ASPECTOS POLÍTICOS NA OBRA “CASA GRANDE E SENZALA” CLAUDIA FAINELLO JULIAN MONIKE NAZARIO SCOLARO TATIANE DE LARA FÉLIX ROSANE ARMINDO VIEIRA BORGES GILMAR HENRIQUE DA CONCEIÇÃO Introdução Este trabalho se originou de uma pesquisa acerca do pensamento de Gilberto Freyre, no curso de pedagogia, para a disciplina Filosofia da Educação, que envolveu estudantes de pedagogia da segunda série, orientadas pelo professor desta disciplina. A partir do mergulho no conteúdo próprio deste escrito de Gilberto Freyre, focado na questão do negro, buscou-se, mormente questionar o maniqueísmo acadêmico, os clichês, as classificações aligeiradas, e certo preconceito do “não li e não gostei”. Partimos do pressuposto que os escritos de Gilberto Freyre continuam sendo um desafio instigante à inteligência das novas gerações. Gilberto Freyre considerava-ser um “anarquista construtivo” e apreciava as discordâncias inteligentes. Naquele período em que, no Brasil, a maior parte da universidade brasileira e os jornais desinteressavam-se pela obra de Freyre, na França a editora Gallimard publicou Casa Grande e Senzala com prefácio de Lucien Febvre e, logo depois, na Itália, a editora Einaudi lançou a mesma obra com introdução de Fernand Braudel. Também o grande marxista Eric Hobsbawm consultou Gilberto Freyre na época em que preparava o seu livro Bandidos Sociais. As reflexões iniciadas pelos modernistas e pelos intelectuais da década de 20 se aprofundaram e renovaram a pesquisa. Casa Grande e Senzala foi publicado no início dos anos 30, período onde se constituíram momentos decisivos na história moderna do Brasil, como sabemos, e criou os espaços para grandes ensaios de interpretação nacional, como a de Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil), a de Caio Prado Jr (Formação do Brasil Contemporâneo). Na realidade, Casa Grande e Senzala (publicado em 1933) e Sobrados e Mocambos (publicado em 1936) compõem um único livro e deveriam ser publicados juntos. Em 1933, após exaustiva pesquisa em arquivos nacionais e estrangeiros, Gilberto Freyre publicou uma obra que se tornou um clássico - Casa-Grande e Senzala - um livro que revolucionou os estudos no Brasil, tanto pela novidade dos conceitos quanto pela qualidade literária. Gilberto Freyre foi buscar nos diários dos senhores de engenho e na vida pessoal de seus próprios antepassados a historia do homem brasileiro. As plantações de cana em Pernambuco eram o cenário das relações intimas e do cruzamento das três raças: índios, africanos e portugueses. Em Casa -Grande e Senzala, o escritor exprime claramente o seu pensamento. Ele argumentou que o que houve, no Brasil, foi a degradação dos povos indígenas e dos povos negros pelo domínio do branco, considerado “adiantado”. Os índios foram submetidos ao cativeiro e a prostituição. Os negros foram explorados cruelmente, inclusive a relação entre brancos e mulheres negras foi a de “sujeito” e “objeto”. Na Editora José Olympio, Gilberto Freyre criou a “Coleção Documentos Brasileiros”, e o volume inaugural foi “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda. Apesar de apresentar outras dimensões, nesta perspectiva, Casa Grande e Senzala é também o balanço de uma cultura e a reflexão sobre o passado. De maneira que podemos colocar ao lado de nomes como Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr, e Florestan Fernandes, o nome de Gilberto Freyre. É um clássico que interessa a atualidade e como tal deve ser lido; suas interpretações mantém seu interesse independentemente da validade que se atribua a elas. O contexto da Casa Grande e Senzala é o litoral fértil da região nordestina. Como já adiantamos anteriormente, como este estudo está focado na questão do negro, observamos em razão disso, que são poucas as anotações sobre o negro trabalhador do eito das plantações, que com seu suor e sangue construiu os alicerces das casas grandes. Gilberto Freyre discorre apenas sobre o negro multitudinário. Freyre não procura dar qualquer contribuição útil para vitalizar um valor real, afirmativo das culturas oprimidas; e menos ainda despertar uma consciência crítica ou uma atitude transgressora contra a ordem social que as explora e oprime. Pelo contrário, o que faz é justificá-la. Inclusive, a monocultura latifundiária, mesmo com a decretação da abolição dos escravos, subsistiu em algumas regiões do Brasil. Apenas que a casa grande foi substituída por mansões; o escravo foi substituído pelo trabalhador de usina açucareira; a senzala pela favela; o senhor de engenho pelo usineiro capitalista. Afora isso, em Casa Grande e Senzala observamos todo um sistema econômico, social, político: de produção; de trabalho; de transporte; de religião; de vida sexual e de família; de higiene; e de política. Freyre lamenta a falta de preservação de documentos relativos à escravidão, bem como da destruição de tais documentos: “Infelizmente as pesquisas em torno da imigração de escravos negros para o Brasil tornaram-se extremamente difíceis, em torno de certos pontos de interesse histórico e antropológico, depois que o eminente baiano, Conselheiro Rui Barbosa, ministro do Governo Provisório após a proclamação da República de 89, por motivos ostensivamente de ordem econômica – a circular emanou do Ministro da Fazenda sob o no 29 com data de 13 de maio de 1891 – mandou queimar os arquivos da escravidão. Talvez esclarecimentos genealógicos preciosos se tenham perdido nesses autos-de-fé republicanos”1 Gilberto Freyre e a política Darcy Ribeiro entendeu que ao estudarmos a obra Casa Grande e Senzala vamos imaginando, vendo e sentindo o que foi através dos séculos o Brasil, em seu esforço de construir-se a si mesmo como produto indesejado de um projeto que visava a produzir açúcar, ouro e café ou, em essência – lucros – mas, que resultou em engendrar um povo inteiro. Darcy Ribeiro, grande admirador de Gilberto Freyre escreveu o que talvez passe, em algum momento, pela maioria dos estudiosos mais sérios dos escritos gilbertianos: “(...) Por quê? Sempre me intrigou, e me intriga ainda, que Gilberto Freyre sendo tão acanhadamente reacionário no plano político – em declaração recente chega a dizer que a censura da imprensa é, em geral, benéfica e que nos Estados Unidos a censura é mais rigorosa do que em qualquer outro país do mundo – tenha podido escrever esse livro generoso, tolerante, forte e belo”.2 De fato, Freyre pensava reacionariamente que há uma selvageria congênita presente nos movimentos políticos e cívicos de raízes sociais mais profundas que convulsionaram vastas regiões do Brasil e não associa sua origem na opressão e na desigualdade. Efetivamente, Gilberto Freyre teve dois extremos em sua trajetória política; foi chamado de “comunista” e depois de “reacionário”. Ou seja, nos anos 30 e 40 do século XX era considerado por usineiros nordestinos como um “soviético” e nos anos 60 como “arquiconservador”. Nos anos 40, Freyre fazia parte da chamada “esquerda democrática, composta por simpatizantes socialistas da ala estudantil da UDN. Foi por este partido que ele 1 2 FREYRE, G. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: ed. Record, 2000, p. 358-359. RIBEIRO, Darcy. (Prólogo) Uma Introdução a Casa Grande e Senzala. In: FREYRE, G. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: ed. Record, 2000, p. 12. foi eleito deputado para a Constituinte de 1946. Foi preso pela polícia de Vargas sob a acusação de ser comunista, depois de solto tornou a ser preso, em 1942, por suas denúncias contra o que considerava “atividades nazistas” no Recife. Aliás, Casa Grande e Senzala foi publicado em 1933, no mesmo ano em que Hitler assumiu o poder na Alemanha. Freyre havia criticado as concepções racistas e os determinismos climáticos. Em 1953, Freyre trabalhou com o educador Anísio Teixeira - um dos signatários do Manifesto dos Pioneiros - no CBPE (Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais). Gilberto Freyre foi o sociólogo que formulou uma das mais vigorosas interpretações do Brasil, porém permanece politicamente paradoxal, dado a aspectos de sua ação política conservadora que o levou a “colaborar” de alguma forma com a ditadura militar de 64, e isto pode interferir negativamente em quem lê seus livros (ou até mesmo na recusa em lê-los) “A partir do momento que o regime militar polarizou a vida política do país, sectarizou os meios intelectuais e levou o próprio Gilberto a assumir posições ideológicas equivocadas, seus livros perderam inteiramente a capacidade de penetração universitária”3. Associava-se sua relação com os militares a tudo que ele escreveu. Por exemplo, o livro Casa Grande e Senzala foi proscrito por setores da esquerda e por alguns professores da USP. Verdadeiro ou não, o fato é que Freyre foi acusado de ser um delator de professores comunistas. Também é fato que ele iniciou uma série de artigos em jornais afirmando que o reitor da Universidade de Recife era conivente com “a gritante propaganda de caráter, senão comunista, paracomunista”4, por achar que estes monopolizavam a rádio universitária, o serviço de extensão e as campanhas de alfabetização coordenadas por Paulo Freire. Ele também pediu o afastamento de supostos comunistas da SUDENE. Curiosamente, ele recusou o convite quando foi chamado, por Castelo Branco, para ser ministro da educação. Freyre redigiu uma primeira versão de programa político-partidário para a ARENA, onde observamos mais uma vez seus paradoxos, visto que externou sua desconfiança com a “democracia clássica” ao escrever que não são mais as eleições a forma definitiva de fazer valer o sistema democrático”, porém, ao mesmo tempo, defendeu a reforma agrária e uma melhor distribuição de renda. 3 4 MELLO, E. C. de. O Ovo de Colombo gilbertiano. In: Folha de São Paulo/Mais, 12 de março de 2000, p. 14. CARVALHO, M. C. Céu e Inferno de Gilberto Freyre. In: Folha de São Paulo/Mais, 12 de março de 2000, p. 06. Deste ponto de vista, Gilberto Freyre é um conservador. Apesar disso, por seus méritos acadêmicos indiscutíveis, foi reabilitado nos anos 80. Afinal, seja como for, o conservadorismo político de Gilberto Freyre não anula o inovador teórico, por seus métodos de pesquisa pouco ortodoxos. Consequentemente, não obstante as polêmicas a respeito de algumas de suas idéias, a importância e a variedade de suas obras ainda exige a dedicação de muitos estudiosos. Alguns Elementos de Casa Grande e Senzala Uma característica dos escritos de Gilberto Freyre é a seu interesse por aquilo que se chamou “cultura material” ou “civilation matérielle”5 (a história da alimentação, da vestimenta, da moradia e da mobília). Freyre apresenta a miscigenação como um valor. No pensamento de Gilberto Freyre, a própria estrutura arquitetônica da Casa-Grande expressa o modo de organização social e política que se estabeleceu no Brasil, qual seja o do patriarcalismo. Tal estrutura seria capaz de incorporar os vários elementos que comporiam a propriedade funciária do Brasil colônia. Do mesmo modo, o patriarca da terra era tido como o dono de tudo que nela se encontrasse como escaravos, parentes, filhos, esposa, etc. Este domínio se estabelece de maneira a incorporar tais elementos e não de excluí-los. Tal padrão se expressa na Casa-Grande que é capaz de abrigar desde escravos até os filhos do patriarca e suas respectivasn famílias.. Neste livro Freyre tenta também desmisitificar a noção de “determinação racial” na formação de um povo no que dá maior importância àqueles culturais e ambientais. Contrapondo-se às idéias nazifascistas, refuta a idéia de que, no Brasil, se teria uma raça inferior dada a miscigenação que aqui se estabeleceu. Pelo contrário, aponta para os elementos positivos que perpassam a formação cultural brasileira composta por tal miscigenação (notadamente entre portugueses, índios e negros). Numa sociedade brutalmente desigualitária, chama a atenção sua afirmação de que nas senzalas haveria mais gente sabendo ler e escrever que no alto das casas grandes.6 Gilberto Freyre foi buscar nos diários dos senhores de engenho e na vida pessoal de seus próprios antepassados a história do homem brasileiro. As plantações de cana em Pernambuco eram o cenário das relações íntimas e do cruzamento das três raças: índios, africanos e 5 6 BURKE, Peter. Uma História da Intimidade. In: Folha de São Paulo/Mais, 12 de março de 2000, p. 15 Cfr.: FREYRE, G. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: ed. Record, 2000, p. 357 portugueses. Os índios foram submetidos ao cativeiro e à prostituição. A relação entre brancos e mulheres negras foi a de vencedores e vencidos. Durante quase todo o século XVI a colônia esteve escancarada a estrangeiros, só importando às autoridades que fossem de “fé católica”. Temia-se que outras religiões, particularmente os chamados “hereges” se constituíssem no inimigo político capaz de quebrar aqueles elos que em Portugal se desenvolveu juntamente com a religião católica. Essa “solidariedade católica” manteve-se através de toda a nossa formação colonial. “O perigo não estava no estrangeiro nem no indivíduo disgênico ou cacogênico, mas no herege. Soubesse rezar o padre-nosso e a avemaria, dizer creio-em-Deus-Padre, fazer o pelo-sinal-da-Santa-cruz – e o estranho era bem vindo no Brasil colonial. O frade ia a bordo indagar da ortodoxia do indivíduo como hoje se indaga da sua saúde e da sua raça”7. A casa-grande abrigava uma rotina comandada pelo senhor de engenho, cuja estabilidade patriarcal estava apoiada no açúcar e no escravo. O suor do negro ajudava a dar aos alicerces da casa-grande sua consistência quase de fortaleza. Ela servia de cofre e de cemitério. Sob seu teto viviam os filhos, o capelão e as mulheres, que fundamentariam a colonização portuguesa no Brasil. Embora diretamente associada ao engenho de cana e ao patriarcalismo nortista, a casa-grande não era exclusiva dos senhores de engenho. Podia ser encontrada na paisagem do sul do país, nas plantações de café, como uma característica da cultura escravocrata e latifundiária do Brasil. O clima tropical e as formas agressivas de vida vegetal e animal impossibilitavam a implantação de uma cultura agrícola, nos moldes do costume europeu. O português teve então de mudar seus hábitos alimentares. A mandioca substituía o trigo; no lugar das verduras, o milho; e as frutas davam um colorido novo à mesa do colonizador. Mas sua dieta ficava empobrecida, devido à ausência de leite, ovos e carne, que só apareciam em datas especiais, festas e comemorações. A terra foi usada para o cultivo da cana em detrimento da pecuária e da cultura de alimentos, o que provocou a apatia, a falta de robustez e a incapacidade para o trabalho. Males geralmente atribuídos à mestiçagem. Os portugueses não traziam para o Brasil nem separatismos político, nem divergências religiosas, e não se preocupavam com a pureza da raça. Assim o país se formava. E a unidade dessa grande extensão territorial com profundas diferenças regionais, garantida muitas vezes com o uso da força, aconteceu devido à uniformidade da língua e da religião. A Igreja desenvolvia planos ambiciosos de evangelização da América Latina, toda ocupada por países de tradição católica. Nessa quase cruzada no Novo Mundo, os padres jesuítas 7 FREYRE, G. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: ed. Record, 2000, p. 102 desempenhavam um papel importante na tentativa de implantar uma sociedade estruturada com base na fé católica. Para catequizar os índios, os jesuítas decidiram vesti-los e tirá-los de seu hábitat. Já o senhor de engenho tentava escravizá-los. Nos dois casos, o resultado era o extermínio e a fuga dos primitivos habitantes da terra para o interior da floresta. Tanto a Igreja quanto o senhor de engenho fracassavam nos esforços de enquadrar o índio no sistema de colonização que iria criar a economia brasileira. Fora de seu hábitat natural, o índio não se adaptava como escravo: morria de infecções, fome e tristeza. Para suprir a deficiência da mão-de-obra escrava, os senhores de engenho de Pernambuco e do Recôncavo baiano começavam a importar negros “caçados” e aprisionados na África. Agora, as escravas negras substituíam as cunhãs tanto na cozinha como na cama do senhor. Na agricultura, a presença do negro elevava a produção de açúcar e o preço do produto no mercado internacional. O Brasil, esquecido por quase duzentos anos, despertava finalmente o interesse do Reino de Portugal. Entre os africanos que vinham para o Brasil, eram os negros muçulmanos, de cultura superior não só à dos índios como também à da maioria de colonos brancos, que aqui chegavam e viviam quase sem nenhuma instrução, que para escrever uma carta necessitava da ajuda do padre-mestre. O movimento malê da Bahia, em 1835, foi considerado um desabafo da cultura adiantada, que era oprimida por outra “menos nobre”. Contava-se que os revoltosos sabiam ler e escrever em alfabeto desconhecido. Eram negros que liam e escreviam em árabe. Os negros vindos das áreas de cultura africana mais adiantada eram um elemento ativo, criador e pode-se dizer nobre na colonização do Brasil, degradados apenas pela condição de escravos. O negro escravo e a cana-de-açúcar fundamentavam a colonização aristocrática e a estrutura básica do mundo dos coronéis se repetiria nos ciclos do ouro e do café, em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, com o mesmo fundamento: a ocupação da terra. Na sociedade escravocrata e latifundiária que se formava, os valores culturais e sociais se misturavam à revelia de brancos e negros. Sua convivência diária favorecia o intercâmbio de culturas e gerava sadismos e vícios, que influenciavam a formação do caráter do brasileiro. A escravatura degradava senhores e escravos. O senhor de engenho era um homem extremamente rico e poderoso que passava a maior parte do tempo deitado na rede, cochilando e copulando. Quando saía, a passeio ou em viagem, o negro era seus pés e mãos. O sinhô não precisava levantar-se da rede para dar ordens aos negros, bastava gritar. Os negros veteranos, os ladinos, iniciavam os recémchegados na moral e nos costumes dos brancos. Ensinavam a língua e orientavam nos cultos religiosos sincretizados. A escravidão desenraizava o negro de seu meio social e desfazia seus laços familiares. Além dos trabalhos forçados, ele era usado como reprodutor de escravos: era preciso aumentar o rebanho humano do senhor de engenho. As “crias” nascidas eram logo batizadas e ainda assim consideradas “gente sem alma”. A Igreja, enquanto alicerce dos poderosos, agia da mesma forma no tratamento dado ao negro. A mulher escrava fazia a ponte entre a senzala e o interior da casa-grande e representava o ventre gerador. As negras mais bonitas eram escolhidas pelo sinhô para serem concubinas e domésticas. Objeto dos desejos sádicos dos homens, do senhor de engenho ao menino adolescente, a negra sofria por parte da mulher branca os castigos mais variados. Se a beleza dos seus dentes incomodava a desdentada sinhá, esta mandava arrancá-los. A escrava era objeto sexual do senhor e recebia chicotadas à mando da senhora, e cumpria muitas outras tarefas. As “damas da sociedade” se casavam entre os doze e os quinze anos com homens muito mais velhos. O conhecimento que tinham da vida de casada, os acontecimentos de fora do engenho e outras histórias - nem sempre românticas elas ouviam da boca das mucamas. As sinhazinhas sentadas à mourisca, tecendo renda ou deitadas na rede e as escravas a lhes catar piolho ou fazendo cafuné. Cedo se casavam e cedo morriam por causa de sucessivos partos ou se tornavam matronas de dentes podres aos dezoito anos. Doces, geléias, quindim e pastéis arredondavam a gordura das sinas-donas, além de estragarem seus dentes. O ócio e a vida reclusa faziam das sinhás mulheres amarguradas, envelhecidas e seu rosto tornava-se logo de um amarelo doentio. Ficavam gordas, moles, criavam papadas, além de analfabetas, pois era raro encontrar uma dentre elas que soubesse ler e escrever. “Foi geral, no Brasil, o costume de as mulheres casarem cedo. Aos doze, treze, quatorze anos. Com filha solteira de quinze anos dentro de casa já começavam os pais a se inquietar e a fazer promessa a Santo Antonio ou São João. Antes dos vinte anos, estava a moça solteirona.(...) Quem tivesse sua filha, que a casasse meninota. Porque depois de certa idade as mulheres pareciam não oferecer o mesmo sabor de virgens ou donzelas que aos doze ou aos treze anos. Já não conservavam o provocante verdor de meninas-moças apreciado pelos maridos de trinta, quarenta naos. Às vezes de cinqüenta, sessenta e até de setenta”.8 A presença da negra na vida do menino vinha desde o berço, quando ela o amamentava e acalentava o seu sono. A ama de leite ensinava as primeiras palavras num português errado, o primeiro "pai nosso", o primeiro "oxente", e amaciava com a própria boca a comida do menino de engenho, na hora de servi-lo com a colher. Os sofrimentos da primeira infância, tais como os castigos por urinar na cama e o purgante, uma vez por mês, tornava os meninos brancos “pequenos diabos”. O moleque, o pequeno escravo, companheiro do sinhozinho em 8 FREYRE, G. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: ed. Record, 2000, p. 400. brincadeiras e aventuras, servia também de saco de pancadas. Tornava-se objeto do prazer mórbido de tratar mal os inferiores e os animais, prazer de todo menino brasileiro filho do sistema escravocrata. Criança mimada e educada para ser o herdeiro todo-poderoso, o menino desde o início da adolescência era entregue aos cuidados eróticos da fulô. Com relação às mulheres, Gilberto Freyre analisa o ditado: “Branca para casar, mulata para foder e negra para trabalhar”. Segundo Gilberto Freiyre, nenhuma casa-grande do tempo da escravidão quis para si a glória de conservar filhos “maricas” ou “donzelões”. O folclore da nossa antiga zona de engenhos de cana e de fazendas de café, quando se refere a “rapaz donzelo”, é sempre em tom de debique para levar o maricas ao ridículo. O que sempre se apreciou foi o menino que cedo estivesse metido com raparigas: “raparigueiro”, “femeeiro”, “deflorador de mocinhas”. Esperava-se, incluive, que não tardasse a “emprenhar negras”, aumentando o rebanho de escravos e o capital paternos. Esse foi sempre o ponto de vista da casa-grande. O que a negra da senzala fez foi ser obrigada a facilitar a “depravação precoce” com a sua docilidade, imposta pela violência de escrava; abrindo as pernas ao primeiro desejo do sinhô-moço. Não era propriamente “desejo”, mas “ordem". Gilberto Freyre, de forma mais objetiva, não profliga a promiscuidade reinante no período escravocrata. Mais incisivo é Sergius Gonzaga9 quando considera que os filhos, quase todos, de senhores de engenho, tinham à disposição o corpo das escravas, tidas como coisas, e assim obrigadas a aceitar o furor sexual dos grandes proprietários e seus descendentes. Algumas delas requintavam a sensualidade, buscando fugir à brutalidade do trabalho servil pelo reconhecimento de um senhor mais “generoso". Gilberto Freyre escreveu que costuma dizer-se que a civilização e a sifilização andam juntas. O Brasil, entretanto, parece ter-se sifilizado antes de se haver civilizado. Alastrou-se gonorréia e sífilis no tempo da escravidão. A contaminação da sífilis em massa ocorreria nas senzalas, mas não que o negro já viesse contaminado. Foram os senhores das casas-grandes que contaminaram as negras das senzalas. Por muito tempo dominou no Brasil a crença de que para um sifilítico não há melhor depurativo do que “o cabaço de uma negrinha virgem”. Daí a busca por negras ou mulatinhas “cabaçudas” que alcançavam melhores preços junto a velhos libertinos. Os senhores de engenho casavam-se sucessivas vezes, sempre preferindo as jovens sobrinhas; buscando a conservação da propriedade privada. As heranças eram disputadas por filhos legítimos e parentes próximos. Aos filhos bastardos, gerados nas casa-grande e nascidos na 9 GONZAGA, Sergius. Manual de Literatura Brasileira. Mercado Aberto, Porto Alegre, 1985 senzala, restava a tolerância do senhor, que ao morrer os libertava. Nomes e sobrenomes se confundiam uma vez que os escravos mais próximos, que ganhavam a simpatia do senhor, conseguiam adotar o sobrenome do seu senhor branco. Na tentativa de ascensão social, os negros imitavam dos senhores as formas exteriores de superioridade. Muitos “nomes ilustres” de senhores brancos, todavia, vinham dos apelidos indígenas e africanos das propriedades rurais, de maneira que, no Brasil, recriavam-se os nomes dos proprietários à sua imagem e semelhança. A música, o canto e a dança dos escravos tornavam a casa-grande mais alegre. A risada do negro quebrava a melancolia e o silêncio infinito do senhor de engenho. As mães negras e as mucamas, aliadas aos meninos, às moças das casas-grandes e aos moleques, modificavam o português arcaico ensinado pelos jesuítas aos filhos do senhor. A nova fala brasileira não se conservava fechada nas salas de aula das casas-grandes, nem se entregava de todo à maior espontaneidade de expressão da senzala. Entretanto, o modo carinhoso do brasileiro colocar os pronomes: me diga, me espere... provém do africano. Bem como do seu modo de falar ficaram as formas diminutivas: benzinho, nézinho, inhozinho. Era um novo jeito de falar, um novo jeito de andar, um novo jeito de comer. A culinária da senzala aproveitava as sobras de carnes da casa-grande, usava o aipim indígena e as verduras, misturava aos temperos africanos, principalmente o dendê e a pimenta malagueta. Surgiam a feijoada, a farofa, o quibebe, o vatapá. Alimentos que combinavam com a dureza do trabalho no cativeiro. As crenças e magias trazidas pelos portugueses eram transformadas em feitiçaria nas mãos dos africanos. Aos negros feiticeiros, inclusiva, recorriam os senhores brancos idosos a procura de afrodisíacos; as jovens sinhás, que não conseguiam engravidar; e as belas mucamas, que aprendiam a receita do café mandingueiro, um filtro amoroso feito com café bem forte, muito açúcar e menstruação de mulata. Na religião conviviam a cultura do senhor e a do negro. O catolicismo praticado aqui era uma religião doce, doméstica, de intimidade com os santos. Os padres se vangloriavam de conceder aos negros certas vantagens, como o direito de manifestar suas tradições nas festas do terreiro, mas sob uma roupagem católica. Nasciam então as religiões afro-brasileiras onde eram muito cultuado orixás transmutados em santos, tais como nos seguintes exemplos: São Jorge é o orixá Ogum, Nossa Senhora é Iemanjá, Santa Bárbara é Iansã. Inicialmente, é bem possível que tenha havido dissimulação por parte do negro, quando invocava o seu orixá, cultuando um santo católico. Conclusão No pensamento de outros sociólogos contemporâneos, alguns deles ligados à esquerda do movimento negro e de uma linha teórica próxima do marxismo e menos culturalista, a idéia de miscigenação adquiriu uma nova roupagem na obra Casa Grande e Senzala, passando a ser vista como mecanismo de um processo, o qual teria como fim a “democracia racial”. Não se trata de defender os aspectos conservadores, e até mesmo reacionários, do pensamento de Freyre, mas ocorre que ele jamais fez uso dessa expressão, seja com aspas ou sem elas: em nenhum dos capítulos de Casa Grande e Senzala, incluindo suas notas volumosas, escreveu a expressão “democracia racial”. É relativamente fácil destacar somente os trechos “paradisíacos” atacando todo o livro. Daí a importância de um retorno ao texto, com toda a complexidade que apresenta. Na realidade Freyre também se referiu ao “inferno tropical” dos negros, quando relatou situações em que os senhores de engenho ordenavam que fossem queimadas vivas - em fornalhas - escravas grávidas, cujos fetos estouravam ao calor das chamas. Ou quando as sinhás enciumadas (gordas, amarelas e de dentes podres) quebravam os belos dentes das escravas mais bonitas ou quando mandavam-lhes cortar os seios, arrancar as unhas, queimar o rosto ou as orelhas. Freyre também relata momentos em que os considerados “inferiores” eram amarrados à boca de canhões e que, ao serem disparados, estraçalhavam seus corpos. Em suma, Freyre não oculta os corpos dos escravos que eram torturados, queimados, chicoteados, mutilados, partidos, etc. De modo que parece ser discutivel a visão linear corrente de que gilberto Freyre tão somente possuía da sociedade brasileira colonial como a de um “paraíso tropical” (uma imagem quase idílica que oculta a exploração, os conflitos e a discriminação do negro). Esta é uma interpretação parcial, até certo ponto, pois são numerosas as passagens em que Freyre torna explícito o “inferno tropical” com tudo o que ele tem de sinisro: o gigantesco grau de violência inerente ao sistema escravocrata, o sadismo e o abuso do negro..Mas, em geral tais passagens não têm recebido maiores atenções. “Quem escreve que Gilberto Freyre defende a tese da ‘democracia racial’ brasileira em Casa Grande & Senzala, leva o leitor a acreditar que a expressão ‘democracia racial’ é usada explicitamente nesse livro e que seu uso seria aí defendido como traço fundamental da sociedade brasileira. Leia Casa Grande & Senzala (coisa que muita gente não faz justamente por acreditar que é o texto fundador do mito da ‘democracia racial’): você verá que não é esse o caso”.10 É evidente que a obra Casa Grande e Senzala deve ser implacavelmente combatida no que possa ter de mistificação e de despiste, mas também deve ser ressaltado seus elementos de verdade. Evidentemente, existem méritos extraordinários em Freyre, não por causa da chamada “democracia racial”. Florestan Fernandes e Jacob Gorender, por exemplo, denunciaram o caráter mercantil e violento do cativeiro e argumentaram que, sob nenhum aspecto, houve harmonia e benevolência entre senhores e escravos. Segundo Clóvis Moura11 , Gilberto Freyre caracterizou a escravidão no Brasil como composta de senhores bons e escravos submissos. O mito do “bom senhor” de Freyre seria uma tentativa no sentido de interpretar as contradições do escravismo como simples episódio sem importância, e que não teria o poder de desfazer a harmonia entre exploradores e explorados durante aquele período. Martiniano J. Silva12 escreveu que a miscigenação é um velhíssimo processo de enriquecimento racial e cultural dos povos, capaz de gerar civilizações, quando ocorre de forma livre e democrática. Afirma que historicamente a miscigenação de raças no Brasil nunca foi tratada e nunca existiu como um processo livre, espontâneo, e, portanto, natural, de união entre dois povos. Ao contrário, a dignidade da mulher negra teria sido violentada, atingindo sua honra no âmbito moral e sexual, através de uniões mantidas a força, sob a égide do medo, da insegurança, onde as crianças eram concebidas legalmente sem pai, permanecendo no status de escrava, não havendo assim nenhum enriquecimento racial e cultural de civilização alguma. Conclui dizendo que é preciso que não se confunda a descaracterização de um povo pela violência sexual com a hipótese de uma “democracia racial”. Gilberto Freyre, portanto, era politicamente conservador e reacionário, mas racista, nunca. Foi ele que, pela primeira vez, trouxe negros e mulatos ao primeiro plano da história do Brasil. Gilberto Freyre, falando si, se declarou “pós-marxista e não modernista, acatólico e não anticatólico”. Como vimos, Freyre já foi marginalizado sob o entendimento de que surgiu como defensor de uma escravidão enganosamente benigna.13 . Na realidade ele realizou uma vasta obra de interpretação da cultura brasileira, muito especialmente no entendimento das 10 11 12 13 VIANNA, Hermano. Equilíbrio de Antagonismos. In: Folha de São Paulo/Mais, 12 de março de 2000, p. 21. MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro Brasileiro. Série Fundamentos. São Paulo: Editora Ática, 1988 SILVA, Martiniano J. Racismo à Brasileira: Raízes Históricas. 3ª edição. São Paulo:Anita, 1995. Partes – revista. Especial Freyre Ano I - Nº6 - Setembro de 2000 relações sociais nas regiões agrárias do Brasil, nas quais o patriarcalismo rural e o paternalismo senhorial são faces determinantes da realidade. Depois do fim da ditadura militar e da morte do próprio Gilberto Freyre, seus livros começaram a ser avaliados de forma mais imparcial; que faz jus à suas importantes contribuições. Antonio Cândido soube fixar o que foi a repercussão inicial de Casa Grande e Senzala, neste trecho do prefácio que escreveu ao livro Raízes do Brasil, publicado na mesma época. Vejamos: “Era justamente um intuito anticonvencional que nos parecia animar a composição libérrima de Casa Grande & Senzala, com a sua franqueza no tratamento da vida sexual do patriarcalismo e a importância decisiva atribuída ao escravo na formação do nosso de ser mais íntimo. O jovem leitor de hoje não poderá talvez compreender, sobretudo em face dos rumos tomados posteriormente pelo seu autor, a força revolucionária, o impacto libertador que teve este grande livro. Inclusive pelo volume de informação,resultante da técnica expositiva, a cujo bombardeio as noções iam brotando como numa improvisação de talento, que coordenava os dados conforme pontos de vista totalmente novos no Brasil de então”.14 14 CANDIDO, Antonio. Prefácio In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Coleção Documentos Brasileiros. Rio de Janeiro:José Olympio, 1987, 19ª edição. BIBLIOGRAFIA ARINOS, Afonso. Lendas e tradições brasileiras. São Paulo: ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Europa Americana, 1988. BELO, Júlio. Memórias de um senhor de engenho. Rio de Janeiro: BURKE, Peter. Uma História da Intimidade. In: Folha de São Paulo/Mais, 12 de março de 2000, p. 15. CANDIDO, Antonio. Prefácio In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Coleção Documentos Brasileiros. Rio de Janeiro:José Olympio, 1987, 19ª edição. CARVALHO, M. C. Céu e Inferno de Gilberto Freyre. In: Folha de São Paulo/Mais, 12 de março de 2000, p. 06. COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à colônia. São Paulo: Difel, 1980. CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Cultrix, 1985. DAVIDOFF, Carlos Henrique. Bandeirantismo: verso e reverso. São Paulo: Brasiliense, 1984. (Tudo É História) FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Editora Record, Rio de Janeiro, 1988 34ª edição GONZAGA, Sergius. 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