Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 74-88, jan./jun. 2011 TEXTOS O QUARTO TEMPO DO CIRCUITO PULSIONAL1 Simone Mädke Brenner2 Resumo: Este texto trabalha os destinos da pulsão em suas incidências clínicas. O quarto tempo do circuito pulsional surge como uma hipótese a partir da observação cotidiana e da clínica de crianças. O circuito pulsional apresenta o infantil de todos nós. Palavras-chave: circuito pulsional, castração, recalque, infantil. THE FOURTH TIME OF THE DRIVE CIRCUIT Abstract: This text discusses the targets of the drive in their clinical implications. The fourth time of the drive circuit arises as an hypothesis from the daily observation and clinic of children. The drive circuit presents the childish of us all. Keywords: drive circuit, castration, repression, infantile. Este texto só foi possível graças às valiosas contribuições de Fernanda da Silva Gonçalves, Marta Pedó, Silvia Eugênia Molina, Alfredo Jerusalinsky, Simone Moschen e Ana Maria da Costa, os quais me ajudaram a suportar os efeitos do quarto tempo em mim mesma, e assim me foi possível escrever. 2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); E-mail: [email protected] 1 74 74 O quarto tempo do circuito funcional Não há nenhuma necessidade de ir muito longe numa análise de adulto, basta ser alguém que pratica com crianças para conhecer esse elemento que constitui o peso clínico de cada um dos casos que temos que manipular e que se chama pulsão. Lacan P roponho-me neste texto articular melhor o que comecei a escrever no texto Bate-se numa criança e circuito pulsional: declarações de amor3 , sobre o que denomino o quarto tempo do circuito pulsional (2011). Naquele texto apresentei o relato de uma paciente de sete anos de idade que eu tinha em comum com uma neuropediatra que fez o encaminhamento dessa criança em função de lhe parecer que o quadro neurológico tinha também no seu bojo um pedido de escuta. Era uma criança com diagnóstico de epilepsia e, na história pregressa, de terror noturno. Posteriormente, mantinha transtorno do sono. Apresentava crises convulsivas generalizadas, primeiramente durante o sono e, no momento da avaliação psíquica, também em vigília. Iniciou medicações anticonvulsivantes que, além de não controlarem as crises durante o sono, aumentaram sua frequência. As medicações, mesmo associadas, não modificavam o padrão das crises durante o sono. Apresentava alterações eletroencefalográficas nas regiões temporal e frontal. Mostrava-se absolutamente arredia e impermeável ao outro, sendo permanentemente desafiadora, deixando claro que precisava bastar-se a si mesma, sendo que, para ela, o outro inevitavelmente era ameaçador, estando impossibilitada de confiar em quem quer que fosse. Essa convergência de sintomas fez a neurologista se perguntar sobre o que as alterações no corpo dessa criança apontavam, “falavam”. No que se referia, em particular, à ineficácia das medicações para controlar suas crises e para ajudá-la a adormecer, parece que deixava claro que não podia adormecer, e isso precisava ser escutado. A. chega contando sobre as coisas que vinham acontecendo, as quais denominava como “desrespeito” aos olhos dos outros. Ela conta suas afrontas, suas transgressões, porém demonstrando muito prazer quando isso podia lhe resultar em surras e espancamentos, principalmente por parte do seu pai. Fala claramente da sua intenção de “machucar” as pessoas à sua volta com palavras chulas. Quando dela indago sobre o que será que a faz ter que funcionar assim, 3 Texto publicado no Correio da APPOA, número 203, julho de 2011. 75 Simone Mädke Brenner ela diz: “Tu não sabe o que o marido dela diz e faz!” (referindo-se à mãe, que se encontrava dentro da mesma sala). Pergunto: “O marido dela é teu pai?”; e ela responde: “É, parece... deveria ser....”. Enquanto me contava isso, pede para desenhar com canetinhas e, logo depois, afirma: “Já sei que tu vai me xingar. Não pode pintar com canetinhas e eu pintei!” Respondo: “Podes, sim, pintar! “Se não pudesse eu não teria deixado, teria te falado que não podias!” Ela parece admirada com minha resposta e depois me fala: “Quando alguém me diz não, faço uma cara muito feia!” (Faz uma cara ameaçadora). Afirmo que quando for preciso direi os nãos necessários a ela. Ela logo olha para sua mãe e diz: “Preciso muito vir aqui, muitas vezes!” Relata muitos pesadelos que eram recheados de cenas de invasões, de agressões de todos os lados e que, quando os narrava nas sessões, demonstrava muito prazer em relatá-los. Nesses momentos chegava a dizer que pensava muito em que quando tiver um filho fará com ele o mesmo que nesses sonhos fazem com as pessoas, maltratá-lo. Com frequência, quando se mostra irônica, debochada e gozando com a sua tragédia, canta a seguinte música: Eu nasci gay, a culpa é do meu pai, que contratou um tal de Wilson para ser capataz. Eu vi o Bofi tomar banho e o tamanho dessa mala era demais... O desgranido do pai dela depois reclama dela. Ele contratou o capataz e depois reclama que ela é o que é. O nome dela é Maria do Carmo. Aos poucos, esses mesmos pesadelos começam a lhe produzir angústia; aliás, é nesse momento que ela os nomeia de pesadelos. Antes, ela os chamava de sonhos. Começa então a assustar-se com o que vê, passando a ter medo deles. Enquanto contava seus sonhos, precisava muito desenhar. Desenhava suas interpretações acerca dos seus sonhos. Até que, num momento, diz: “Gostaria de poder desenhar um príncipe, mas não consigo. Esta princesa vai ficar sozinha”. Acrescenta: “As flores da nossa casa todo mundo cuida, têm muitas flores. As de cada um ninguém cuida!” Nesse momento diz que depois de cantar a música começa a sentir ânsia de vômito. A partir daí, conta que está conseguindo dormir, que vem tendo sonhos bons, com flores, casas... Diz que, quando dorme assustada, precisa cuspir várias vezes, não podendo mais “engolir”. Pergunto se ela teve que engolir algo que não queria ou que não podia e ela diz que sim, “Isso me machucou 76 O quarto tempo do circuito funcional muito. Nessas horas, preciso fazer muito, muito xixi. Vou lá fazer xixi.” Vai ao banheiro e quando volta comenta: “Meu pai sabe muito sobre o meu xixi!” Na sua última sessão, sendo o tratamento interrompido pelo pai, ela canta: Super água em ação, não quer saber de poluição. Quando está no ar, ele vai salvar nossa cidade da destruição... Era uma vez um azul do céu, que pinta o papel. Que molha o mar. Era uma vez uma menininha que pinta e fascina e molha o mar. Ela mistura o céu com sonho e fantasia, ela imaginou que se transformaria em borboleta e asas ela ganhou, pra onde ela voou foi colorindo tudo por onde passou. Quero ser um peixe diferente do que me fizeram! Quero poder ser um peixe cor de rosa! É importante relatar que, após o início do atendimento psíquico, suas crises foram diminuindo de frequência, até cessarem por completo. O eletroencefalograma também melhorou, tornando-se praticamente normal. Ao longo das poucas sessões que teve, e da grande melhora no seu quadro neurológico, vem então a pergunta: o que se operou no corpo dessa criança? Ou o que acontecia antes que fazia seu corpo literalmente “berrar”, claramente adoecendo? A relação que fiz deste caso com o texto Bate-se numa criança, de Freud ([1919]1953), é porque se trata de uma criança que oscila entre o gozo de ser invadida, batida, e o repúdio a tudo isso. Ela fala da fantasia que tem, de ser espancada, humilhada e desprezada por todos ao seu redor, em particular pelo pai, e, ao mesmo tempo, faz uma demanda muito clara e consistente de se tratar e poder sair dessa posição de objeto. A primeira parte daquele texto sobre a qual gostaria de pensar é quando Freud nos fala de como temos que nos perguntar sobre a relação que pode existir entre o sentido de tais fantasias (as fantasias sobre uma criança ser batida) e as reprimendas corporais recebidas realmente por essa criança em sua educação familiar. Refere nesse momento que, na maioria das vezes, são casos de sujeitos que não foram tratados e educados à força, com superioridade física por parte de seus educadores. Isto é, a fantasia de uma criança de ser espancada não se relaciona diretamente com o fato de a criança em questão ser efetivamente espancada, mas com a possibilidade de ela ter sido vítima de um acontecimento infantil que tenha provocado uma fixação. Tal fixação prescinde da necessidade de haver “força traumática”; no entanto, fica a pergunta sobre por que tal tendência sexual havia ficado fixada precisamente ali. Propõe então Freud que o sentido de tal fixação esteja no fato de ter havido, como causa 77 Simone Mädke Brenner desta, componentes sexuais “prematuros” à criança e que, por isso, teríamos que supor que o acontecimento traumatizante e produtor de tal fantasia se apresentaria, em algum ponto, como um fim provisional. Ele diz: las fantasias de flagelación tienen una historia evolutiva harto complicada, en cuya trayectoria varían más de una vez casi todos sus elementos: su relación con el sujeto, su objeto, su contenido y su significación (Freud, [1919]1953, p.189)4 . Na primeira fase das fantasias de flagelação, a criança espancada é indiferenciada, isto é, pode ser qualquer um; porém, nunca é a própria criança que fantasia, é sempre outro. Nessa primeira fase existe o espancador, a criança espancada e aquela que olha e que “admira” a cena. Aparece a hipótese de que o pai bate na criança odiada por aquela que olha, demonstrando assim seu amor por esta. Na segunda fase das fantasias de flagelação, a pessoa que bate na criança é a mesma, porém a criança espancada é a própria criança que fantasia. A criança fantasia ser batida pelo pai e, para Freud, essa é a fase mais importante de todas. Volta a afirmar que não tem sentido real e que também tem conteúdo que permanece fora da consciência, não pode ser recordado. A terceira fase das fantasias de flagelação se assemelha à primeira; porém, não aparece mais o pai como aquele que bate, mas, sim, os agentes ativos e passivos ficam indiferenciados e a posição do sujeito nesse momento é de tê-la como o sustentáculo de uma intensa excitação, inequivocamente sexual, e que provoca, como tal, a satisfação onanista. Enquanto relia tal texto de Freud ([1919]1953), fiz uma relação com o que ele fala das pulsões, pensando sobre a construção dos três tempos do circuito pulsional. No primeiro tempo do circuito pulsional o bebê posiciona-se como ativo, quando vai em busca do objeto, que é externo ao Eu, e apodera-se dele. As fantasias de flagelação possuem uma história evolutiva bastante complexa, em cuja trajetória variam mais de uma vez quase todos seus elementos: sua relação com o sujeito, seu objeto, seu conteúdo e sua significação (livre tradução). 4 78 O quarto tempo do circuito funcional O segundo tempo do circuito pulsional é um tempo reflexivo, quando o bebê toma parte de seu corpo no lugar do objeto, sugando aqui, não o objeto externo, mas parte de seu próprio corpo, aparecendo assim o “chupar-se”. No terceiro tempo do circuito pulsional, o sujeito retorna ao outro e se faz ser objeto dele. Nasce aqui a possibilidade de sujeito, alguém que, tendo percorrido a primeira instância de se apoderar de algo fora de si e ter encontrado nesse fora de si algo que lhe significou, busca uma forma de marcar em sua carne esse outro, a tal ponto que pode, nesse terceiro tempo, devolver ao outro o seu próprio tesouro. Este tesouro é, necessariamente, resultante desse caminho de três tempos, fruto de um laço tecido do bebê já nascido, que, sofrendo as consequências de uma falta real, vai em busca do objeto capaz de ilusoriamente restaurar aquilo que para sempre se perdeu. Busca refazer aquele momento no qual o externo estava no lugar da indiferença, pois não tinha nenhum registro de que esse externo poderia ser algo que pudesse se tornar parte do Eu. Todo o trabalho dos três tempos do circuito pulsional refere-se ao árduo trabalho de um sujeito nascendo de fato. Em ato, o nascimento é o corte fundante para que o sujeito possa começar a inaugurar seu circuito pulsional. Analiso aqui o nascimento de um sujeito que possa transcender o momento da alienação que representa esse terceiro tempo. É um quarto tempo, aquele em que o bebê se entrega ao outro, deixando claro seu estofo narcísico, já tendo condição de se retirar em parte dessa cena. Como quando entrega seu pezinho, sua barriguinha, seu pescoço para ser deliciado pela sua mãe e aos poucos os tira; quando responde às demandas de fazer gracinhas, para ser bem olhado por ela, e depois começa a dizer que não; quando come “bem e bonitinho”, para ver sua mãe muito satisfeita e aos poucos nega alguns alimentos, deixando claro que já pode fazer sua escolha de satisfação (o que e o quanto quer comer!); quando se presta a aceitar todas as roupas e adornos que sua mãe lhe coloca e, aos poucos, os retira, um a um, impedindo que os mesmos sejam repostos; quando se mostrava muito satisfeito em ver a satisfação de sua mãe em trocar suas fraldas, para começar a não querer mais ser incomodado enquanto faz seu cocô (escondendo-se em algum cantinho da casa) e demonstrando que não é mais quando sua mãe quer que as fraldas serão trocadas, mas, sim, e também, quando ele achar que isso já tem necessidade. Portanto, é um quarto tempo do circuito pulsional que possibilita que o sujeito, atravessado pela castração simbólica, nasça de fato. Isso, porque, para que esse quarto tempo se inaugure, é vital que a castração esteja operando nos dois campos: na mãe e na criança. Para isso é necessário que alguém faça o circuito da pulsão de fato circular, se refazer e, portanto, tornar possível os efeitos simbólicos da castração: apoderar-se do objeto ilusoriamente 79 Simone Mädke Brenner satisfatório, fazê-lo ser real e simbolicamente marcado no corpo, devolvê-lo ao outro como a clara declaração de uma dívida impagável para, depois, conseguir dizer que sim, por ser impagável ela precisa simbolicamente circular, seguir seu rumo não ficar fixada ali. Ficar fixada talvez seja o fruto de ficar presa no terceiro tempo do circuito pulsional: no tempo da alienação ao Outro. Cabe também destacar que, quando há uma tendência particularmente estreita da pulsão ao objeto, utilizamos o termo fixação para designá-la. Essa fixação ocorre com frequência em períodos muito iniciais do desenvolvimento da pulsão, opõe-se então intensamente à separação entre pulsão e objeto e põe fim à mobilidade da pulsão” (Freud, [1915] 2004, p.149). Aqui se instauram as condições para a resolução edípica: cena na qual o bebê “pergunta” para sua mãe até que ponto ele não é tudo aquilo que ela deseja e, ao mesmo tempo, está seguro do seu amor. Quando falo do quarto tempo do circuito pulsional, penso naquilo que Françoise Dolto(1984) nos apresenta sobre o conceito de castração simbolígena. Pela castração simbolígena, ao contrário, a mãe, que desmamou o filho e constatou, através de seus gritos, o mal-estar que ele sente em viver e em aceitar esta prova, esforça-se por consolá-lo. Tanto mais quanto, frequentemente, ela também sofre com esta mudança de relação com seu próprio corpo e com seu bebê. Ela inicia a criança de modo a sentir-se tão próxima dela e ainda mais agradavelmente do que antes da privação, em troca humana com ela. A mãe a inicia de modo a encontrar na comunicação linguageira com ela uma introdução à atenção do outro: o pai, os irmãos e irmãs, consoladores e interlocutores substitutos, aliados à mãe, que vêm revelar ao bebê um mundo social... É assim que, justamente, o desmame, esta castração oral, é simbolígena (Dolto, 1984, p. 67). Para Dolto, a castração que opera na criança necessariamente também precisa operar no adulto. Portanto, o que ela chama de “troca humana” tem a ver com a linguagem ser o meio fundamental de consolá-la, não mais com o objeto que fora interditado e nem com outros que simplesmente os substituam. Ambos estão privados desse objeto: a mãe e o bebê, e o que sustenta essa operação de interdição não é só a privação do objeto, mas, sim, junto com esta, as palavras 80 O quarto tempo do circuito funcional que bordejam aquilo que caiu. Para Dolto, é essa operação que torna possível o trabalho da sublimação, que é da ordem da cultura, da Lei. No entanto, saber sobre o efeito simbólico da castração só é possível no momento posterior, podendo-se saber então sobre os “frutos das castrações”, que para Dolto representam: o destino dado às pulsões que não podem satisfazer-se diretamente na satisfação do corpo a corpo, ou na satisfação do corpo com objetos eróticos incestuosos. Tais pulsões são mantidas como proibidas – e há aí o fato de realidade promocional – pelo modelo que editou o dito da proibição, no respeito da humanização da criança (Dolto, 1984, p.61). Só sabemos sobre a consistência simbólica da castração pelo que a ela se segue. Da mesma forma, a operação do circuito pulsional: só temos como saber sobre a consistência do segundo tempo a partir de terceiro tempo, isto é, se quando o bebê se fizer ser objeto de si mesmo (por exemplo, chupar-se) ele mostra ter sido marcado pelo Outro (por isso, ao chupar-se, ele se faz sustentado por este) ou não. Isso, porque, se ele está se chupando e isso está atado ao que se constrói na relação com o outro, isso lhe possibilita buscar este e entregarlhe seu “tesouro”. Isto é, o terceiro tempo testemunha a consistência do segundo tempo. Nesse terceiro tempo ele declara que mesmo quando se vê tendo que se haver com a solidão, consigo mesmo, o Outro está marcado já no seu corpo; por isso é um chupar-se por um tempo, até que o outro retorne. Ele não prefere o chupar-se ao encontro. Quando não há a passagem para o terceiro tempo, nos vem a pergunta sobre o que operou (ou não operou) nos tempos anteriores, isto é, que caminho desses tempos foi trilhado que, no terceiro, o sujeito nos mostra que o chupar-se não era mediado pelos efeitos do Outro no seu corpo e, sim, era uma tentativa de com isso fazer algo para que seu corpo não desaparecesse. Sim, a sensação que um sujeito tem de não ser marcado no real do seu corpo pelos significantes que o significaram é o ter que fazer esse real ser de fato sentido, para que o corpo não desapareça. Por isso, no terceiro tempo o sujeito faz uma declaração de amor, porém, no âmbito da alienação, com todos os benefícios e riscos que sabemos que isso tem. A clínica nos aponta como, em muitos casos, ficar atado neste terceiro tempo desfaz o circuito pulsional, por isso acho precioso o nome “circuito”. É uma palavra que aponta a algo que precisa estar em movimento, em reorganização. Portanto, para que o circuito se dê, é necessário que os tempos não 81 Simone Mädke Brenner se fechem. Quando será que um tempo pulsional pode vir a se fechar e, com isso, pôr em risco o circuito? Entendo que em qualquer um dos tempos o risco ocorre, quando o encontro com o Outro por alguma razão fracassou. Às vezes fracassa, por exemplo, em momentos quando o nascimento do bebê não coincide com o momento em que o sujeito-mãe possa psiquicamente encontrá-lo, como nas graves depressões maternas. Outras vezes, pelo fato de o pequeno sujeitinho nascente ter algo que, em sua origem, dificulta muito a sutileza desse encontro (por exemplo: crianças que nascem com patologias orgânicas que dificultam muito o encontro) ou ainda pelo fato de a mãe ter uma condição psíquica que não passa pelos efeitos da castração simbólica; portanto, não há de fato condição de encontro com o Outro, mas, sim, o bebê é tomado como espelho da mãe. Neste último, é como se o outro reconhecesse na criança puramente a si mesmo, não havendo condição para a surpresa, para a dúvida, para a descoberta. Enfim, nesse tipo de contato o sujeito-bebê não existe para a mãe, ele funciona como um reflexo do espelho, uma imagem que sustenta aquele que olha, nada mais. Esses são alguns dos momentos nos quais há o risco de o circuito se fechar, isto é, a pulsão ilusoriamente atingiu o objeto e aí se fechou. O quarto tempo de que falo, penso ser o tempo que confere o estatuto simbólico da castração nos dois lados: no lado do bebê, que se entrega ao outro, porém não todo (quando ele já pode decidir o quanto sua mãe pode se “deliciar” com seu corpo) e do lado da mãe, que primeiro torna possível esse endereçamento (tendo possibilitado que juntos construíssem os três tempos anteriores), como também a retirada do corpo como objeto de deliciar-se, sendo aquela que suporta e confere um valor inegável nessa declaração feita pelo bebê de que ela é não toda para ele (e vice-versa). Enfim, ele também a castra. Existem mães que nesse momento sucumbem, isto é, não toleram essa castração que elas próprias deram condição para que o bebê ensaiasse. Aqui penso ser um daqueles momentos em que Dolto fala da castração não simbolígena na mãe, pois, para ter chegado ao quarto tempo, operou a castração, porém sem a condição simbólica necessária para que ela produza seus frutos. Os frutos da castração não sabemos quais são, essa é por excelência a castração simbólica. Quando ela opera, todos estão marcados por ela. Uma mãe, ou alguém na posição de mestria, sucumbe por ter a ilusão de que a castração só é operada no outro, e não em si mesmo ao mesmo tempo. Tem a ilusão de poder controlar a castração. Falo de alguém na posição de mestria, pois abro aqui a minha tentativa de entender, trabalhar e construir a ideia deste quarto tempo do circuito pulsional a partir do que Freud, Lacan e Dolto trazem sobre o tema, não se restringindo às 82 O quarto tempo do circuito funcional questões de uma pequena criança. O circuito se faz e se refaz durante toda a vida. Pensar sobre um bebê na sua relação com o Outro primordial é um recurso clínico importante para pensarmos a montagem desse circuito, mas isso não significa que este se reduz à infância, mas, sim, que refere-se ao infantil de cada um de nós. Interessante que,no texto de Freud ([1915] 2004)sobre as pulsões e destinos das pulsões, o quarto destino das pulsões é a sublimação, isto é, uma forma de termos acesso à satisfação da pulsão,porém necessariamente bordejando-a, jamais satisfazendo-a. As três fantasias de que Freud fala no texto Bate-se numa criança me parece que têm relação com esse circuito; porém, trata-se de um circuito que não chega ao quarto tempo. O que acontece é que, na fantasia de ser batido, o sujeito, mantendo-se de fora, consegue inserir o terceiro na cena (o sujeito olha, mas fora da cena), depois o sujeito volta a uma posição dual (ele e o outro), para, num terceiro tempo, estar numa posição de ser capturado pela cena, isto é, o prazer que sente na fantasia o impede de deixá-la circular, de perdê-la. Freud fala que aí está o risco da perversão, isto é, a fantasia funcionar como algo que burla os efeitos da castração, e não como o testemunho dos efeitos dela. Talvez a pergunta sobre o que faz uma criança ficar fixada num objeto pulsional, no olhar do outro, sem conseguir estar livre, seja que na infância ela precisa que o adulto esteja ele próprio já submetido a isso mesmo a que ela precisa se submeter: aos efeitos da castração, da Lei, da linguagem. Por isso, é fundamental nos perguntarmos por onde deslizam os conteúdos imaginários de uma criança, isto é, a serviço de que a fantasia está operando? Acho importante poder pesquisar se, quando a criança fantasia ou brinca, deixa claro que sua produção psíquica toma um rumo quando uma castração simbólica operou; por exemplo, quando se abre, a partir da interdição, uma criação que é claramente marcada pela castração. São aqueles momentos em que elas chegam claramente a nos dizer: “já que não posso dirigir de verdade, vou inventar o meu carrinho e aí sim vou poder dirigir de continha! Mas... quando eu for grande vou poder de verdade, né?!” Isto é, a criança, na sua produção no brincar, verdadeiramente faz um ato de criação o qual a possibilita tanto ser permeável à castração quanto mantém, a partir desta, um sonho. Ela constrói uma mediação que costura tempos diferentes (o passado, o presente e o futuro) e que a submete a uma lei que lhe possibilita criar e não a impede de sonhar. Isso é por excelência um brincar! Diferente de uma fantasia cuja trajetória é achar formas de burlar aquilo que foi interditado. São situações em que as crianças passam muito tempo, um tempo que muitas vezes finda com a exaustão, insistindo em inventar artimanhas, histórias, 83 Simone Mädke Brenner na aposta de que o outro possa ser trapaceado, que sua insistência vai lhe garantir aquilo que lhe foi proibido. Aqui, o brincar (fica a pergunta se de fato é um brincar!), as invenções, mostram que a criança está fixada, presa, refém da ineficácia de uma castração simbólica. Como muito bem nos fala a minha paciente! Em outras palavras, a primeira tem o efeito de possibilitar que o sujeito deslize, faça uma história (sua história!), enquanto na segunda o sujeito patina, fica capturado por uma instância que o impede de seguir seu rumo. No caso da criança anteriormente relatado, o quarto tempo não estava inscrito no outro, isto é, na cena em que ela interdita que o outro goze no e com seu corpo, o outro lhe diz: não. O que ela fala com seus sintomas e com suas palavras é do quanto ainda padece de uma cena na qual o outro toma seu corpo como objeto, o corpo dessa criança não está numa posição casta, e, sim, altamente erotizada. O pedido por ser batida por todos mostra o quanto sua posição sadomasoquista chega ao ponto de alienação em que ela se coloca ativamente a ser passivamente destruída. Ora, as crianças nos ensinam muito sobre essa lógica, a lógica de um adulto que, por não estar suficientemente marcado pelos efeitos da castração, na relação com ela, revela aquilo que não pôde ser recalcado e que é fruto simplesmente de uma repressão. Portanto, há um não, um não à castração do interditor. Isso é o que impede que a criança seja beneficiada pelos efeitos da lei simbólica. Assim, para que o quarto tempo do circuito pulsional se inscreva, a criança precisa que a declaração de amor do outro parental já possa também ter sofrido o interdito do corpo. Sem essa inscrição simbólica no outro parental, a criança fica na posição de dúvida se pode insistir nesse quarto tempo sem correr o risco de se perder de seus pais. Portanto, entendo que a mistura de pavor e de prazer nesta menina, quando sofre as agressões do pai, diz disto: é no corpo, na invasão que ela se sente amada, “mal amada”, mas amada. Ela só consegue suportar o risco de insistir no quarto tempo quando sua mãe consegue lhe oferecer outra forma de amor, um amor que passa pelas palavras, e não pelo corpo somente. Isso está dito na poesia em que ela fala na última sessão: são palavras amorosas e não palavras atos de corpo. É rico como essa criança nos mostra que inoperância dos efeitos dos significantes como sustentáculo da castração faz o corpo dela entrar em colapso. Sua doença neurológica fala claramente disso: suas convulsões noturnas, sua impermeabilidade às medicações, que a acalmariam e que diminuiriam suas convulsões, seu funcionamento cerebral, que aponta importante alteração em áreas do cérebro que “falam” dos efeitos do recalque, do interdito no real do corpo, fazem com que seu cérebro funcione sem freio simbólico. Nada o acalma, 84 O quarto tempo do circuito funcional o organiza; enfim, é um funcionamento cerebral que revela claramente os efeitos da inexistência da Lei operada pelos significantes no corpo. Esse caso nos aponta o quanto o que sustenta as sinapses, a organização do cérebro e seu bom funcionamento, não é somente ele estar sadio, mas, sim, que ele precisa, como todos os órgãos de nós, humanos, daquilo que compreende a construção do que Dolto fala da imagem inconsciente do corpo. O fato de o cérebro não ter sido marcado pelos efeitos “humanizantes” – que compreendem o trabalho de sucessivamente recalcar o corpo através da construção e da estruturação da linguagem – põe, sim, em risco o funcionamento cerebral. Quero marcar aqui a relação da polaridade do ciclo pulsional com algo que está sempre no centro. É um órgão, a se tomar no sentido de instrumento, da pulsão – num sentido diferente, portanto, daquele que tinha há pouco, na esfera da indução do ich. Esse órgão inapreensível, um objeto que não podemos mais que contornar e, numa palavra, esse falso órgão – aí está o que convém agora interrogar.O órgão da pulsão se situa por relação ao verdadeiro órgão (Lacan, [1964]1979, p.185). A forma como a criança vai melhorando em seus sintomas diz exatamente disto: da capacidade que as palavras têm de organizar um corpo, um órgão. Palavras essas que são frutos de uma relação do sujeito com um outro para o qual as palavras têm o efeito simbólico. O trabalho com crianças nos ensina esse lado muito impressionante do quanto as palavras marcam o corpo, no mais real que se pode pensar. “As palavras para tomarem sentido, devem, primeiro, tomarem corpo, serem, ao menos, metabolizadas em uma imagem do corpo relacional” (Dolto, 1984, p.34). Essa menina confirma o que Dolto afirma, mostrando que o corpo, para tomar sentido e ser sentido precisa, primeiro, ter sentido nas palavras de um outro .É com as palavras, com os efeitos dos significantes que um corpo pode adormecer,se organizar, se acalmar e poder, aos poucos, ser esquecido pelos efeitos da operação do recalque, e não da repressão. Digo do recalque, quando um corpo é silenciado através das operações do recalcamento nas quais o trabalho psíquico é o de, gradativamente, ir traduzindo, suplantando algo que parte do órgão/corpo e que, através das construções das sucessivas “camadas” de linguagem, o corpo vai se “escondendo” e gradativamente se dando a ver pelas produções simbólico-imaginárias que a partir dele são criadas, isto é, o órgão/corpo vai sendo “humanizado” (Dolto). Diferente de um corpo que, por não ter sido beneficiado por esse trabalho, sente-se pulsando demais, sendo sentido 85 Simone Mädke Brenner demais, a ponto de impossibilitar que o sujeito possa minimamente esquecê-lo. Ele então, para ser suportável, é muitas vezes “apagado”, seja pelo “deletar” de suas sensações, seja pelo apagamento químico. Essa menina também nos mostra o quanto ela clama pelos efeitos dos significantes que possam humanizá-la. Prova disso é a forma clara e precisa com que ela demanda ser escutada. Outro detalhe precioso é que, apesar de ela ter um quadro neurológico importante, nas sessões ela nunca mencionou esses episódios. Eu sabia das suas convulsões pelo relato dos pais e da neurologista. Isso era algo com que eu me questionava muito: por que será que isso não a faz sofrer, não a assusta, como para a maioria das crianças que sofrem desses sintomas? Ela vai me ajudando a entender isso exatamente pela via dos efeitos que tinha para ela o falar de si e ser escutada. Obviamente, nesse movimento de falar do corpo bordejando-o, isto é, sem falar das convulsões noturnas, ela fala do que a fazia enlouquecer à noite, o que a fazia ter um corpo que se mexia sem controle, desesperadamente, até a exaustão. Portanto, ela fala sem falar do que sabe sem saber que sabe. Essa operação foi acionada pelo efeito da fala da neurologista, pois é ela que aponta para a criança que seu corpo pedia por vários cuidados: cuidados médicos referentes a ele estar claramente em risco, como também cuidados que se referiam à imagem inconsciente do corpo. Bem, venho tentando “costurar” alguns conceitos que, para mim, são fundamentais na clínica – pulsão, recalque, castração, circuito pulsional –, para buscar com eles pensar sobre uma pergunta que esse caso o tempo todo me fazia: há um abuso? O que é, afinal, o abuso? Essa é uma questão importante no que tange ao trabalho do recalcamento: fazer o corpo pulsionar no âmbito simbólico é aquilo que a criança nos ensina quando passa do momento de olhar, mexer e se meter em tudo para o falar, perguntar, se tornar curiosa com as palavras, e não mais com o ato. Isso envolve um longo e árduo trabalho, que Dolto denomina de pulsão epistemológica, aquela que nasce a partir do interdito do corpo (no mais amplo sentido que possamos pensar!) e que é fruto das sucessivas castrações com que um sujeito é beneficiado. Falo no amplo sentido de interdição do corpo, pois isso se mostra nas pequenas crianças de forma aparentemente muito simples e cotidiana, muitas vezes camuflada por cenas muito “amorosas”, exemplos de uma grande “dedicação” materna. Refiro-me àquelas situações comuns no trabalho clínico com crianças quando estas nos mostram seus sofrimentos por ficarem atadas ao momento de ruptura necessária ao outro e que “patinam” exatamente porque encontram no adulto dificuldades para sustentarem os efeitos da castração. São situações em que o adulto força a criança a comer aquilo e o quanto ele 86 O quarto tempo do circuito funcional quer que ela coma, que a criança faça cocô e xixi no momento em que o adulto quer (isso se inclui, na definição por parte deste, de quando as fraldas serão retiradas), na insistência em manter uma higiene rigorosíssima, a qual impede que a criança comece a poder cuidar sozinha de seu corpo... Enfim, são alguns dos inúmeros exemplos de situações nas quais as crianças nos ajudam a pensar que o abuso é algo muito mais sutil e complexo do que muitas vezes podemos pensar. Abuso porque, para uma pequena criança viver esses momentos que parecem tão simples, mas que são de fundamental importância (são os momentos em que ela inaugura seu nascimento como sujeito de fato, e que são as situações que possibilitam ou não o circuito pulsional), é necessário que o outro tenha no seu inconsciente a marca desta castração. Para o adulto ter a sutileza de interpretar o quanto uma criança precisa e deseja comer, o quanto suas fezes e sua urina representam muito mais do que um simples controle esfincteriano, e, sim, representam a saída daquilo que entrou (e como entrou?!), de que suas roupas, que até agora sua mãe escolhia e vestia, passam a ser quase sua própria pele (por isso brigam tanto para elas próprias se vestirem e se despirem!), é necessário que esse adulto tenha diante do corpo do seu filho a construção do interdito, o qual o possibilita saber até onde penetrar. Talvez esses sejam os abusos mais difíceis de serem trabalhados: os que são revestidos de “muito amor e muita dedicação”, aqueles que fazem não só a criança, mas também a qualquer sujeito, ficar atado. Atado, porque no outro está o imperativo de não transpor o terceiro tempo do circuito pulsional, isto é, o não ousar interditar o Outro. Nessa lógica, a castração opera num lado só: é como se a mãe dissesse para a criança que esta precisa comer para que assim a mamãe se sinta feliz (aliás essa é uma frase comum de se escutar!), pouco importando o que isso representa para a criança. E se, mesmo assim, a criança brigar, lutar para não se submeter ao abuso, a mamãe a chantageia, a pune, a faz comer à força, muitas vezes até vomitar. Isso é um abuso! Sabemos que isso pode, sim, acabar com o circuito pulsional, fazer a criança se perder de si mesma e ficar fixada ao outro. Ficar fixada, seja pelo direito, rendendo-se como belo cordeiro que come pela sua mãe e toma assim um volume de corpo que não é o seu (como alguns casos de obesidade), seja pelo avesso, numa negativa que se torna um imperativo (como alguns casos de anorexia). De qualquer maneira, nesses cenários o jogo de ir e vir, de se entregar e de poder receber, de poder se desarmar sem ter medo de ser engolido pelo outro não está armado. Arma-se um cenário de guerra, de quem domina quem, quem invade mais, quem se submete mais, enfim, é um cenário que muitas vezes nos apavora quando vemos uma pequena criança de dois anos enlouquecendo seus pais. Enlouqueceos porque eles a enlouqueceram, deixando-a perdida com suas pulsões. 87 Simone Mädke Brenner Ora, essa loucura primordial, uma desconfiança primordial, abala as possibilidades de qualquer sujeito, tenha a idade que tiver, de amar. A cena que uma pequena criança nos ensina sobre esse momento de saída do terceiro tempo do circuito pulsional e de poder ser sustentada no quarto tempo é, ao longo da vida, o que a possibilita amar. Amar numa posição de entrega que nunca é total, a que sempre sobra e falta algo, e que exatamente por isso faz o desejo circular, “Circuitar” com as pulsões. REFERÊNCIAS DOLTO, F. A imagem inconsciente do corpo (1984). São Paulo: Editora Perspectiva, 1992. FREUD, S. Pegan a um nino [1919]. In: ______. Obras completas. Buenos Aires: Santiago Rueda, 1953. ______. Pulsões e destinos da pulsão [1915]. In: ______ Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 2004. LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise[1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979. Recebido em 15/12/2011 Aceito em 20/03/2012 Revisado por Maria Ângela Bulhões 88 Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 89-98, jan./jun. 2011 TEXTOS A INFÂNCIA COMO TEMPO DE INICIAÇÃO À ARTE DE PRODUZIR DESOBJETOS1 Simone Moschen2 Resumo: O artigo propõe discutir os possíveis efeitos, sobre o brincar, da extensão do ensino fundamental para nove anos, com ingresso obrigatório aos seis anos de idade. Seu horizonte é sustentar a importância do brincar como exercício capaz de franquear às crianças o passaporte para o simbólico e para as possibilidades de invenção que o caracterizam. Palavras-chave: infância, brincar, ensino de nove anos. THE CHILDHOOD AS THE TIME OF INITIATION TO THE ART OF PRODUCING NONOBJECTS Abstract: The article proposes to discuss the possible effects of the extension of elementary school to nine years on the child´s play, with compulsory admission at the age of six years. Its horizon is to sustain the importance of play as an exercise able to give children the passport to the symbolic and to the possibilities for invention which characterize play. Keywords: children, play, elementary school of nine years. Este texto foi produzido para apresentação na Mesa Redonda intitulada A infância e as novas políticas para a educação. O tom oral da intervenção foi, neste artigo, mantido em grande parte. 2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Professora do Pós-Graduação em Educação e em Psicologia Social e Institucional/UFRGS; Pesquisadora do CNPq. E-mail: [email protected] 1 89 89 Simone Moschen E ste artigo resulta do debate desdobrado em uma mesa de discussão intitulada A infância e as novas políticas para a educação. Na ocasião, discutiam-se os possíveis efeitos da implementação de uma política de educação que indicava o acréscimo de um ano ao ensino fundamental; sendo esse ano incorporado ao início da escolarização. Essa nova normatização, que implicou o ingresso obrigatório das crianças aos seis anos na escola, tinha como horizonte, dentre outros objetivos, o de ampliar o período da escolarização, que é de responsabilidade do estado brasileiro. Este texto quer refletir sobre o impacto que mudanças operadas pelos adultos no modo de conceber e propor a infância produzem sobre a experiência que as crianças fazem do mundo e de si. Se, por um lado, os modos de viver a infância, como idade da vida, são absolutamente determinados historicamente e produzidos territorialmente, por outro lado, podemos situar na criança, especialmente na criança pequena, um atravessamento que transversaliza diferentes tempos e diversos territórios, a saber, a condição de extrema dependência dos pequeninos. É sobre as consequências disso que poderíamos situar como uma constante, em meio às inúmeras variáveis sócio-históricas, que me proponho a pensar neste texto. Paradoxalmente, uma constante que faz parte da natureza do pequeno homem e que, por sua presença, lança-o num movimento de “denaturação” sem fim. Recorramos aos poetas para inquietar nosso percurso: Entrevi, como uma estrada por entre as árvores, O que talvez seja o Grande Segredo Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam. Vi que não há Natureza, Que Natureza não existe, Que há montes, vales, planícies, Que há árvores, flores, ervas, Que há rios e pedras, Mas que não há um todo a que isso pertença, Que um conjunto real e verdadeiro É uma doença de nossas ideias A Natureza é partes sem um todo. Isso é talvez o tal mistério de que falam. Foi isto o que sem pensar nem parar, Acertei que devia ser a verdade Que todos andam a achar e que não acham, E que só eu, porque a não fui achar, achei. Alberto Caeiro 90 A infância como tempo de iniciação... Quase nada do que chamamos de humano pode ser sustentado num argumento que busque na Natureza suas bases. Qualquer raciocínio que se desdobre reivindicando sua legitimidade numa suposta Natureza dos homens será facilmente derrubado por uma simples reflexão histórica capaz de nos mostrar que os homens se produzem como homens quando são assujeitados às condições de uma ancestralidade que configura um campo de possibilidades e de limitações para a sua realização. Os homens, cujo estatuto ao nascer poderia caricaturalmente se resumir a três quilos de carne cabeluda – como refere Lacan no seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise –, só passam a ser chamados de humanos quando são nomeados como tais por outros seres humanos; estes, por sua vez, encontram-se imersos num universo de linguagem e símbolos historicamente constituídos e territorialmente enraízados. A humanização do organismo vai se dar no entre-lugares de um assujeitamento às condições históricas transmitidas pelos adultos próximos às crianças e da tomada de posição do pequeno frente a esses determinantes que lhe chegam, vindos de uma ancestralidade que ele não domina. A condição de dependência que o pequeno ser tem em relação ao outro, adulto, é característica do organismo humano e tem como consequência abrir espaço para uma transmissão ímpar. Isso, porque, se pensarmos que o modo como um adulto dará voz àquilo que supõe ouvir de uma criança que ainda não fala, está absolutamente determinado pela língua que esse adulto habita, pelas possibilidades do dizer que essa língua encerra, pelos saberes que a cultura desse adulto acumulou ao longo de diversas gerações, bem como pelos mitos que, na ancestralidade familiar, foram se desdobrando de forma a firmarem-se como verdades que sustentam decisões e julgamentos. Se pensarmos que essa tradução, que o adulto faz dos grunhidos do bebê, ele a faz banhado nesse mar de sentidos em que ele mesmo aconteceu como sujeito, podemos dizer, então, que a dependência do pequeno é o adubo que fertiliza o campo da transmissão das formações simbólicas de cada linhagem, de cada cultura. A dependência do filhote humano, determinada pelas condições de seu organismo, abre espaço para que as manifestações do próprio organismo nunca sejam lidas sem as interferências da cultura, da qual o adulto, leitor, se faz intérprete. Paradoxalmente, são as condições do organismo humano que fazem com que o próprio organismo, sua suposta natureza, nunca seja registrado senão de forma “deturpada”, ou, dito de modo menos coloquial, de maneira mediada por uma interpretação simbólica. São as características de dependência do organismo da pequena criança que a inclinam à busca do olhar do adulto, de sua voz, de seu toque, das condições de leitura do mundo que este pode lhe doar. A pequena criança, de forma bastante radical, se vê no espelho que o 91 Simone Moschen adulto lhe oferece. Esse espelho, porém, reflete os sentidos que o ser criança tem naquela cultura, naquela formação familiar, nas fantasias daquele adulto que, travestido de superfície refletora, devolve ao pequeno a significação de sua imagem. A condição de absoluta dependência do pequeno organismo humano determina que tudo que seja humano, desde o início, passe por uma interpretação simbólica, uma interpretação linguageira, que, por sua vez, é determinada culturalmente. O modo como os pequenos ingressam no mundo faz com que suas manifestações sejam necessariamente capturadas na ordem das palavras dos outros que os recebem e lhes apresentam a vida, capturadas pelos sentidos atualizados por esses outros, fazendo com que a dita Natureza humana nunca se atualize de forma direta. Isso faz com que a Natureza seja uma referência mítica a um organismo que, ao ser tatuado pelas palavras, se transformou em um corpo desnaturado. A necessidade que temos de nos ver através dos olhos, da voz, da interpretação do outro, essa necessidade, radical na primeira infância, nos acompanha pelo resto de nossa existência. A especificidade da criança está no fato de que, quanto menor ela é, menos dispõe de instrumentos psíquicos e cognitivos para falar em nome próprio. Quanto menor é a criança, maior é sua colagem a esse outro/Outro3 – outro/Outro entendido tanto como semelhante, quanto como tesouro dos significantes. Quanto menor a criança, maior é sua dependência, para acontecer como sujeito, de encontrar alguém – seria melhor dizer “alguéns” – disposto(s) a suportar sua condição inicial de profunda dependência. Uma boa forma de visualizarmos essa dificuldade de falar em nome próprio é nos recordarmos do modo como a criança se refere a si mesma, quando está iniciando seus primeiros ensaios pela fala. O pequeno, com frequência, se referirá a si em terceira pessoa, dizendo: a Simone quer, a Simone gosta. A criança fala de si colada à posição discursiva do outro. Fala de si deslocando-se para o lugar desde onde o outro fala dela. Diríamos, em termos linguageiros, que, embora o enunciado “a Simone gosta” seja próprio, o lugar da enunciação é ainda o do outro. Só num segundo momento se abrirá uma fenda nessa colagem, e a criança “Lugar onde a psicanálise situa, além do parceiro imaginário, aquilo que anterior e exterior ao sujeito, não obstante o determina [...]. O que se tenta indicar com essa convenção escrita é que, além das representações do eu e também além das identificações imaginárias, especulares, o sujeito é tomado por uma ordem radicalmente anterior e exterior a ele, da qual depende, mesmo que pretenda dominá-la” (Chemama, 1995, p.157). 3 92 A infância como tempo de iniciação... poderá tomar a palavra em nome próprio, para, então, dizer eu. O jogo entre o eu e o tu retira sua complexidade do fato de que a fala não diz simplesmente do uso de um instrumento de comunicação, mas nos informa do lugar desde o qual estamos nos situando para falar. Essa posição da criança, de colagem discursiva ao outro/Outro colocanos, aos que trabalhamos com os pequenos, na extrema responsabilidade de nos perguntarmos sempre sobre o que estamos antecipando como possibilidades, como demandas e como sentidos para os filhotes humanos. Pois, se as crianças mais facilmente se colam ao outro/Outro, o que este lhes disponibiliza tem um impacto que não é de se negligenciar. Assim, quando falamos de políticas públicas voltadas para a infância, estamos falando sobre a construção de um terreno que antecipa discursos, sentidos e práticas que podem tomar os pequenos sem muita mediação. Particularmente neste momento, penso que se faz absolutamente necessário que pensemos sobre o que estamos demandando das crianças, quando elaboramos uma lei que amplia o ensino fundamental para nove anos e requer a matrícula nesse ensino aos seis anos. Que experiência de infância estamos construindo quando elaboramos esse texto legal – ou outros? Pois não se trata somente de letras no papel. Trata-se de letras que constituirão práticas, que produzirão sentidos, que dirão aos pequenos que chegam o que é ser criança em nosso mundo. Os pequenos, por sua vez, ávidos de sentido, se identificarão a essas proposições e assumirão, com maior ou menor facilidade, aquilo que lhes transmitimos. Façamos um pequeno parêntese para retomar algumas das proposições de Philippe Ariés (1981), no trabalho intitulado História social da criança e da família. Esse trabalho pode nos interessar na medida em que ele nos faz ver como mudanças no mundo dos adultos introduzem novos sentidos e potencializam novas experiências para as crianças. Nessa pesquisa, o autor desdobra a tese de que o sentimento de infância, tal como se desenha em nossa cultura, teve seu nascimento por volta do século XVII. Estavam presentes na sala de parto da infância ilustres convidados que apadrinharam tanto essa experiência nascente como patrocinaram, se não o surgimento, o adensamento desse tempo que chamamos de Modernidade. A infância, como tempo de preparo para a vida adulta, como espaço de ensaio tutelado das responsabilidades e possibilidades que o mundo público requer, faz parte do projeto civilizador que caracterizou a Modernidade. Projeto que talvez estejamos questionando, em nosso tempo presente, por conta da experiência de seus engodos e de seus limites. A passagem de uma organização calcada de forma privilegiada no coletivo a uma organização social que produziu a privatização dos conflitos, em que o 93 Simone Moschen argumento passou a ser buscado na intimidade do ser e, mais do que isso, em que essa busca foi acompanhada da tentativa constante de estabelecer o apagamento das determinações simbólicas do sujeito; essa passagem abriu espaço para a possibilidade e para a necessidade de se estabelecer um tempo da vida no qual os pequenos seriam chamados a se ensaiar nas atribuições do mundo dos grandes, seriam paulatinamente nelas introduzidos, de forma a construírem os instrumentos “internos” necessários para realizar a ascensão – seja ela de que ordem for – esperada pelos adultos. É no momento em que a posição que cada um ocupará no mundo não está antecipada por uma trama social estável que a infância tem lugar como incubadora de perspectivas de realizações futuras – perspectivas e apostas, pois os adultos passarão a ver nos pequenos a possibilidade de transposição de suas frustrações, de realização de seus desejos fracassados. Como homens modernos, não tivemos nosso destino traçado na origem – ou, pelo menos, queremos crer que não –, mas fomos chamados a construí-lo individualmente – vale sublinhar: individualmente –, ensaiando-nos nessa construção no tempo denominado de infância. Como homens modernos, guardamos a ilusão de sermos fundadores de nós mesmos; ilusão que talvez consista em um dos grandes engodos que nos constitui e nos aproxima. Supomos e buscamos a autonomia do ser, a realização de si, sem qualquer dependência do outro, a espontaneidade máxima, a independência e a liberdade totais. Contudo, esquecemos de lembrar que apostar nessa via nos deixa cada vez mais sós, cada vez mais desamparados, cada vez com menos possibilidades de criar o mundo e a nós mesmos – não à toa vivemos uma verdadeira epidemia de tristeza e desamparo que a indústria farmacêutica espertamente nomeou de depressão. Acho muito intrigante que o alargamento do ensino fundamental se dê na direção da primeira infância, e não da juventude. Está bem que possamos pensar que a medida pode intencionar garantir, para um número maior de crianças menores, o ingresso na escola. Mas, por que não trabalhar no sentido de tornar a educação infantil uma realidade cada vez mais abrangente? Por que não nos colocarmos justamente a questão pelo seu avesso, ou seja, de que os jovens chegam muito jovens diante da necessidade de optar – quando têm opção – por um projeto profissional? Que infância estamos propondo, ao alargar o ensino fundamental no sentido do início da vida? Não estaríamos completamente consonantes com um movimento de achatamento da experiência da infância e de alargamento do que chamamos de adolescência? Valem mais algumas palavras sobre a aceleração do tempo. Como pensála em relação a algo que se desdobra na infância: o brincar? Quando nos referimos à infância, certamente nos vemos acompanhados pela ideia do brincar. Infância, 94 A infância como tempo de iniciação... em nossos tempos, é composta por gente que brinca. Desde que o sentimento de infância, como um tempo de ensaios para a vida na pólis, passou a fazer parte de nosso ideário compartilhado, o brincar como característica desse tempo também passou a ocupar um plano privilegiado – talvez tão privilegiado que não reconhecemos na adultez a necessidade de brincar. Freud ([1920]1974), na década de 20, escreve um dos poucos textos em que aborda diretamente o brincar. A essa atividade ele atribui três características: a repetição, a passagem operada pela criança através da brincadeira da posição passiva à posição ativa frente ao outro, e o vir-a-ser desdobrado pelo brincar. Gostaria de dedicar algumas palavras a essa passagem da posição passiva à posição ativa que está em curso sempre que uma criança se põe a brincar. Lembremos por onde iniciamos: pela ideia de que a criança nasce nas palavras dos adultos que lhes são próximos. É por esses adultos que ela é significada, acontecendo como ser humano a partir dos sentidos que lhe são atribuídos. Trocando em miúdos, a criança nasce como sujeito, assujeitada às nomeações que lhe vêm do Outro. Nasce como sujeito numa posição passiva frente a esse Outro. O passaporte que ela vai cunhar para a posição ativa, para o lugar de sujeito de uma ação, para a condição de falar em nome próprio, é elaborado com o material que lhe chega do brincar. É o brincar que vai armar a ponte do lugar de assujeitamento ao lugar de sujeito. Por isso, o brincar é coisa tão séria para a criança. Por isso, também é tão preocupante quando uma criança não brinca, pois é como se ela tivesse aberto mão, ou não estivesse podendo dispor dos instrumentos pelos quais ela vai armar uma posição ao mesmo tempo enlaçada e diferenciada frente aos outros que a apresentaram ao mundo. O brincar é a construção de uma versão própria sobre o mundo ao qual a criança foi apresentada pelo adulto. Assim, quando observamos um achatamento da infância operado pelo incremento das tarefas e pela diminuição do tempo livre – o tempo do brincar – poderíamos nos perguntar o quanto não estamos construindo como horizonte uma adultez em que os sujeitos vão se encontrar cada vez mais reduzidos a uma posição de passividade frente ao Outro. Claro! As coisas não são tão lineares assim; mas vale pensar sobre as consequências de um mundo no qual o brincar fica cada vez mais rarefeito. Isso porque, tomando a tese freudiana como pertinente, crianças que não brincam têm estreitadas as suas possibilidades de construir uma posição ativa, de tomar a vida nas próprias mãos e, nessa medida, essas crianças prenunciam uma adultez mais dependente e vulnerável ao Outro. Tomemos agora a outra perspectiva que Freud ([1920]1974) nos lança, a de que a criança que brinca vai conformando as condições para assumir a posição adulta. Brincar é brincar de ser grande, numa conjugação absolutamente 95 Simone Moschen interessante da experiência do tempo: – Agora eu era... Situada no presente, “agora”, a criança se lança para o futuro, identificando-se ao lugar que o adulto almeja que ela venha a ocupar e, desde o futuro, ela olha para trás, para onde ainda está e nos diz: – Eu era. Vale lembrar que essas viagens no tempo são possíveis graças aos atributos da linguagem. Por estar fazendo a passagem da passividade à atividade, da fusão ao Outro para a relação ao Outro, a criança fala de seu agora desde o futuro que o mundo adulto desenha para ela como horizonte identificatório. No brincar, a criança se ensaia no amanhã sem ter que responder, em toda a sua extensão, pelos efeitos desse ensaio. Afinal, é só fazde-conta! O pequeno achata o tempo em seu brincar, contraindo a linha que vai do passado ao futuro e, com isso, ele cria, a partir dos traços que recolhe, das vozes e olhares do adulto, algo que vai paulatinamente situando como próprio. Nesse tempo mágico, em que a linearidade está suspensa, florescem as condições de criação. Manoel de Barros (2003) no belíssimo livro Memórias inventadas – quais não são – nos fala desse tempo e de sua relação com o brincar. O início do livro é absolutamente intrigante: “tudo que não invento é falso” inicia o poeta. Em um dos capítulos, o poeta canta as peculiaridades da experiência do tempo do brincar. O capítulo se chama Desobjeto e é lindo para pensar a atividade imaginativa presente nesse tempo-espaço “zipado” da infância. Esse tempo em que aprendemos a nos relacionar com os desobjetos que fazem parte do mundo, que aprendemos a construir desobjetos, que aprendemos a olhar o mundo e a nos autorizarmos a ver possibilidades não antecipadas nos saberes e nomeações construídos e consolidados. Um tempo em que nos ensaiamos no espaço da criação que a linguagem de que somos feitos franqueia. Um tempo mágico, mas de uma magia que faz parte deste mundo, e não de outros, e que, fazendo parte deste mundo, de nosso mundo de linguagem, torna possível construir outros mundos. Diz Manoel de Barros O menino que era esquerdo viu no meio do quintal um pente. O pente estava próximo de não ser mais um pente. Estaria mais perto de ser uma folha dentada. Dentada um tanto que já havia incluído no chão que nem uma pedra um caramujo um sapo. Era alguma coisa nova o pente. O chão teria comido logo um pouco de seus dentes. Camadas de areia e formigas roeram seu organismo. Se é que um pente tem organismo. [...] Acho que os bichos do lugar mijavam muito naquele desobjeto. O fato é que o pente perdera a sua personalidade. Estava encostado às raízes de uma árvore e 96 A infância como tempo de iniciação... não servia mais nem para pentear macaco. O menino que era esquerdo e tinha cacoete para poeta, justamente ele enxergara o pente naquele estado terminal. E o menino deu para imaginar que o pente, naquele estado, já estaria incorporado à natureza como um rio, um osso, um lagarto (Barros, 2003). No quintal onde os dentes do chão comem os dentes do pente, onde bichos mijam em desobjetos, onde um pente tem organismo, floresce a capacidade de se relacionar com o mundo sem a necessária sustentação dos objetos que se propõe a não ser nada além daquilo que usamos dizer que são. No quintal de uma infância em que o menino esquerdo vê o mundo pelo avesso e tem cacoete de poeta, desponta a possibilidade, tão avessa a nossos tempos, de criar a partir dos restos, de apanhar desperdícios e alçá-los à dignidade das coisas mais preciosas. No território onde os restos são convites para uma criação, o mercado dos objetos perde parte de sua necessidade, e nisso talvez resida a potência subversiva do brincar. “As crianças, em sua tentativa de descobrir e conhecer o mundo, atuam sobre os objetos e os libertam de sua obrigação de ser úteis” (Krammer, 2006, p. 16). O tempo do brincar é o tempo do investimento desejante nos objetos que torna a pedra do quintal a maior pedra do mundo. É o tempo de dignificar os restos arruinados, tomando-os como parte indispensável de uma engenhoca que, apostamos, mudará o mundo. Aprendemos a necessidade do inútil brincando. Sobre a utilidade do inútil nos fala Hanna Arendt: Entre as coisas que emprestam ao artifício humano a estabilidade sem a qual ele jamais poderia ser um lugar seguro para os homens, há uma quantidade de objetos estritamente sem utilidade [...]. É como se a estabilidade humana transparecesse na permanência da arte, de sorte que certo pressentimento da imortalidade – não a imortalidade da alma ou da vida, mas de algo imortal feito por mãos mortais – adquire presença tangível para fulgurar e ser visto, soar e ser escutado, escrever e ser lido. (Arendt, 2001, p.180; grifo nosso) Estranhamente, o que confere consistência e estabilidade ao artifício humano, ao mundo e a nós mesmos, é uma série de desobjetos (nas palavras de Manoel de Barros) produzidos por obra de um investimento amoroso que captura a coisa, desloca-a de sua suposta Natureza e a faz viver no mundo dos símbolos, no mundo da linguagem. Ao brincar, somos iniciados na arte da construção dos desobjetos que nos humanizam. 97 Simone Moschen Nessa perspectiva, penso que há algo que pode se movimentar de forma interessante a partir da proposta de lei nº 11.114/2005, que estabelece o ensino fundamental de nove anos, a saber, os efeitos do ingresso do brincar pela porta da frente do ensino fundamental. Sim, por que, ao receber crianças de seis anos em seu território, o ensino fundamental se verá desafiado a dar legitimidade ao brincar – se não quiser transformar o ingresso desses pequenos em violência. A necessidade do ensino fundamental de pensar a educação das crianças de seis anos implicará, certamente, a necessidade de um diálogo extenso entre a chamada educação infantil e o ensino fundamental. Mudanças poderão ter lugar se não for somente o ensino fundamental aquele a se tomar do lugar de pautar o diálogo, dizendo o que espera da educação infantil, quais são as habilidades que quer ver desenvolvidas pelas crianças que ali irão ingressar aos seis anos. A escola infantil tem muito a ensinar ao ensino fundamental. Muito a ensinar sobre a arte de criar a partir dos restos, sobre a utilidade do inútil, sobre a necessidade dos desobjetos, sobre o brincar como nascedouro da capacidade de invenção, sobre as possibilidades que se abrem quando abandonamos o pragmatismo dos objetos e somos capazes de olhar a vida pelo avesso. Só quem brinca pode revirar o mundo para nele inserir novos sentidos. E aí não estamos falando somente de crianças. REFERÊNCIAS ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. BARROS, Manoel de. Memórias inventadas – a infância. São Paulo: Planeta, 2003. CHEMAMA, Roland. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. FREUD, S. Além do princípio do prazer [1920]. In: ______. Ed. standart brasileira das obras completas de Sigmund Freud. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1974. KRAMER, Sonia. A infância e sua singularidade. In: BRASIL. Ministério da Educação. Ensino fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade. Brasília: FNDE – Estação Gráfica, 2006. Recebido em 10/11/2011 Aceito em 20/12/2011 Revisado por Gláucia Escalier Braga 98 Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 99-108, jan./jun. 2011 TEXTOS A EDUCAÇÃO ESTRUTURANTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL Dorisnei Jornada da Rosa1 Resumo: O artigo aborda a função do educador no processo de subjetivação das crianças que frequentam creches e escolas infantis, a partir do que conceitua sob o nome de Educação Estruturante. Palavras-chave: educador, educação estruturante, educação infantil, brincar. STRUCTURING EDUCATION ON PRESCHOOL EDUCATION Abstract: This article discusses the teacher’s role in the subjectivation process of children attending kindergartens and nursery schools, to propose the conceptualization of Structuring Education. Keywords: teacher, education, structuring education, preschool education, play. Psicóloga; Psicanalista da Clínica Palavra Viva; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre(APPOA); Terapeuta em estimulação precoce; Pedagoga Especial para Deficientes Mentais; Trabalha em Educação Precoce na Escola Municipal Lygia Morrone Averbuck, com bebês de 0 a 3 anos com problemas de desenvolvimento; Assessora de Educação Precoce e Psicopedagogia Inicial nas escolas infantis da Prefeitura de Porto Alegre. E-mail:[email protected] 1 99 99 Dorisnei Jornada da Rosa Cuidar das crianças pequenas ou pedagogizá-las? Fazer suplência aos pais ou educar? Essas são questões que atravessam todos aqueles que se ocupam da educação infantil atualmente. Nas creches ou nas escolas infantis, a frequência em turno integral tende a se tornar o padrão; com os educadores, as crianças brincam, se alimentam, escovam os dentes, dormem, dão seus primeiros passos, tiram as fraldas, dizem suas primeiras palavras. O que separa a função parental da função do educador? O limite é ainda mais difícil de estabelecer quando se trata de crianças que apresentam transtornos de desenvolvimento; isso, sem falar do contingente de crianças expostas à vulnerabilidade social e à fragilização dos laços familiares. O que fazer? Paralisarse frente aos aspectos estruturais2, instrumentais3 e sociais de que padecem seus aluninhos, ou intervir nesses campos? Há 21 anos, mais exatamente em 1991, foi criado o trabalho de Assessoria de Educação Especial à Educação Infantil da Prefeitura de Porto Alegre. Nos primeiros anos, um grupo de professores de escolas especiais da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre (SMED)4 criou os atendimentos de Educação Precoce (EP)5 e Psicopedagogia Inicial (PI)6. Importa situar que integro e coordeno a equipe de EP e PI da Escola Municipal Lygia Morrone Averbuck; somos quatro profissionais, as quais temos, cada uma, dois turnos semanais para assessorar e atender as creches e escolas infantis da Zona Leste, Partenon e parte da Zona Norte de Porto Alegre. Naquela ocasião precisávamos nos empenhar muito na busca de vagas em creches e escolas infantis para as crianças com transtornos de desenvolvimento atendidas em EP e em PI, pois os educadores alegavam não possuir Estruturais: nomenclatura utilizada pelo Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e de Buenos Aires para referir os aspectos orgânicos, cognitivos e psíquicos que abatem os sujeitos. 3 Instrumentais: nomenclatura utilizada pelo Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e de Buenos Aires para referir os aspectos de linguagem, atividade de vida diária, sociais, desenvolvimento motor, aprendizagem, etc. 4 SMED (Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre): formada por 96 escolas com cerca de 4.000 professores e 1.200 funcionários. Essa estrutura atende a 55.000 alunos da Educação Infantil, do Ensino Fundamental, do Ensino Médio, Educação Profissional de Nível Técnico, e da Educação de Jovens e Adultos (EJA). 5 Educação Precoce: atendimento a bebês com problemas de desenvolvimento de 0 a 3 anos, conjuntamente com os adultos que desempenham as funções maternas e paternas para a criança. Doravante referida neste artigo por EP. 6 Psicopedagogia Inicial: atendimento instrumental de crianças com problemas de desenvolvimento de 3 a 6 anos. Doravante referida neste artigo por PI. 2 100 A educação estruturante... formação teórica e prática para acolher esse tipo de clientela na escola infantil. Em contrapartida, comprometíamo-nos a prestar capacitação aos educadores e suas equipes, o que incluía: formações teóricas, acompanhamento e observações na sala de aula mensais nas creches, além de reuniões sistemáticas com os educadores que acolheriam essas crianças. Isso inaugurou o trabalho de assessoria em EP e PI na escola infantil. De início, quando as equipes de EP e PI chegavam às escolas infantis, os educadores demandavam-lhes orientações e fórmulas mágicas para o “Mielo” (criança com mielomeningocele), o “P.C.” (criança com paralisia cerebral), o “Hiperativo”, o “Cadeirante”, a “Surdinha”, o “Ceguinho” e assim por diante. Havia muito ainda o que avançar: várias crianças com deficiência já frequentavam o ensino infantil; contudo, os educadores ainda não se referiam a elas pelo nome próprio, mas as identificavam por seus quadros clínicos. Começamos então, enquanto equipes de EP/PI, criadas nas quatro escolas especiais do Município de Porto Alegre, a propor espaços de formação e escuta dos cuidadores-educadores. O intuito era desmistificar os diagnósticos das crianças, falando, então, da Maria, do João e dos outros alunos pelo nome próprio, e também de suas histórias. Com isso, os quadros passaram a ocupar uma posição secundária, possibilitando que os educadores pensassem nas questões individuais das crianças e incluíssem atividades subjetivantes no planejamento escolar. É preciso ressaltar, no que diz respeito às crianças pequenas, que não as tomamos de forma segmentada, a partir de seu sintoma: contamos com uma rede interdisciplinar de profissionais na SMED, a qual é articulada e desarticulada conforme cada caso. Identificamos a criança que esteja apresentando um transtorno psíquico e ou atraso instrumental na escola infantil, encaminhamo-la aos serviços de saúde (psicologia, fonoaudiologia, neurologia, etc.), e propomos os atendimentos terapêuticos em EP ou PI. Além disso, realizamos interconsultas com profissionais de saúde, escutamos os pais dos alunos e construímos intervenções e estratégias com as equipes dos berçários7, maternais8 e jardins9 que atendem essas crianças na escola infantil. Berçário: B1 (de 0 a 1ano e 5 meses) e B2 (de 1ano e 6 meses a 2 anos e 4 meses) com 15 crianças. 8 Maternal: M1 (de 2 anos e 5meses a 2 anos e 11meses) e M2 (de 3 anos a 3 anos e 11 meses) com 20 crianças 9 Jardim: JA (de 4 anos a 4 anos e 11 meses) e JB (de 5 anos a 5 anos e 11 meses) com 25 crianças. 7 101 Dorisnei Jornada da Rosa Tal rede foi criada pela SMED porque também nós, os profissionais de EP/PI, precisávamos de formações, assessorias e interconsultas com várias especialidades. Ao chegarmos às creches e escolas para observar as rotinas e as crianças, víamo-nos tomados pelas demandas dos educadores e pela urgência em responder e intervir em diversos campos. Nesse contexto, identificávamos algumas posições mais frequentemente assumidas pelos educadores: 1. Impotência e paralisação Muitos eram os educadores que se paralisavam ante os sintomas sociais e à violência das comunidades; falavam de sua impotência para ajudar a criança frente a miséria, AIDS, abandono, drogas e agressividade; o mesmo acontecia frente aos “donos do tráfico” e seus filhos. Em certa ocasião, houve inclusive um “zum-zum” fantasioso sobre a creche ter sido construída como “fachada” e para lavagem de dinheiro do tráfico, mas ninguém falava explicitamente sobre isso, só sintomatizavam. 2. Rivalização com os pais e suplência parental Uma situação muito comum nas escolas infantis era a culpabilização dos pais pelos sintomas das crianças. Bater ou chorar constantemente, por exemplo, era interpretado por seus educadores como efeito de “estar acontecendo algo de ruim em casa” (sic). Consequentemente, acabavam por orientar os pais com intervenções pedagógicas e encaminhá-los à psicologia. No imaginário dos educadores, ante o suposto fracasso da função parental, caberia à escola e a seus educadores a encarnação do “pai ideal”. Instaurava-se assim uma disputa de saber entre educadores e pais: quem sabe mais sobre o que é melhor para a criança? Alguns educadores chegavam a tomar as crianças como seus filhos; numa oportunidade, encontrei numa creche um bebê que chamava a monitora de “mamã”, e estava até muito parecido com ela. O fato é que muitas vezes os discursos pedagógicos dos professores e as funções parentais confundiam-se, dificultando mais ainda o exercício de ambos. Em algumas escolas, os pais chegavam a ficar literalmente de “fora”, só sendo chamados a comparecer em reuniões e no período inicial denominado de adaptação escolar. De outra parte, muitos deles pareciam resignar-se a essa situação e renunciar ao saber parental, em nome do saber “especializado” do educador. O interessante é que isso reproduzia algo que também acontecia no interior da escola: geralmente a entrevista inicial com os pais era realizada com 102 A educação estruturante... a coordenadora ou o dirigente, ficando o educador sem saber da história da criança e seus laços familiares; seu contato com os pais se dava na porta da sala de aula, por recados na agenda, ou em reuniões pedagógicas ou administrativas das quais participavam com a comunidade escolar. É como se o bebê ou a criança fosse uma tábula rasa em que se dariam novas inscrições, negando sua filiação e matriz parental. Qual a posição que os educadores ocupavam? A de suplência parental? 3. Demanda de escuta e intervenção continuada Muitos educadores pediam a presença do assessor de EP/PI para serem escutados em suas angústias e serem acompanhados em seus trabalhos e intervenções; requeriam um terceiro para testemunho, validação e encaminhamentos que ajudassem a criança. Por exemplo, ao chegar a uma Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI), uma professora relatou-me que Maria tinha problemas, estava desatenta, batia em todos e não a ouvia. Conta que sua tia frequentava a mesma sala, que seus pais eram usuários de crack e abandonaram os filhos para a avó materna cuidar. Dona Maria, a avó, convidada a comparecer à escola para falar comigo e a professora, veio a contragosto e muito desconfiada “acerca do que queríamos com ela”. Apresentei-me, expliqueilhe que era uma conversa com o objetivo de auxiliar sua neta; deixando claro que nada lhe seria exigido. Conta-nos, então, toda a história, seu sofrimento, sua luta e os tantos netos sob sua responsabilidade; trabalhava muito e batia neles. Não deixa de relatar também sua história e de como apanhava quando criança. Ao escutarmos sua narrativa, apontei o quanto ela e Maria sofriam do abandono parental, e perguntei-lhe se já havia contado à neta sobre isso. Aos poucos Dona Maria foi “amolecendo”, pensando e colocando-se no lugar da neta. Falamos da importância de ambas terem uma escuta e encaminhamos as duas para atendimento psicológico. Ante tais situações encontradas nas escolas – e, principalmente, frente às interrogações dos educadores de como intervir com crianças com atraso de desenvolvimento, agressividade, agitações psicomotoras, fragilidades psíquicas, “surtos e pits”, “brincar solto”, negligências parentais, etc. –, começamos a incentivá-los a também participarem do processo de subjetivação das crianças pequenas (zero a seis anos). Assim foi se configurando um espaço transferencial da assessoria EP/PI com os educadores: entramos e saímos da escola, escutamos, intervimos, reconhecemos, validamos; às vezes sugerimos atividades de âmbito coletivo, outras, individual, bem como propusemos intervenções com base no que passamos a denominar de Educação Estruturante. 103 Dorisnei Jornada da Rosa Conceituamos este trabalho como Educação Estruturante visando a construir intervenções que possibilitassem às crianças deslocarem seus sintomas e angústias para o brincar, bem como a construir junto aos educadores e pais suas funções e diferenciações no campo educativo, familiar e escolar. É importante ressaltar que não se trata de tornar a educação uma terapêutica, mas de propor que a educação não se fundamente em uma concepção desenvolvimentista e pedagógica da infância; e que os cuidados tenham funções estruturantes, o que nós chamaríamos de “cuidados simbólicos”, os quais encontram suporte nas inscrições significantes parentais. Isso significa que a ordem de inscrição do educador não é a mesma dos pais; importa tomá-la como algo da posição transferencial que ocupa na vida da criança. Por isso a importância da interdisciplinaridade, independentemente da existência de problemas de desenvolvimento. O nome Educação Estruturante é inspirado em um texto de Alfredo Jerusalinsky (1999), no qual propõe três brinquedos estruturantes que promoveriam as articulações necessárias à constituição do sujeito. Através desses brinquedos, os educadores deixariam se dar livremente a função educativa: Uma função “educativa” no sentido mais amplo e mais clássico do termo. Em que nada de escolar nela se registra, nada de um padrão de saber, mas a colocação em ato de uma inscrição (Jerusalinsky, 1999, p. 159). O que é Educação Estruturante? É a que propõe ao educador ter seu olhar dirigido aos aspectos diacrônicos da criança – os de desenvolvimento como um todo –, bem como considerar o tempo sincrônico da criança –, sua estruturação psíquica e orgânica e a articulação com o desejo. Isso quer dizer que se deve considerar também seu tempo de aprender, suas condições orgânicas e sociais. No planejamento de atividades e intervenções, deve-se pensar também no aluno com transtorno de desenvolvimento e nas questões individuais de cada criança, a fim de serem englobadas no plano de trabalho com o grupo e vice-versa. Ao detectar sinais de angústia ou de inibição no brincar e no aprender, por exemplo, o educador pode intervir, promovendo o deslocamento da angústia para o brincar com jogos estruturantes ou para o criar, para, num segundo tempo, produzir efeito em sua aprendizagem e desenvolvimento. Claro que não podemos esquecer de que não se trata de interpretar a angústia da criança, relacionandoa a sua vida e personagens reais; isso seria iatrogênico e assustador. A Educação 104 A educação estruturante... Estruturante consiste em colocar em jogo algo que está impedindo a criança de se desenvolver. O educador olha, escuta, compreende, intervém, planeja e lança ao grupo, mantendo a mira na criança. Enfim, o papel do educador é articular brinquedos, jogos e produções, seja na primeira ou na segunda infância. Importante lembrar a interdisciplinaridade, através da assessoria de EP/PI para a construção conjunta dessas intervenções. Retomemos os brinquedos estruturantes propostos por Jerusalinsky (1999), para discernir melhor do que se trata de pôr em jogo na Educação Estruturante. O primeiro deles é o brincar de “está, não está”, e tem como modelo uma brincadeira que ficou conhecida, entre os leitores de Freud ([1920] 1973), como o jogo do Fort-da. Observando seu neto de um ano e meio envolvido numa atividade enigmática e repetitiva, o autor assim a descreve: a brincadeira consistia em fazer desaparecer seus brinquedos, atirando-os para algum lugar longe de sua vista, pronunciando o som “Ooo”, interpretado por Freud como “embora”. Certo dia, o objeto da brincadeira era um carretel preso à ponta de um barbante; o mesmo ato e o mesmo som se repetiam ao fazê-lo desaparecer. Porém, dessa vez, o menino inseriu um segundo ato: puxar o cordão para fazer o carretel reaparecer, pronunciando “Da” (“aqui”). No jogo, a criança colocava em cena a aparição/ desaparecimento da mãe, recobrindo com a palavra sua ausência. O brincar auxilia a fazer a operação de separação, simbolizando uma experiência vivida. Nas palavras de Jerusalinsky, é a captura, pela criança, da imagem de si mesma vista ou não vista pela mãe que desempenha um papel preponderante nessa brincadeira. Afinal, segundo ele, “esse movimento permite à criança inscrever o olhar do Outro Primordial no âmbito da linguagem” (Jerusalinsky, 1999, p. 157), possibilitando-lhe não desaparecer na ausência desse olhar unificador, já que é quem recorta sua silhueta da realidade do mundo e dos objetos que a cercam; caso contrário, a representação de seu corpo se dispersaria. Nessa mesma série de ausência-presença, Jerusalinky inclui os jogos de imitação nas gracinhas oferecidas aos adultos (“fazer bichinho”, por exemplo); os jogos de ocultamento (esconde-esconde); as negativas (virar a cara para a mãe quando está ofendido); e mais adiante o brincar de esconder. O início do ano escolar, ocasião em que bebês e crianças pequenas se separam de suas mães, é um período em que a ausência materna poderia ser simbolizada no brincar de esconde-esconde, no ir e vir da bola, no aparecer e desaparecer do educador, no atirar e buscar dos objetos, propiciando assim certo alívio para os pequeninos. As brincadeiras em frente ao espelho também podem ser momentos de evocação da ausência do olhar materno. As educadoras brincam com os 105 Dorisnei Jornada da Rosa pequeninos, lhes dizem coisas sobre a mamãe não estar ali, mas elas estão ali, brincam então com as suas imagens e as das crianças. Elas simbolizam a ausência das mamães dos bebês em enunciados: “Tua mamãe virá ao final do dia te buscar” ou “A mamãe está trabalhando para dar coisas ao nenê (sic)”. O segundo jogo estruturante é o brincar de “cai, não cai”. Na série dos jogos de borda (ou de queda), Jerusalinsky inclui: jogar brinquedos fora do berço, empurrar objetos lentamente em direção à beira da mesa até sua precipitação, espiar pelas frestas, mexer nos buracos e pequenas aberturas, andar pelas beiradas e por todo lugar que ofereça risco de queda, brincar de cair, saltar, tocar o que não pode, entrar onde não se entra, etc. O que essas brincadeiras têm em comum é a construção do espaço e do outro, que fazem limite ao corpo da criança, instituindo as bordas entre o eu e o não eu. Também entra em causa aqui uma relação dialética com o olhar materno: ele unifica o corpo da criança, a ponto de permitir-lhe apropriar-se de seu domínio motor, ao mesmo tempo em que o aprisiona a uma existência imaginária. “O ‘andar pela borda’ remete à indagação constante sobre a extensão e a aplicabilidade da ruptura que a palavra introduz na motricidade e no olhar” (Jerusalinsky, 1999, p. 158); afinal, os especialistas em brincar com as bordas sabem muito bem carregar consigo o olhar do Outro em suas aventuras. O terceiro tipo de brinquedo estruturante é o brincar de “este é o outro”, compondo o que Jerusalnsky chama de jogos transicionais. A condição de transicional, particularizada por Winnicott (1975), alude à substituição do objeto de desejo: ao invés do seio materno, a criança carrega o bico e/ou o cheirinho, etc. Na escola infantil, na fase de adaptação da criança, é importante acolher os objetos transicionais, a fim de que ela encontre amparo para fazer a passagem do âmbito materno para o âmbito social que a escola representa. Por essa razão, também é importante manter o “dia do brinquedo” – dia de trazer um brinquedo de casa – ou o “dia de criar” – levar o trabalho para casa. Não raramente, a presença desses objetos transicionais provoca certo ímpeto interditor nas educadoras, pois o que se destaca deles é seu traço de apego à figura materna ou sua face de objeto de gozo. Porém, é importante lembrar a sua face de separação: eles também são o significante da falta materna, e, como tal, um elemento mediador entre a mãe e seu filho. Graças a eles se torna possível suportar a ausência materna sem correr o risco de desaparecer. Não podemos esquecer a importância da intermediação e da palavra do educador, pois esses brinquedos estruturantes não são uma atividade ou brincadeira pedagógica. Eles só terão efeito estruturante se for algo registrado, falado e intermediado pelos educadores. Mariotto (2009) ressalta que a creche é um elemento de subjetivação para as crianças pequenas, dependendo do laço 106 A educação estruturante... transferencial e do lugar que o educador ocupa para os bebês e as crianças pequenas. Não se trata de “ser o pai e a mãe”, nem tampouco de uma suplência parental, mas de um desdobramento das funções parentais aliado ao “desejo do educador” e suas funções educativas: [...] educar e cuidar são faces moebianas do ofício da Creche, e que se assim desempenhadas, permitem ao sujeito ser suportado por essa banda, situando aí o caráter preventivo dessa função. Garantido que as condições mínimas de subjetividade estejam presentes [...] (Mariotto, 2009, p. 131). A educação, seja sistemática ou assistemática, produz efeitos de inscrição significante nas crianças pequenas, pois educar e cuidar se perpassam e são funções que estão diariamente no discurso dos educadores das creches e escola infantis. Nesse sentido, os educadores, nos seus laços com as crianças, podem propor um ordenamento simbólico, pois encarnam as insígnias da escola ou creche em que trabalham, ao mesmo tempo em que precisam ser autorizados pelos pais ou seus substitutos para exercerem essas funções junto aos pequeninos. Na perspectiva da Educação Estruturante, o que está em jogo na escola infantil é a possibilidade de intervenção no processo de subjetividade. Não se trata de o educador buscar um lugar de saber absoluto, pois, como diz Mariotto (2009), isso seria então uma alienação absoluta do outro (criança) que se pretende educar. Trata-se aí da castração dos mestres e de posições que contemplem um furo no saber, pois é nesse vazio que o ato educativo constituído se dará, diz ela. Dessa forma, os educadores são e serão convocados a falar mais sobre o que deixam a desejar, bem como de seus próprios desejos de participarem ou não do processo de subjetivação e melhor instrumentalização dos pequenos. 107 Dorisnei Jornada da Rosa O trabalho das assessorias em EP/PI é promover que os educadores infantis pratiquem um olhar singular para cada aluno, incluindo os aspectos diacrônicos, sincrônicos e sociais pertinentes a cada criança, de modo a inventar intervenções diárias que possibilitem o brincar e o aprender na forma de uma Educação Estruturante. O pedagógico e o educativo se estendem e se expandem aqui no sentido de que educar, cuidar e subjetivar podem ser também ofícios da educação infantil. REFERÊNCIAS FREUD, S. Mais além do princípio do prazer [1920]. In: ______. Obras completas. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago,1973. v. III. ______. O mal-estar na civilização [1930]. In: ______. ______.v. XXI. JERUSALINSKY, Alfredo. Psicanálise e desenvolvimento infantil. 2. ed. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999. LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise [1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979. MARIOTTO, Rosa Maria Marini. Cuidar, educar e prevenir: as funções da creche na subjetivação dos bebês. São Paulo: Escuta, 2009. WINNICOTT, D. W. O Brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. Recebido em 09/11/2011 Aceito em 23/04/2012 Revisado por Maria Ângela Bulhões 108 Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 109-118, jan./jun. 2011 TEXTOS CAMINHOS DE OFICINA NO ENCONTRO COM O OUTRO1 Ieda Prates da Silva2 Resumo: O presente texto traz uma leitura psicanalítica do trabalho em oficinas terapêuticas com adolescentes num Centro de Atenção Psicossocial, propondo que as mesmas se constituem como um dispositivo clínico quando orientadas pela escuta do sujeito. Aponta os efeitos do laço coletivo sustentado em transferência, a partir de um fazer com o outro, constituindo um endereçamento ao Outro do discurso. Através de fragmentos clínicos, expõe e analisa os efeitos estruturantes desse trabalho em oficina. Palavras-chave: oficinas, escuta do sujeito, transferência, Outro, adolescentes. WAYS OF WORKSHOPS IN THE ENCOUNTER OF THE OTHER Abstract: The present text brings a psychoanalytic view of the work in therapeutic workshops with adolescents in a Center of Psychosocial Attention, proposing that the workshop constitute itself as a clinic device when oriented by the listening of the subject. Points the effects of the collective bond sustained in transference, by doing with the other, constituting an addressing to the Other of the language. By using clinic fragments, exposes and analyses the structuring effects of this workshops. Keywords: workshops, listening of the subject, transference, Other, adolescents. Trabalho apresentado na II Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais, realizada em Porto Alegre, 30 de setembro e 01 de outubro de 2011. 2 Psicanalista; Membro da APPOA; Coordenadora de Ensino e Pesquisa do CAPSi de Novo Hamburgo. E-mail: [email protected] 1 109 109 Ieda Prates da Silva A presença de outros que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos. Hanna Arendt A s questões aqui formuladas surgem a partir de meu trabalho no CAPS Infantil3 de Novo Hamburgo, cidade do Vale dos Sinos, próxima de Porto Alegre. Focalizarei o texto na experiência do trabalho em oficinas com adolescentes, sustentado pela psicanálise, o que nos ajuda a fundamentar e a tecer ferramentas para esse trabalho, e a pensar sobre os efeitos subjetivantes que essa experiência clínica pode produzir. Parto de uma primeira premissa: as oficinas terapêuticas constituem-se como dispositivo clínico, quando orientadas pela escuta do sujeito e pelo trabalho em transferência, num contexto coletivo, atravessadas por acontecimentos de toda ordem, e através de diversas formas do fazer em oficina. As oficinas, também chamadas de ateliês, organizam-se ao redor de um fazer, que pressupõe um fazer com, se desdobrando em um fazer-se. Se pensarmos que o Eu só se singulariza no laço com o outro, o coletivo – sustentado em transferência – vem oferecer ao sujeito uma possibilidade de singularizar-se, na medida em que há uma escuta e um endereçamento. Esse endereçamento ao Outro do discurso situa o Outro nos bastidores, para usar uma expressão de Lacan, retomada por Erik Porge (1998), ao tratar do lugar da transferência na análise de crianças. É essa escuta singular no coletivo, ou seja, cada sujeito ali tomado no um-a-um, considerado na sua singularidade e na sua história, que permitirá que o fazer em oficina se constitua num encontro com o outro, portanto, num encontro consigo mesmo. Estou me referindo não só à escuta das palavras, mas à acolhida de seus corpos, de seus movimentos, de suas produções. Sujeitos que se manifestam ou se escondem, se oferecem ou se furtam ao encontro com o outro, num modo de se fazer ex-sistente, como uma nota de rodapé.4 Centro de Atenção Psicossocial Infantil é um serviço de saúde aberto e comunitário do Sistema Único de Saúde (SUS) para atendimento diário a crianças e adolescentes com transtornos mentais. 4 Na interessante expressão de S. Zabalza (2011), que propõe as oficinas como “notas de rodapé”, no sentido que Lacan lhes outorga: um fora que não é um não-dentro. Dispositivo que permite ao sujeito expressar, com o seu corpo, e o seu fazer algo que não aparece diretamente na fala, mas vem como lateral, uma abertura ou uma escansão que retira a linearidade, interrompe a continuidade e traz o novo que já estava ali, mas que não se dava a ver. Acrescenta algo e faz furo, ao mesmo tempo. 3 110 Caminhos de oficina no encontro com o outro Utilizo a palavra fazer, aproximando-a do sentido que Hannah Arendt (1997) dá ao termo reificação, ao falar da arte: Naturalmente, a reificação que ocorre quando se escreve algo, quando se pinta uma imagem ou se modela uma figura, tem a ver com o pensamento que a precede; mas o que realmente transforma o pensamento em realidade e fabrica as coisas do pensamento é o mesmo artesanato que, com a ajuda do instrumento primordial – a mão do homem – constrói as coisas duráveis do artifício humano (p.182). Agora, as oficinas terapêuticas nos mostram ainda outra via: que essa experiência no coletivo, de fazer com o outro, de fazer para o Outro – que é o Outro do social, o Outro do discurso –, de reconhecer algo de si nesse produto que sai de suas mãos e que é reconhecido pelo semelhante, essa experiência ela é produtora de pensamento e de subjetividade. A Oficina de Escrita com adolescentes, que realizo no CAPSi em parceria com uma colega da equipe, é composta por adolescentes com questões psíquicas graves e significativas restrições no processo de escolarização, na circulação e nos laços sociais. A entrada nessa Oficina (que eles intitularam Dando Letra) se faz por um desejo expresso do adolescente, ou por percebermos nele interesse pela escrita, ou, ainda, por indicação da equipe, naqueles casos em que se aposta que a escrita possa vir a se constituir como uma via de acesso a significantes que possam alçá-los a um lugar de enunciação e a uma posição no social não tão restritiva. Refiro-me àqueles adolescentes para os quais a entrada na linguagem não se deu sem percalços, e a utilização da escrita pode “transmitir uma história de exílio em relação à comunicação”, nas palavras de Leda Bernardino (2011)5: Poderíamos então dizer que a escrita aí permite des-colar do Simbólico para servir-se dele, introduz a possibilidade de aproximação com o “ser libidinal”, por este acesso à comunicação que leva à afetação do outro, permitindo fundar um laço social. Utilizar um código para comunicar-se é estabelecer laço social, é entrar no discurso. [...] A escrita, então, nestes casos, permite 5 Gentilmente cedido pela autora. 111 Ieda Prates da Silva passar da relação colada ao significante ou do gozo corporal para um outro tipo de encontro com a linguagem, com esta ordenação que é a linguagem escrita (p.11). Alguns momentos se constituem como privilegiados para se testemunhar a produção de sujeito que está em curso ali. Tomo o exemplo de um menino, que vou chamar de Ivo, na época com 16 anos, o qual mais desenhava do que escrevia durante a Oficina. Percebe-se em seus desenhos a repetição de certos traços, que parecem constituir uma escritura6. Ivo desenhava sua escola, sua casa, ele próprio, as meninas, a igreja que ele frequentava com a mãe. Sempre esteve só com sua mãe, sendo que, até os oito anos de idade, vivia preso dentro de casa, não tinha linguagem, não brincava nem frequentava a escola. Pois bem, a cena a que me remeto se deu quando ele iniciava a escrever diretamente, passando do desenho ao texto. Sua escrita era até então contínua, sem cortes, sem sinais de pontuação. Nesse dia, ele escreve e depois vai ler para os colegas seu texto. Ao iniciar a leitura, está falando de sua escola, das notas que recebeu no boletim, etc. Começa a ler e, ao terminar a primeira frase, se dá conta, levanta a cabeça do papel, olha para o colega a sua frente e pede: “Me dá o lápis!” Pega o lápis, põe um ponto na frase, dizendo: “Ponto!” Segue lendo, colocando – com o lápis que lhe alcançou o colega – ponto nas frases, introduzindo intervalos, conferindo sentido ao texto. Esse sentido, que é dado a partir de um código compartilhado com o outro, ele o constrói nesse momento da leitura, do encontro com o olhar e a escuta de seus semelhantes, querendo se fazer entender por eles. O leitor, endereçamento necessário de uma escrita, se constitui em ato, nesse momento em que olha o colega e diz: “Me dá o lápis!” (como se dissesse: “o teu lápis, com o qual tu escreves letras, que são as mesmas que eu utilizo, mas para dizer as minhas palavras, o meu texto”). Seguindo adiante na leitura, Ivo inicia outra frase e, dando-se conta de que agora se trata de outro assunto, levanta os olhos novamente para os colegas, para, e diz: “Outra coisa”; e recomeça a frase, anunciando assim que vai falar de um novo assunto. Ou seja, ele faz aqui a alteridade. O Outro (do social) se faz presente para ele no momento em que lê seu texto na presença desses outros, seus pares, numa relação sustentada em transferência, que permite que os Como aponta Chemama: “O desenho não seria sempre marca, tendo que fazer função de traço, inscrição de um sujeito que precisa fazer, ao mesmo tempo, separação em relação ao Outro?” (Chemama, 1991, p.23). 6 112 Caminhos de oficina no encontro com o outro colegas de oficina possam operar como interlocutores, como testemunhas, avalizando sua produção textual, emprestando suas ferramentas (ele tinha o seu próprio lápis, mas vai pedir o do colega para pontuar seu texto) para que ele torne seu escrito compreensível para esse outro, pois já há um terceiro que faz marca ali. O movimento de pegar o lápis, acompanhado da demanda endereçada ao outro, não é mera ação motora, mas se constitui como um Ato, na direção que Lacan ([1967-1968] s/d) aponta: como produtor de um novo sentido, a partir do deslocamento ou da produção de um significante que situa o sujeito em outra posição. Considero que a palavra “ponto”, quando Ivo a exclama repetidamente, já não se trata apenas do ponto gramatical, mas de um verdadeiro ponto de capitonné, isto é, ponto de enodamento dos três registros: simbólico, real e imaginário. Não se trata de simples aquisição cognitiva, mas de produção de sujeito, no coletivo. Dá-se por efeito da operação de diferenciação/identificação aos pares, numa relação em transferência que possibilita inscrever o terceiro. Ana Costa (2007), trabalhando o tema da transferência, nos diz: A transferência não constitui somente a confiança em alguém que saberia sobre as condições dos padecimentos sintomáticos daquele que se queixa de um padecimento qualquer. Muito mais que isso, ela constitui a hipótese de um sujeito a um saber que se estabelece a partir do funcionamento da pulsão. Ou seja, sem a constituição de um sujeito a este saber, ele funciona “sozinho”. Este saber resulta de uma certa equivalência entre a máquina das pulsões e a máquina da linguagem. Num princípio, tanto a linguagem quanto a pulsão são inscrições que nos vêm do Outro, precisando de um percurso para que um sujeito ali se constitua. Ou seja, a priori é um saber sem sujeito, sendo este o sentido da alienação a essa máquina. A atribuição de um sujeito a este saber – que Lacan denominou sujeito suposto ao saber – condensa toda a importância do trabalho na transferência (p. 148). Um pouco anterior à cena relatada acima, Ivo havia introduzido na sua escrita o vocábulo “eu”, onde antes sempre aparecia seu nome em terceira pessoa. A seguir, alguns extratos de seus escritos: 1) O Ieda eu vou morar a casa da B. (menina pela qual está apaixonado) porque a B. é legal. O Ieda a minha mãe não deixa pra mim ir no BIG. O S. (nome da mãe da menina que ele gosta) eu to prometendo pra mim morar a (tua) casa. Sabe que achei ideia eu vou pidi serviço a mãe da B. prá mim arrumar a 113 Ieda Prates da Silva minha vaga do serviço. O Ieda eu gostei a casa da B. O Ieda eu não quero morar mais a minha casa, mais nunca mais porque a minha mãe não deixa sair algum lugar. A minha mãe não deixa fazer amigo. Eu to combinado eu vou morar a casa da B. É sério eu vou embora. Eu to falando muito sério. Eu to falando verdade. Eu to falando ideia. (E termina, colocando seu nome completo e a data.) 2) Eu fiquei triste, minha mãe não deixou ir no passeio. Não sei qual motivo? Tem que ajuntar papelão? (Sua mãe é catadora.) 3 ) O J. (colega da oficina) tu pode fazer pergunta para mim. A) Você tem namorada (Sim) ou (Não) B) Você já beijou a boca das guria (Sim) ou (Não) C) Você foi a cama a tua namorada (Sim) ou (Não) D) Você gosta das guria mais bonita (Sim) ou (Não) E) Você quer ir no cinema (Sim) ou (Não) F) Você quer namorar as guria (Sim) ou (Não) 4) Eu sonhei a B. Eu tava com medo eu tremi tremi eu sonhei eu queria morar a casa da B. Eu sonhei a mãe da B. me dando carona eu mixei nas cueca eu acordei mixo das cueca. Eu sonhei eu tava andando mão dada das guria. Outro ponto que quero destacar é a particular relação com o tempo que se dá nas oficinas. Trata-se de outro tempo, que não o cronológico, embora, é claro, não estejamos totalmente alheios à marcação do relógio. Nesse sentido, vamos na contramão daquilo que Foucault (1987) denuncia como tempo disciplinar: [...] um tempo integralmente útil, com a anulação de tudo o que possa perturbar e distrair. [...] O que significa que se deve procurar intensificar o uso do mínimo instante, como se o tempo, em seu próprio fracionamento, fosse inesgotável; ou como se, pelo menos, por uma organização interna cada vez mais detalhada, se pudesse tender para um ponto ideal em que o máximo de rapidez encontra o máximo de eficiência (p.130-31). Esse imperativo, a que estamos – nós, os neuróticos – facilmente submetidos na modernidade, é subvertido na Oficina que denominamos Fora da Casinha, que é uma oficina que consiste em andar pela cidade. O tempo que leva para que se reúnam, discutam aonde querem ir, argumentem para convencer o colega, ou aceitem a sugestão do outro, até chegarem ao consenso, pode ocupar a maior parte da oficina, correndo-se o risco de nem conseguirmos sair do CAPSi. 114 Caminhos de oficina no encontro com o outro Ali, o tempo se expande, se alarga: nas risadas, nos assuntos que se atravessam e se atropelam, na fala delirante e ininterrupta de um dos adolescentes, na dificuldade para considerarem a opinião do outro. Assim, por exemplo, esse menino, que fala sem nenhum intervalo, repetindo programas de televisão, se agitava com a demora e a dificuldade para entrarem num acordo, e me dizia, um tanto brabo: “Vamo, Ieda, vamo nós, deixa eles!”, pegando-me pela mão e propondo uma saída (no duplo sentido) que desconsiderava o coletivo, o lugar terceiro, representado ali na oficina por um acordo mínimo entre eles. A circulação pela cidade, entre pares, para esses adolescentes tratados como criancinhas, que são trazidos pela mãe, que não andam sozinhos, produz encontros e desencontros surpreendentes. Estranhamento e acolhida se intercalam, nos encontros com os transeuntes, com os lojistas, com o guarda da esquina, com os clientes da livraria. Falam muito alto ou emudecem, sentam na soleira da porta, pegam as revistas e querem levá-las embora; enfim, uma série de situações inusitadas, que exigia inicialmente constante mediação da parte dos terapeutas que os acompanham, mas que, com o exercício da saída à rua e do encontro com o diferente, mediado por uma palavra em transferência, têm produzido movimentos que nos surpreendem, e nos levam a reconhecê-los em outra posição subjetiva, diversa daquela em que, sem nos darmos conta, os estávamos colocando. Trago um exemplo deste efeito de surpresa, que alguns acontecimentos em oficina produzem em nós, os terapeutas: uma das adolescentes, que chamarei de Ana, a qual apresentava dificuldade para aceitar que não poderia pegar e levar as revistas que quisesse, sem pagar, em um determinado dia em que vamos novamente ao sebo, mostra-me algumas moedas que tem na mão, dizendo que vai comprar revistas. Ocupo-me de mostrar-lhe as revistas que “cabem dentro de seu orçamento”, mas ela não se decide por nenhuma. Distraio-me, acompanhando o movimento e a curiosidade de outros adolescentes da oficina, e, quando vejo, Ana traz nas mãos, muito contente, uma revista, dizendo que vai levá-la. Noto que custa um pouco mais do que o valor que ela possuía, e lhe digo: “Esta aí, não dá!”. Ela me responde que “dá, sim!”, mas eu insisto. Nesse momento, a dona da loja, que está no caixa, me informa: “É dela, ela já pagou a revista. Eu lhe dei um desconto.” Ana me surpreende, em outra posição diferente daquela em que eu a supunha. E me pego a repetir a posição da mãe, que reluta ou se recusa a reconhecer o filho em outro lugar, que não mais o de sua criancinha. Nesse episódio, Ana me relembra também que é na ausência que o sujeito desponta: é no momento em que me ausentei, que saí de cena, que se abriu o espaço para que ela escolhesse e fosse à luta para levar sua revista, para afirmar o seu desejo. 115 Ieda Prates da Silva Sua posição de sujeito não passa despercebida – e é reforçada, inclusive – pela dona da loja, que, a partir desse dia, muda o endereçamento de sua fala. Antes, quando entrávamos na livraria, ela costumava dizer: “As revistas que ela gosta estão na prateleira tal.” Agora, quando chegamos lá e Ana começa a procurar, a dona do sebo diz, olhando para ela: “As revistas que tu gostas estão na prateleira tal”. Há uma descoberta do mundo, uma observação do semelhante e uma apropriação do corpo – enquanto corpo adolescente (portanto, não mais entregue à mãe) – que testemunhamos ir se constituindo nessas andanças pela cidade. Assim, percorremos praças, museus, livrarias, cafés, shopping; ou jogamos bola numa praça ou parque, assistimos a um vídeo turístico sobre a cidade; ganhamos mapas, que passam a fazer parte do acervo e do instrumental da oficina. Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois, como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens (Arendt, 1997, p. 62). Numa saída ao centro, Beto quis levar o mapa de Novo Hamburgo com ele. Neste, estão localizados os principais pontos turísticos do município. Havíamos trabalhado com o mapa, localizando a rua do CAPSi e o endereço de cada um deles ou, pelo menos, o bairro em que moram. Nesse dia, Beto quis levar o mapa e foi abrindo-o e identificando, ao passar por elas, as coisas que localizara no mapa. Mas se mostrava surpreso quando encontrava, na realidade da cidade, o que estava representado no papel. Frente a uma grande escadaria do centro, olhava-a, e ria, apontando ora para o desenho no papel, ora para a concretude da escada: “Olha a escadaria, olha!, Tá aqui a escadaria!” (no mapa); “Tá ali a escadaria!” (apontava para ela), surpreso de encontrá-la sob duas formas diferentes (a escada no real e sua representação gráfica). Esse mesmo adolescente, numa ida à praça para jogarem futebol, se recusou a jogar, de início, dando voltas e voltas ao redor do campo em que se divertiam meninos da oficina e outros que estavam pela praça. Até que ele conseguiu se aproximar e entrar no jogo (pacientemente estimulado pelo Residente e Professor de Educação Física, que acompanhou um tempo essa oficina). É um adolescente que apresenta uma estrutura paranoica. No caminho de volta, se posicionou ao meu lado, e começou a falar: B – “Tá louco... aqueles caras... tá louco!....” I – “Tu jogaste com eles”. 116 Caminhos de oficina no encontro com o outro B – “Eu não conheço eles, tá louco!....” I – “Mas tu podes conhecer, podes te apresentar, dizer teu nome...” B – “Eu não, não conheço eles. Eu não me misturo. Eu não conheço essa gente”. I – “Mas, se pode conhecer gente nova, não?” B – “Aí a casa cai! Não! A casa cai! Eu não me misturo.... (pequena pausa) Tu acha que eu devia, Ieda?” Sua dúvida, que antes era a certeza que enunciava sua estrutura psíquica, abre uma brecha na posição paranoica, a qual, aliás, predomina nas relações sociais vigentes: nós também não nos misturamos. O outro (mesmo que seja o vizinho) é mais facilmente sentido como estranho do que como semelhante, e, do “estranho” para o “perigoso” é meio passo. A radicalidade com que a rivalidade fraterna se estende para os laços sociais não permite que possamos conviver com as diferenças, aceitando, assim, que há diversos modos do viver. Mas a dúvida que a experiência em oficina, sustentada em transferência, permite a Beto formular, desponta uma fresta nessa percepção do mundo como hostil e ameaçador: pequenina, mas preciosa fresta! As oficinas, das quais pude aqui trazer apenas alguns fragmentos, propõem outra lógica, que se sustenta por uma ética, uma clínica e uma política que são indissociáveis. Em tempos em que retornam e nos rondam os fantasmas das políticas higienistas, urge se afirmar, no cotidiano, a dimensão profundamente humana da escuta do sujeito na clínica das instituições de saúde mental. Concluo, me servindo das palavras de Analice Palombini (2005): Se a clínica que a gente opera [...] aposta numa dimensão não transparente da subjetividade, que resiste à captura, que se afirma como resistência; se nossa clínica abandona a pretensão de transparência, mantendo aberto o campo da conflitualidade próprio a essa subjetividade definida como resistência, então, nossa política, conforme a essa aposta, tomará distância da perspectiva de governo das almas, de disciplinarização dos corpos, de que o estado moderno incumbe seus profissionais. Nossa política caminhará na direção nômade que segue os caminhos desviantes da invenção [...], e nos ensina a fazer valer mais em nossas vidas a mesma aposta que fazemos na vida daqueles a quem se dirigem os nossos serviços: os loucos, os tortos, os torpes, os feios, os pobres, os pardos, todos esses desviantes que habitam também em nós e que podem nos conduzir por caminhos que ainda não ousamos explorar (p. 5). 117 Ieda Prates da Silva REFERÊNCIAS ARENDT, H. A condição humana. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. BERNARDINO, L. Pulsão, letra, significante e gozo na clínica do autismo. Trabalho apresentado no Congresso Internacional sobre Autismo, da Associação Psicanalítica de Curitiba. Curitiba, de 24 a 27 de agosto de 2011. (não publicado) CHEMAMA, R. O ato de desenhar. In: TEIXEIRA, A. B. do R. (Org.) O mundo, a gente traça: considerações psicanalíticas acerca do desenho infantil. Coleção Psicanálise da Criança. Salvador: Ágalma, 1991, p.11-26. COSTA, A. Uma clínica aberta. In: APPOA. Psicose: Aberturas da Clínica. Comissão de Aperiódicos da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (org.). Porto Alegre: APPOA/ Libretos, 2007, p.147-54. FOUCAULT, M. Vigiar e punir. 25. ed. Petrópolis: Vozes, 1987. LACAN, J. O Seminário: o ato psicanalítico [1967-1968]. Publicação da Escola de Estudos Psicanalíticos, para circulação interna. São Leopoldo: Ed. Oikos, s. d. PALOMBINI, A. Acompanhamento terapêutico: dispositivo clínico-político. Trabalho apresentado no Fórum sobre Acompanhamento Terapêutico, UFRGS. Porto Alegre, 17 de novembro de 2005. PORGE, E. A transferência para os bastidores. In: Littoral: A criança e o psicanalista. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998. ZABALZA, S. Nota ao pie: una perspectiva topológica del Hospital de Día. Revista Imago Agenda, nº 156, dezembro de 2011. Disponível em: http// www.imagoagenda.com/articulo.asp. Acesso em 26.02.2012. Recebido em 08/12/2011 Aceito em 07/01/2012 Revisado por Deborah Nagel Pinho 118 Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 119-132, jan./jun. 2011 TEXTOS IMPLICÂNCIA OU BULLYING?1 Lúcia Alves Mees2 Resumo: Através da noção de construção da fantasia, o texto indaga sobre o bullying e suas relações com a puberdade e a adolescência. A retomada de parte da história da escola – e dos discursos que a circunscrevem – contribui para interpretar a implicância entre os pares e suas implicações. Palavras-chave: bullying, adolescência, fantasia. PEEVE OR BULLYING Abstract: Through the notion of fantasy construccion, the text questions about the act of bullying and its relation with puberty and adolescence. The remake of part of the school history – and the discourse that circumscribes it – contributes to interpret the teasing between the subjects and their implications. Keywords: bullying, adolescence, fantasy. Este texto é a versão modificada do publicado pela Revista da Associação Psicanalítica de Curitiba, nº 24: Abusos na infância, em 2012. 2 Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). E-mail: [email protected] 1 119 119 Lúcia Alves Mees U ma jovem analisante fala sobre uma cena, entre ela e o irmão, que faz coro com a indagação do título. O irmão coloca o pé sobre o colo dela. A analisante reclama do odor dos pés. Ele insiste. Ela se levanta e faz menção de fotografálo para expor no Facebook. Ele diz que não, ela persiste. Ele joga as meias sujas sobre ela e as esfrega no rosto da analisante, machucando-a. Ela chora, vai para o quarto e eles ficam sem se falar por um tempo. Preocupada com o futuro da relação entre ela e o irmão, a analisante se pergunta se essas brincadeiras entre irmãos ajudam a construir uma relação de parceria e se, consequentemente, contribuiriam para eles seguirem sendo amigos pela vida afora, ou se elas significam ruptura e prenunciam o afastamento entre eles. Na cena específica, é claro que a violência que incide sobre o corpo, infligindo dor, põe fim ao jogo fraterno. Por ora, apenas sublinharemos o corpo e a dor como balizas para o dentro e fora da relação fraterna. A chamada implicância entre irmãos se apresenta na cena em suas características principais, sobretudo naquilo que indaga a implicação de cada um. O verbo implicar contempla três empregos: o de “ter implicância com” (“o diretor implica com aquele funcionário”), o de comprometer ou envolver (“o agente implicou o chefe no escândalo) e produzir como consequência (“autonomia implica responsabilidade”). Pois a polissemia do verbo implicar nos leva a imbricar o zoar, com o envolvimento e a produção de uma responsabilidade. São esses três aspectos que as cenas de implicância trazem consigo. A reciprocidade da implicância permite que ambos dirijam um ao outro a pergunta sobre a implicação de cada irmão na existência do outro. A possibilidade de jogar/brincar com a rivalidade pode ser elaborativa, assim como impeditiva, do laço. Quando um dos envolvidos deixa de ocupar o lugar de implicante/ implicado, introduzindo a ruptura que interrompe o “entre dois”, a implicância talvez não mereça mais esse nome. Algo se excluiu da cena. A possibilidade de implicação se esvazia. Seja diante dos pais ou não, a cena da implicância se dirige ao desejo parental, implica-o, indagando o amor ou o reconhecimento. A pergunta sobre quem tem razão parece perpassar os jogos dos irmãos ou, ainda, “quem é o escolhido?” Ou mais ainda: “como situas teu desejo diante disso?” O terceiro para o qual a cena se endereça é decisivo no desfecho dela. Pois a intervenção do terceiro (Freud e Lacan demonstraram sobre o pai e seu Nome) requer o corte com o imaginário da escolha binária, assinalando o lugar singular de cada um a partir do desejo que o caracteriza. A rivalidade que supõe um “ou eu ou ele(a)” pode se elaborar quando a resposta não atende ao registro imaginário da escolha que exclui o outro, mas aponta para o registro simbólico que supõe o lugar no qual cada um precisará se ocupar, ou seja, implicar-se. 120 Implicância ou bullying? A implicância entre colegas da escola frequentemente encena o mesmo: quem detém o lugar privilegiado diante do amor e do reconhecimento do Outro? Qual o desejo do Outro que se lê em sua reação? Mas há também a ruptura com a pergunta, anunciando o bullying, suas batidas e humilhações, e o que ele significa enquanto violência e, consequentemente, de fratura do simbólico. Esse enlaçamento entre corpo, dor, humilhação, marcas e batida foi assinalado por Freud, no célebre texto Uma criança é espancada – uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais ([1919]/1976). Lacan ([1957-58]/1999)3 retoma esse escrito para ponderar que ele precisaria ser mais trabalhado, de modo a não ser associado exclusivamente com a encenação distorcida da cena edípica. Será a partir do Édipo e seu mais além, ou aquém, que pretendemos abordar a temática da implicância e do bullying. Freud divide a fantasia de espancamento em três tempos. O primeiro, nem sádico nem masoquista, acompanha a tenra infância e está associado ao complexo de intrusão, ou seja, ao ódio da criança pelo irmão, ou irmã menor, que atrai os pais. A frase que caracteriza esse tempo é: “meu pai bate na criança que eu odeio”. A fantasia é pautada pela demanda de amor do pai e ser batido significa a ausência desse amor. Se o irmão é o batido, a criança que fantasia se afirma como amada. Na segunda fase, o prazer que até ali não se manifestara se fará presente. A criança que apanha é a mesma que fantasia, e o texto é: “sou espancada pelo pai”. A fantasia é masoquista, acompanha a masturbação, é inconsciente e só se mostra na construção de uma análise. O sentimento de culpa seria responsável pela reversão da fantasia, transformando-a em masoquista. O amor ao pai do primeiro tempo suscita a culpa da criança e a regressão à fase analsádica, transformando o aspecto sexual do coito em apanhar nas nádegas como seu correlato. A terceira fase, como a primeira, é consciente, aquele que fantasia não faz parte da cena, pois ela é indeterminada: quem bate pode ser um professor ou qualquer autoridade, e as crianças batidas não referem alguém específico. Para Freud, esse tempo é sádico na forma, mas a satisfação que produz é masoquista. Lacan, no seminário sobre as relações de objeto ([1957-1958] 1999), retoma a fantasia descrita por Freud, destacando que na primeira fase se trata de 3 Sobre o texto e seu contexto histórico e conceitual veja também Mees (2011). 121 Lúcia Alves Mees uma comunicação de amor, [...] que se declara para aquele que é o sujeito central e na coisa que ele recebe [...] que é a expressão de seu voto, de seu desejo, de ser preferido, de ser amado (Lacan, [1956-1957] 2008, p. 64). A rivalidade entre os irmãos governa a cena, o chamado por Freud de “complexo de intrusão”. Lacan inclui a associação desse tempo e dos demais com a inscrição do simbólico. A relação com o irmão ou irmã menor, com um rival qualquer, não assume seu valor decisivo no plano da realidade, mas, por se inscrever num desenvolvimento totalmente diferente, num desenvolvimento da simbolização, ela o complica e exige uma solução totalmente diversa, uma solução fantasística [...]. A criança descobre a chamada fantasia masoquista de fustigação, que constitui, nesse nível, uma solução bem-sucedida do problema (Lacan, [1957-1958] 1999, p. 250). A primeira dialética da simbolização da criança, a da primeira fase da fantasia de espancamento, reitera Lacan, se dá na relação com a mãe, para além das satisfações ou frustrações, mas a partir da descoberta do que é objeto do desejo dela. Tanto para um sexo quanto para o outro, o tema do outro como desejante está ligado à posse do falo: “Freud instaura ali um significante-pivô, em torno do qual girava toda dialética do que o sujeito tem de conquistar por si mesmo, por seu próprio ser” (idem, p. 248). O falo entra no jogo a partir do momento em que o pequeno sujeito aborda o desejo da mãe e, mais ainda, ele entra no sistema significante tão logo o sujeito tenha de simbolizar, em oposição ao significante, o significado como tal, isto é, a significação. A presença do falo conduz à tentativa de saber o que ele significa, conhecer o desejo que ele refere. O desejo da mãe não é simplesmente, nesse momento, o objeto de uma busca enigmática que deva conduzir o sujeito, no decorrer de seu desenvolvimento, a rastrear esse sinal, o falo, para que então este entre na dança do simbólico, seja o objeto preciso da castração e, por fim, seja entregue a ele sob outra forma, para que ele faça e seja o que se trata de fazer e ser. Ele o é, ele o faz, mas 122 Implicância ou bullying? aqui, estamos absolutamente na origem, no momento em que o sujeito se confronta com o lugar imaginário onde se situa o desejo da mãe, e esse lugar está ocupado (idem, p. 249). A fantasia de espancamento, em seu primeiro momento, fornece a versão sobre o desejo da mãe pelo falo, conferindo ao irmão o lugar de representante do objeto desse desejo, bem como a encenação da retirada dele dessa posição ao ser batido. O segundo tempo da fantasia está ligado ao Édipo e dá conta da relação privilegiada da menina com o pai. Ela é espancada como signo do amor do pai por ela. A menina recorre à figuração da etapa anterior para exprimir tal fantasia, que nunca vem à luz, exceto em análise. A fustigação não atinge a integridade real e física do sujeito. É justamente seu caráter simbólico que é erotizado como tal, e o é desde a origem [...]. O caráter fundamental da fantasia masoquista [...] é a existência do chicote. É isso que, em si mesmo, merece ser por nós acentuado. Estamos lidando com um significante que merece ter um lugar privilegiado na série de nossos hieróglifos, antes de mais nada por uma simples razão, a de que o hieróglifo corresponde àquele que segura o chicote designa desde sempre o diretor, o governador, o mestre/senhor (Lacan, [1957-1958] 1999, p.251). Apesar das alterações da primeira para a segunda fase da fantasia, relativas ao objeto das batidas, e sua significação no que tange ao amor, o chicote é conservado. Ele é mantido como material do significante, o objeto chicote, indicador do lugar do Outro que o empunha (a autoridade) e persiste para assinalar a relação do sujeito com o desejo do Outro. O terceiro tempo do espancamento será decisivo no desfecho da construção da fantasia e, consequentemente, na simbolização, efeito da inscrição do significante, e da constituição do objeto de desejo, efeito da relação ao desejo do Outro. Nessa fase, pode-se colher a construção da fantasia, quanto anunciar a fantasia perversa. Num terceiro tempo, e depois da saída do Édipo, não resta outra coisa da fantasia senão um esquema geral. Introduz-se uma nova transformação, que é dupla. A figura do pai é ultrapassada, transposta, remetida à forma geral de um personagem na posição de bater, onipotente e despótico, enquanto o próprio sujeito é 123 Lúcia Alves Mees apresentado sob a forma das crianças multiplicadas, que já nem sequer são de um sexo preciso, mas formam uma espécie de série neutra (Lacan, [1957-1958] 1999, p. 247). O que se destaca da cena na fantasia posterior à dissolução edípica é um objeto, no caso, representado pelo olhar terceiro daquele que observa o indeterminado do bater e do apanhar. E isso mostra bem o caráter de dessubjetivação essencial que se produz na relação primordial, e resta essa objetivação, esta dessubjetivação em todo caso radical, de toda estrutura em cujo nível o sujeito não mais se encontra a não ser enquanto uma espécie de espectador reduzido ao estado espectador ou simplesmente de olho, quer dizer, o que sempre caracteriza no limite e ao ponto da última redução toda a espécie de objeto, É preciso menos, nem sempre um sujeito, mas um olho para vê-lo, um olho, uma tela sobre a qual o sujeito é instituído (Lacan, [195657] 2008, p.65). De outro lado, possui diferente significação a indeterminação dos personagens na fantasia perversa, pois “Freud marca com precisão nesta ocasião que é através dos avatares e da aventura do Édipo, que devemos considerar a questão, o problema da constituição de toda perversão” (idem, p. 66). Pois no fantasma perverso se trata de um congelamento do chicote, de modo que ele se constitua como fetiche e não como significante. Paralisação no objeto fetiche, fixando a crença no falo materno que a faria gozar. O fantasma perverso tem uma propriedade que agora podemos destacar. Que é esta espécie de resíduo, de redução simbólica que progressivamente eliminou toda a estrutura subjetiva da situação, para só deixar emergir aí alguma coisa inteiramente objetivada e, afinal de contas, enigmática [...]. Encontramo-nos aí no nível do fantasma perverso, de alguma coisa que tem, ao mesmo tempo, todos os elementos, mas que perdeu toda a significação, ou seja, a relação intersubjetiva, é de alguma forma a manutenção em estado puro do que se pode chamar de significantes em estado puro, sem a relação intersubjetiva, os significantes esvaziados de seu sujeito, um tipo de objetivação dos significantes da situação enquanto tal (idem, p.65). 124 Implicância ou bullying? As fases da fantasia de espancamento, assim, descrevem a constituição do sujeito ou, mais exatamente, outorgam à fantasia o estatuto de fundadora de um sujeito. A fantasia, construída a partir do desejo do Outro (no exemplo freudiano “Quem e por que bate?”), constitui a matriz para as relações do sujeito com os outros e o mundo. Mediadora entre o irrepresentável, a fantasia compõe uma versão para o real, através de um objeto que dirige o desejo. Dito isso, retomamos a indagação do título, somando aqui a pergunta sobre o que o bullying pode dar a escutar sobre a fantasia de espancamento e, por sua ocorrência se dar no interior da escola, se esta na atualidade possui alguma peculiaridade que relacione sua associação com tal violência. O século XX foi marcante no que tange às mudanças relativas à autoridade (Mees, 2001). Se os princípios militares e religiosos guiaram a disciplina nas escolas no passado, hoje os fundamentos ditos não falocêntricos marcam as relações hierárquicas, inclusive as de professor e aluno. O Estado ou o divino não são mais balizas para a pedagogia. O mestre/professor, que guiava por estágios que pretendiam quase a perfeição, atualmente está mais para parceiro amigável do que figura de autoridade diante de seus alunos. Combina-se aí um vasto ganho de liberdade, com o esmaecimento da alteridade demarcadora da diferença de lugares. A escola atual, em vários aspectos, está longe daquela do final do século XVIII descrita por Foucault: [A organização linear na escola] é sem dúvida de origem religiosa. [...] A ideia de um ‘programa’ escolar que acompanharia a criança até o termo de sua educação e que implicaria de ano em ano, de mês em mês, em exercício de complexidade crescente traz o tema da perfeição, em direção à qual o mestre exemplar conduz, tornase entre eles o de um aperfeiçoamento autoritário dos alunos pelo professor (Foucault, 1997, p. 155). De outro lado, algumas similaridades com a atualidade se afirmam, como a do controle sobre o tempo, através da compartimentação do saber, visando organizar durações rentáveis. Esse é o tempo disciplinar que se impõe pouco a pouco à prática pedagógica – especializando o tempo de formação [...]. Recolhe-se a dispersão temporal para lucrar com isso e conserva-se o domínio de uma duração que escapa. O poder se articula diretamente sobre o tempo: realiza o controle dele e garante sua utilização (Foucault, 1997, p. 154). 125 Lúcia Alves Mees A escola, assim, segundo o autor, é um exemplo do fenômeno da aplicação das técnicas de apropriação do tempo das existências singulares, de controle desse tempo, de tentativa de reger os corpos e as forças, a fim de realizar uma acumulação da duração que busca o lucro ou a utilidade. Tal processo tem origens e localizações diversas, ao mesmo tempo em que se apoiam uns nos outros, esboçando pouco a pouco um método geral. Walter Benjamin (2009), em uma de suas primeiras produções dirigidas à educação, em 1915, considera que a produção passou a substituir a criação, atendendo à demanda do mundo do trabalho. A falsificação do espírito criador em espírito profissional, que vemos em ação por toda parte, apossou-se por inteiro da universidade e a isolou da vida intelectual criativa e não enquadrada no funcionalismo público. O desprezo, típico de casta, por grupo de artistas e eruditos livres, estranhos ou até hostis ao Estado, é um sintoma claro e doloroso dessa situação (idem, p. 39). Lyotard (2008), mais tarde, junta-se a essa tese, enfatizando o aspecto mercantilista da escola. Trata-se aí de subjugar a escola ao mercado e aos ditames do capital. Para ele, o estatuto do saber se alterou depois dos anos 50 e 60. A partir daí, não se tratava mais da formação no sentido amplo, visando à condição de cidadão de cada aluno e, sim, do saber que passa a ser vendido e consumido de acordo com as regras de produção: “O princípio do desempenho [...] tem por consequência global a subordinação das instituições do ensino superior4 aos poderes constituídos” (idem, p. 91). Silviano Santiago (2008), no posfácio do livro de Lyotard, chama atenção para outra consequência da mudança na relação com o saber: a diferença na relação entre aluno e professor. Pondera o autor que o saber cada vez mais prolifera nas bibliotecas, laboratórios de pesquisa, em museus, em arquivos públicos, além da informatização desses dados, levando aluno e professor a não possuírem um desnível entre si no acesso à informação. Observe-se que o autor se refere às instituições de ensino superior, entretanto, parece-nos que sua tese principal pode ser transposta para a educação de modo geral. O texto de Lyotard foi encomendado pelo Conselho das Universidades do Quebec, portanto, por isso a ênfase no terceiro grau. 4 126 Implicância ou bullying? [No passado] o indivíduo tinha de se entregar, desde a mais tenra interiorização do saber, tanto de um saber universal e multidisciplinar básico, quanto de saber disciplinar e superior. A escola e os professores, donos de uma informação completa do saber, eram os principais responsáveis por esse trabalho junto aos alunos que, por definição, tinham informações incompletas. O desnível justificava a autoridade do professor e a obediência do discípulo (idem, p.128). id a d e , a u m le n t o e g r a d a t iv o p r o c e s s o d e Essas breves considerações sobre a educação servem aqui para assinalar a progressiva alteração das relações de autoridade na escola, assim como a crescente incidência do mercado (seja ele de trabalho ou de capitais) na determinação dos rumos da pedagogia. Percebe-se a educação acompanhando os grandes eixos organizadores da cultura: das promessas religiosas, passando pelo apogeu da ciência no século XIX, até o alargamento do discurso capitalista, principal guia atual na determinação das relações. O espaço do saber contemporâneo, o espaço da técnica, ou melhor, das tecnociências, pois estas se inscrevem mais facilmente no discurso capitalista do que no discurso universitário, está em ruptura com o espaço, o universo infinito das ciências que se inscreviam no lugar do discurso do mestre, em substituição ao discurso religioso. A especificidade maior desse discurso capitalista é que [...] este não produz nenhuma promessa do supereu coletivo, a não ser essas ‘promessas de nada’, evocadas por Lacan no fim da última guerra mundial (Rassial, 1997, p.99). Tal ausência de promessa-guia tem o efeito de desorientação, sobretudo para os adolescentes, na medida em que [...] as tecnociências, capitalistas e pós-modernas, consagram o adolescente a uma errância sem objetivo e sem esperança, a não ser aquele – melancólico, para qualificar o gozo – de ‘perder-se’ em redes não orientadas (idem, p. 99). Isso porque, [...] para permanecermos em nosso lugar, não basta que um lugar seja designado, é preciso que ele tenha validade garantida por um 127 Lúcia Alves Mees saber atribuído a um sujeito e que ele esteja associado a uma promessa de gozo ou de possibilidade de gozo (idem, p.98). Qual promessa orientaria o jovem na direção de um mais além? Quem encarnaria o lugar do saber, interditor e proporcionador de um horizonte de gozo? Pois, se aquilo que justifica a escola se torna exterior a ela (a produção, o sucesso), como seria reconhecida uma autoridade intrínseca àquele que representa a instituição, ou seja, o professor? Se o saber está diluído em várias fontes de conhecimento, como a escola guardaria seu lugar de transmissora desse saber e, portanto, de reconhecimento? São essas relações de prestígio, sucesso e valor que o bullying parece denunciar. O popular, o nerd, o loser, a pati, designam aqueles que ganham lugar de fracasso ou o avesso dele, sobretudo no ambiente escolar. O bully, o valentão, é outra figura na galeria de personagens que as crianças e jovens vivenciam hoje no colégio. O termo bullying compreende todas as formas de atitudes agressivas, intencionais e repetidas, que ocorrem sem motivação evidente, adotadas por um ou mais estudantes contra outros, causando dor e angústia, e executadas dentro de uma relação desigual de poder. Portanto, os atos repetidos entre iguais (estudantes) e o desequilíbrio de poder são as características essenciais, que tornam possível a intimidação da vítima. Por não existir uma palavra na língua portuguesa capaz de expressar todas as situações do bullying possíveis, o quadro a seguir relaciona algumas ações que podem estar presentes: colocar apelidos, ofender, zoar, gozar, encarnar, sacanear, humilhar, discriminar, excluir, isolar, ignorar, intimidar, perseguir, assediar, aterrorizar, amedrontar, agredir, bater, chutar, empurrar, ferir, roubar, quebrar pertences. O bullying é um problema mundial, sendo encontrado em toda e qualquer escola, não estando restrito a nenhum tipo específico de instituição: primária ou secundária, pública ou privada, rural ou urbana. Pode-se afirmar que as escolas que não admitem a ocorrência do bullying entre seus alunos, ou desconhecem o problema, ou se negam a enfrentá-lo5. Em recente pesquisa sobre o bullying em Porto Alegre (Rolim, 2010), dentre os muitos aspectos levantados, dois se destacam para análise aqui: a faixa etária de maior incidência do fenômeno, entre 11 e 13 anos (idade média Disponível em: www. bullying.com.br/BConceituacao21.htm#inicio. Ultimo acesso em 15/02/ 2012. 5 128 Implicância ou bullying? dos que sofreram bullying é de 12,81); e as consideradas piores ofensas presentes na chacota: “veado” para os meninos6, “vagabunda” para as meninas7. O período da vida de presença mais intensa do bullying nos remete à puberdade e seu lugar desencadeador da adolescência enquanto processo psíquico, ou “momento simbolígeno”, como afirma Rassial (1997). As mudanças no corpo dão início ao que se coloca como reapropriação deste pelo eu. Pois a puberdade não mudou apenas a aparência, mas o estatuto e o valor do corpo, exigindo a reconfiguração da imagem corporal. O Outro também fica em suspenso em sua consistência imaginária e simbólica. Até então, o sujeito estava resguardado do apelo de responder por seus atos, visto sua infância ser guiada pelos pais. Seu ser criança era afetado por aquilo que seus pais lhe indicavam como realização. Uma nova pergunta sobre o desejo do Outro se impõe contundentemente na adolescência. O âmbito restrito da família, que perfazia quase toda a lei e a identidade a ser seguida, dá lugar a uma indagação que se dirigirá ao laço fraterno e ao outro sexo. Propomos que a puberdade e a adolescência reposicionam o sujeito também em relação à fantasia, reencenando sua construção, tal como a fantasia de espancamento o faz. De novo, nesse tempo da constituição do sujeito, tratar-se-á de compor suas implicações. Mais uma vez estará em causa a implicação com o rival, enquanto aquele que indaga sobre o lugar de cada um, sobre o desejo do Outro e seu objeto de satisfação. Ainda, de novo, a implicação com a sexuação e o lugar diante do pai que “bate”, marca e submete, assim como o destaque de um objeto que anime o desejo. O corpo, da mesma forma, volta à cena, implicando uma nova imagem e a indagação sobre sua sexuação. O fenômeno do bullying parece responder a tal encenação da fantasia de fustigação, revelando as dificuldades na construção fantasmática e as do adolescer. A fantasia é, porém, encenada no cotidiano escolar: a rivalidade entre “[...]aqueles que possuem dificuldades de relacionamento com as garotas, que são tímidos demais, ou desajeitados; os que já tentaram, mas foram rechaçados por não serem ‘desejáveis’, estes todos são chamados de ‘veados’, bichinhas’, ‘baitolas’. Não é necessário, para isso, que possuam trejeitos, hábitos ou um estilo especial; basta que não ‘fiquem’ com as meninas [...]” (Rolim, 2010, p.103). 7 “uma das ofensas mais graves praticadas entre as alunas consiste em qualificar uma delas de ‘vagabunda’ [...] a que ‘dá para qualquer um’, que é uma ‘puta’. O impressionante, no caso, é que aquelas que empregam termos do tipo, em sua grande maioria, ainda não se iniciaram sexualmente” (idem, p.106). 6 129 Lúcia Alves Mees os irmãos/colegas passa facilmente da implicância/implicação para rechaço, luta fratricida pelo suposto risco da própria expulsão. A autoridade que “bate” está difusa, de modo que o lugar é ocupado por qualquer um, mas a ilegitimidade em fazê-lo transforma a função inerente ao lugar em violência. Na impressão de que todos estão potencialmente sob ameaça de ficarem de fora dos laços, alguns parecem tomar a posição ativa de expurgar, como se garantisse a possibilidade de permanecer. Ingresso imposto à força, com o preço de estar preso à violência e condenado à resposta insuficiente que essa produz. “Ser violento” não é o mesmo que “tornar-se homem”, e ter um lugar não se satisfaz com a expulsão dos pares. Da mesma forma, difamar o colega não responde sobre quais traços são os próprios a cada um. Estar submetido à violência também não produz a inscrição no corpo de um novo estatuto para ele, não produz a submissão que diria de assunção da castração e que conferiria um lugar. Ou seja, o bullying8 pode encenar as grandes questões da puberdade e da adolescência, mas não permite sua conclusão. Condena à repetição, impedindo a elaboração acerca da implicação do corpo e do nome de cada um. Freud já apontara que a homossexualidade e a promiscuidade são as formas de pôr o pai em xeque nas duas heranças que a função paterna traz: a da escolha sexual e a do acato à lei. A atenção dos jovens na escola a esses dois aspectos faz coro com as questões que importam na adolescência: como se tornar homem, apropriando-se de um corpo, agora autorizado a levar a termo a relação sexual, e provando – através de atos – uma posição ativa frente à linguagem? Para as meninas, a implicação é a de se tornar mulher, sexuada, desejada, mas sem deixar de guardar algo do pai e da lei. O recato traduziria o acesso à sexualidade sob algumas balizas: não todos os homens. A “vagabunda” pode bem representar aquela que acede a todos, desviando-se do ditame de deixar ao menos um sob interdição. Mas o que fracassa a ponto de que a passagem adolescente se sintomatize na violência? Qual a responsabilidade de pais e professores nesse processo? Qual o lugar da escola diante disso? A adolescência atual se vê às voltas com a sobreposição do questionamento do Outro, próprio da juventude, com a tendência crescente dos adultos de não ocuparem um lugar na cena. Os adolescentes não demandam aos pais e professores suas respostas sobre si, como implicação lógica da juventude. 8 130 Sobre o bullying veja também Pinho (2011) e Ribeiro (2011). Implicância ou bullying? Soma-se a isso, em alguns casos, a demissão de pais e professores do próprio lugar de alteridade diante do jovem. A função do Nome-do-Pai é histórica, e se é essencialmente intrapsíquica, ela só funciona através da intersubjetividade, uma intersubjetividade socialmente determinada. É assim que o declínio da função paterna, do qual Freud falou, no laço social e no laço familiar, não é só imaginário, mas afeta a própria inscrição simbólica do sujeito (Rassial, 1997, p. 51). A escola da atualidade, como dissemos antes, está frequentemente submetida ao discurso capitalista. Tal discurso busca produzir objetos de gozo, anulando a falta própria do desejo. Lacan (1971-1972) fala em verwerfung da castração, rejeição da castração nos campos do simbólico. Tal rejeição leva ao apagamento da divisão estrutural do sujeito, desligando-o do “não saber do inconsciente” e levando-o a desconhecer “as coisas do amor”. A verwerfung ainda modifica a relação do sujeito com o objeto, transformando-o em consumidor que pode alcançar o que procura. Junta-se a isso a presença das ciências. O saber é transmutado em objeto, com estatuto de bem de consumo, regido pela lógica utilitária. O significante-mestre capital passa a comandar o saber científico: é ele que financia as pesquisas, patrocina os pesquisadores, induz a elaboração do saber, obrigando a aderir às “política dos resultados”. Pois o saber científico, praticamente subsumido pela tecnologia, tem que produzir objetos úteis e consumíveis. As instituições de ensino, assim, ficam pressionadas a uma política de resultados e direcionadas para o mercado. O discurso do capitalista falha enquanto regulador do laço social, pois tende a ser promotor de segregação. A via de tratar as diferenças na cultura científica capitalista é a segregação determinada pelo mercado: os que têm ou não acesso aos produtos consumíveis. Trata-se, portanto, de um discurso que não forma propriamente laço social, pautando-se sobretudo pela exclusão. A escola, mais e mais submetida ao discurso da produção, do capital, vem sendo palco do não elaborado na posição adolescente diante da castração. O risco da segregação problematiza o laço entre os pares, que são agora destinatários da indagação sobre o lugar de sujeito e o objeto. O tempo, encurtado pela proximidade com o objeto de consumo, cobra do púbere que desde cedo saiba responder sobre seu ser e seu sexo (“És gay?” “És puta?”). E pode fazer reagir violentamente às demonstrações inevitáveis de que a adolescência requer um trabalho psíquico até que possa responder sobre isso. 131 Lúcia Alves Mees Estariam os púberes e adolescentes condenados a se bater e se debater indefinidamente na busca de uma marca do Outro que possibilite a construção da fantasia, indispensável à conclusão do adolescer? Ou ainda, na dificuldade de destacar o objeto de desejo, guia do porvir, os jovens se arriscariam a compor a impessoalidade perversa como saída ou como sintoma da permanência nos laços utilitários/segregadores da cultura atual? REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Ed. 34, 2009. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1997. Fenômeno bullying e a educação física escolar. In: http//www. bullying.com.br/ BConceituacao21.htm#inicio. Último acesso em 15/02/2012. FREUD, Sigmund. Uma criança é espancada – uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais. [1919] In: ______. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. XVII. LACAN, Jacques. O seminário, livro 4: a relação de objeto e as estruturas freudianas. Publicação para circulação interna da APPOA, 1956-1957. _____. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente [1957-1958]. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 1999. _____. El saber del psicoanalista. Publicação para circulação interna da ENAPSI, 1971-1972. LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. MEES, Lúcia. Abuso sexual: trauma infantil e fantasias femininas. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2001. _____. Freud e Annas. Correio da APPOA, n. 203, julho 2011. PINHO, Gerson. O sujeito do bullying. In: Autoridade e violência. Porto Alegre: APPOA, 2011. RASSIAL, Jean-Jacques. A adolescência como conceito da teoria psicanalítica. In: Adolescência:entre o passado e o futuro. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997. RIBEIRO, Eduardo M. Bullying: uma violência em busca de sentido. In: Autoridade e violência. Porto Alegre: APPOA, 2011. ROLIM, Marcos. Bullying: o pesadelo da escola. Porto Alegre: Ed. Dom Quixote, 2010. SANTIAGO, Silviano. Posfácio. In: A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. Recebido em 13/04/2012 Aceito em 11/05/2012 Revisado por Beatriz Kauri dos Reis 132 Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 133-145, jan./jun. 2011 TEXTOS DO BRINQUEDO AO TRABALHO: os avatares na passagem da infância à adolescência Carmen Backes1 Resumo: A adolescência muito recentemente se recorta da infância e torna-se um momento diferenciado. Antes ambas eram vistas como integrando o mesmo processo contínuo que levava o sujeito a atingir a idade madura. Na clínica psicanalítica constatamos que, para pensar a adolescência, faz-se necessário passar pelo infantil, pois muitos processos se reeditam, e o adolescente precisa refazê-los e reintegrá-los. Neste artigo, propusemos pensar nos avatares da transformação do brincar na infância, em estudo e trabalho na adolescência, que não se opera sem recorrer aos processos sublimatórios. Palavras-chave: infância, adolescência, brincar, trabalhar. FROM PLAY TO WORK: the avatars in the passage from childhood to adolescence Abstract: Very recently adolescence distinguishes itself from childhood and becomes a different time in life. Before, both were seen as part of an ongoing process that lead the subject to reach adulthood. In the psychoanalytic clinic, to consider adolescence, it is necessary to go through the infantile, due to the facet that many processes are reissued and the teenager needs to remake and re-integrate them. In this article, we purpose to consider the avatars of the transformation from playing in childhood to study and work in adolescence, which does not operate without resorting to sublimatory processes. Keywords: childhood, adolescence, play, work. Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Psicóloga do Instituto de Psicologia (UFRGS); Doutora em Educação (UFRGS). Autora do livro: O que é ser brasileiro? (Escuta, 2000) e organizadora do livro: A clínica psicanalítica na contemporaneidade (Editora da UFRGS, 2008). E-mail: [email protected]. 1 133 133 Carmen Backes A infância e a adolescência apenas recentemente destacaram-se uma da outra como categorias próprias e diferenciadas. Muito já foi escrito sobre a história da infância, da família e do casamento; contudo, não há uma obra de referência sobre a história da adolescência. Talvez, justamente, por ser considerada como invenção recente, datada da segunda metade do século XX. É no Pós-Segunda Guerra que a adolescência distingue-se das outras “etapas da vida”, vindo a se constituir como aquele período que empurrou “a infância para trás e a maturidade para frente”, e ganha, talvez pela primeira vez na história, um lugar social. Os anos 90 assistiram aos jovens francamente instalados como categoria, ganhando estatuto próprio e transformados em paradigma do sujeito contemporâneo. É nesse contexto que vemos surgir o adolescente, após a infância, impulsionado pelos efeitos corporais da puberdade e pelas exigências sociais, mas, que, todavia, ainda não é um adulto. Aquilo que se opera na infância carrega seu registro pela adolescência, permitindo os processos de sublimação, que vão pautar, por sua vez, toda a vida do sujeito adulto. Deve-se à psicanálise o reconhecimento da sexualidade já presente na infância e o alerta de que a sua repressão ocasionaria o sofrimento e a doença neurótica. Contudo, Freud atribui lugar especial ao processo de educação das pulsões para a vida em sociedade. Por outro lado, o autor alerta imediatamente para o fato de ser esse o fator preponderante na constituição e no desenvolvimento dos processos neuróticos. Esse é o preço a ser pago por uma vida comunitária e a razão do mal-estar constituinte de todo sujeito humano. O pai da psicanálise atribui papel central ao mecanismo psíquico da sublimação, como um dos destinos das moções sexuais, favorável ao desenvolvimento de atividades artísticas e de investigação intelectual. De que forma a educação poderia promover a integração das crianças na ordem social vigente auxiliandoas a tomar os rumos da própria sexualidade sem, no entanto, causar excessiva frustração? A psicanálise denomina de latência o período da segunda infância, que se caracteriza por uma renúncia temporária da satisfação das pulsões sexuais. A latência situa-se entre dois tempos de forte efervescência pulsional: o edipiano e o pubertário. Essa época de “adormecimento” das pulsões é decisiva para a aquisição de capacidades sublimatórias, na medida em que Freud ([1915] 1981) considera que a sublimação é um dos destinos pulsionais que proporciona uma modalidade de satisfação efetiva diferente da descarga direta. Consideramos que os destinos pulsionais de tipo sublimatório constituídos na infância são de extrema relevância na adolescência, pois é o momento em que o sujeito precisa derivar libido para o campo das decisões intelectuais e profissionais. Do mesmo modo, trata-se de um mecanismo importante para 134 Do brinquedo ao trabalho... auxiliar o sujeito a desvencilhar-se dos objetos infantis. A infância, ainda considerada, na cultura atual, como um momento feliz puro e belo, é cercada de objetos que, por sua pregnância, são de difícil desistência, pois altamente idealizados dentro desse contexto. Nos Três ensaios para uma teoria sexual, Freud ([1905] 1981) inclui um elemento que vai nos interessar sobremaneira para pensar na reativação dos processos infantis na adolescência e na vida adulta, qual seja, que a sublimação caracteriza-se por uma mudança que não se faz por meio do retorno do recalcado sob a forma de sintoma. A libido vai encontrar sua satisfação diretamente em atividades socialmente valorizadas, às quais o grupo dá sua aprovação, uma vez que são de “utilidade pública”. Nesse texto o autor aponta primordialmente o campo da arte, ciência, cultura e literatura como aqueles indicados a propiciar sublimação. Para falar sobre a sublimação, Freud convoca a experiência do artista como aquele indivíduo que não renunciou aos seus anseios por satisfações de toda ordem, mesmo que estas lhe tenham sido negadas pela realidade de variadas formas. Se essas satisfações são negadas na relação com o “mundo exterior”, ele é levado a retirar libido dos objetos externos e a introjetá-la. Tal como no neurótico, essa libido será agora investida em suas construções mentais impregnadas de desejo, em suas fantasias. No entanto, a semelhança com a neurose termina aí, pois, a sublimação implica que essa libido investida na fantasia não será submetida aos processos de condensação e deslocamento que o recalcamento opera. Na neurose, esses processos deformam o material fantasístico, criando as condições necessárias para que se suspendam as barreiras do recalque e o conteúdo retorne à consciência, sob a forma de sintoma (retorno do recalcado), fonte de sofrimento para o sujeito. No caso do artista, essa libido investida na fantasia será sublimada, o que implica que seu destino não é o recalque e o retorno como uma formação do inconsciente. Em seu artigo As pulsões e suas vicissitudes, Freud ([1915] 1981), de fato, estabelecia a sublimação e o recalque como destinos distintos que a pulsão pode adotar. Há, portanto, identidade entre o processo de sublimação e o do recalcamento que vai até o nível da introjeção da libido e seu investimento na fantasia; daí para diante se distinguem. A sublimação implica um percurso da libido que não exclui a passagem pelo recalcado originário. O recalque originário é o significante que originalmente ficou encarregado de representar psiquicamente a pulsão e jamais teve acesso à consciência. Quando a libido retorna do mundo externo, devido às frustrações sofridas, ela vai alimentar estruturas articuladas em torno do recalcado originário. Portanto, quando Freud ([1915] 1981) diz que, 135 Carmen Backes na sublimação, o destino da libido não passa pelo recalcamento, devemos ter em mente que se trata do recalcamento secundário, e não do primário. Se, na sublimação, a fantasia vem à tona por uma via que não a distorce, ela traz consigo não o recalcado originário enquanto tal, mas a si mesma como uma construção intimamente ligada e próxima a ele, moldada a sua semelhança. Nesse sentido, as obras de arte, imagem fiel da fantasia, são manifestações do recalcado originário, manifestações da pulsão que originalmente foi dirigida ao objeto materno, primeiro objeto de amor e também de frustração. As moções pulsionais mais arcaicas da criança são, ao mesmo tempo, um ponto de partida e um núcleo nunca inteiramente resolvido sob o primado da genitalidade. Lacan, por sua vez, sugere falar de “um ponto de limite, um ponto irredutível” (Lacan, [1959-1960] 1988, p. 119). Mas se há, por um lado, a insatisfação intrínseca, por outro lado, Freud ([1915] 1981) aponta para a abertura que parece, à primeira vista, quase sem limite, das substituições que podem ser feitas no nível do alvo. A sublimação é o processo psíquico inconsciente, que permite substituir um objeto sexual por um objeto não sexual, socialmente “indicado”. A puberdade, por ser o momento específico em que “a carne insiste”, coloca o adolescente momentaneamente desancorado frente ao descontrole da explosão pulsional pubertária. É o real do corpo que urge pela Coisa e necessita novamente ser capturado pelas vias significantes. *** Por seu nascimento prematuro, o bebê humano, através da relação de amamentação, coloca-se numa posição de total dependência do Outro e, com isso, instala-se a representação mais primordial da imago materna. Delineiamse aí os “sentimentos mais arcaicos e mais estáveis que unem o sujeito à família” (Lacan, [1938] 2003, p.36), sendo o complexo do desmame inteiramente dominado por fatores culturais e, portanto, diferente dos instintos. No homem, “é uma regulação cultural que condiciona o desmame”2 (id., ibid., p.36). Assim, o desmame deixa no psiquismo humano uma marca permanente, pois interrompe aquilo que Lacan nomeia de uma “relação biológica” com a mãe e que moldará as experiências psíquicas posteriores. Ele pode, portanto, ser Colocaríamos a palavra cultural entre aspas, pois o desmame, ou a passagem de uma fase da libido a outra está na relação direta a um reviramento na demanda do Outro originário. 2 136 Do brinquedo ao trabalho... aceito ou recusado e, na falta de um eu que afirme ou negue, pois que ainda em estado rudimentar, a aceitação ou recusa não pode ser considerada uma escolha. Dessa forma, os complexos familiares dão a ver que é por crises dialéticas que o indivíduo cria a si mesmo e aos seus objetos. Aquilo que faz laço entre os humanos apoia-se no traço do recalque das relações primárias com o Outro originário. Através do complexo do desmame, definido por Lacan ([1938] 2003), com sua fixação da imago materna e posterior abandono, sabemos que essa imago instala-se precocemente e de forma extrema, tendo em vista a prematuridade do bebê humano ao nascer, que o joga numa total dependência do Outro. O “corte” realizado pelo desmame opera ambivalência na relação ao objeto primário e, por ser de ordem vital para o bebê, a imago imprime-se profundamente no psiquismo, provocando uma nostalgia da mãe, de difícil sublimação, o que faz supor que a relação a esse objeto primeiro possa se refazer incansavelmente. A respeito do complexo de intrusão e sua reiteração da perda objetal, destacamos a relação com um objeto outro – o rival, com o qual pode se desenvolver uma montagem imaginária, que inclui desde a sedução até o despotismo, através de uma identificação mental com o outro, pois não depende necessariamente da sua participação direta. Caracteriza-se por ser uma relação ambígua (amor e ódio), de domínio e subjugação. A insistência na relação imaginária com o objeto do complexo de intrusão pode fazer insistir também a reiteração da perda do objeto, com seus sucessivos e infindáveis substitutos. Por fim, o último dos complexos é relativo ao conflito edipiano, que instaura a relação objetal a três, dominada por moções pulsionais sexuais, agressivas e temor de retaliação. O ultrapassamento desse conflito, através do recalcamento e da sublimação do objeto primeiro e da constituição de ideais, retiraria o terceiro da condição de rival a ser vencido, deslocando-o para uma posição de referencial. Nesse sentido, o terceiro não é aquele frente ao qual se insiste em tomar o lugar, em substituí-lo como objeto, mas, sim, aquele que lança o sujeito adiante, na via do desejo. Se situamos que na adolescência se dá a reedição do complexo de Édipo, e que é necessária, nesse momento, a ratificação do recalcamento, poderíamos perguntar: por que o objeto primário insiste na adolescência? Um esclarecimento, porém: tomamos aqui as relações de objeto de um grande número de adolescentes, como tendo a particular característica de serem repetidamente renovadas, como no caso de Gustavo, que descrevo a seguir. Gustavo é um adolescente tardio, de 26 anos, que está cursando a faculdade de Design, depois de ter transitado por duas outras, sem concluir nenhuma, preocupado com o fato de, a essa idade, ainda não ter se formado e depender financeiramente dos pais, sem perspectiva imediata de mudar tal 137 Carmen Backes situação. Aparenta não ter dificuldade de relacionamento com as mulheres, pois já teve muitas namoradas: assim como termina com uma, logo inicia com outra, sem transcurso de tempo entre uma e outra. Esse modo de funcionamento não lhe traz interrogação, mas, sim, o fato de, nos últimos tempos, insistir para ele a imagem de uma mulher mais velha, Fernanda, com quem se relacionou, mas que não seguiu adiante por julgá-la inadequada, pois se trata de uma mulher mais velha, madura, independente, de opiniões firmes, com a vida profissional decidida, “uma mulher masculina.... como minha mãe”. Para melhor defini-la, “Garota Nacional” da Banda Mineira Skank: “Eu detesto o jeito dela mas, pensando bem, ela fecha com meus sonhos como ninguém...”. Depois de findo o namoro, logo se apaixona por outra garota, mas são os pensamentos em torno da namorada anterior que insistem, algo que, para ele, é novo, pois facilmente se desprende de um relacionamento e vincula-se a outro, da mesma forma apaixonada de sempre. Irritado com pensamentos que não consegue controlar, vai a uma festa e “toma um porre”. No dia seguinte, da amnésia alcoólica lhe restam um cupom fiscal no bolso e uma lembrança da infância: picolé Chicabom (chocolate e leite) que desfrutava nas madrugadas, depois das festas com Fernanda, o mesmo que lembra ter conhecido com a mãe, em idade bastante precoce. Por associação e não com toda a certeza, julga ter saído da tal festa e ido ao mesmo posto de gasolina, comprado novamente o picolé, porém desta vez sem a companhia de Fernanda. Esse recorte clínico sugere pensar nos paradoxos (amor e ódio) associados ao objeto, apontando para a dificuldade de substituição, pois, se nenhum é suficientemente adequado, poderíamos perguntar sobre aquele insituável, que teria dado origem à série. Nesse sentido, o fragmento clínico coloca em relevo a insistência da imago do objeto primeiro e permite lançar a hipótese de certa recusa em ceder o objeto, operando uma substituição que seja efetiva e duradoura – se é que a substituição efetiva seria possível. Ao mesmo tempo, Gustavo denota a ambivalência primordial, dando a ver os índices da imago materna e revelando o papel psíquico que representa a imagem da mulher forte, que ele “detesta”, mas que o acompanha em seus sonhos diurnos. Renovando incansavelmente a exclusão, é sempre ele que põe um final nas relações, pois não suportaria “levar um pé na bunda”. Triunfa agora, colocando-se ativo na reedição do abandono, ativando a agressividade que os restos infantis dos complexos familiares colocam em ação. Rassial (1997), em seu livro A passagem adolescente, afirma que o sujeito necessita, a posteriori, realizar novamente uma série de operações fundadoras. Primeiramente, se na fase do espelho eram o olhar e a voz maternos que lhe c ita 138 u m t r e c h o d a m ú s ic a Do brinquedo ao trabalho... asseguravam consistência e existência, na adolescência o jovem deverá – se não se apropriar desses objetos parciais – ao menos deslocá-los para os pares. Em segundo lugar, se, na fase fálica, na circulação pelo complexo de Édipo, tudo girava em torno da mãe, é o reconhecimento da função paterna que, na infância, provocará a “desistência” do objeto materno e, na adolescência, a validação do Nome-do-Pai permitirá o acesso a uma relação genitalizada ao outro do Outro sexo. A adolescência comporta, portanto, a confirmação do reconhecimento da diferença sexual, como também o reconhecimento do próprio sexo. Por último, na infância, o sujeito se constitui enquanto alguma coisa para o desejo dos pais, principalmente da mãe; na adolescência ele deverá reorientar a pergunta sobre o desejo: se antes tudo se articulava em torno de como satisfazer melhor ao Outro originário, agora ele deverá operar o giro de tomar-se da responsabilidade sobre seu desejo. Como vimos, o infantil faz retorno na adolescência de forma massiva, tendo em vista a necessidade da ratificação ou não, a posteriori, das operações fundadoras realizadas na infância. Esse é o norte que orienta as colocações aqui desenvolvidas. O trabalho da adolescência é, principalmente, operar os lutos que a puberdade impõe, colocando algo no lugar daquilo que falta. Porém, adiantamos que o luto – luto pelo corpo infantil, pelos pais da infância, pelos objetos –, que a adolescência implica, traz em si a radicalidade de uma falta que não inclui a possibilidade de substituição. Talvez um segundo desmame – guardando as devidas proporções com relação à infância – precisasse ocorrer, para que o adolescente pudesse desejar algo mais do que o aconchego quentinho do lar materno e paterno, “ato necessário, no caminho da autonomia possível, que a passagem adolescente requer” (Cabistani, 2009, p. 91). Metamorfoses do objeto: do brinquedo ao trabalho A origem da relação do sujeito com o objeto está para sempre perdida e, embora fundante, é inacessível ao sujeito. A relação ao objeto no brincar, além de dar suporte à fantasia, é também prática significante que implica uma produção relativa à constituição libidinal do próprio corpo. O outro originário “empresta” significantes para que a criança possa ir recobrindo seu próprio corpo, retirandoo, desta forma, do lugar de puro objeto. Esse procedimento contribuirá para a posterior operação de separação eu/Outro. Por outro lado, a dificuldade, ou mesmo a impossibilidade da criança de desprender-se do corpo materno ou de seus substitutos interfere em suas 139 Carmen Backes possibilidades lúdicas. Assim, o brincar nos traz notícias preciosas sobre o estado de desenvolvimento simbólico da criança a partir das condições de operar esse desprendimento. Essa dificuldade intervém em sua capacidade de brincar e nas condições de aceitar situações de separação. Freud ([1920] 1981) em Mais além do princípio do prazer, descreve o jogo do fort/da, na experiência de seu neto brincando com o aparecimento e desaparecimento de um objeto, ensinando assim que a palavra é o que pode dar suporte à ausência. Nessa brincadeira, a criança joga um carretel amarrado com um barbante para fora da borda do berço, fazendo-o desaparecer e puxandoo de volta até que reapareça. Durante o processo, ele dá, ao ato de jogar o carretel e puxá-lo, um suporte fônico, dizendo – “ooo” (fort, em alemão = embora ou fora) e “aaa” (da , em alemão = aqui). Na brincadeira completa então (embora/ aqui), o menino encena, recria a presença/ausência da mãe. Dessa forma, o fort/da nada mais é do que a possibilidade de recobrir com palavra a ausência do outro materno. Essa brincadeira, então, caracterizase, principalmente, como a simbolização da ausência da mãe, ao mesmo tempo em que introduz uma distância entre a criança e o Outro. O jogo auxilia a fazer a operação de separação: insere significantes numa experiência vivida, transformando-a em brincar. Brincar, assim, permite fazer novas experiências e prescindir da presença do outro. Nesse sentido, brincar é um novo significante incluído no universo simbólico da criança. No decorrer da constituição subjetiva ocorre a metamorfose (transformação) do brincar em outra coisa: estudar na latência; estudar e trabalhar na adolescência. Que não se confunda, porém, a transformação do brincar em estudar e trabalhar, com a oposição entre lúdico/sério, ou prazer/desprazer, confusão essa que acarretaria um empobrecimento, além de retirar do estudo e do trabalho importante fonte de satisfação. Não haveria razão, sugere Rodulfo (1990), para operar disjunção entre brincar e trabalhar. Transformações na função do brincar ocorrem em diferentes momentos da estruturação subjetiva. Interessa-nos aqui dar alguma visibilidade a essas transformações no decorrer da passagem adolescente. “Onde era o brincar, o trabalho deverá advir”, é uma paráfrase utilizada por Rodulfo (1990, p. 158) para designar que, se o trabalho do brincar não foi realizado na infância, comprometese, na adolescência, tudo o que for da ordem da sublimação, mormente a sublimação necessária para a inserção em um trabalho profissional, porque [...] em maior ou menor grau, as formações de desejo, longamente desdobradas e desenvolvidas no campo do brincar infantil e adolescente, passam, cedem grande parte de sua força e de seu 140 Do brinquedo ao trabalho... poder intrínseco para o trabalho, como atividade central da existência adulta, outorgando-lhe assim uma base pulsional decisiva [...]. Sem esta base, o trabalho ou não pode se constituir, ou se pseudoconstitui, como uma fachada talvez socialmente muito produtiva, mas subjetivamente vazia de significação (Rodulfo, 1990, p. 158). Segue o autor referindo que, em contrapartida, podem ocorrer inúmeras dificuldades em operar a metamorfose do brincar em trabalhar na adolescência, que poderiam sugerir algo de uma insistência do objeto primeiro. Algumas atividades dos adolescentes, embora socialmente reconhecidas, ocupam o lugar do trabalho profissional e remunerado que eles não conseguem constituir. Rodrigo, outro exemplo clínico, mantinha-se “atarefado”, numa “brincadeira” agradável e prazerosa com meninos3, economizando-se da angústia de construir um projeto que lhe proporcionasse independência financeira da família. O trabalho toma um caráter somente lúdico, e não propriamente profissional. Gustavo, de quem já falamos acima, ocupava-se com estágios acadêmicos que tomavam caráter de profissão. Frequentemente, contudo, encontrava dificuldade de relacionamento com superiores hierárquicos, pois considerava-se um “excelente profissional”, conforme suas próprias palavras, o que o levava a fazer reivindicações “salariais” diferentes daquelas de um estagiário. Rodulfo (1990) também afirma que o devaneio constitui-se, para muitos adultos, como a única forma do brincar remanescente da infância que não cedeu lugar ao trabalho profícuo. Nisso, encontramos também outros elementos que remetem ao caso de Rodrigo, quando cria um logotipo para roupas de surf 4 e sonha para si um futuro muito promissor com o projeto da marca guardado na gaveta da escrivaninha. “Brincar de trabalhar” é a expressão que melhor definiria a ocupação de Rodrigo. Ao mesmo tempo, essa foi a única atividade que conquistou por esforço próprio, pois, diante da impossibilidade de ser o ideal, como o irmão mais velho, acabava sempre sendo sua versão negativa e, para não sê-lo, fantasia uma vida profissional que mistura brincar e trabalhar: ser o estagiário-fisioterapeuta dos meninos que jogam bola num time famoso, ou enriquecer surfando. Era o estagiário (não remunerado) de fisioterapia nas categorias de base de um time de futebol. Inspirado no criador da marca Mormaii, cuja história o fascina, pois trata-se de um médico que abandona a profissão, lança a marca, consegue fazer fortuna e manter-se morando à beira do mar, tendo como atividade principal a administração da marca e a prática do surf. 3 4 141 Carmen Backes Os mesmos elementos de análise encontram-se no caso de Gustavo, que escolheu seu primeiro curso superior – analista de sistemas – porque sempre fora “muito fera” com o computador. A segunda faculdade foi de designer gráfico, que se constituía como uma continuação da primeira. Alcança muito prazer e satisfação trabalhando no computador, criando e projetando objetos, porém, tem muita dificuldade em transformar uma ou outra em atividade profissional. O caso oferece elementos para situar um ponto de fracasso dessa metamorfose do brincar em trabalhar, que impede o investimento no campo profissional, pois a atividade lúdica acaba prevalecendo e impedindo o deslocamento de um quantum libidinal de um campo a outro. “Há coisas que devem cair no brincar infantil para que o trabalho advenha como possibilidade” (Rodulfo, 1990, p.170). A respeito dessa afirmação do autor, uma outra característica chama a atenção no caso de Gustavo: não conseguia permanecer por muito tempo num mesmo local de estágio, sempre era dispensado precocemente. Alegava que os trabalhos que lhe eram destinados para executar eram muito primários (“Sei fazer muito mais e melhor do que aquilo”) e, de fato, suas produções eram de potencial elevado, tendo sido premiado várias vezes com objetos por ele criados. Também adotava um jeito próprio de executar os projetos, o que acabava sempre por desagradar seus empregadores. Nesse sentido, não conseguia adaptar-se às regras dos locais de trabalho; em casa, executava os projetos do seu jeito e no seu tempo, isto é, com as regras “inventadas” por ele próprio. O brincar infantil coletivo implica obedecer regras estabelecidas conjuntamente. Chama a atenção que Gustavo pareceria ter dificuldade em aderir às normas impostas pelo outro e “fazer passar suas qualidades por um certo código e aceitar entrar em contato com procedimentos e saberes já instituídos” (Rodulfo, 1990, p. 170). Parecia instalar-se numa onipotência infantil, que dificultava o giro necessário para transformar o brincar em trabalhar e, portanto, poder aderir às regras que o Outro institui. Por outro lado, brincar tem um código privado, que não necessariamente é compartilhado com uma comunidade, pois a criança pode fazê-lo sozinha. Nesse sentido, o brincar guarda semelhança com o sonho e, por isso, precisa ser “decifrado”. Portanto, para que o brinquedo entre no circuito do trabalho, ele necessita entrar num âmbito mais amplo, compartilhado e com outras regras. Essa é a primeira e essencial transformação do brinquedo em trabalho. “Brincar com outra coleção de significantes” (Rodulfo, 1990, p.172) é a expressão que o autor utiliza para melhor definir a passagem do brincar ao trabalhar. Por que trago aqui as funções do brincar na infância? Porque o brincar é o suporte da fantasia e porque tanto esta como aquelas se redimensionam na 142 Do brinquedo ao trabalho... adolescência, se reestruturam. A primeira importante função do brincar na infância diz respeito à possibilidade da construção de uma superfície corporal relacionada à fase do espelho, responsável pela constituição eu/Outro. Na adolescência ocorre a reconstituição da fase do espelho diante da necessidade de reapropriação da imagem corporal que a puberdade fez vacilar. O brincar toma aí uma importância fundamental. Veja-se, a exemplo disso, o quanto a prática de esportes lúdicos é bem-vinda para o adolescente, como uma forma de operar a contenção desse corpo que transborda. Conforme vimos acima com o fort/da, outra função do jogo na infância, é a de auxiliar a operar a simbolização da presença/ausência da mãe; na adolescência, esse jogo se reconstitui com o objetivo de operar a separação familiar/social. As viagens “experimentais” dos adolescentes, desacompanhados da família, frequentemente para fora do país, sob a forma de intercâmbios estudantis, cumprem a função de exercitá-los nessa passagem do estranho (estrangeiro) ao familiar. Ainda outra função do brincar é auxiliar no acesso ao corpo do Outro, através dos jogos sexuais, para daí extrair material para a constituição de sua própria imago corporal. Se, na infância, essa operação dava-se a partir do “esburacamento” do corpo materno, na adolescência passa a se operar com o “manuseio” do corpo do outro, que inclui o reconhecimento da existência do Outro sexo e a correlativa iniciação na atividade sexual. Renunciar ao prazer do jogo e do brinquedo não é tarefa fácil. Na realidade, diz Freud ([1908] 1981), não conseguimos renunciar a nada, o que fazemos de fato é trocar, substituir umas coisas por outras. Os pais frequentemente precisam auxiliar os filhos a se desvencilharem dos objetos infantis, utilizando-se para isso de diversas “manobras”. Nesse sentido, pareceria que um “direcionamento” sublimatório, por parte das autoridades parentais, funcionaria melhor do que a recriminação superegoica. Queremos com isso salientar a diferença entre o superego repressivo parental e aquilo que pode ser transmitido como um “saber gozar pulsional”,5 que o adolescente percebe como sendo acessível a ele, além de apreciado e recomendado pela autoridade parental. Portanto, “dar exemplo” ao adolescente, através de um saber-fazer com a realidade, funcionaria melhor, em termos educativos, do que a repressão superegoica. 5 Expressão utilizada por Penot (2005). 143 Carmen Backes Na continuidade entre as gerações opera-se um jogo entre repetição e diferença. Os jovens inscrevem, com mais ou menos sofrimento, alguma diferença no mundo dos mais velhos, ao mesmo tempo em que fazem outras tantas repetições. Faz efeito aí a maneira pela qual o outro parental terá sabido se “desfazer”, ceder de seus objetos, como também se prestar à operação de simbolização de seu rebento. Nesse caso, o investimento pulsional parental sobre seu objeto (filho) precisa ter suficiente qualidade sublimatória, para que não se produza uma modalidade de recusa parental. Quais as soluções pulsionais o sujeito será capaz de colocar em operação diante do drama existencial que a adolescência implica? Certamente entrará em jogo a capacidade dos jovens de se entregarem a atividades sublimatórias à sua disposição, e a tarefa dos adultos será de abrir e incentivar o acesso a satisfações pulsionais, em lugar de pura descarga excitatória, quase aditiva. A possibilidade do adolescente de se enganchar num projeto, seja ele profissional, amoroso ou intelectual, será diferente se nisso estiver incluído o reconhecimento pelo adulto parental, e não somente pelo social. De qualquer modo, nunca é demasiado lembrar que, para o pulsional, não haverá satisfação integral. A possibilidade de orientação e aquisição de consistência, a partir das significações e dos referenciais oferecidos pelo Outro familiar, é a “rede de proteção” de que o adolescente necessita. O jovem, por estar exatamente atravessando o processo de constituição fantasmática, frequentemente encontra dificuldade dupla na consecução desse projeto: naquilo que ele necessita sistematicamente apoiar-se para fortalecer essa construção, sistematicamente insiste em não se oferecer à simbolização, por certa recusa de significação e de valor, por parte de seus referentes. Em contraste com a inibição da pulsão, poderiam se abrir novas margens de “negociação”, permitindo ao jovem maior liberdade e novos destinos, que permitirão também um ganho subjetivo. Nesse sentido, é necessário o cuidado de não incentivar as inibições, nem sufocar os “desvios” pulsionais, mas antes lançar interrogações e buscar arejar com análises desapaixonadas. REFERÊNCIAS CABISTANI, Roséli. A economia da angústia na adolescência. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 36, p. 85-92, jan./jun. 2009. FREUD, Sigmund. Tres ensayos para una teoria sexual [1905]. In: ______. Obras completas. 4. ed. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. v. 2. ______. El poeta y los suenõs diurnos. [1908] In: ______.______. v. 2. ______. Los instintos y sus destinos. [1915] In: ______.______. v. 2. ______. La represion. [1915] In: ______.______. v. 2. ______. Mas allá del principio del placer. [1920] In: ______.______. v. 3. 144 Do brinquedo ao trabalho... LACAN, Jacques. Os complexos familiares na formação do indivíduo [1938]. In:______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 29-90. ______. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise [1959-1960]. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 1988. PENOT, Bernard. A paixão do sujeito freudiano. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005. RASSIAL, Jean-Jacques. A passagem adolescente. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997. RODULFO, Ricardo. O brincar e o significante. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. Recebido em 17/10/2011 Aceito em 06/01/2012 Revisado por Deborah Nagel Pinho 145