática implantada pelos portugueses para poder explorar sua nova colônia, fundamentava-se na subordinação violenta de uma coletividade aos anseios de acumulação de riqueza dos conquistadores. Ele a via como parte de uma “feliz predisposição de raça, de mesologia e de cultura,” através da qual o português “não só conseguiu vencer as condições de clima e de solo desfavoráveis ao estabelecimento dos europeus nos trópicos, como suprir a extrema penúria de gente branca para a tarefa colonizadora unindo-se à mulher de cor.” (Freyre, 1977, p. 115) Tudo não passava, enfim, de uma questão de produzir um tipo humano mais adaptado ao clima dos trópicos! 20 197 essa hibridização significava não só uma mistura de raças, mas também um intercâmbio de culturas.22 Não foram poucas as críticas dirigidas a Freyre em razão de sua interpretação demasiadamente harmonizadora. Não obstante os créditos que sua obra possua — a inovação da abordagem culturalista e o uso abundante de documentos até então inexplorados estão entre eles —, sua tentativa de apagar os possíveis conflitos entre senhores e escravos em nome da “plasticidade” dos colonizadores, brancos ou não, ajudou a criar o mito da “democracia racial” que encobria, mas não solucionava, aquele problema da inserção dos negros na sociedade que eles tornaram possível com seu trabalho. Da mesma forma, sua teoria da família patriarcal como elemento primordial da sociedade brasileira sofreu severas críticas, as quais podem ser divididas em duas linhas. A primeira, mais acadêmica, advém dos historiadores que, a partir de novos estudos, contestam a abrangência do modelo familiar formulado por Freyre, salientando a multiplicidade dos tipos de família constituídos ao longo da história do Brasil23. A segunda, de cunho político, aponta o caráter ideológico presente na defesa da família patriarcal como fonte de estabilidade social, e mostra o discurso de Freyre como fundamental para a manutenção do pacto agrário-industrial firmado pelas elites dirigentes brasileiras da década de 3024. Essa segunda vertente crítica merece, de fato, mais atenção, em especial pelo rótulo de ideológico que atribui à obra de Freyre. Um dos autores que mais se esforçou em apontar as contradições presentes em Casa Grande & Senzala foi Dante Moreira Leite. Para Moreira Leite, a despeito da formação intelectual acadêmica recebida por Freyre, este não conseguiu criar uma visão de bases verdadeiramente científicas sobre a sociedade brasileira. Ao contrário, sua pesquisa teria efetuado uma deformação da realidade, ainda que o autor contasse com teorias corretas25 para levar adiante a sua análise. Como conseqüência, o método 22 SAGAI, Mateus Seigo. Discutindo Gilberto Freyre. Janus, Maringá, ano I, n. 3, p. 1116, abr. 1998, p. 13. 23 FARIA, Sheila de Castro. História da família e demografia histórica. In CARDOSO, Ciro, VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História. Rio de Janeiro, Campus, 1997, p. 241-258. 24 BASTOS, Elide. op. cit., p. 28. 25 Moreira Leite, embora admita que Freyre tenha se baseado nas teorias antropológicas de Franz Boas, do qual o autor de Casa Grande & Senzala foi aluno nos EUA, diz que ele não segue à risca tais teorias, afastando-se muito delas por vezes, o que cria uma grande 198 ensaístico de Freyre resultaria apenas em subjetivismo e relativismo, e Casa Grande & Senzala poderia mesmo, segundo Moreira Leite, ser classificada como um texto literário cujo valor reside mais na perspectiva pessoal do autor do que na objetividade da teoria e dos fatos. Assim, a obra de Freyre é um livro que, ostensivamente apresentado como de história ou de interpretação geral do Brasil, vale provavelmente como reconstrução literária — por isto mesmo ambígua, polivalente e imperecível; (...) é um livro pedante, desequilibrado e pretensioso; (...) é trabalho de principiante nas letras, primeiro livro de um autor e que é, também, sua obra-prima; finalmente, (...) é um livro que procura redimir um grupo incompreendido e desprezado: (...) o negro.26 Nesse sentido, Casa Grande & Senzala pertenceria ao período ideológico de interpretação da vida brasileira27, uma vez que sua “Sociologia Genética”, escrita a partir do ponto de vista da classe dominante, estaria repleta dos preconceitos mais conservadores e arraigados da elite brasileira. Pelo que foi exposto acima, é perceptível que a obra de Freyre é bem mais passível de críticas do que a de Caio Prado Jr. ou a de Sérgio Buarque de Holanda. Isto não se deve ao fato de que as correntes interpretativas propostas por estes dois últimos sejam isentas de problemas, e sim às conclusões extremamente perigosas possíveis de ser dificuldade para os que buscam delimitar o corpo teórico presente no trabalho de Freyre. (cf. Leite, 1969, p. 271-275) 26 LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro. São Paulo: Livraria Pioneira, 1969, p. 270. 27 Esta crítica de Moreira Leite precisa ser relativisada. Admitindo-se que o livro de Freyre seja dotado de um caráter literário e subjetivo, nem por isto seria isento de validade como um estudo sobre a História do Brasil. Em primeiro lugar, porque a literatura não pode ser tratada, de forma pejorativa, como um discurso ambíguo e polivalente, incapaz de se relacionar com o real sem deformá-lo. Ela é uma interpretação do mundo que, sem reproduzir meramente a história, incorpora-a e confere a ela um novo estatuto, permitindo que ela seja aprendida em dimensões tais que um estudo científico não seria capaz de tornar acessíveis. E, em segundo lugar, porque a subjetividade do pesquisador é um elemento inalienável do estudo científico, podendo ser guiada pelo método, mas não suprimida por ele. Em uma obra ensaística como a de Freyre, o subjetivismo não é um demérito, mas uma condição sine qua non de existência, e, como tal, não é incompatível com o uso coerente de teorias científicas. Deste modo, esse ponto do julgamento de Moreira Leite reflete menos as falhas de Casa Grande & Senzala do que a incapacidade do crítico em analisar com riqueza um texto literário ou mesmo científico, bem como uma visão questionável da relação entre o conhecimento acadêmico e os saberes cultos. 199 extraídas das afirmações de Freyre. Não se pode negar que Casa Grande & Senzala representa um marco nas abordagens da realidade brasileira, pois a multiplicidade de fatores que este trabalho abrange supera em muito a maioria dos estudos anteriores. Ao conjugar reflexões sobre a cultura, os caracteres biológicos, o clima, e os recursos naturais, entre outros, Gilberto Freyre verdadeiramente produziu uma visão complexa do real. Entretanto, talvez esteja justamente no modo como os muitos componentes desta visão estão articulados, a origem de seus “equívocos”. Freyre enfoca muito mais o elemento de união — o “&” — do que os momentos de conflito, e, segundo Bastos, sua análise da sociedade brasileira a partir da percepção do nacional como soma de raças, regiões, culturas, grupos sociais, significa apagar a possibilidade da percepção do social como contraditório, onde a dominação se reitera exatamente porque se exerce sobre a diversidade que esconde a desigualdade.28 Conclusão O redescobrimento historiográfico do Brasil foi, enfim, obra de estudiosos como Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Holanda. Cada qual, orientado por uma visão da realidade de seu tempo, produziu uma corrente interpretativa original sobre a realidade brasileira, buscando no passado as respostas para as questões do presente. A crise da ordem oligárquica consolidada pelo Golpe de 1930, como nos lembra Carlos Guilherme Mota, criou a necessidade de novas formas de percepção e ajustamento à ordem vigente29, e, de um modo ou de outro, os pontos de vista dos três autores aqui analisados respondem a esta necessidade, seja criticamente, como fazem Prado Jr. e em certa medida Buarque de Holanda, seja coniventemente, como se coloca Freyre. Para além, no entanto, da datação de suas obras a partir de suas posturas políticas, os trabalhos dos três continuam importantes como marcos fundadores que são nos estudos sobre o Brasil e, talvez acima de tudo, também como pontos de apoio para nossas próprias reflexões. 28 29 BASTOS, Elide. Op. cit., pp. 28-29. Cf. MOTA, Carlos Guilherme. op. cit., p. 31. 200 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BASTOS, Elide. Gilberto Freyre e o mito da cultura brasileira. Humanidades, Brasília, ano IV, p. 26-30, 1987/88. CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. 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Palavras-chave: Historiografia brasileira, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. ABSTRACT This article handles the renovation on the Brazilian historiography produced by the works of Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda and Caio Prado Jr., and discusses comparatively the most important characteristics of the interpretative lines of History followed by such authors, accentuating the relation between their perspectives and the historic context of the 1930’s in Brazil. Key-words: Brazilian historiography, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. Revista de História Regional 5(1):187-201, Verão 2000.