SOBRADOS E MUCAMBOS
POR FRANK TANNENBAUM*
Uma boa forma de começar este prefácio é lembrar os muitos
brasileiros que afirmam que, futuramente, a história de seu país será
dividida em duas fases: uma antes e outra depois de Gilberto Freyre. O
divisor de águas é Casa-grande & senzala, publicado originalmente em
1933, do qual este volume, Sobrados e mucambos, publicado originalmente
em 1936, é a continuação. Os livros descrevem o surgimento e o crescimento da civilização brasileira a partir da família patriarcal, a escravidão negra
e a economia de monocultura, baseada na cana-de-açúcar. Mas Casagrande & senzala é muito mais do que apenas um livro — assinala o
encerramento de uma época e o início de outra. A bem da verdade, os
brasileiros têm mantido o que poderia ser descrito como um caso de amor
com o que se tornou para eles o símbolo de uma nova era. Desde 1933
houve onze edições desse livro em português: dez no Rio de Janeiro e uma
em Lisboa.
Enquanto a versão em inglês de Sobrados e mucambos estava no prelo,
os brasileiros publicaram um volume comemorando o 25º aniversário de
Casa-grande & senzala. Planejado em 1958, sua elaboração demorou quatro anos. É um livro extenso — 576 páginas com comentários, críticas,
homenagens e pura exultação com relação àquela primeira edição. O
volume contém 67 ensaios, escritos por eminentes historiadores, economistas, sociólogos, antropólogos, escritores, poetas, músicos, arquitetos, planejadores urbanos, educadores, médicos, geógrafos, lingüistas, diplomatas e
outros. Trata-se de um tributo dos maiores expoentes intelectuais da nação
em face de um evento nacional — uma era na história brasileira. É evidente,
a partir dos assuntos tratados, que a influência de Gilberto Freyre atingiu a
vida da nação em muitos aspectos. Há ensaios sobre o impacto de Freyre no
estudo da cultura hispânica no Brasil; sobre as novas formas literárias nos
seus escritos; Casa-grande & senzala e a revolução cultural; Gilberto Freyre
na visão de um católico; sua influência sobre a nova geração; seu tratamento
da cultura brasileira; sua obra do ponto de vista de um geógrafo; sua
reinterpretação do mestiço; Freyre como poeta; sua influência sobre as artes
plásticas; Freyre como regionalista, tradicionalista e modernista; sua influênMARÇO DE 2000
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(*) Extraído de The mansions
and the shanties: the making
of modern Brazil. Traduzido
por Harriet de Onís. Nova
York: Alfred A. Knopf, 1963.
Tradução do inglês: Tereza
Suassuna.
LEITURAS DE GILBERTO FREYRE
cia sobre a arte mural de Brasília. Há interpretações de seu estilo; estudos
sobre Freyre c o m o ensaísta; sobre Freyre e a culinária brasileira; seus guias
de cidades brasileiras; sua interpretação da realidade brasileira; Freyre c o m o
conservador e revolucionário; seu tratamento dos valores rurais do Brasil;
seu impacto sobre a política externa; sua influência sobre a literatura
brasileira; sobre a qualidade lírica de seu trabalho; sua nova visão do m u n d o
português; Freyre e os arquitetos; sua influência sobre o m o d e r n o romance
brasileiro; a filosofia brasileira na obra de Freyre; a colonização portuguesa
no Brasil e sua teoria sobre o tropicalismo; Freyre c o m o cientista social; sua
influência sobre a história; a medicina conforme retratada na obra de Freyre;
seu tratamento das influências francesa e inglesa; Freyre e os juristas; sua
influência sobre o teatro; sua influência sobre o ensino médico; sua avaliação dos negros e dos portugueses. Nestas e muitas outras áreas a obra de
Gilberto Freyre imprimiu sua marca.
Casa-grande & senzala e Sobrados e mucambos conquistaram um
lugar p e r m a n e n t e no Brasil c o m o clássicos nacionais; outros livros seus
também são largamente conhecidos. Sua energia intelectual parece ilimitada. Pois além de viajar, ensinar, escrever u m a coluna regular para jornais
brasileiros — atividade q u e iniciou c o m o estudante — ele ainda encontrou
t e m p o para escrever cerca de 25 volumes e um n ú m e r o igual de panfletos.
Muitos desses textos tiveram mais de u m a edição e foram traduzidos para
vários idiomas. O q u e os amigos, seguidores e admiradores de Gilberto
Freyre estavam c e l e b r a n d o a o publicar u m v o l u m e d e c o m e m o r a ç ã o d a
primeira edição de Casa-grande & senzala é o trabalho de um importante
e criativo estudioso, p e n s a d o r e artista literário. Na sua essência e m e t o d o logia, o trabalho de Freyre é o de um sociólogo, historiador social, antropólogo e psicólogo social. Ele é t u d o isso e muito mais. Enfocou c o m nova
luz as profundezas ocultas dos a n o s q u e se foram. E essa luz reflete sua
n o ç ã o do t o d o — de u m a cultura infinitamente complexa, contraditória,
dilacerada e rasgada pela paixão, a cobiça, a generosidade, o amor, o ódio,
o ciúme, a ambição, a voluptuosidade física e o sentimento da arte, da cor,
da música e da fé — t u d o isso e muito mais fazem parte do todo.
Há u m a p r e o c u p a ç ã o c o m o detalhe, c o m a importância de todas as
coisas: a comida, a culinária, a indumentária, os odores na cozinha, a casa,
os bois, a mãe-preta, as crianças n u a s c o r r e n d o pela casa, as instalações
sanitárias, a iluminação, a janela, a varanda, o senhor, a sinhá, o governador, o imperador, a lei, o infrator da lei, o juiz e o criminoso, o fugitivo, o
açoite. O c o m p o r t a m e n t o d o s jovens entre si, a igreja, o padre, o frade, a
escola — e d e z e n a s de milhares de outros assuntos, todos eles registrados
— estão lá, de forma concreta e inescapável. O Brasil é a combinação ímpar
de todas essas coisas, em seu cenário tropical — e são todas elas importantes, talvez igualmente importantes. O escravo negro e seu senhor, a
sinhá e as meninas de cor n o s afazeres da casa são elementos igualmente
relevantes, e a visão do autor inclui cada um deles sem julgar n e n h u m . Eles
estão entrelaçados e o Brasil é o q u e é devido a eles, p o r q u e p o v o s de
muitas cores, raças e línguas se mesclaram, se misturaram, absorveram e
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NOVOS ESTUDOS N.° 56
FRANK TANNENBAUM
foram absorvidos, i n d e p e n d e n t e m e n t e de teorias, opiniões ou n o ç õ e s de
superioridade ou inferioridade, de melhor ou pior, de mais alto ou mais
baixo. Vê-se através do olhar de Freyre um p o v o q u e surge no decurso do
tempo c o m todos os seus defeitos, seu heroísmo, seu riso e suas lágrimas,
como pela lente de u m a câmera de filmar. A a m a n t e mulata é carregada rua
abaixo em u m a liteira p o r quatro musculosos escravos negros, e n q u a n t o a
esposa, sua rival, é carregada da mesma forma, na m e s m a rua, ao m e s m o
tempo. O bispo, o governador, o m o l e q u e de rua e o mascate, todos eles
aparecem na tela, fazendo seu p a p e l na peça e, no fim, trocando de
personagem. A visão é q u a s e augustiniana e o m é t o d o e n c h e de vida a
compilação de jornais, diários, cartas, fotografias, anúncios de periódicos,
registros oficiais, d o c u m e n t o s , livros, panfletos, canções, p o e m a s , e as
tradições oral e escrita. Síntese, análise, interpretação, d e d u ç ã o lógica e
indução contribuíram para dar forma a este livro. Ele reúne toda a arte, a
documentação e o "jargão" q u e atende ao n o m e de ciência nas ciências
sociais. Mas, além disso, possui algo da intuição bergsoniana, da c o m p r e ensão do poeta e da visão do artista. E aqui a forma torna-se q u a s e tão
importante q u a n t o o c o n t e ú d o . O estilo literário, q u e é o veículo do tema
principal de Casa-grande & senzala e Sobrados e mucambos, assemelha-se
a um rio caudaloso a p ó s a tempestade; é copioso, profundo e brilhante. É,
também, intimista; possui a sensibilidade do verso g e n u í n o ao m e s m o
tempo q u e a riqueza e variedade de um mosaico ou u m a tapeçaria, c o m a
diferença de ser vivo, variável, apetitoso e saboroso. Lembra o melhor de
Proust, mas é mais robusto, mais cheio de vida e mais abrangente. É de um
alcance e u m a profundidade maiores. Revela e abraça u m a cultura inteira
em formação.
Sobrados e mucambos, a continuação de Casa-grande & senzala,
conduz a sociedade patriarcal rural para a cidade brasileira em desenvolvimento, de m e a d o s do século XIX. O ambiente muda: a casa-grande vira
sobrado, a senzala converte-se em m u c a m b o s , os espaços abertos são
substituídos pela rua urbana, o espaçoso alpendre vira varanda, o velho
pátio c o m seus sons dá lugar à rua e ao seu burburinho. Em vez do familiar
mascate na fazenda, v e m o s o pregoeiro e o v e n d e d o r de rua. O esplêndido
isolamento espacial da fazenda c e d e lugar, no sobrado, ao b o m b a r d e i o
irreprimível da cidade em crescimento, c o m sua emergente classe média,
seus funcionários públicos, estudantes universitários, livros, jornais, cafés,
bordéis, bancos, bailes de sociedade e honras oficiais. A situação da
fazenda familiar, do patriarcado c o m suas tradições polígamas e seu regime
autoritário, é p u n g e n t e nesse p e r í o d o de transição. A aristocracia feudal
agrária do Brasil antigo é urgida a entrar para um m u n d o u r b a n o de classe
média e convertida, ou semiconvertida, para u m a democracia social s e m
perder de t o d o suas características feudais paternalistas.
Para completar a história, dever-se-ia ler Ordem e progresso, publicado em 1959, e Região e tradição, de 1941. Em seu conjunto, estas obras
transmitem u m a visão épica do crescimento da cultura brasileira e do p o v o
brasileiro.
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LEITURAS DE GILBERTO FREYRE
Evidentemente, muito mais poderia ser dito sobre a obra de Gilberto
Freyre e seu significado. O q u e seus admiradores e seguidores acabam de
escrever sobre ele nesse v o l u m e comemorativo é o início do q u e se tornará,
com o decorrer do t e m p o , u m a revisão crítica de sua obra realizada p o r
diversos estudiosos.
Meu interesse pessoal na obra de Gilberto Freyre n ã o está diretamente relacionado c o m a avaliação crítica de seu c o n t e ú d o e sua forma. O q u e
por muito t e m p o p a r e c e u - m e o g r a n d e significado de seu trabalho é q u e ele
conseguiu m u d a r a i m a g e m q u e o Brasil fazia de si m e s m o . Esta é u m a
notável realização. São p o u c o s os e x e m p l o s dos quais se possa dizer q u e
um h o m e m , durante o curso de sua própria vida, tenha m u d a d o a imagem
de um país g r a n d e e p o p u l o s o de si m e s m o . A diferença entre os anos 1920
e os anos 1960 no Brasil é q u e , hoje, os brasileiros descobriram a si mesmos.
Eles deram u m a b o a olhada e gostaram do q u e viram. Não desejam mais ser
europeus e seus intelectuais já n ã o fogem a Paris para encontrar temas
sobre os quais escrever. Eles n ã o mais se descrevem, ou são descritos p o r
seus próprios intelectuais, c o m o raça mestiça e inferior p o r ser constituída
de um p o v o misturado. Muito p e l o contrário, eles derivam sua liberdade
criadora, seu o r g u l h o sobre o presente, sua confiança no futuro precisamente deste fato — ser um p o v o misturado, universal. A democracia social
do Brasil e o orgulho q u e os brasileiros descobriram em ser o q u e são
desencadearam u m a fonte de entusiasmo criativo. Casa-grande & senzala
foi u m a revelação para os intelectuais, artistas, romancistas, poetas, músicos
e arquitetos brasileiros; eles olharam para dentro e c o m e ç a r a m a entoar a
canção de si próprios. D e s d e e n t ã o centenas de livros foram escritos p o r
estudiosos brasileiros sobre temas brasileiros. Eles se lançaram a u m a
missão interminável e encontraram u m a inspiração s e m fim em ser
brasileiros e em comunicar isso para eles próprios e para o m u n d o . Esta,
para mim, é a medida do feito de Gilberto Freyre. Ele deu ao p o v o brasileiro
o sereno orgulho de ser o q u e é. Disso, a p e n a s um exemplo: Gabriela de
Jorge A m a d o n ã o poderia ter sido escrito antes de Casa-grande & senzala.
O único outro país na América Latina o n d e aconteceu algo semelhante é o México. Mas para isso lá foi necessária u m a revolução sangrenta, um
sofrimento inenarrável e a p e r d a de milhões de vidas. No Brasil, q u e m
conseguiu isso foi um h o m e m e um livro.
Universidade de Colúmbia,
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NOVOS ESTUDOS N.° 56
Nova
York,
dezembro de 1962
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