Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 74-88, jan./jun. 2011
TEXTOS
O QUARTO TEMPO DO
CIRCUITO PULSIONAL1
Simone Mädke Brenner2
Resumo: Este texto trabalha os destinos da pulsão em suas incidências clínicas.
O quarto tempo do circuito pulsional surge como uma hipótese a partir da
observação cotidiana e da clínica de crianças. O circuito pulsional apresenta o
infantil de todos nós.
Palavras-chave: circuito pulsional, castração, recalque, infantil.
THE FOURTH TIME OF THE DRIVE CIRCUIT
Abstract: This text discusses the targets of the drive in their clinical implications.
The fourth time of the drive circuit arises as an hypothesis from the daily observation
and clinic of children. The drive circuit presents the childish of us all.
Keywords: drive circuit, castration, repression, infantile.
Este texto só foi possível graças às valiosas contribuições de Fernanda da Silva Gonçalves,
Marta Pedó, Silvia Eugênia Molina, Alfredo Jerusalinsky, Simone Moschen e Ana Maria da Costa,
os quais me ajudaram a suportar os efeitos do quarto tempo em mim mesma, e assim me foi
possível escrever.
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Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); E-mail:
[email protected]
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O quarto tempo do circuito funcional
Não há nenhuma necessidade de ir muito longe numa análise de adulto,
basta ser alguém que pratica com crianças para conhecer esse elemento
que constitui o peso clínico de cada um dos casos que temos que
manipular e que se chama pulsão.
Lacan
P
roponho-me neste texto articular melhor o que comecei a escrever no texto
Bate-se numa criança e circuito pulsional: declarações de amor3 , sobre o
que denomino o quarto tempo do circuito pulsional (2011).
Naquele texto apresentei o relato de uma paciente de sete anos de idade
que eu tinha em comum com uma neuropediatra que fez o encaminhamento
dessa criança em função de lhe parecer que o quadro neurológico tinha também
no seu bojo um pedido de escuta. Era uma criança com diagnóstico de epilepsia
e, na história pregressa, de terror noturno. Posteriormente, mantinha transtorno
do sono. Apresentava crises convulsivas generalizadas, primeiramente durante
o sono e, no momento da avaliação psíquica, também em vigília. Iniciou
medicações anticonvulsivantes que, além de não controlarem as crises durante
o sono, aumentaram sua frequência. As medicações, mesmo associadas, não
modificavam o padrão das crises durante o sono. Apresentava alterações
eletroencefalográficas nas regiões temporal e frontal. Mostrava-se absolutamente
arredia e impermeável ao outro, sendo permanentemente desafiadora, deixando
claro que precisava bastar-se a si mesma, sendo que, para ela, o outro
inevitavelmente era ameaçador, estando impossibilitada de confiar em quem
quer que fosse. Essa convergência de sintomas fez a neurologista se perguntar
sobre o que as alterações no corpo dessa criança apontavam, “falavam”. No que
se referia, em particular, à ineficácia das medicações para controlar suas crises
e para ajudá-la a adormecer, parece que deixava claro que não podia adormecer,
e isso precisava ser escutado.
A. chega contando sobre as coisas que vinham acontecendo, as quais
denominava como “desrespeito” aos olhos dos outros. Ela conta suas afrontas,
suas transgressões, porém demonstrando muito prazer quando isso podia lhe
resultar em surras e espancamentos, principalmente por parte do seu pai. Fala
claramente da sua intenção de “machucar” as pessoas à sua volta com palavras
chulas. Quando dela indago sobre o que será que a faz ter que funcionar assim,
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Texto publicado no Correio da APPOA, número 203, julho de 2011.
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Simone Mädke Brenner
ela diz: “Tu não sabe o que o marido dela diz e faz!” (referindo-se à mãe, que se
encontrava dentro da mesma sala). Pergunto: “O marido dela é teu pai?”; e ela
responde: “É, parece... deveria ser....”.
Enquanto me contava isso, pede para desenhar com canetinhas e, logo
depois, afirma: “Já sei que tu vai me xingar. Não pode pintar com canetinhas e
eu pintei!” Respondo: “Podes, sim, pintar! “Se não pudesse eu não teria
deixado, teria te falado que não podias!” Ela parece admirada com minha
resposta e depois me fala: “Quando alguém me diz não, faço uma cara
muito feia!” (Faz uma cara ameaçadora). Afirmo que quando for preciso direi
os nãos necessários a ela. Ela logo olha para sua mãe e diz: “Preciso muito
vir aqui, muitas vezes!”
Relata muitos pesadelos que eram recheados de cenas de invasões, de
agressões de todos os lados e que, quando os narrava nas sessões, demonstrava
muito prazer em relatá-los. Nesses momentos chegava a dizer que pensava
muito em que quando tiver um filho fará com ele o mesmo que nesses sonhos
fazem com as pessoas, maltratá-lo.
Com frequência, quando se mostra irônica, debochada e gozando com a
sua tragédia, canta a seguinte música:
Eu nasci gay, a culpa é do meu pai, que contratou um tal de Wilson
para ser capataz. Eu vi o Bofi tomar banho e o tamanho dessa
mala era demais... O desgranido do pai dela depois reclama dela.
Ele contratou o capataz e depois reclama que ela é o que é. O
nome dela é Maria do Carmo.
Aos poucos, esses mesmos pesadelos começam a lhe produzir angústia;
aliás, é nesse momento que ela os nomeia de pesadelos. Antes, ela os chamava
de sonhos. Começa então a assustar-se com o que vê, passando a ter medo
deles.
Enquanto contava seus sonhos, precisava muito desenhar. Desenhava
suas interpretações acerca dos seus sonhos. Até que, num momento, diz:
“Gostaria de poder desenhar um príncipe, mas não consigo. Esta princesa vai
ficar sozinha”. Acrescenta: “As flores da nossa casa todo mundo cuida, têm
muitas flores. As de cada um ninguém cuida!”
Nesse momento diz que depois de cantar a música começa a sentir
ânsia de vômito. A partir daí, conta que está conseguindo dormir, que vem tendo
sonhos bons, com flores, casas... Diz que, quando dorme assustada, precisa
cuspir várias vezes, não podendo mais “engolir”. Pergunto se ela teve que engolir
algo que não queria ou que não podia e ela diz que sim, “Isso me machucou
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O quarto tempo do circuito funcional
muito. Nessas horas, preciso fazer muito, muito xixi. Vou lá fazer xixi.” Vai ao
banheiro e quando volta comenta: “Meu pai sabe muito sobre o meu xixi!”
Na sua última sessão, sendo o tratamento interrompido pelo pai, ela canta:
Super água em ação, não quer saber de poluição. Quando está no
ar, ele vai salvar nossa cidade da destruição... Era uma vez um
azul do céu, que pinta o papel. Que molha o mar. Era uma vez uma
menininha que pinta e fascina e molha o mar. Ela mistura o céu
com sonho e fantasia, ela imaginou que se transformaria em
borboleta e asas ela ganhou, pra onde ela voou foi colorindo tudo
por onde passou. Quero ser um peixe diferente do que me fizeram!
Quero poder ser um peixe cor de rosa!
É importante relatar que, após o início do atendimento psíquico, suas
crises foram diminuindo de frequência, até cessarem por completo. O
eletroencefalograma também melhorou, tornando-se praticamente normal.
Ao longo das poucas sessões que teve, e da grande melhora no seu
quadro neurológico, vem então a pergunta: o que se operou no corpo dessa
criança? Ou o que acontecia antes que fazia seu corpo literalmente “berrar”,
claramente adoecendo?
A relação que fiz deste caso com o texto Bate-se numa criança, de Freud
([1919]1953), é porque se trata de uma criança que oscila entre o gozo de ser
invadida, batida, e o repúdio a tudo isso. Ela fala da fantasia que tem, de ser
espancada, humilhada e desprezada por todos ao seu redor, em particular pelo
pai, e, ao mesmo tempo, faz uma demanda muito clara e consistente de se
tratar e poder sair dessa posição de objeto.
A primeira parte daquele texto sobre a qual gostaria de pensar é quando
Freud nos fala de como temos que nos perguntar sobre a relação que pode
existir entre o sentido de tais fantasias (as fantasias sobre uma criança ser
batida) e as reprimendas corporais recebidas realmente por essa criança em
sua educação familiar. Refere nesse momento que, na maioria das vezes, são
casos de sujeitos que não foram tratados e educados à força, com superioridade
física por parte de seus educadores. Isto é, a fantasia de uma criança de ser
espancada não se relaciona diretamente com o fato de a criança em questão
ser efetivamente espancada, mas com a possibilidade de ela ter sido vítima de
um acontecimento infantil que tenha provocado uma fixação. Tal fixação prescinde
da necessidade de haver “força traumática”; no entanto, fica a pergunta sobre
por que tal tendência sexual havia ficado fixada precisamente ali. Propõe então
Freud que o sentido de tal fixação esteja no fato de ter havido, como causa
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Simone Mädke Brenner
desta, componentes sexuais “prematuros” à criança e que, por isso, teríamos
que supor que o acontecimento traumatizante e produtor de tal fantasia se
apresentaria, em algum ponto, como um fim provisional.
Ele diz:
las fantasias de flagelación tienen una historia evolutiva harto
complicada, en cuya trayectoria varían más de una vez casi todos
sus elementos: su relación con el sujeto, su objeto, su contenido y
su significación (Freud, [1919]1953, p.189)4 .
Na primeira fase das fantasias de flagelação, a criança espancada é
indiferenciada, isto é, pode ser qualquer um; porém, nunca é a própria criança
que fantasia, é sempre outro. Nessa primeira fase existe o espancador, a criança
espancada e aquela que olha e que “admira” a cena. Aparece a hipótese de que
o pai bate na criança odiada por aquela que olha, demonstrando assim seu
amor por esta.
Na segunda fase das fantasias de flagelação, a pessoa que bate na
criança é a mesma, porém a criança espancada é a própria criança que fantasia.
A criança fantasia ser batida pelo pai e, para Freud, essa é a fase mais importante
de todas. Volta a afirmar que não tem sentido real e que também tem conteúdo
que permanece fora da consciência, não pode ser recordado.
A terceira fase das fantasias de flagelação se assemelha à primeira;
porém, não aparece mais o pai como aquele que bate, mas, sim, os agentes
ativos e passivos ficam indiferenciados e a posição do sujeito nesse momento é
de tê-la como o sustentáculo de uma intensa excitação, inequivocamente sexual,
e que provoca, como tal, a satisfação onanista.
Enquanto relia tal texto de Freud ([1919]1953), fiz uma relação com o que
ele fala das pulsões, pensando sobre a construção dos três tempos do circuito
pulsional.
No primeiro tempo do circuito pulsional o bebê posiciona-se como ativo,
quando vai em busca do objeto, que é externo ao Eu, e apodera-se dele.
As fantasias de flagelação possuem uma história evolutiva bastante complexa, em cuja trajetória
variam mais de uma vez quase todos seus elementos: sua relação com o sujeito, seu objeto, seu
conteúdo e sua significação (livre tradução).
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O quarto tempo do circuito funcional
O segundo tempo do circuito pulsional é um tempo reflexivo, quando o
bebê toma parte de seu corpo no lugar do objeto, sugando aqui, não o objeto
externo, mas parte de seu próprio corpo, aparecendo assim o “chupar-se”.
No terceiro tempo do circuito pulsional, o sujeito retorna ao outro e se faz
ser objeto dele. Nasce aqui a possibilidade de sujeito, alguém que, tendo
percorrido a primeira instância de se apoderar de algo fora de si e ter encontrado
nesse fora de si algo que lhe significou, busca uma forma de marcar em sua
carne esse outro, a tal ponto que pode, nesse terceiro tempo, devolver ao outro
o seu próprio tesouro. Este tesouro é, necessariamente, resultante desse
caminho de três tempos, fruto de um laço tecido do bebê já nascido, que,
sofrendo as consequências de uma falta real, vai em busca do objeto capaz de
ilusoriamente restaurar aquilo que para sempre se perdeu. Busca refazer aquele
momento no qual o externo estava no lugar da indiferença, pois não tinha
nenhum registro de que esse externo poderia ser algo que pudesse se tornar
parte do Eu. Todo o trabalho dos três tempos do circuito pulsional refere-se ao
árduo trabalho de um sujeito nascendo de fato. Em ato, o nascimento é o corte
fundante para que o sujeito possa começar a inaugurar seu circuito pulsional.
Analiso aqui o nascimento de um sujeito que possa transcender o
momento da alienação que representa esse terceiro tempo. É um quarto tempo,
aquele em que o bebê se entrega ao outro, deixando claro seu estofo narcísico,
já tendo condição de se retirar em parte dessa cena. Como quando entrega seu
pezinho, sua barriguinha, seu pescoço para ser deliciado pela sua mãe e aos
poucos os tira; quando responde às demandas de fazer gracinhas, para ser
bem olhado por ela, e depois começa a dizer que não; quando come “bem e
bonitinho”, para ver sua mãe muito satisfeita e aos poucos nega alguns alimentos,
deixando claro que já pode fazer sua escolha de satisfação (o que e o quanto
quer comer!); quando se presta a aceitar todas as roupas e adornos que sua
mãe lhe coloca e, aos poucos, os retira, um a um, impedindo que os mesmos
sejam repostos; quando se mostrava muito satisfeito em ver a satisfação de
sua mãe em trocar suas fraldas, para começar a não querer mais ser
incomodado enquanto faz seu cocô (escondendo-se em algum cantinho da
casa) e demonstrando que não é mais quando sua mãe quer que as fraldas
serão trocadas, mas, sim, e também, quando ele achar que isso já tem
necessidade. Portanto, é um quarto tempo do circuito pulsional que possibilita
que o sujeito, atravessado pela castração simbólica, nasça de fato. Isso, porque,
para que esse quarto tempo se inaugure, é vital que a castração esteja operando
nos dois campos: na mãe e na criança. Para isso é necessário que alguém
faça o circuito da pulsão de fato circular, se refazer e, portanto, tornar possível
os efeitos simbólicos da castração: apoderar-se do objeto ilusoriamente
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Simone Mädke Brenner
satisfatório, fazê-lo ser real e simbolicamente marcado no corpo, devolvê-lo ao
outro como a clara declaração de uma dívida impagável para, depois, conseguir
dizer que sim, por ser impagável ela precisa simbolicamente circular, seguir
seu rumo não ficar fixada ali. Ficar fixada talvez seja o fruto de ficar presa no
terceiro tempo do circuito pulsional: no tempo da alienação ao Outro.
Cabe também destacar que, quando há uma tendência particularmente estreita da pulsão ao objeto, utilizamos o termo fixação
para designá-la. Essa fixação ocorre com frequência em períodos
muito iniciais do desenvolvimento da pulsão, opõe-se então
intensamente à separação entre pulsão e objeto e põe fim à
mobilidade da pulsão” (Freud, [1915] 2004, p.149).
Aqui se instauram as condições para a resolução edípica: cena na qual o
bebê “pergunta” para sua mãe até que ponto ele não é tudo aquilo que ela deseja
e, ao mesmo tempo, está seguro do seu amor.
Quando falo do quarto tempo do circuito pulsional, penso naquilo que
Françoise Dolto(1984) nos apresenta sobre o conceito de castração simbolígena.
Pela castração simbolígena, ao contrário, a mãe, que desmamou
o filho e constatou, através de seus gritos, o mal-estar que ele
sente em viver e em aceitar esta prova, esforça-se por consolá-lo.
Tanto mais quanto, frequentemente, ela também sofre com esta
mudança de relação com seu próprio corpo e com seu bebê. Ela
inicia a criança de modo a sentir-se tão próxima dela e ainda mais
agradavelmente do que antes da privação, em troca humana com
ela. A mãe a inicia de modo a encontrar na comunicação linguageira
com ela uma introdução à atenção do outro: o pai, os irmãos e
irmãs, consoladores e interlocutores substitutos, aliados à mãe,
que vêm revelar ao bebê um mundo social... É assim que,
justamente, o desmame, esta castração oral, é simbolígena (Dolto,
1984, p. 67).
Para Dolto, a castração que opera na criança necessariamente também
precisa operar no adulto. Portanto, o que ela chama de “troca humana” tem a ver
com a linguagem ser o meio fundamental de consolá-la, não mais com o objeto
que fora interditado e nem com outros que simplesmente os substituam. Ambos
estão privados desse objeto: a mãe e o bebê, e o que sustenta essa operação
de interdição não é só a privação do objeto, mas, sim, junto com esta, as palavras
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O quarto tempo do circuito funcional
que bordejam aquilo que caiu. Para Dolto, é essa operação que torna possível o
trabalho da sublimação, que é da ordem da cultura, da Lei.
No entanto, saber sobre o efeito simbólico da castração só é possível no
momento posterior, podendo-se saber então sobre os “frutos das castrações”,
que para Dolto representam:
o destino dado às pulsões que não podem satisfazer-se diretamente
na satisfação do corpo a corpo, ou na satisfação do corpo com
objetos eróticos incestuosos. Tais pulsões são mantidas como
proibidas – e há aí o fato de realidade promocional – pelo modelo
que editou o dito da proibição, no respeito da humanização da
criança (Dolto, 1984, p.61).
Só sabemos sobre a consistência simbólica da castração pelo que a ela
se segue. Da mesma forma, a operação do circuito pulsional: só temos como
saber sobre a consistência do segundo tempo a partir de terceiro tempo, isto é,
se quando o bebê se fizer ser objeto de si mesmo (por exemplo, chupar-se) ele
mostra ter sido marcado pelo Outro (por isso, ao chupar-se, ele se faz sustentado
por este) ou não. Isso, porque, se ele está se chupando e isso está atado ao
que se constrói na relação com o outro, isso lhe possibilita buscar este e entregarlhe seu “tesouro”. Isto é, o terceiro tempo testemunha a consistência do segundo
tempo. Nesse terceiro tempo ele declara que mesmo quando se vê tendo que se
haver com a solidão, consigo mesmo, o Outro está marcado já no seu corpo;
por isso é um chupar-se por um tempo, até que o outro retorne. Ele não prefere
o chupar-se ao encontro. Quando não há a passagem para o terceiro tempo,
nos vem a pergunta sobre o que operou (ou não operou) nos tempos anteriores,
isto é, que caminho desses tempos foi trilhado que, no terceiro, o sujeito nos
mostra que o chupar-se não era mediado pelos efeitos do Outro no seu corpo e,
sim, era uma tentativa de com isso fazer algo para que seu corpo não
desaparecesse. Sim, a sensação que um sujeito tem de não ser marcado no
real do seu corpo pelos significantes que o significaram é o ter que fazer esse
real ser de fato sentido, para que o corpo não desapareça.
Por isso, no terceiro tempo o sujeito faz uma declaração de amor, porém,
no âmbito da alienação, com todos os benefícios e riscos que sabemos que
isso tem.
A clínica nos aponta como, em muitos casos, ficar atado neste terceiro
tempo desfaz o circuito pulsional, por isso acho precioso o nome “circuito”. É
uma palavra que aponta a algo que precisa estar em movimento, em reorganização. Portanto, para que o circuito se dê, é necessário que os tempos não
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Simone Mädke Brenner
se fechem. Quando será que um tempo pulsional pode vir a se fechar e, com
isso, pôr em risco o circuito?
Entendo que em qualquer um dos tempos o risco ocorre, quando o encontro
com o Outro por alguma razão fracassou. Às vezes fracassa, por exemplo, em
momentos quando o nascimento do bebê não coincide com o momento em que
o sujeito-mãe possa psiquicamente encontrá-lo, como nas graves depressões
maternas. Outras vezes, pelo fato de o pequeno sujeitinho nascente ter algo
que, em sua origem, dificulta muito a sutileza desse encontro (por exemplo:
crianças que nascem com patologias orgânicas que dificultam muito o encontro)
ou ainda pelo fato de a mãe ter uma condição psíquica que não passa pelos
efeitos da castração simbólica; portanto, não há de fato condição de encontro
com o Outro, mas, sim, o bebê é tomado como espelho da mãe. Neste último,
é como se o outro reconhecesse na criança puramente a si mesmo, não havendo
condição para a surpresa, para a dúvida, para a descoberta. Enfim, nesse tipo
de contato o sujeito-bebê não existe para a mãe, ele funciona como um reflexo
do espelho, uma imagem que sustenta aquele que olha, nada mais. Esses são
alguns dos momentos nos quais há o risco de o circuito se fechar, isto é, a
pulsão ilusoriamente atingiu o objeto e aí se fechou.
O quarto tempo de que falo, penso ser o tempo que confere o estatuto
simbólico da castração nos dois lados: no lado do bebê, que se entrega ao
outro, porém não todo (quando ele já pode decidir o quanto sua mãe pode se
“deliciar” com seu corpo) e do lado da mãe, que primeiro torna possível esse
endereçamento (tendo possibilitado que juntos construíssem os três tempos
anteriores), como também a retirada do corpo como objeto de deliciar-se, sendo
aquela que suporta e confere um valor inegável nessa declaração feita pelo bebê
de que ela é não toda para ele (e vice-versa). Enfim, ele também a castra.
Existem mães que nesse momento sucumbem, isto é, não toleram essa
castração que elas próprias deram condição para que o bebê ensaiasse. Aqui
penso ser um daqueles momentos em que Dolto fala da castração não
simbolígena na mãe, pois, para ter chegado ao quarto tempo, operou a castração,
porém sem a condição simbólica necessária para que ela produza seus frutos.
Os frutos da castração não sabemos quais são, essa é por excelência a
castração simbólica. Quando ela opera, todos estão marcados por ela. Uma
mãe, ou alguém na posição de mestria, sucumbe por ter a ilusão de que a
castração só é operada no outro, e não em si mesmo ao mesmo tempo. Tem a
ilusão de poder controlar a castração.
Falo de alguém na posição de mestria, pois abro aqui a minha tentativa
de entender, trabalhar e construir a ideia deste quarto tempo do circuito pulsional
a partir do que Freud, Lacan e Dolto trazem sobre o tema, não se restringindo às
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O quarto tempo do circuito funcional
questões de uma pequena criança. O circuito se faz e se refaz durante toda a
vida. Pensar sobre um bebê na sua relação com o Outro primordial é um recurso
clínico importante para pensarmos a montagem desse circuito, mas isso não
significa que este se reduz à infância, mas, sim, que refere-se ao infantil de
cada um de nós.
Interessante que,no texto de Freud ([1915] 2004)sobre as pulsões e
destinos das pulsões, o quarto destino das pulsões é a sublimação, isto é, uma
forma de termos acesso à satisfação da pulsão,porém necessariamente
bordejando-a, jamais satisfazendo-a.
As três fantasias de que Freud fala no texto Bate-se numa criança me
parece que têm relação com esse circuito; porém, trata-se de um circuito que
não chega ao quarto tempo.
O que acontece é que, na fantasia de ser batido, o sujeito, mantendo-se
de fora, consegue inserir o terceiro na cena (o sujeito olha, mas fora da cena),
depois o sujeito volta a uma posição dual (ele e o outro), para, num terceiro
tempo, estar numa posição de ser capturado pela cena, isto é, o prazer que
sente na fantasia o impede de deixá-la circular, de perdê-la. Freud fala que aí
está o risco da perversão, isto é, a fantasia funcionar como algo que burla os
efeitos da castração, e não como o testemunho dos efeitos dela.
Talvez a pergunta sobre o que faz uma criança ficar fixada num objeto
pulsional, no olhar do outro, sem conseguir estar livre, seja que na infância ela
precisa que o adulto esteja ele próprio já submetido a isso mesmo a que ela
precisa se submeter: aos efeitos da castração, da Lei, da linguagem.
Por isso, é fundamental nos perguntarmos por onde deslizam os conteúdos
imaginários de uma criança, isto é, a serviço de que a fantasia está operando?
Acho importante poder pesquisar se, quando a criança fantasia ou brinca, deixa
claro que sua produção psíquica toma um rumo quando uma castração simbólica
operou; por exemplo, quando se abre, a partir da interdição, uma criação que é
claramente marcada pela castração. São aqueles momentos em que elas chegam
claramente a nos dizer: “já que não posso dirigir de verdade, vou inventar o meu
carrinho e aí sim vou poder dirigir de continha! Mas... quando eu for grande vou
poder de verdade, né?!” Isto é, a criança, na sua produção no brincar, verdadeiramente faz um ato de criação o qual a possibilita tanto ser permeável à castração
quanto mantém, a partir desta, um sonho. Ela constrói uma mediação que costura
tempos diferentes (o passado, o presente e o futuro) e que a submete a uma lei
que lhe possibilita criar e não a impede de sonhar. Isso é por excelência um
brincar! Diferente de uma fantasia cuja trajetória é achar formas de burlar aquilo que
foi interditado. São situações em que as crianças passam muito tempo, um tempo
que muitas vezes finda com a exaustão, insistindo em inventar artimanhas, histórias,
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Simone Mädke Brenner
na aposta de que o outro possa ser trapaceado, que sua insistência vai lhe
garantir aquilo que lhe foi proibido. Aqui, o brincar (fica a pergunta se de fato é
um brincar!), as invenções, mostram que a criança está fixada, presa, refém da
ineficácia de uma castração simbólica. Como muito bem nos fala a minha
paciente! Em outras palavras, a primeira tem o efeito de possibilitar que o sujeito
deslize, faça uma história (sua história!), enquanto na segunda o sujeito patina,
fica capturado por uma instância que o impede de seguir seu rumo.
No caso da criança anteriormente relatado, o quarto tempo não estava
inscrito no outro, isto é, na cena em que ela interdita que o outro goze no e com
seu corpo, o outro lhe diz: não. O que ela fala com seus sintomas e com suas
palavras é do quanto ainda padece de uma cena na qual o outro toma seu corpo
como objeto, o corpo dessa criança não está numa posição casta, e, sim,
altamente erotizada. O pedido por ser batida por todos mostra o quanto sua
posição sadomasoquista chega ao ponto de alienação em que ela se coloca
ativamente a ser passivamente destruída. Ora, as crianças nos ensinam muito
sobre essa lógica, a lógica de um adulto que, por não estar suficientemente
marcado pelos efeitos da castração, na relação com ela, revela aquilo que não
pôde ser recalcado e que é fruto simplesmente de uma repressão. Portanto, há
um não, um não à castração do interditor. Isso é o que impede que a criança
seja beneficiada pelos efeitos da lei simbólica.
Assim, para que o quarto tempo do circuito pulsional se inscreva, a criança
precisa que a declaração de amor do outro parental já possa também ter sofrido
o interdito do corpo. Sem essa inscrição simbólica no outro parental, a criança
fica na posição de dúvida se pode insistir nesse quarto tempo sem correr o risco
de se perder de seus pais.
Portanto, entendo que a mistura de pavor e de prazer nesta menina, quando
sofre as agressões do pai, diz disto: é no corpo, na invasão que ela se sente
amada, “mal amada”, mas amada. Ela só consegue suportar o risco de insistir
no quarto tempo quando sua mãe consegue lhe oferecer outra forma de amor,
um amor que passa pelas palavras, e não pelo corpo somente. Isso está dito na
poesia em que ela fala na última sessão: são palavras amorosas e não palavras
atos de corpo.
É rico como essa criança nos mostra que inoperância dos efeitos dos
significantes como sustentáculo da castração faz o corpo dela entrar em colapso.
Sua doença neurológica fala claramente disso: suas convulsões noturnas, sua
impermeabilidade às medicações, que a acalmariam e que diminuiriam suas
convulsões, seu funcionamento cerebral, que aponta importante alteração em
áreas do cérebro que “falam” dos efeitos do recalque, do interdito no real do
corpo, fazem com que seu cérebro funcione sem freio simbólico. Nada o acalma,
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O quarto tempo do circuito funcional
o organiza; enfim, é um funcionamento cerebral que revela claramente os efeitos
da inexistência da Lei operada pelos significantes no corpo. Esse caso nos
aponta o quanto o que sustenta as sinapses, a organização do cérebro e seu
bom funcionamento, não é somente ele estar sadio, mas, sim, que ele precisa,
como todos os órgãos de nós, humanos, daquilo que compreende a construção
do que Dolto fala da imagem inconsciente do corpo. O fato de o cérebro não ter
sido marcado pelos efeitos “humanizantes” – que compreendem o trabalho de
sucessivamente recalcar o corpo através da construção e da estruturação da
linguagem – põe, sim, em risco o funcionamento cerebral.
Quero marcar aqui a relação da polaridade do ciclo pulsional com
algo que está sempre no centro. É um órgão, a se tomar no sentido
de instrumento, da pulsão – num sentido diferente, portanto, daquele
que tinha há pouco, na esfera da indução do ich. Esse órgão
inapreensível, um objeto que não podemos mais que contornar e,
numa palavra, esse falso órgão – aí está o que convém agora
interrogar.O órgão da pulsão se situa por relação ao verdadeiro
órgão (Lacan, [1964]1979, p.185).
A forma como a criança vai melhorando em seus sintomas diz exatamente
disto: da capacidade que as palavras têm de organizar um corpo, um órgão.
Palavras essas que são frutos de uma relação do sujeito com um outro para o
qual as palavras têm o efeito simbólico. O trabalho com crianças nos ensina
esse lado muito impressionante do quanto as palavras marcam o corpo, no
mais real que se pode pensar. “As palavras para tomarem sentido, devem,
primeiro, tomarem corpo, serem, ao menos, metabolizadas em uma imagem do
corpo relacional” (Dolto, 1984, p.34).
Essa menina confirma o que Dolto afirma, mostrando que o corpo, para
tomar sentido e ser sentido precisa, primeiro, ter sentido nas palavras de um
outro .É com as palavras, com os efeitos dos significantes que um corpo pode
adormecer,se organizar, se acalmar e poder, aos poucos, ser esquecido pelos
efeitos da operação do recalque, e não da repressão. Digo do recalque, quando
um corpo é silenciado através das operações do recalcamento nas quais o
trabalho psíquico é o de, gradativamente, ir traduzindo, suplantando algo que
parte do órgão/corpo e que, através das construções das sucessivas “camadas”
de linguagem, o corpo vai se “escondendo” e gradativamente se dando a ver
pelas produções simbólico-imaginárias que a partir dele são criadas, isto é, o
órgão/corpo vai sendo “humanizado” (Dolto). Diferente de um corpo que, por não
ter sido beneficiado por esse trabalho, sente-se pulsando demais, sendo sentido
85
Simone Mädke Brenner
demais, a ponto de impossibilitar que o sujeito possa minimamente esquecê-lo.
Ele então, para ser suportável, é muitas vezes “apagado”, seja pelo “deletar” de
suas sensações, seja pelo apagamento químico.
Essa menina também nos mostra o quanto ela clama pelos efeitos dos
significantes que possam humanizá-la. Prova disso é a forma clara e precisa
com que ela demanda ser escutada. Outro detalhe precioso é que, apesar de
ela ter um quadro neurológico importante, nas sessões ela nunca mencionou
esses episódios. Eu sabia das suas convulsões pelo relato dos pais e da
neurologista. Isso era algo com que eu me questionava muito: por que será que
isso não a faz sofrer, não a assusta, como para a maioria das crianças que
sofrem desses sintomas? Ela vai me ajudando a entender isso exatamente pela
via dos efeitos que tinha para ela o falar de si e ser escutada. Obviamente,
nesse movimento de falar do corpo bordejando-o, isto é, sem falar das convulsões
noturnas, ela fala do que a fazia enlouquecer à noite, o que a fazia ter um corpo
que se mexia sem controle, desesperadamente, até a exaustão. Portanto, ela
fala sem falar do que sabe sem saber que sabe. Essa operação foi acionada
pelo efeito da fala da neurologista, pois é ela que aponta para a criança que seu
corpo pedia por vários cuidados: cuidados médicos referentes a ele estar
claramente em risco, como também cuidados que se referiam à imagem
inconsciente do corpo.
Bem, venho tentando “costurar” alguns conceitos que, para mim, são
fundamentais na clínica – pulsão, recalque, castração, circuito pulsional –, para
buscar com eles pensar sobre uma pergunta que esse caso o tempo todo me
fazia: há um abuso? O que é, afinal, o abuso?
Essa é uma questão importante no que tange ao trabalho do recalcamento:
fazer o corpo pulsionar no âmbito simbólico é aquilo que a criança nos ensina
quando passa do momento de olhar, mexer e se meter em tudo para o falar,
perguntar, se tornar curiosa com as palavras, e não mais com o ato. Isso envolve
um longo e árduo trabalho, que Dolto denomina de pulsão epistemológica, aquela
que nasce a partir do interdito do corpo (no mais amplo sentido que possamos
pensar!) e que é fruto das sucessivas castrações com que um sujeito é
beneficiado. Falo no amplo sentido de interdição do corpo, pois isso se mostra
nas pequenas crianças de forma aparentemente muito simples e cotidiana, muitas
vezes camuflada por cenas muito “amorosas”, exemplos de uma grande
“dedicação” materna. Refiro-me àquelas situações comuns no trabalho clínico
com crianças quando estas nos mostram seus sofrimentos por ficarem atadas
ao momento de ruptura necessária ao outro e que “patinam” exatamente porque
encontram no adulto dificuldades para sustentarem os efeitos da castração.
São situações em que o adulto força a criança a comer aquilo e o quanto ele
86
O quarto tempo do circuito funcional
quer que ela coma, que a criança faça cocô e xixi no momento em que o adulto
quer (isso se inclui, na definição por parte deste, de quando as fraldas serão
retiradas), na insistência em manter uma higiene rigorosíssima, a qual impede
que a criança comece a poder cuidar sozinha de seu corpo...
Enfim, são alguns dos inúmeros exemplos de situações nas quais as
crianças nos ajudam a pensar que o abuso é algo muito mais sutil e complexo
do que muitas vezes podemos pensar. Abuso porque, para uma pequena criança
viver esses momentos que parecem tão simples, mas que são de fundamental
importância (são os momentos em que ela inaugura seu nascimento como sujeito
de fato, e que são as situações que possibilitam ou não o circuito pulsional), é
necessário que o outro tenha no seu inconsciente a marca desta castração.
Para o adulto ter a sutileza de interpretar o quanto uma criança precisa e deseja
comer, o quanto suas fezes e sua urina representam muito mais do que um
simples controle esfincteriano, e, sim, representam a saída daquilo que entrou
(e como entrou?!), de que suas roupas, que até agora sua mãe escolhia e vestia,
passam a ser quase sua própria pele (por isso brigam tanto para elas próprias
se vestirem e se despirem!), é necessário que esse adulto tenha diante do corpo
do seu filho a construção do interdito, o qual o possibilita saber até onde penetrar.
Talvez esses sejam os abusos mais difíceis de serem trabalhados: os
que são revestidos de “muito amor e muita dedicação”, aqueles que fazem não
só a criança, mas também a qualquer sujeito, ficar atado. Atado, porque no
outro está o imperativo de não transpor o terceiro tempo do circuito pulsional,
isto é, o não ousar interditar o Outro. Nessa lógica, a castração opera num lado
só: é como se a mãe dissesse para a criança que esta precisa comer para que
assim a mamãe se sinta feliz (aliás essa é uma frase comum de se escutar!),
pouco importando o que isso representa para a criança. E se, mesmo assim, a
criança brigar, lutar para não se submeter ao abuso, a mamãe a chantageia, a
pune, a faz comer à força, muitas vezes até vomitar. Isso é um abuso! Sabemos
que isso pode, sim, acabar com o circuito pulsional, fazer a criança se perder de
si mesma e ficar fixada ao outro. Ficar fixada, seja pelo direito, rendendo-se
como belo cordeiro que come pela sua mãe e toma assim um volume de corpo
que não é o seu (como alguns casos de obesidade), seja pelo avesso, numa
negativa que se torna um imperativo (como alguns casos de anorexia). De qualquer
maneira, nesses cenários o jogo de ir e vir, de se entregar e de poder receber, de
poder se desarmar sem ter medo de ser engolido pelo outro não está armado.
Arma-se um cenário de guerra, de quem domina quem, quem invade mais, quem
se submete mais, enfim, é um cenário que muitas vezes nos apavora quando
vemos uma pequena criança de dois anos enlouquecendo seus pais. Enlouqueceos porque eles a enlouqueceram, deixando-a perdida com suas pulsões.
87
Simone Mädke Brenner
Ora, essa loucura primordial, uma desconfiança primordial, abala as
possibilidades de qualquer sujeito, tenha a idade que tiver, de amar. A cena que
uma pequena criança nos ensina sobre esse momento de saída do terceiro
tempo do circuito pulsional e de poder ser sustentada no quarto tempo é, ao
longo da vida, o que a possibilita amar. Amar numa posição de entrega que
nunca é total, a que sempre sobra e falta algo, e que exatamente por isso faz o
desejo circular, “Circuitar” com as pulsões.
REFERÊNCIAS
DOLTO, F. A imagem inconsciente do corpo (1984). São Paulo: Editora Perspectiva,
1992.
FREUD, S. Pegan a um nino [1919]. In: ______. Obras completas. Buenos Aires:
Santiago Rueda, 1953.
______. Pulsões e destinos da pulsão [1915]. In: ______ Obras completas. Rio de
Janeiro: Imago, 2004.
LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise[1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.
Recebido em 15/12/2011
Aceito em 20/03/2012
Revisado por Maria Ângela Bulhões
88
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 89-98, jan./jun. 2011
TEXTOS
A INFÂNCIA COMO TEMPO
DE INICIAÇÃO À ARTE DE
PRODUZIR DESOBJETOS1
Simone Moschen2
Resumo: O artigo propõe discutir os possíveis efeitos, sobre o brincar, da extensão
do ensino fundamental para nove anos, com ingresso obrigatório aos seis anos
de idade. Seu horizonte é sustentar a importância do brincar como exercício
capaz de franquear às crianças o passaporte para o simbólico e para as
possibilidades de invenção que o caracterizam.
Palavras-chave: infância, brincar, ensino de nove anos.
THE CHILDHOOD AS THE TIME OF INITIATION
TO THE ART OF PRODUCING NONOBJECTS
Abstract: The article proposes to discuss the possible effects of the extension
of elementary school to nine years on the child´s play, with compulsory admission
at the age of six years. Its horizon is to sustain the importance of play as an
exercise able to give children the passport to the symbolic and to the possibilities
for invention which characterize play.
Keywords: children, play, elementary school of nine years.
Este texto foi produzido para apresentação na Mesa Redonda intitulada A infância e as novas
políticas para a educação. O tom oral da intervenção foi, neste artigo, mantido em grande parte.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Professora do
Pós-Graduação em Educação e em Psicologia Social e Institucional/UFRGS; Pesquisadora do
CNPq. E-mail: [email protected]
1
89
89
Simone Moschen
E
ste artigo resulta do debate desdobrado em uma mesa de discussão intitulada
A infância e as novas políticas para a educação. Na ocasião, discutiam-se
os possíveis efeitos da implementação de uma política de educação que indicava
o acréscimo de um ano ao ensino fundamental; sendo esse ano incorporado ao
início da escolarização. Essa nova normatização, que implicou o ingresso
obrigatório das crianças aos seis anos na escola, tinha como horizonte, dentre
outros objetivos, o de ampliar o período da escolarização, que é de responsabilidade do estado brasileiro. Este texto quer refletir sobre o impacto que mudanças
operadas pelos adultos no modo de conceber e propor a infância produzem
sobre a experiência que as crianças fazem do mundo e de si.
Se, por um lado, os modos de viver a infância, como idade da vida, são
absolutamente determinados historicamente e produzidos territorialmente, por
outro lado, podemos situar na criança, especialmente na criança pequena, um
atravessamento que transversaliza diferentes tempos e diversos territórios, a
saber, a condição de extrema dependência dos pequeninos. É sobre as
consequências disso que poderíamos situar como uma constante, em meio às
inúmeras variáveis sócio-históricas, que me proponho a pensar neste texto.
Paradoxalmente, uma constante que faz parte da natureza do pequeno homem
e que, por sua presença, lança-o num movimento de “denaturação” sem fim.
Recorramos aos poetas para inquietar nosso percurso:
Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,
O que talvez seja o Grande Segredo
Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.
Vi que não há Natureza,
Que Natureza não existe,
Que há montes, vales, planícies,
Que há árvores, flores, ervas,
Que há rios e pedras,
Mas que não há um todo a que isso pertença,
Que um conjunto real e verdadeiro
É uma doença de nossas ideias
A Natureza é partes sem um todo.
Isso é talvez o tal mistério de que falam.
Foi isto o que sem pensar nem parar,
Acertei que devia ser a verdade
Que todos andam a achar e que não acham,
E que só eu, porque a não fui achar, achei.
Alberto Caeiro
90
A infância como tempo de iniciação...
Quase nada do que chamamos de humano pode ser sustentado num
argumento que busque na Natureza suas bases. Qualquer raciocínio que se
desdobre reivindicando sua legitimidade numa suposta Natureza dos homens
será facilmente derrubado por uma simples reflexão histórica capaz de nos mostrar
que os homens se produzem como homens quando são assujeitados às
condições de uma ancestralidade que configura um campo de possibilidades e
de limitações para a sua realização. Os homens, cujo estatuto ao nascer poderia
caricaturalmente se resumir a três quilos de carne cabeluda – como refere Lacan
no seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise –, só
passam a ser chamados de humanos quando são nomeados como tais por
outros seres humanos; estes, por sua vez, encontram-se imersos num universo
de linguagem e símbolos historicamente constituídos e territorialmente
enraízados. A humanização do organismo vai se dar no entre-lugares de um
assujeitamento às condições históricas transmitidas pelos adultos próximos às
crianças e da tomada de posição do pequeno frente a esses determinantes que
lhe chegam, vindos de uma ancestralidade que ele não domina.
A condição de dependência que o pequeno ser tem em relação ao outro,
adulto, é característica do organismo humano e tem como consequência abrir
espaço para uma transmissão ímpar. Isso, porque, se pensarmos que o modo
como um adulto dará voz àquilo que supõe ouvir de uma criança que ainda não
fala, está absolutamente determinado pela língua que esse adulto habita, pelas
possibilidades do dizer que essa língua encerra, pelos saberes que a cultura
desse adulto acumulou ao longo de diversas gerações, bem como pelos mitos
que, na ancestralidade familiar, foram se desdobrando de forma a firmarem-se
como verdades que sustentam decisões e julgamentos. Se pensarmos que essa
tradução, que o adulto faz dos grunhidos do bebê, ele a faz banhado nesse mar
de sentidos em que ele mesmo aconteceu como sujeito, podemos dizer, então,
que a dependência do pequeno é o adubo que fertiliza o campo da transmissão
das formações simbólicas de cada linhagem, de cada cultura.
A dependência do filhote humano, determinada pelas condições de seu
organismo, abre espaço para que as manifestações do próprio organismo nunca
sejam lidas sem as interferências da cultura, da qual o adulto, leitor, se faz
intérprete. Paradoxalmente, são as condições do organismo humano que fazem
com que o próprio organismo, sua suposta natureza, nunca seja registrado senão
de forma “deturpada”, ou, dito de modo menos coloquial, de maneira mediada
por uma interpretação simbólica. São as características de dependência do
organismo da pequena criança que a inclinam à busca do olhar do adulto, de
sua voz, de seu toque, das condições de leitura do mundo que este pode lhe
doar. A pequena criança, de forma bastante radical, se vê no espelho que o
91
Simone Moschen
adulto lhe oferece. Esse espelho, porém, reflete os sentidos que o ser criança
tem naquela cultura, naquela formação familiar, nas fantasias daquele adulto
que, travestido de superfície refletora, devolve ao pequeno a significação de sua
imagem.
A condição de absoluta dependência do pequeno organismo humano
determina que tudo que seja humano, desde o início, passe por uma interpretação
simbólica, uma interpretação linguageira, que, por sua vez, é determinada
culturalmente. O modo como os pequenos ingressam no mundo faz com que
suas manifestações sejam necessariamente capturadas na ordem das palavras
dos outros que os recebem e lhes apresentam a vida, capturadas pelos sentidos
atualizados por esses outros, fazendo com que a dita Natureza humana nunca
se atualize de forma direta. Isso faz com que a Natureza seja uma referência
mítica a um organismo que, ao ser tatuado pelas palavras, se transformou em
um corpo desnaturado.
A necessidade que temos de nos ver através dos olhos, da voz, da
interpretação do outro, essa necessidade, radical na primeira infância, nos
acompanha pelo resto de nossa existência. A especificidade da criança está no
fato de que, quanto menor ela é, menos dispõe de instrumentos psíquicos e
cognitivos para falar em nome próprio. Quanto menor é a criança, maior é sua
colagem a esse outro/Outro3 – outro/Outro entendido tanto como semelhante,
quanto como tesouro dos significantes. Quanto menor a criança, maior é sua
dependência, para acontecer como sujeito, de encontrar alguém – seria melhor
dizer “alguéns” – disposto(s) a suportar sua condição inicial de profunda
dependência.
Uma boa forma de visualizarmos essa dificuldade de falar em nome próprio
é nos recordarmos do modo como a criança se refere a si mesma, quando está
iniciando seus primeiros ensaios pela fala. O pequeno, com frequência, se referirá
a si em terceira pessoa, dizendo: a Simone quer, a Simone gosta. A criança fala
de si colada à posição discursiva do outro. Fala de si deslocando-se para o lugar
desde onde o outro fala dela. Diríamos, em termos linguageiros, que, embora o
enunciado “a Simone gosta” seja próprio, o lugar da enunciação é ainda o do
outro. Só num segundo momento se abrirá uma fenda nessa colagem, e a criança
“Lugar onde a psicanálise situa, além do parceiro imaginário, aquilo que anterior e exterior ao
sujeito, não obstante o determina [...]. O que se tenta indicar com essa convenção escrita é que,
além das representações do eu e também além das identificações imaginárias, especulares, o
sujeito é tomado por uma ordem radicalmente anterior e exterior a ele, da qual depende, mesmo
que pretenda dominá-la” (Chemama, 1995, p.157).
3
92
A infância como tempo de iniciação...
poderá tomar a palavra em nome próprio, para, então, dizer eu. O jogo entre o eu
e o tu retira sua complexidade do fato de que a fala não diz simplesmente do
uso de um instrumento de comunicação, mas nos informa do lugar desde o qual
estamos nos situando para falar.
Essa posição da criança, de colagem discursiva ao outro/Outro colocanos, aos que trabalhamos com os pequenos, na extrema responsabilidade de
nos perguntarmos sempre sobre o que estamos antecipando como possibilidades,
como demandas e como sentidos para os filhotes humanos. Pois, se as crianças
mais facilmente se colam ao outro/Outro, o que este lhes disponibiliza tem um
impacto que não é de se negligenciar.
Assim, quando falamos de políticas públicas voltadas para a infância,
estamos falando sobre a construção de um terreno que antecipa discursos,
sentidos e práticas que podem tomar os pequenos sem muita mediação.
Particularmente neste momento, penso que se faz absolutamente necessário
que pensemos sobre o que estamos demandando das crianças, quando
elaboramos uma lei que amplia o ensino fundamental para nove anos e requer a
matrícula nesse ensino aos seis anos. Que experiência de infância estamos
construindo quando elaboramos esse texto legal – ou outros? Pois não se trata
somente de letras no papel. Trata-se de letras que constituirão práticas, que
produzirão sentidos, que dirão aos pequenos que chegam o que é ser criança
em nosso mundo. Os pequenos, por sua vez, ávidos de sentido, se identificarão
a essas proposições e assumirão, com maior ou menor facilidade, aquilo que
lhes transmitimos.
Façamos um pequeno parêntese para retomar algumas das proposições
de Philippe Ariés (1981), no trabalho intitulado História social da criança e da
família. Esse trabalho pode nos interessar na medida em que ele nos faz ver
como mudanças no mundo dos adultos introduzem novos sentidos e potencializam novas experiências para as crianças. Nessa pesquisa, o autor desdobra a
tese de que o sentimento de infância, tal como se desenha em nossa cultura,
teve seu nascimento por volta do século XVII. Estavam presentes na sala de
parto da infância ilustres convidados que apadrinharam tanto essa experiência
nascente como patrocinaram, se não o surgimento, o adensamento desse tempo
que chamamos de Modernidade. A infância, como tempo de preparo para a vida
adulta, como espaço de ensaio tutelado das responsabilidades e possibilidades
que o mundo público requer, faz parte do projeto civilizador que caracterizou a
Modernidade. Projeto que talvez estejamos questionando, em nosso tempo
presente, por conta da experiência de seus engodos e de seus limites.
A passagem de uma organização calcada de forma privilegiada no coletivo
a uma organização social que produziu a privatização dos conflitos, em que o
93
Simone Moschen
argumento passou a ser buscado na intimidade do ser e, mais do que isso, em
que essa busca foi acompanhada da tentativa constante de estabelecer o
apagamento das determinações simbólicas do sujeito; essa passagem abriu
espaço para a possibilidade e para a necessidade de se estabelecer um tempo
da vida no qual os pequenos seriam chamados a se ensaiar nas atribuições do
mundo dos grandes, seriam paulatinamente nelas introduzidos, de forma a
construírem os instrumentos “internos” necessários para realizar a ascensão –
seja ela de que ordem for – esperada pelos adultos.
É no momento em que a posição que cada um ocupará no mundo não
está antecipada por uma trama social estável que a infância tem lugar como
incubadora de perspectivas de realizações futuras – perspectivas e apostas,
pois os adultos passarão a ver nos pequenos a possibilidade de transposição de
suas frustrações, de realização de seus desejos fracassados. Como homens
modernos, não tivemos nosso destino traçado na origem – ou, pelo menos,
queremos crer que não –, mas fomos chamados a construí-lo individualmente –
vale sublinhar: individualmente –, ensaiando-nos nessa construção no tempo
denominado de infância. Como homens modernos, guardamos a ilusão de sermos
fundadores de nós mesmos; ilusão que talvez consista em um dos grandes
engodos que nos constitui e nos aproxima. Supomos e buscamos a autonomia
do ser, a realização de si, sem qualquer dependência do outro, a espontaneidade
máxima, a independência e a liberdade totais. Contudo, esquecemos de lembrar
que apostar nessa via nos deixa cada vez mais sós, cada vez mais desamparados,
cada vez com menos possibilidades de criar o mundo e a nós mesmos – não à
toa vivemos uma verdadeira epidemia de tristeza e desamparo que a indústria
farmacêutica espertamente nomeou de depressão.
Acho muito intrigante que o alargamento do ensino fundamental se dê na
direção da primeira infância, e não da juventude. Está bem que possamos pensar
que a medida pode intencionar garantir, para um número maior de crianças
menores, o ingresso na escola. Mas, por que não trabalhar no sentido de tornar
a educação infantil uma realidade cada vez mais abrangente? Por que não nos
colocarmos justamente a questão pelo seu avesso, ou seja, de que os jovens
chegam muito jovens diante da necessidade de optar – quando têm opção – por
um projeto profissional? Que infância estamos propondo, ao alargar o ensino
fundamental no sentido do início da vida? Não estaríamos completamente
consonantes com um movimento de achatamento da experiência da infância e
de alargamento do que chamamos de adolescência?
Valem mais algumas palavras sobre a aceleração do tempo. Como pensála em relação a algo que se desdobra na infância: o brincar? Quando nos referimos
à infância, certamente nos vemos acompanhados pela ideia do brincar. Infância,
94
A infância como tempo de iniciação...
em nossos tempos, é composta por gente que brinca. Desde que o sentimento
de infância, como um tempo de ensaios para a vida na pólis, passou a fazer
parte de nosso ideário compartilhado, o brincar como característica desse tempo
também passou a ocupar um plano privilegiado – talvez tão privilegiado que não
reconhecemos na adultez a necessidade de brincar.
Freud ([1920]1974), na década de 20, escreve um dos poucos textos em
que aborda diretamente o brincar. A essa atividade ele atribui três características:
a repetição, a passagem operada pela criança através da brincadeira da posição
passiva à posição ativa frente ao outro, e o vir-a-ser desdobrado pelo brincar.
Gostaria de dedicar algumas palavras a essa passagem da posição passiva à
posição ativa que está em curso sempre que uma criança se põe a brincar.
Lembremos por onde iniciamos: pela ideia de que a criança nasce nas palavras
dos adultos que lhes são próximos. É por esses adultos que ela é significada,
acontecendo como ser humano a partir dos sentidos que lhe são atribuídos.
Trocando em miúdos, a criança nasce como sujeito, assujeitada às nomeações
que lhe vêm do Outro. Nasce como sujeito numa posição passiva frente a esse
Outro. O passaporte que ela vai cunhar para a posição ativa, para o lugar de
sujeito de uma ação, para a condição de falar em nome próprio, é elaborado
com o material que lhe chega do brincar. É o brincar que vai armar a ponte do
lugar de assujeitamento ao lugar de sujeito. Por isso, o brincar é coisa tão séria
para a criança. Por isso, também é tão preocupante quando uma criança não
brinca, pois é como se ela tivesse aberto mão, ou não estivesse podendo dispor
dos instrumentos pelos quais ela vai armar uma posição ao mesmo tempo
enlaçada e diferenciada frente aos outros que a apresentaram ao mundo.
O brincar é a construção de uma versão própria sobre o mundo ao qual a
criança foi apresentada pelo adulto. Assim, quando observamos um achatamento
da infância operado pelo incremento das tarefas e pela diminuição do tempo livre
– o tempo do brincar – poderíamos nos perguntar o quanto não estamos
construindo como horizonte uma adultez em que os sujeitos vão se encontrar
cada vez mais reduzidos a uma posição de passividade frente ao Outro. Claro!
As coisas não são tão lineares assim; mas vale pensar sobre as consequências
de um mundo no qual o brincar fica cada vez mais rarefeito. Isso porque, tomando
a tese freudiana como pertinente, crianças que não brincam têm estreitadas as
suas possibilidades de construir uma posição ativa, de tomar a vida nas próprias
mãos e, nessa medida, essas crianças prenunciam uma adultez mais
dependente e vulnerável ao Outro.
Tomemos agora a outra perspectiva que Freud ([1920]1974) nos lança, a
de que a criança que brinca vai conformando as condições para assumir a posição
adulta. Brincar é brincar de ser grande, numa conjugação absolutamente
95
Simone Moschen
interessante da experiência do tempo: – Agora eu era... Situada no presente,
“agora”, a criança se lança para o futuro, identificando-se ao lugar que o adulto
almeja que ela venha a ocupar e, desde o futuro, ela olha para trás, para onde
ainda está e nos diz: – Eu era. Vale lembrar que essas viagens no tempo são
possíveis graças aos atributos da linguagem. Por estar fazendo a passagem da
passividade à atividade, da fusão ao Outro para a relação ao Outro, a criança
fala de seu agora desde o futuro que o mundo adulto desenha para ela como
horizonte identificatório. No brincar, a criança se ensaia no amanhã sem ter que
responder, em toda a sua extensão, pelos efeitos desse ensaio. Afinal, é só fazde-conta! O pequeno achata o tempo em seu brincar, contraindo a linha que vai
do passado ao futuro e, com isso, ele cria, a partir dos traços que recolhe, das
vozes e olhares do adulto, algo que vai paulatinamente situando como próprio.
Nesse tempo mágico, em que a linearidade está suspensa, florescem as
condições de criação. Manoel de Barros (2003) no belíssimo livro Memórias
inventadas – quais não são – nos fala desse tempo e de sua relação com o
brincar. O início do livro é absolutamente intrigante: “tudo que não invento é
falso” inicia o poeta.
Em um dos capítulos, o poeta canta as peculiaridades da experiência do
tempo do brincar. O capítulo se chama Desobjeto e é lindo para pensar a atividade
imaginativa presente nesse tempo-espaço “zipado” da infância. Esse tempo em
que aprendemos a nos relacionar com os desobjetos que fazem parte do mundo,
que aprendemos a construir desobjetos, que aprendemos a olhar o mundo e a
nos autorizarmos a ver possibilidades não antecipadas nos saberes e nomeações
construídos e consolidados. Um tempo em que nos ensaiamos no espaço da
criação que a linguagem de que somos feitos franqueia. Um tempo mágico, mas
de uma magia que faz parte deste mundo, e não de outros, e que, fazendo parte
deste mundo, de nosso mundo de linguagem, torna possível construir outros
mundos.
Diz Manoel de Barros
O menino que era esquerdo viu no meio do quintal um pente. O
pente estava próximo de não ser mais um pente. Estaria mais
perto de ser uma folha dentada. Dentada um tanto que já havia
incluído no chão que nem uma pedra um caramujo um sapo. Era
alguma coisa nova o pente. O chão teria comido logo um pouco de
seus dentes. Camadas de areia e formigas roeram seu organismo.
Se é que um pente tem organismo. [...] Acho que os bichos do
lugar mijavam muito naquele desobjeto. O fato é que o pente perdera
a sua personalidade. Estava encostado às raízes de uma árvore e
96
A infância como tempo de iniciação...
não servia mais nem para pentear macaco. O menino que era
esquerdo e tinha cacoete para poeta, justamente ele enxergara o
pente naquele estado terminal. E o menino deu para imaginar que
o pente, naquele estado, já estaria incorporado à natureza como
um rio, um osso, um lagarto (Barros, 2003).
No quintal onde os dentes do chão comem os dentes do pente, onde
bichos mijam em desobjetos, onde um pente tem organismo, floresce a
capacidade de se relacionar com o mundo sem a necessária sustentação dos
objetos que se propõe a não ser nada além daquilo que usamos dizer que são.
No quintal de uma infância em que o menino esquerdo vê o mundo pelo avesso
e tem cacoete de poeta, desponta a possibilidade, tão avessa a nossos tempos,
de criar a partir dos restos, de apanhar desperdícios e alçá-los à dignidade das
coisas mais preciosas. No território onde os restos são convites para uma criação,
o mercado dos objetos perde parte de sua necessidade, e nisso talvez resida a
potência subversiva do brincar.
“As crianças, em sua tentativa de descobrir e conhecer o mundo, atuam
sobre os objetos e os libertam de sua obrigação de ser úteis” (Krammer, 2006,
p. 16). O tempo do brincar é o tempo do investimento desejante nos objetos que
torna a pedra do quintal a maior pedra do mundo. É o tempo de dignificar os
restos arruinados, tomando-os como parte indispensável de uma engenhoca
que, apostamos, mudará o mundo. Aprendemos a necessidade do inútil
brincando. Sobre a utilidade do inútil nos fala Hanna Arendt:
Entre as coisas que emprestam ao artifício humano a estabilidade
sem a qual ele jamais poderia ser um lugar seguro para os homens,
há uma quantidade de objetos estritamente sem utilidade [...]. É
como se a estabilidade humana transparecesse na permanência
da arte, de sorte que certo pressentimento da imortalidade – não a
imortalidade da alma ou da vida, mas de algo imortal feito por mãos
mortais – adquire presença tangível para fulgurar e ser visto, soar e
ser escutado, escrever e ser lido. (Arendt, 2001, p.180; grifo nosso)
Estranhamente, o que confere consistência e estabilidade ao artifício
humano, ao mundo e a nós mesmos, é uma série de desobjetos (nas palavras
de Manoel de Barros) produzidos por obra de um investimento amoroso que
captura a coisa, desloca-a de sua suposta Natureza e a faz viver no mundo dos
símbolos, no mundo da linguagem. Ao brincar, somos iniciados na arte da
construção dos desobjetos que nos humanizam.
97
Simone Moschen
Nessa perspectiva, penso que há algo que pode se movimentar de forma
interessante a partir da proposta de lei nº 11.114/2005, que estabelece o ensino
fundamental de nove anos, a saber, os efeitos do ingresso do brincar pela porta
da frente do ensino fundamental. Sim, por que, ao receber crianças de seis anos
em seu território, o ensino fundamental se verá desafiado a dar legitimidade ao
brincar – se não quiser transformar o ingresso desses pequenos em violência.
A necessidade do ensino fundamental de pensar a educação das crianças
de seis anos implicará, certamente, a necessidade de um diálogo extenso entre
a chamada educação infantil e o ensino fundamental. Mudanças poderão ter
lugar se não for somente o ensino fundamental aquele a se tomar do lugar de
pautar o diálogo, dizendo o que espera da educação infantil, quais são as
habilidades que quer ver desenvolvidas pelas crianças que ali irão ingressar aos
seis anos. A escola infantil tem muito a ensinar ao ensino fundamental. Muito a
ensinar sobre a arte de criar a partir dos restos, sobre a utilidade do inútil, sobre
a necessidade dos desobjetos, sobre o brincar como nascedouro da capacidade
de invenção, sobre as possibilidades que se abrem quando abandonamos o
pragmatismo dos objetos e somos capazes de olhar a vida pelo avesso. Só
quem brinca pode revirar o mundo para nele inserir novos sentidos. E aí não
estamos falando somente de crianças.
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
BARROS, Manoel de. Memórias inventadas – a infância. São Paulo: Planeta, 2003.
CHEMAMA, Roland. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
FREUD, S. Além do princípio do prazer [1920]. In: ______. Ed. standart brasileira das
obras completas de Sigmund Freud. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
KRAMER, Sonia. A infância e sua singularidade. In: BRASIL. Ministério da Educação.
Ensino fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de seis
anos de idade. Brasília: FNDE – Estação Gráfica, 2006.
Recebido em 10/11/2011
Aceito em 20/12/2011
Revisado por Gláucia Escalier Braga
98
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 99-108, jan./jun. 2011
TEXTOS
A EDUCAÇÃO
ESTRUTURANTE NA
EDUCAÇÃO INFANTIL
Dorisnei Jornada da Rosa1
Resumo: O artigo aborda a função do educador no processo de subjetivação
das crianças que frequentam creches e escolas infantis, a partir do que conceitua
sob o nome de Educação Estruturante.
Palavras-chave: educador, educação estruturante, educação infantil, brincar.
STRUCTURING EDUCATION ON PRESCHOOL EDUCATION
Abstract: This article discusses the teacher’s role in the subjectivation process
of children attending kindergartens and nursery schools, to propose the
conceptualization of Structuring Education.
Keywords: teacher, education, structuring education, preschool education, play.
Psicóloga; Psicanalista da Clínica Palavra Viva; Membro da Associação Psicanalítica de Porto
Alegre(APPOA); Terapeuta em estimulação precoce; Pedagoga Especial para Deficientes Mentais;
Trabalha em Educação Precoce na Escola Municipal Lygia Morrone Averbuck, com bebês de 0
a 3 anos com problemas de desenvolvimento; Assessora de Educação Precoce e Psicopedagogia
Inicial nas escolas infantis da Prefeitura de Porto Alegre. E-mail:[email protected]
1
99
99
Dorisnei Jornada da Rosa
Cuidar das crianças pequenas ou pedagogizá-las? Fazer suplência aos
pais ou educar? Essas são questões que atravessam todos aqueles que se
ocupam da educação infantil atualmente. Nas creches ou nas escolas infantis,
a frequência em turno integral tende a se tornar o padrão; com os educadores,
as crianças brincam, se alimentam, escovam os dentes, dormem, dão seus
primeiros passos, tiram as fraldas, dizem suas primeiras palavras. O que separa
a função parental da função do educador? O limite é ainda mais difícil de
estabelecer quando se trata de crianças que apresentam transtornos de
desenvolvimento; isso, sem falar do contingente de crianças expostas à
vulnerabilidade social e à fragilização dos laços familiares. O que fazer? Paralisarse frente aos aspectos estruturais2, instrumentais3 e sociais de que padecem
seus aluninhos, ou intervir nesses campos?
Há 21 anos, mais exatamente em 1991, foi criado o trabalho de Assessoria
de Educação Especial à Educação Infantil da Prefeitura de Porto Alegre. Nos
primeiros anos, um grupo de professores de escolas especiais da Secretaria
Municipal de Educação de Porto Alegre (SMED)4 criou os atendimentos de
Educação Precoce (EP)5 e Psicopedagogia Inicial (PI)6. Importa situar que integro
e coordeno a equipe de EP e PI da Escola Municipal Lygia Morrone Averbuck;
somos quatro profissionais, as quais temos, cada uma, dois turnos semanais
para assessorar e atender as creches e escolas infantis da Zona Leste, Partenon
e parte da Zona Norte de Porto Alegre.
Naquela ocasião precisávamos nos empenhar muito na busca de vagas
em creches e escolas infantis para as crianças com transtornos de desenvolvimento atendidas em EP e em PI, pois os educadores alegavam não possuir
Estruturais: nomenclatura utilizada pelo Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e de Buenos Aires
para referir os aspectos orgânicos, cognitivos e psíquicos que abatem os sujeitos.
3
Instrumentais: nomenclatura utilizada pelo Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e de Buenos
Aires para referir os aspectos de linguagem, atividade de vida diária, sociais, desenvolvimento
motor, aprendizagem, etc.
4
SMED (Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre): formada por 96 escolas com cerca
de 4.000 professores e 1.200 funcionários. Essa estrutura atende a 55.000 alunos da Educação
Infantil, do Ensino Fundamental, do Ensino Médio, Educação Profissional de Nível Técnico, e da
Educação de Jovens e Adultos (EJA).
5
Educação Precoce: atendimento a bebês com problemas de desenvolvimento de 0 a 3 anos,
conjuntamente com os adultos que desempenham as funções maternas e paternas para a
criança. Doravante referida neste artigo por EP.
6
Psicopedagogia Inicial: atendimento instrumental de crianças com problemas de desenvolvimento
de 3 a 6 anos. Doravante referida neste artigo por PI.
2
100
A educação estruturante...
formação teórica e prática para acolher esse tipo de clientela na escola infantil.
Em contrapartida, comprometíamo-nos a prestar capacitação aos educadores e
suas equipes, o que incluía: formações teóricas, acompanhamento e observações
na sala de aula mensais nas creches, além de reuniões sistemáticas com os
educadores que acolheriam essas crianças. Isso inaugurou o trabalho de
assessoria em EP e PI na escola infantil.
De início, quando as equipes de EP e PI chegavam às escolas infantis,
os educadores demandavam-lhes orientações e fórmulas mágicas para o “Mielo”
(criança com mielomeningocele), o “P.C.” (criança com paralisia cerebral), o
“Hiperativo”, o “Cadeirante”, a “Surdinha”, o “Ceguinho” e assim por diante. Havia
muito ainda o que avançar: várias crianças com deficiência já frequentavam o
ensino infantil; contudo, os educadores ainda não se referiam a elas pelo nome
próprio, mas as identificavam por seus quadros clínicos.
Começamos então, enquanto equipes de EP/PI, criadas nas quatro escolas
especiais do Município de Porto Alegre, a propor espaços de formação e escuta
dos cuidadores-educadores. O intuito era desmistificar os diagnósticos das
crianças, falando, então, da Maria, do João e dos outros alunos pelo nome
próprio, e também de suas histórias. Com isso, os quadros passaram a ocupar
uma posição secundária, possibilitando que os educadores pensassem nas
questões individuais das crianças e incluíssem atividades subjetivantes no
planejamento escolar.
É preciso ressaltar, no que diz respeito às crianças pequenas, que não
as tomamos de forma segmentada, a partir de seu sintoma: contamos com uma
rede interdisciplinar de profissionais na SMED, a qual é articulada e desarticulada
conforme cada caso. Identificamos a criança que esteja apresentando um
transtorno psíquico e ou atraso instrumental na escola infantil, encaminhamo-la
aos serviços de saúde (psicologia, fonoaudiologia, neurologia, etc.), e propomos
os atendimentos terapêuticos em EP ou PI. Além disso, realizamos interconsultas
com profissionais de saúde, escutamos os pais dos alunos e construímos
intervenções e estratégias com as equipes dos berçários7, maternais8 e jardins9
que atendem essas crianças na escola infantil.
Berçário: B1 (de 0 a 1ano e 5 meses) e B2 (de 1ano e 6 meses a 2 anos e 4 meses) com 15
crianças.
8
Maternal: M1 (de 2 anos e 5meses a 2 anos e 11meses) e M2 (de 3 anos a 3 anos e 11 meses)
com 20 crianças
9
Jardim: JA (de 4 anos a 4 anos e 11 meses) e JB (de 5 anos a 5 anos e 11 meses) com 25
crianças.
7
101
Dorisnei Jornada da Rosa
Tal rede foi criada pela SMED porque também nós, os profissionais de
EP/PI, precisávamos de formações, assessorias e interconsultas com várias
especialidades. Ao chegarmos às creches e escolas para observar as rotinas e
as crianças, víamo-nos tomados pelas demandas dos educadores e pela
urgência em responder e intervir em diversos campos. Nesse contexto,
identificávamos algumas posições mais frequentemente assumidas pelos
educadores:
1. Impotência e paralisação
Muitos eram os educadores que se paralisavam ante os sintomas sociais
e à violência das comunidades; falavam de sua impotência para ajudar a criança
frente a miséria, AIDS, abandono, drogas e agressividade; o mesmo acontecia
frente aos “donos do tráfico” e seus filhos. Em certa ocasião, houve inclusive um
“zum-zum” fantasioso sobre a creche ter sido construída como “fachada” e para
lavagem de dinheiro do tráfico, mas ninguém falava explicitamente sobre isso,
só sintomatizavam.
2. Rivalização com os pais e suplência parental
Uma situação muito comum nas escolas infantis era a culpabilização
dos pais pelos sintomas das crianças. Bater ou chorar constantemente, por
exemplo, era interpretado por seus educadores como efeito de “estar acontecendo
algo de ruim em casa” (sic). Consequentemente, acabavam por orientar os pais
com intervenções pedagógicas e encaminhá-los à psicologia.
No imaginário dos educadores, ante o suposto fracasso da função parental,
caberia à escola e a seus educadores a encarnação do “pai ideal”. Instaurava-se
assim uma disputa de saber entre educadores e pais: quem sabe mais sobre o
que é melhor para a criança? Alguns educadores chegavam a tomar as crianças
como seus filhos; numa oportunidade, encontrei numa creche um bebê que
chamava a monitora de “mamã”, e estava até muito parecido com ela. O fato é
que muitas vezes os discursos pedagógicos dos professores e as funções
parentais confundiam-se, dificultando mais ainda o exercício de ambos.
Em algumas escolas, os pais chegavam a ficar literalmente de “fora”, só
sendo chamados a comparecer em reuniões e no período inicial denominado de
adaptação escolar. De outra parte, muitos deles pareciam resignar-se a essa
situação e renunciar ao saber parental, em nome do saber “especializado” do
educador. O interessante é que isso reproduzia algo que também acontecia no
interior da escola: geralmente a entrevista inicial com os pais era realizada com
102
A educação estruturante...
a coordenadora ou o dirigente, ficando o educador sem saber da história da
criança e seus laços familiares; seu contato com os pais se dava na porta da
sala de aula, por recados na agenda, ou em reuniões pedagógicas ou
administrativas das quais participavam com a comunidade escolar. É como se o
bebê ou a criança fosse uma tábula rasa em que se dariam novas inscrições,
negando sua filiação e matriz parental. Qual a posição que os educadores
ocupavam? A de suplência parental?
3. Demanda de escuta e intervenção continuada
Muitos educadores pediam a presença do assessor de EP/PI para serem
escutados em suas angústias e serem acompanhados em seus trabalhos e
intervenções; requeriam um terceiro para testemunho, validação e
encaminhamentos que ajudassem a criança. Por exemplo, ao chegar a uma
Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI), uma professora relatou-me que
Maria tinha problemas, estava desatenta, batia em todos e não a ouvia. Conta
que sua tia frequentava a mesma sala, que seus pais eram usuários de crack e
abandonaram os filhos para a avó materna cuidar. Dona Maria, a avó, convidada
a comparecer à escola para falar comigo e a professora, veio a contragosto e
muito desconfiada “acerca do que queríamos com ela”. Apresentei-me, expliqueilhe que era uma conversa com o objetivo de auxiliar sua neta; deixando claro
que nada lhe seria exigido. Conta-nos, então, toda a história, seu sofrimento,
sua luta e os tantos netos sob sua responsabilidade; trabalhava muito e batia
neles. Não deixa de relatar também sua história e de como apanhava quando
criança. Ao escutarmos sua narrativa, apontei o quanto ela e Maria sofriam do
abandono parental, e perguntei-lhe se já havia contado à neta sobre isso. Aos
poucos Dona Maria foi “amolecendo”, pensando e colocando-se no lugar da
neta. Falamos da importância de ambas terem uma escuta e encaminhamos as
duas para atendimento psicológico.
Ante tais situações encontradas nas escolas – e, principalmente, frente
às interrogações dos educadores de como intervir com crianças com atraso de
desenvolvimento, agressividade, agitações psicomotoras, fragilidades psíquicas,
“surtos e pits”, “brincar solto”, negligências parentais, etc. –, começamos a
incentivá-los a também participarem do processo de subjetivação das crianças
pequenas (zero a seis anos). Assim foi se configurando um espaço transferencial
da assessoria EP/PI com os educadores: entramos e saímos da escola,
escutamos, intervimos, reconhecemos, validamos; às vezes sugerimos atividades
de âmbito coletivo, outras, individual, bem como propusemos intervenções com
base no que passamos a denominar de Educação Estruturante.
103
Dorisnei Jornada da Rosa
Conceituamos este trabalho como Educação Estruturante visando a
construir intervenções que possibilitassem às crianças deslocarem seus
sintomas e angústias para o brincar, bem como a construir junto aos educadores
e pais suas funções e diferenciações no campo educativo, familiar e escolar. É
importante ressaltar que não se trata de tornar a educação uma terapêutica,
mas de propor que a educação não se fundamente em uma concepção
desenvolvimentista e pedagógica da infância; e que os cuidados tenham funções
estruturantes, o que nós chamaríamos de “cuidados simbólicos”, os quais
encontram suporte nas inscrições significantes parentais. Isso significa que a
ordem de inscrição do educador não é a mesma dos pais; importa tomá-la como
algo da posição transferencial que ocupa na vida da criança. Por isso a importância
da interdisciplinaridade, independentemente da existência de problemas de
desenvolvimento.
O nome Educação Estruturante é inspirado em um texto de Alfredo
Jerusalinsky (1999), no qual propõe três brinquedos estruturantes que
promoveriam as articulações necessárias à constituição do sujeito. Através
desses brinquedos, os educadores deixariam se dar livremente a função
educativa:
Uma função “educativa” no sentido mais amplo e mais clássico do
termo. Em que nada de escolar nela se registra, nada de um padrão
de saber, mas a colocação em ato de uma inscrição (Jerusalinsky,
1999, p. 159).
O que é Educação Estruturante? É a que propõe ao educador ter seu
olhar dirigido aos aspectos diacrônicos da criança – os de desenvolvimento
como um todo –, bem como considerar o tempo sincrônico da criança –, sua
estruturação psíquica e orgânica e a articulação com o desejo. Isso quer dizer
que se deve considerar também seu tempo de aprender, suas condições
orgânicas e sociais. No planejamento de atividades e intervenções, deve-se pensar
também no aluno com transtorno de desenvolvimento e nas questões individuais
de cada criança, a fim de serem englobadas no plano de trabalho com o grupo e
vice-versa.
Ao detectar sinais de angústia ou de inibição no brincar e no aprender,
por exemplo, o educador pode intervir, promovendo o deslocamento da angústia
para o brincar com jogos estruturantes ou para o criar, para, num segundo tempo,
produzir efeito em sua aprendizagem e desenvolvimento. Claro que não podemos
esquecer de que não se trata de interpretar a angústia da criança, relacionandoa a sua vida e personagens reais; isso seria iatrogênico e assustador. A Educação
104
A educação estruturante...
Estruturante consiste em colocar em jogo algo que está impedindo a criança de
se desenvolver. O educador olha, escuta, compreende, intervém, planeja e lança
ao grupo, mantendo a mira na criança. Enfim, o papel do educador é articular
brinquedos, jogos e produções, seja na primeira ou na segunda infância.
Importante lembrar a interdisciplinaridade, através da assessoria de EP/PI para
a construção conjunta dessas intervenções.
Retomemos os brinquedos estruturantes propostos por Jerusalinsky
(1999), para discernir melhor do que se trata de pôr em jogo na Educação
Estruturante. O primeiro deles é o brincar de “está, não está”, e tem como
modelo uma brincadeira que ficou conhecida, entre os leitores de Freud ([1920]
1973), como o jogo do Fort-da. Observando seu neto de um ano e meio envolvido
numa atividade enigmática e repetitiva, o autor assim a descreve: a brincadeira
consistia em fazer desaparecer seus brinquedos, atirando-os para algum lugar
longe de sua vista, pronunciando o som “Ooo”, interpretado por Freud como “embora”.
Certo dia, o objeto da brincadeira era um carretel preso à ponta de um barbante; o
mesmo ato e o mesmo som se repetiam ao fazê-lo desaparecer. Porém, dessa
vez, o menino inseriu um segundo ato: puxar o cordão para fazer o carretel reaparecer,
pronunciando “Da” (“aqui”). No jogo, a criança colocava em cena a aparição/
desaparecimento da mãe, recobrindo com a palavra sua ausência. O brincar auxilia
a fazer a operação de separação, simbolizando uma experiência vivida.
Nas palavras de Jerusalinsky, é a captura, pela criança, da imagem de si
mesma vista ou não vista pela mãe que desempenha um papel preponderante
nessa brincadeira. Afinal, segundo ele, “esse movimento permite à criança
inscrever o olhar do Outro Primordial no âmbito da linguagem” (Jerusalinsky,
1999, p. 157), possibilitando-lhe não desaparecer na ausência desse olhar
unificador, já que é quem recorta sua silhueta da realidade do mundo e dos
objetos que a cercam; caso contrário, a representação de seu corpo se
dispersaria.
Nessa mesma série de ausência-presença, Jerusalinky inclui os jogos
de imitação nas gracinhas oferecidas aos adultos (“fazer bichinho”, por exemplo);
os jogos de ocultamento (esconde-esconde); as negativas (virar a cara para a
mãe quando está ofendido); e mais adiante o brincar de esconder.
O início do ano escolar, ocasião em que bebês e crianças pequenas se
separam de suas mães, é um período em que a ausência materna poderia ser
simbolizada no brincar de esconde-esconde, no ir e vir da bola, no aparecer e
desaparecer do educador, no atirar e buscar dos objetos, propiciando assim
certo alívio para os pequeninos.
As brincadeiras em frente ao espelho também podem ser momentos de
evocação da ausência do olhar materno. As educadoras brincam com os
105
Dorisnei Jornada da Rosa
pequeninos, lhes dizem coisas sobre a mamãe não estar ali, mas elas estão ali,
brincam então com as suas imagens e as das crianças. Elas simbolizam a
ausência das mamães dos bebês em enunciados: “Tua mamãe virá ao final do
dia te buscar” ou “A mamãe está trabalhando para dar coisas ao nenê (sic)”.
O segundo jogo estruturante é o brincar de “cai, não cai”. Na série dos
jogos de borda (ou de queda), Jerusalinsky inclui: jogar brinquedos fora do berço,
empurrar objetos lentamente em direção à beira da mesa até sua precipitação,
espiar pelas frestas, mexer nos buracos e pequenas aberturas, andar pelas
beiradas e por todo lugar que ofereça risco de queda, brincar de cair, saltar,
tocar o que não pode, entrar onde não se entra, etc. O que essas brincadeiras
têm em comum é a construção do espaço e do outro, que fazem limite ao corpo
da criança, instituindo as bordas entre o eu e o não eu. Também entra em causa
aqui uma relação dialética com o olhar materno: ele unifica o corpo da criança,
a ponto de permitir-lhe apropriar-se de seu domínio motor, ao mesmo tempo em
que o aprisiona a uma existência imaginária. “O ‘andar pela borda’ remete à
indagação constante sobre a extensão e a aplicabilidade da ruptura que a palavra
introduz na motricidade e no olhar” (Jerusalinsky, 1999, p. 158); afinal, os
especialistas em brincar com as bordas sabem muito bem carregar consigo o
olhar do Outro em suas aventuras.
O terceiro tipo de brinquedo estruturante é o brincar de “este é o outro”,
compondo o que Jerusalnsky chama de jogos transicionais. A condição de
transicional, particularizada por Winnicott (1975), alude à substituição do objeto
de desejo: ao invés do seio materno, a criança carrega o bico e/ou o cheirinho,
etc. Na escola infantil, na fase de adaptação da criança, é importante acolher os
objetos transicionais, a fim de que ela encontre amparo para fazer a passagem
do âmbito materno para o âmbito social que a escola representa. Por essa
razão, também é importante manter o “dia do brinquedo” – dia de trazer um
brinquedo de casa – ou o “dia de criar” – levar o trabalho para casa.
Não raramente, a presença desses objetos transicionais provoca certo
ímpeto interditor nas educadoras, pois o que se destaca deles é seu traço de
apego à figura materna ou sua face de objeto de gozo. Porém, é importante
lembrar a sua face de separação: eles também são o significante da falta materna,
e, como tal, um elemento mediador entre a mãe e seu filho. Graças a eles se
torna possível suportar a ausência materna sem correr o risco de desaparecer.
Não podemos esquecer a importância da intermediação e da palavra do
educador, pois esses brinquedos estruturantes não são uma atividade ou
brincadeira pedagógica. Eles só terão efeito estruturante se for algo registrado,
falado e intermediado pelos educadores. Mariotto (2009) ressalta que a creche é
um elemento de subjetivação para as crianças pequenas, dependendo do laço
106
A educação estruturante...
transferencial e do lugar que o educador ocupa para os bebês e as crianças
pequenas. Não se trata de “ser o pai e a mãe”, nem tampouco de uma suplência
parental, mas de um desdobramento das funções parentais aliado ao “desejo do
educador” e suas funções educativas:
[...] educar e cuidar são faces moebianas do ofício da Creche, e
que se assim desempenhadas, permitem ao sujeito ser suportado
por essa banda, situando aí o caráter preventivo dessa função.
Garantido que as condições mínimas de subjetividade estejam
presentes [...] (Mariotto, 2009, p. 131).
A educação, seja sistemática ou assistemática, produz efeitos de inscrição
significante nas crianças pequenas, pois educar e cuidar se perpassam e são
funções que estão diariamente no discurso dos educadores das creches e escola
infantis. Nesse sentido, os educadores, nos seus laços com as crianças, podem
propor um ordenamento simbólico, pois encarnam as insígnias da escola ou creche
em que trabalham, ao mesmo tempo em que precisam ser autorizados pelos pais
ou seus substitutos para exercerem essas funções junto aos pequeninos.
Na perspectiva da Educação Estruturante, o que está em jogo na escola
infantil é a possibilidade de intervenção no processo de subjetividade. Não se
trata de o educador buscar um lugar de saber absoluto, pois, como diz Mariotto
(2009), isso seria então uma alienação absoluta do outro (criança) que se pretende
educar. Trata-se aí da castração dos mestres e de posições que contemplem
um furo no saber, pois é nesse vazio que o ato educativo constituído se dará, diz
ela. Dessa forma, os educadores são e serão convocados a falar mais sobre o
que deixam a desejar, bem como de seus próprios desejos de participarem ou
não do processo de subjetivação e melhor instrumentalização dos pequenos.
107
Dorisnei Jornada da Rosa
O trabalho das assessorias em EP/PI é promover que os educadores
infantis pratiquem um olhar singular para cada aluno, incluindo os aspectos
diacrônicos, sincrônicos e sociais pertinentes a cada criança, de modo a inventar
intervenções diárias que possibilitem o brincar e o aprender na forma de uma
Educação Estruturante. O pedagógico e o educativo se estendem e se expandem
aqui no sentido de que educar, cuidar e subjetivar podem ser também ofícios da
educação infantil.
REFERÊNCIAS
FREUD, S. Mais além do princípio do prazer [1920]. In: ______. Obras completas. 3.
ed. Rio de Janeiro: Imago,1973. v. III.
______. O mal-estar na civilização [1930]. In: ______. ______.v. XXI.
JERUSALINSKY, Alfredo. Psicanálise e desenvolvimento infantil. 2. ed. Porto Alegre:
Artes e Ofícios, 1999.
LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
[1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.
MARIOTTO, Rosa Maria Marini. Cuidar, educar e prevenir: as funções da creche na
subjetivação dos bebês. São Paulo: Escuta, 2009.
WINNICOTT, D. W. O Brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
Recebido em 09/11/2011
Aceito em 23/04/2012
Revisado por Maria Ângela Bulhões
108
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 109-118, jan./jun. 2011
TEXTOS
CAMINHOS DE OFICINA NO
ENCONTRO COM O OUTRO1
Ieda Prates da Silva2
Resumo: O presente texto traz uma leitura psicanalítica do trabalho em oficinas
terapêuticas com adolescentes num Centro de Atenção Psicossocial, propondo
que as mesmas se constituem como um dispositivo clínico quando orientadas
pela escuta do sujeito. Aponta os efeitos do laço coletivo sustentado em
transferência, a partir de um fazer com o outro, constituindo um endereçamento
ao Outro do discurso. Através de fragmentos clínicos, expõe e analisa os efeitos
estruturantes desse trabalho em oficina.
Palavras-chave: oficinas, escuta do sujeito, transferência, Outro, adolescentes.
WAYS OF WORKSHOPS IN THE ENCOUNTER OF THE OTHER
Abstract: The present text brings a psychoanalytic view of the work in therapeutic
workshops with adolescents in a Center of Psychosocial Attention, proposing
that the workshop constitute itself as a clinic device when oriented by the listening
of the subject. Points the effects of the collective bond sustained in transference,
by doing with the other, constituting an addressing to the Other of the language.
By using clinic fragments, exposes and analyses the structuring effects of this
workshops.
Keywords: workshops, listening of the subject, transference, Other, adolescents.
Trabalho apresentado na II Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais,
realizada em Porto Alegre, 30 de setembro e 01 de outubro de 2011.
2
Psicanalista; Membro da APPOA; Coordenadora de Ensino e Pesquisa do CAPSi de Novo
Hamburgo. E-mail: [email protected]
1
109
109
Ieda Prates da Silva
A presença de outros que veem
o que vemos e ouvem o que ouvimos
garante-nos a realidade do mundo
e de nós mesmos.
Hanna Arendt
A
s questões aqui formuladas surgem a partir de meu trabalho no CAPS Infantil3
de Novo Hamburgo, cidade do Vale dos Sinos, próxima de Porto Alegre.
Focalizarei o texto na experiência do trabalho em oficinas com adolescentes,
sustentado pela psicanálise, o que nos ajuda a fundamentar e a tecer ferramentas
para esse trabalho, e a pensar sobre os efeitos subjetivantes que essa experiência
clínica pode produzir.
Parto de uma primeira premissa: as oficinas terapêuticas constituem-se
como dispositivo clínico, quando orientadas pela escuta do sujeito e pelo trabalho
em transferência, num contexto coletivo, atravessadas por acontecimentos de
toda ordem, e através de diversas formas do fazer em oficina. As oficinas, também
chamadas de ateliês, organizam-se ao redor de um fazer, que pressupõe um
fazer com, se desdobrando em um fazer-se. Se pensarmos que o Eu só se
singulariza no laço com o outro, o coletivo – sustentado em transferência – vem
oferecer ao sujeito uma possibilidade de singularizar-se, na medida em que há
uma escuta e um endereçamento. Esse endereçamento ao Outro do discurso
situa o Outro nos bastidores, para usar uma expressão de Lacan, retomada por
Erik Porge (1998), ao tratar do lugar da transferência na análise de crianças.
É essa escuta singular no coletivo, ou seja, cada sujeito ali tomado no
um-a-um, considerado na sua singularidade e na sua história, que permitirá que
o fazer em oficina se constitua num encontro com o outro, portanto, num encontro
consigo mesmo. Estou me referindo não só à escuta das palavras, mas à acolhida
de seus corpos, de seus movimentos, de suas produções. Sujeitos que se
manifestam ou se escondem, se oferecem ou se furtam ao encontro com o
outro, num modo de se fazer ex-sistente, como uma nota de rodapé.4
Centro de Atenção Psicossocial Infantil é um serviço de saúde aberto e comunitário do Sistema
Único de Saúde (SUS) para atendimento diário a crianças e adolescentes com transtornos
mentais.
4
Na interessante expressão de S. Zabalza (2011), que propõe as oficinas como “notas de
rodapé”, no sentido que Lacan lhes outorga: um fora que não é um não-dentro. Dispositivo que
permite ao sujeito expressar, com o seu corpo, e o seu fazer algo que não aparece diretamente
na fala, mas vem como lateral, uma abertura ou uma escansão que retira a linearidade, interrompe
a continuidade e traz o novo que já estava ali, mas que não se dava a ver. Acrescenta algo e faz
furo, ao mesmo tempo.
3
110
Caminhos de oficina no encontro com o outro
Utilizo a palavra fazer, aproximando-a do sentido que Hannah Arendt (1997)
dá ao termo reificação, ao falar da arte:
Naturalmente, a reificação que ocorre quando se escreve algo,
quando se pinta uma imagem ou se modela uma figura, tem a ver
com o pensamento que a precede; mas o que realmente transforma
o pensamento em realidade e fabrica as coisas do pensamento é o
mesmo artesanato que, com a ajuda do instrumento primordial – a
mão do homem – constrói as coisas duráveis do artifício humano
(p.182).
Agora, as oficinas terapêuticas nos mostram ainda outra via: que essa
experiência no coletivo, de fazer com o outro, de fazer para o Outro – que é o
Outro do social, o Outro do discurso –, de reconhecer algo de si nesse produto
que sai de suas mãos e que é reconhecido pelo semelhante, essa experiência
ela é produtora de pensamento e de subjetividade.
A Oficina de Escrita com adolescentes, que realizo no CAPSi em parceria
com uma colega da equipe, é composta por adolescentes com questões
psíquicas graves e significativas restrições no processo de escolarização, na
circulação e nos laços sociais. A entrada nessa Oficina (que eles intitularam
Dando Letra) se faz por um desejo expresso do adolescente, ou por percebermos
nele interesse pela escrita, ou, ainda, por indicação da equipe, naqueles casos
em que se aposta que a escrita possa vir a se constituir como uma via de
acesso a significantes que possam alçá-los a um lugar de enunciação e a uma
posição no social não tão restritiva. Refiro-me àqueles adolescentes para os
quais a entrada na linguagem não se deu sem percalços, e a utilização da
escrita pode “transmitir uma história de exílio em relação à comunicação”, nas
palavras de Leda Bernardino (2011)5:
Poderíamos então dizer que a escrita aí permite des-colar do
Simbólico para servir-se dele, introduz a possibilidade de
aproximação com o “ser libidinal”, por este acesso à comunicação
que leva à afetação do outro, permitindo fundar um laço social.
Utilizar um código para comunicar-se é estabelecer laço social, é
entrar no discurso. [...] A escrita, então, nestes casos, permite
5
Gentilmente cedido pela autora.
111
Ieda Prates da Silva
passar da relação colada ao significante ou do gozo corporal para
um outro tipo de encontro com a linguagem, com esta ordenação
que é a linguagem escrita (p.11).
Alguns momentos se constituem como privilegiados para se testemunhar
a produção de sujeito que está em curso ali. Tomo o exemplo de um menino,
que vou chamar de Ivo, na época com 16 anos, o qual mais desenhava do que
escrevia durante a Oficina. Percebe-se em seus desenhos a repetição de certos
traços, que parecem constituir uma escritura6. Ivo desenhava sua escola, sua
casa, ele próprio, as meninas, a igreja que ele frequentava com a mãe. Sempre
esteve só com sua mãe, sendo que, até os oito anos de idade, vivia preso dentro
de casa, não tinha linguagem, não brincava nem frequentava a escola. Pois
bem, a cena a que me remeto se deu quando ele iniciava a escrever diretamente,
passando do desenho ao texto. Sua escrita era até então contínua, sem cortes,
sem sinais de pontuação. Nesse dia, ele escreve e depois vai ler para os colegas
seu texto. Ao iniciar a leitura, está falando de sua escola, das notas que recebeu
no boletim, etc. Começa a ler e, ao terminar a primeira frase, se dá conta,
levanta a cabeça do papel, olha para o colega a sua frente e pede: “Me dá o
lápis!” Pega o lápis, põe um ponto na frase, dizendo: “Ponto!” Segue lendo,
colocando – com o lápis que lhe alcançou o colega – ponto nas frases,
introduzindo intervalos, conferindo sentido ao texto. Esse sentido, que é dado a
partir de um código compartilhado com o outro, ele o constrói nesse momento
da leitura, do encontro com o olhar e a escuta de seus semelhantes, querendo
se fazer entender por eles. O leitor, endereçamento necessário de uma escrita,
se constitui em ato, nesse momento em que olha o colega e diz: “Me dá o lápis!”
(como se dissesse: “o teu lápis, com o qual tu escreves letras, que são as
mesmas que eu utilizo, mas para dizer as minhas palavras, o meu texto”).
Seguindo adiante na leitura, Ivo inicia outra frase e, dando-se conta de
que agora se trata de outro assunto, levanta os olhos novamente para os colegas,
para, e diz: “Outra coisa”; e recomeça a frase, anunciando assim que vai falar de
um novo assunto. Ou seja, ele faz aqui a alteridade. O Outro (do social) se faz
presente para ele no momento em que lê seu texto na presença desses outros,
seus pares, numa relação sustentada em transferência, que permite que os
Como aponta Chemama: “O desenho não seria sempre marca, tendo que fazer função de traço,
inscrição de um sujeito que precisa fazer, ao mesmo tempo, separação em relação ao Outro?”
(Chemama, 1991, p.23).
6
112
Caminhos de oficina no encontro com o outro
colegas de oficina possam operar como interlocutores, como testemunhas,
avalizando sua produção textual, emprestando suas ferramentas (ele tinha o
seu próprio lápis, mas vai pedir o do colega para pontuar seu texto) para que ele
torne seu escrito compreensível para esse outro, pois já há um terceiro que faz
marca ali. O movimento de pegar o lápis, acompanhado da demanda endereçada
ao outro, não é mera ação motora, mas se constitui como um Ato, na direção
que Lacan ([1967-1968] s/d) aponta: como produtor de um novo sentido, a partir
do deslocamento ou da produção de um significante que situa o sujeito em outra
posição. Considero que a palavra “ponto”, quando Ivo a exclama repetidamente,
já não se trata apenas do ponto gramatical, mas de um verdadeiro ponto de
capitonné, isto é, ponto de enodamento dos três registros: simbólico, real e
imaginário. Não se trata de simples aquisição cognitiva, mas de produção de
sujeito, no coletivo. Dá-se por efeito da operação de diferenciação/identificação
aos pares, numa relação em transferência que possibilita inscrever o terceiro.
Ana Costa (2007), trabalhando o tema da transferência, nos diz:
A transferência não constitui somente a confiança em alguém que
saberia sobre as condições dos padecimentos sintomáticos daquele
que se queixa de um padecimento qualquer. Muito mais que isso,
ela constitui a hipótese de um sujeito a um saber que se estabelece
a partir do funcionamento da pulsão. Ou seja, sem a constituição
de um sujeito a este saber, ele funciona “sozinho”. Este saber
resulta de uma certa equivalência entre a máquina das pulsões e a
máquina da linguagem. Num princípio, tanto a linguagem quanto a
pulsão são inscrições que nos vêm do Outro, precisando de um
percurso para que um sujeito ali se constitua. Ou seja, a priori é
um saber sem sujeito, sendo este o sentido da alienação a essa
máquina. A atribuição de um sujeito a este saber – que Lacan
denominou sujeito suposto ao saber – condensa toda a importância
do trabalho na transferência (p. 148).
Um pouco anterior à cena relatada acima, Ivo havia introduzido na sua
escrita o vocábulo “eu”, onde antes sempre aparecia seu nome em terceira
pessoa.
A seguir, alguns extratos de seus escritos:
1) O Ieda eu vou morar a casa da B. (menina pela qual está apaixonado)
porque a B. é legal. O Ieda a minha mãe não deixa pra mim ir no BIG. O S.
(nome da mãe da menina que ele gosta) eu to prometendo pra mim morar a (tua)
casa. Sabe que achei ideia eu vou pidi serviço a mãe da B. prá mim arrumar a
113
Ieda Prates da Silva
minha vaga do serviço. O Ieda eu gostei a casa da B. O Ieda eu não quero morar
mais a minha casa, mais nunca mais porque a minha mãe não deixa sair algum
lugar. A minha mãe não deixa fazer amigo. Eu to combinado eu vou morar a
casa da B. É sério eu vou embora. Eu to falando muito sério. Eu to falando
verdade. Eu to falando ideia. (E termina, colocando seu nome completo e a
data.)
2) Eu fiquei triste, minha mãe não deixou ir no passeio. Não sei qual
motivo? Tem que ajuntar papelão? (Sua mãe é catadora.)
3 ) O J. (colega da oficina) tu pode fazer pergunta para mim.
A) Você tem namorada (Sim) ou (Não)
B) Você já beijou a boca das guria (Sim) ou (Não)
C) Você foi a cama a tua namorada (Sim) ou (Não)
D) Você gosta das guria mais bonita (Sim) ou (Não)
E) Você quer ir no cinema (Sim) ou (Não)
F) Você quer namorar as guria (Sim) ou (Não)
4) Eu sonhei a B. Eu tava com medo eu tremi tremi eu sonhei eu queria
morar a casa da B. Eu sonhei a mãe da B. me dando carona eu mixei nas cueca
eu acordei mixo das cueca. Eu sonhei eu tava andando mão dada das guria.
Outro ponto que quero destacar é a particular relação com o tempo que
se dá nas oficinas. Trata-se de outro tempo, que não o cronológico, embora, é
claro, não estejamos totalmente alheios à marcação do relógio. Nesse sentido,
vamos na contramão daquilo que Foucault (1987) denuncia como tempo
disciplinar:
[...] um tempo integralmente útil, com a anulação de tudo o que
possa perturbar e distrair. [...] O que significa que se deve procurar
intensificar o uso do mínimo instante, como se o tempo, em seu
próprio fracionamento, fosse inesgotável; ou como se, pelo menos,
por uma organização interna cada vez mais detalhada, se pudesse
tender para um ponto ideal em que o máximo de rapidez encontra
o máximo de eficiência (p.130-31).
Esse imperativo, a que estamos – nós, os neuróticos – facilmente
submetidos na modernidade, é subvertido na Oficina que denominamos Fora da
Casinha, que é uma oficina que consiste em andar pela cidade. O tempo que
leva para que se reúnam, discutam aonde querem ir, argumentem para convencer
o colega, ou aceitem a sugestão do outro, até chegarem ao consenso, pode
ocupar a maior parte da oficina, correndo-se o risco de nem conseguirmos sair
do CAPSi.
114
Caminhos de oficina no encontro com o outro
Ali, o tempo se expande, se alarga: nas risadas, nos assuntos que se
atravessam e se atropelam, na fala delirante e ininterrupta de um dos
adolescentes, na dificuldade para considerarem a opinião do outro. Assim, por
exemplo, esse menino, que fala sem nenhum intervalo, repetindo programas de
televisão, se agitava com a demora e a dificuldade para entrarem num acordo, e
me dizia, um tanto brabo: “Vamo, Ieda, vamo nós, deixa eles!”, pegando-me pela
mão e propondo uma saída (no duplo sentido) que desconsiderava o coletivo, o
lugar terceiro, representado ali na oficina por um acordo mínimo entre eles.
A circulação pela cidade, entre pares, para esses adolescentes tratados
como criancinhas, que são trazidos pela mãe, que não andam sozinhos, produz
encontros e desencontros surpreendentes. Estranhamento e acolhida se
intercalam, nos encontros com os transeuntes, com os lojistas, com o guarda
da esquina, com os clientes da livraria. Falam muito alto ou emudecem, sentam
na soleira da porta, pegam as revistas e querem levá-las embora; enfim, uma
série de situações inusitadas, que exigia inicialmente constante mediação da
parte dos terapeutas que os acompanham, mas que, com o exercício da saída
à rua e do encontro com o diferente, mediado por uma palavra em transferência,
têm produzido movimentos que nos surpreendem, e nos levam a reconhecê-los
em outra posição subjetiva, diversa daquela em que, sem nos darmos conta, os
estávamos colocando.
Trago um exemplo deste efeito de surpresa, que alguns acontecimentos
em oficina produzem em nós, os terapeutas: uma das adolescentes, que
chamarei de Ana, a qual apresentava dificuldade para aceitar que não poderia
pegar e levar as revistas que quisesse, sem pagar, em um determinado dia em que
vamos novamente ao sebo, mostra-me algumas moedas que tem na mão, dizendo
que vai comprar revistas. Ocupo-me de mostrar-lhe as revistas que “cabem dentro
de seu orçamento”, mas ela não se decide por nenhuma. Distraio-me,
acompanhando o movimento e a curiosidade de outros adolescentes da oficina,
e, quando vejo, Ana traz nas mãos, muito contente, uma revista, dizendo que vai
levá-la. Noto que custa um pouco mais do que o valor que ela possuía, e lhe
digo: “Esta aí, não dá!”. Ela me responde que “dá, sim!”, mas eu insisto. Nesse
momento, a dona da loja, que está no caixa, me informa: “É dela, ela já pagou a
revista. Eu lhe dei um desconto.” Ana me surpreende, em outra posição diferente
daquela em que eu a supunha. E me pego a repetir a posição da mãe, que reluta
ou se recusa a reconhecer o filho em outro lugar, que não mais o de sua criancinha.
Nesse episódio, Ana me relembra também que é na ausência que o sujeito
desponta: é no momento em que me ausentei, que saí de cena, que se abriu o
espaço para que ela escolhesse e fosse à luta para levar sua revista, para afirmar
o seu desejo.
115
Ieda Prates da Silva
Sua posição de sujeito não passa despercebida – e é reforçada, inclusive
– pela dona da loja, que, a partir desse dia, muda o endereçamento de sua fala.
Antes, quando entrávamos na livraria, ela costumava dizer: “As revistas que ela
gosta estão na prateleira tal.” Agora, quando chegamos lá e Ana começa a
procurar, a dona do sebo diz, olhando para ela: “As revistas que tu gostas estão
na prateleira tal”.
Há uma descoberta do mundo, uma observação do semelhante e uma
apropriação do corpo – enquanto corpo adolescente (portanto, não mais entregue
à mãe) – que testemunhamos ir se constituindo nessas andanças pela cidade.
Assim, percorremos praças, museus, livrarias, cafés, shopping; ou jogamos bola
numa praça ou parque, assistimos a um vídeo turístico sobre a cidade; ganhamos
mapas, que passam a fazer parte do acervo e do instrumental da oficina.
Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas
interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa
se interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois, como
todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece
uma relação entre os homens (Arendt, 1997, p. 62).
Numa saída ao centro, Beto quis levar o mapa de Novo Hamburgo com
ele. Neste, estão localizados os principais pontos turísticos do município.
Havíamos trabalhado com o mapa, localizando a rua do CAPSi e o endereço de
cada um deles ou, pelo menos, o bairro em que moram. Nesse dia, Beto quis
levar o mapa e foi abrindo-o e identificando, ao passar por elas, as coisas que
localizara no mapa. Mas se mostrava surpreso quando encontrava, na realidade
da cidade, o que estava representado no papel. Frente a uma grande escadaria
do centro, olhava-a, e ria, apontando ora para o desenho no papel, ora para a
concretude da escada: “Olha a escadaria, olha!, Tá aqui a escadaria!” (no mapa);
“Tá ali a escadaria!” (apontava para ela), surpreso de encontrá-la sob duas formas
diferentes (a escada no real e sua representação gráfica).
Esse mesmo adolescente, numa ida à praça para jogarem futebol, se
recusou a jogar, de início, dando voltas e voltas ao redor do campo em que se
divertiam meninos da oficina e outros que estavam pela praça. Até que ele
conseguiu se aproximar e entrar no jogo (pacientemente estimulado pelo
Residente e Professor de Educação Física, que acompanhou um tempo essa
oficina). É um adolescente que apresenta uma estrutura paranoica. No caminho
de volta, se posicionou ao meu lado, e começou a falar:
B – “Tá louco... aqueles caras... tá louco!....”
I – “Tu jogaste com eles”.
116
Caminhos de oficina no encontro com o outro
B – “Eu não conheço eles, tá louco!....”
I – “Mas tu podes conhecer, podes te apresentar, dizer teu nome...”
B – “Eu não, não conheço eles. Eu não me misturo. Eu não conheço
essa gente”.
I – “Mas, se pode conhecer gente nova, não?”
B – “Aí a casa cai! Não! A casa cai! Eu não me misturo.... (pequena
pausa) Tu acha que eu devia, Ieda?”
Sua dúvida, que antes era a certeza que enunciava sua estrutura psíquica,
abre uma brecha na posição paranoica, a qual, aliás, predomina nas relações
sociais vigentes: nós também não nos misturamos. O outro (mesmo que seja o
vizinho) é mais facilmente sentido como estranho do que como semelhante, e,
do “estranho” para o “perigoso” é meio passo. A radicalidade com que a rivalidade
fraterna se estende para os laços sociais não permite que possamos conviver
com as diferenças, aceitando, assim, que há diversos modos do viver. Mas a
dúvida que a experiência em oficina, sustentada em transferência, permite a
Beto formular, desponta uma fresta nessa percepção do mundo como hostil e
ameaçador: pequenina, mas preciosa fresta!
As oficinas, das quais pude aqui trazer apenas alguns fragmentos,
propõem outra lógica, que se sustenta por uma ética, uma clínica e uma política
que são indissociáveis. Em tempos em que retornam e nos rondam os fantasmas
das políticas higienistas, urge se afirmar, no cotidiano, a dimensão profundamente
humana da escuta do sujeito na clínica das instituições de saúde mental.
Concluo, me servindo das palavras de Analice Palombini (2005):
Se a clínica que a gente opera [...] aposta numa dimensão não
transparente da subjetividade, que resiste à captura, que se afirma
como resistência; se nossa clínica abandona a pretensão de
transparência, mantendo aberto o campo da conflitualidade próprio
a essa subjetividade definida como resistência, então, nossa
política, conforme a essa aposta, tomará distância da perspectiva
de governo das almas, de disciplinarização dos corpos, de que o
estado moderno incumbe seus profissionais. Nossa política
caminhará na direção nômade que segue os caminhos desviantes
da invenção [...], e nos ensina a fazer valer mais em nossas vidas
a mesma aposta que fazemos na vida daqueles a quem se dirigem
os nossos serviços: os loucos, os tortos, os torpes, os feios, os
pobres, os pardos, todos esses desviantes que habitam também
em nós e que podem nos conduzir por caminhos que ainda não
ousamos explorar (p. 5).
117
Ieda Prates da Silva
REFERÊNCIAS
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BERNARDINO, L. Pulsão, letra, significante e gozo na clínica do autismo. Trabalho
apresentado no Congresso Internacional sobre Autismo, da Associação Psicanalítica
de Curitiba. Curitiba, de 24 a 27 de agosto de 2011. (não publicado)
CHEMAMA, R. O ato de desenhar. In: TEIXEIRA, A. B. do R. (Org.) O mundo, a gente
traça: considerações psicanalíticas acerca do desenho infantil. Coleção Psicanálise
da Criança. Salvador: Ágalma, 1991, p.11-26.
COSTA, A. Uma clínica aberta. In: APPOA. Psicose: Aberturas da Clínica. Comissão
de Aperiódicos da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (org.). Porto Alegre: APPOA/
Libretos, 2007, p.147-54.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. 25. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
LACAN, J. O Seminário: o ato psicanalítico [1967-1968]. Publicação da Escola de
Estudos Psicanalíticos, para circulação interna. São Leopoldo: Ed. Oikos, s. d.
PALOMBINI, A. Acompanhamento terapêutico: dispositivo clínico-político. Trabalho
apresentado no Fórum sobre Acompanhamento Terapêutico, UFRGS. Porto Alegre,
17 de novembro de 2005.
PORGE, E. A transferência para os bastidores. In: Littoral: A criança e o psicanalista.
Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.
ZABALZA, S. Nota ao pie: una perspectiva topológica del Hospital de Día. Revista
Imago Agenda, nº 156, dezembro de 2011. Disponível em: http//
www.imagoagenda.com/articulo.asp. Acesso em 26.02.2012.
Recebido em 08/12/2011
Aceito em 07/01/2012
Revisado por Deborah Nagel Pinho
118
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 119-132, jan./jun. 2011
TEXTOS
IMPLICÂNCIA OU BULLYING?1
Lúcia Alves Mees2
Resumo: Através da noção de construção da fantasia, o texto indaga sobre o
bullying e suas relações com a puberdade e a adolescência. A retomada de
parte da história da escola – e dos discursos que a circunscrevem – contribui
para interpretar a implicância entre os pares e suas implicações.
Palavras-chave: bullying, adolescência, fantasia.
PEEVE OR BULLYING
Abstract: Through the notion of fantasy construccion, the text questions about
the act of bullying and its relation with puberty and adolescence. The remake of
part of the school history – and the discourse that circumscribes it – contributes
to interpret the teasing between the subjects and their implications.
Keywords: bullying, adolescence, fantasy.
Este texto é a versão modificada do publicado pela Revista da Associação Psicanalítica de
Curitiba, nº 24: Abusos na infância, em 2012.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). E-mail:
[email protected]
1
119
119
Lúcia Alves Mees
U
ma jovem analisante fala sobre uma cena, entre ela e o irmão, que faz coro
com a indagação do título. O irmão coloca o pé sobre o colo dela. A analisante
reclama do odor dos pés. Ele insiste. Ela se levanta e faz menção de fotografálo para expor no Facebook. Ele diz que não, ela persiste. Ele joga as meias
sujas sobre ela e as esfrega no rosto da analisante, machucando-a. Ela chora,
vai para o quarto e eles ficam sem se falar por um tempo.
Preocupada com o futuro da relação entre ela e o irmão, a analisante se
pergunta se essas brincadeiras entre irmãos ajudam a construir uma relação de
parceria e se, consequentemente, contribuiriam para eles seguirem sendo amigos
pela vida afora, ou se elas significam ruptura e prenunciam o afastamento entre eles.
Na cena específica, é claro que a violência que incide sobre o corpo,
infligindo dor, põe fim ao jogo fraterno. Por ora, apenas sublinharemos o corpo e
a dor como balizas para o dentro e fora da relação fraterna.
A chamada implicância entre irmãos se apresenta na cena em suas
características principais, sobretudo naquilo que indaga a implicação de cada
um. O verbo implicar contempla três empregos: o de “ter implicância com” (“o
diretor implica com aquele funcionário”), o de comprometer ou envolver (“o agente
implicou o chefe no escândalo) e produzir como consequência (“autonomia implica
responsabilidade”). Pois a polissemia do verbo implicar nos leva a imbricar o
zoar, com o envolvimento e a produção de uma responsabilidade. São esses
três aspectos que as cenas de implicância trazem consigo.
A reciprocidade da implicância permite que ambos dirijam um ao outro a
pergunta sobre a implicação de cada irmão na existência do outro. A possibilidade
de jogar/brincar com a rivalidade pode ser elaborativa, assim como impeditiva,
do laço. Quando um dos envolvidos deixa de ocupar o lugar de implicante/
implicado, introduzindo a ruptura que interrompe o “entre dois”, a implicância
talvez não mereça mais esse nome. Algo se excluiu da cena. A possibilidade de
implicação se esvazia.
Seja diante dos pais ou não, a cena da implicância se dirige ao desejo
parental, implica-o, indagando o amor ou o reconhecimento. A pergunta sobre
quem tem razão parece perpassar os jogos dos irmãos ou, ainda, “quem é o
escolhido?” Ou mais ainda: “como situas teu desejo diante disso?” O terceiro
para o qual a cena se endereça é decisivo no desfecho dela. Pois a intervenção
do terceiro (Freud e Lacan demonstraram sobre o pai e seu Nome) requer o
corte com o imaginário da escolha binária, assinalando o lugar singular de cada
um a partir do desejo que o caracteriza. A rivalidade que supõe um “ou eu ou
ele(a)” pode se elaborar quando a resposta não atende ao registro imaginário da
escolha que exclui o outro, mas aponta para o registro simbólico que supõe o
lugar no qual cada um precisará se ocupar, ou seja, implicar-se.
120
Implicância ou bullying?
A implicância entre colegas da escola frequentemente encena o mesmo:
quem detém o lugar privilegiado diante do amor e do reconhecimento do Outro?
Qual o desejo do Outro que se lê em sua reação? Mas há também a ruptura
com a pergunta, anunciando o bullying, suas batidas e humilhações, e o que ele
significa enquanto violência e, consequentemente, de fratura do simbólico.
Esse enlaçamento entre corpo, dor, humilhação, marcas e batida foi
assinalado por Freud, no célebre texto Uma criança é espancada – uma
contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais ([1919]/1976). Lacan
([1957-58]/1999)3 retoma esse escrito para ponderar que ele precisaria ser mais
trabalhado, de modo a não ser associado exclusivamente com a encenação
distorcida da cena edípica. Será a partir do Édipo e seu mais além, ou aquém,
que pretendemos abordar a temática da implicância e do bullying.
Freud divide a fantasia de espancamento em três tempos. O primeiro,
nem sádico nem masoquista, acompanha a tenra infância e está associado ao
complexo de intrusão, ou seja, ao ódio da criança pelo irmão, ou irmã menor,
que atrai os pais. A frase que caracteriza esse tempo é: “meu pai bate na criança
que eu odeio”. A fantasia é pautada pela demanda de amor do pai e ser batido
significa a ausência desse amor. Se o irmão é o batido, a criança que fantasia
se afirma como amada.
Na segunda fase, o prazer que até ali não se manifestara se fará presente.
A criança que apanha é a mesma que fantasia, e o texto é: “sou espancada pelo
pai”. A fantasia é masoquista, acompanha a masturbação, é inconsciente e só
se mostra na construção de uma análise. O sentimento de culpa seria
responsável pela reversão da fantasia, transformando-a em masoquista. O amor
ao pai do primeiro tempo suscita a culpa da criança e a regressão à fase analsádica, transformando o aspecto sexual do coito em apanhar nas nádegas como
seu correlato.
A terceira fase, como a primeira, é consciente, aquele que fantasia não
faz parte da cena, pois ela é indeterminada: quem bate pode ser um professor
ou qualquer autoridade, e as crianças batidas não referem alguém específico.
Para Freud, esse tempo é sádico na forma, mas a satisfação que produz é
masoquista.
Lacan, no seminário sobre as relações de objeto ([1957-1958] 1999),
retoma a fantasia descrita por Freud, destacando que na primeira fase se trata
de
3
Sobre o texto e seu contexto histórico e conceitual veja também Mees (2011).
121
Lúcia Alves Mees
uma comunicação de amor, [...] que se declara para aquele que é
o sujeito central e na coisa que ele recebe [...] que é a expressão
de seu voto, de seu desejo, de ser preferido, de ser amado (Lacan,
[1956-1957] 2008, p. 64).
A rivalidade entre os irmãos governa a cena, o chamado por Freud de
“complexo de intrusão”. Lacan inclui a associação desse tempo e dos demais
com a inscrição do simbólico.
A relação com o irmão ou irmã menor, com um rival qualquer, não
assume seu valor decisivo no plano da realidade, mas, por se
inscrever num desenvolvimento totalmente diferente, num
desenvolvimento da simbolização, ela o complica e exige uma
solução totalmente diversa, uma solução fantasística [...]. A criança
descobre a chamada fantasia masoquista de fustigação, que
constitui, nesse nível, uma solução bem-sucedida do problema
(Lacan, [1957-1958] 1999, p. 250).
A primeira dialética da simbolização da criança, a da primeira fase
da fantasia de espancamento, reitera Lacan, se dá na relação com
a mãe, para além das satisfações ou frustrações, mas a partir da
descoberta do que é objeto do desejo dela. Tanto para um sexo
quanto para o outro, o tema do outro como desejante está ligado à
posse do falo: “Freud instaura ali um significante-pivô, em torno do
qual girava toda dialética do que o sujeito tem de conquistar por si
mesmo, por seu próprio ser” (idem, p. 248).
O falo entra no jogo a partir do momento em que o pequeno sujeito aborda
o desejo da mãe e, mais ainda, ele entra no sistema significante tão logo o
sujeito tenha de simbolizar, em oposição ao significante, o significado como tal,
isto é, a significação. A presença do falo conduz à tentativa de saber o que ele
significa, conhecer o desejo que ele refere.
O desejo da mãe não é simplesmente, nesse momento, o objeto
de uma busca enigmática que deva conduzir o sujeito, no decorrer
de seu desenvolvimento, a rastrear esse sinal, o falo, para que
então este entre na dança do simbólico, seja o objeto preciso da
castração e, por fim, seja entregue a ele sob outra forma, para que
ele faça e seja o que se trata de fazer e ser. Ele o é, ele o faz, mas
122
Implicância ou bullying?
aqui, estamos absolutamente na origem, no momento em que o
sujeito se confronta com o lugar imaginário onde se situa o desejo
da mãe, e esse lugar está ocupado (idem, p. 249).
A fantasia de espancamento, em seu primeiro momento, fornece a versão
sobre o desejo da mãe pelo falo, conferindo ao irmão o lugar de representante do
objeto desse desejo, bem como a encenação da retirada dele dessa posição ao
ser batido.
O segundo tempo da fantasia está ligado ao Édipo e dá conta da relação
privilegiada da menina com o pai. Ela é espancada como signo do amor do pai
por ela. A menina recorre à figuração da etapa anterior para exprimir tal fantasia,
que nunca vem à luz, exceto em análise.
A fustigação não atinge a integridade real e física do sujeito. É justamente seu caráter simbólico que é erotizado como tal, e o é desde
a origem [...]. O caráter fundamental da fantasia masoquista [...] é
a existência do chicote. É isso que, em si mesmo, merece ser por
nós acentuado. Estamos lidando com um significante que merece
ter um lugar privilegiado na série de nossos hieróglifos, antes de
mais nada por uma simples razão, a de que o hieróglifo corresponde
àquele que segura o chicote designa desde sempre o diretor, o
governador, o mestre/senhor (Lacan, [1957-1958] 1999, p.251).
Apesar das alterações da primeira para a segunda fase da fantasia, relativas
ao objeto das batidas, e sua significação no que tange ao amor, o chicote é
conservado. Ele é mantido como material do significante, o objeto chicote,
indicador do lugar do Outro que o empunha (a autoridade) e persiste para assinalar
a relação do sujeito com o desejo do Outro.
O terceiro tempo do espancamento será decisivo no desfecho da
construção da fantasia e, consequentemente, na simbolização, efeito da inscrição
do significante, e da constituição do objeto de desejo, efeito da relação ao desejo
do Outro. Nessa fase, pode-se colher a construção da fantasia, quanto anunciar
a fantasia perversa.
Num terceiro tempo, e depois da saída do Édipo, não resta outra
coisa da fantasia senão um esquema geral. Introduz-se uma nova
transformação, que é dupla. A figura do pai é ultrapassada,
transposta, remetida à forma geral de um personagem na posição
de bater, onipotente e despótico, enquanto o próprio sujeito é
123
Lúcia Alves Mees
apresentado sob a forma das crianças multiplicadas, que já nem
sequer são de um sexo preciso, mas formam uma espécie de
série neutra (Lacan, [1957-1958] 1999, p. 247).
O que se destaca da cena na fantasia posterior à dissolução edípica é
um objeto, no caso, representado pelo olhar terceiro daquele que observa o
indeterminado do bater e do apanhar.
E isso mostra bem o caráter de dessubjetivação essencial que se
produz na relação primordial, e resta essa objetivação, esta
dessubjetivação em todo caso radical, de toda estrutura em cujo
nível o sujeito não mais se encontra a não ser enquanto uma
espécie de espectador reduzido ao estado espectador ou
simplesmente de olho, quer dizer, o que sempre caracteriza no
limite e ao ponto da última redução toda a espécie de objeto, É
preciso menos, nem sempre um sujeito, mas um olho para vê-lo,
um olho, uma tela sobre a qual o sujeito é instituído (Lacan, [195657] 2008, p.65).
De outro lado, possui diferente significação a indeterminação dos
personagens na fantasia perversa, pois “Freud marca com precisão nesta ocasião
que é através dos avatares e da aventura do Édipo, que devemos considerar a
questão, o problema da constituição de toda perversão” (idem, p. 66). Pois no
fantasma perverso se trata de um congelamento do chicote, de modo que ele se
constitua como fetiche e não como significante. Paralisação no objeto fetiche,
fixando a crença no falo materno que a faria gozar.
O fantasma perverso tem uma propriedade que agora podemos
destacar. Que é esta espécie de resíduo, de redução simbólica
que progressivamente eliminou toda a estrutura subjetiva da
situação, para só deixar emergir aí alguma coisa inteiramente
objetivada e, afinal de contas, enigmática [...]. Encontramo-nos aí
no nível do fantasma perverso, de alguma coisa que tem, ao mesmo
tempo, todos os elementos, mas que perdeu toda a significação,
ou seja, a relação intersubjetiva, é de alguma forma a manutenção
em estado puro do que se pode chamar de significantes em estado
puro, sem a relação intersubjetiva, os significantes esvaziados de
seu sujeito, um tipo de objetivação dos significantes da situação
enquanto tal (idem, p.65).
124
Implicância ou bullying?
As fases da fantasia de espancamento, assim, descrevem a constituição
do sujeito ou, mais exatamente, outorgam à fantasia o estatuto de fundadora de
um sujeito. A fantasia, construída a partir do desejo do Outro (no exemplo freudiano
“Quem e por que bate?”), constitui a matriz para as relações do sujeito com os
outros e o mundo. Mediadora entre o irrepresentável, a fantasia compõe uma
versão para o real, através de um objeto que dirige o desejo.
Dito isso, retomamos a indagação do título, somando aqui a pergunta
sobre o que o bullying pode dar a escutar sobre a fantasia de espancamento e,
por sua ocorrência se dar no interior da escola, se esta na atualidade possui
alguma peculiaridade que relacione sua associação com tal violência.
O século XX foi marcante no que tange às mudanças relativas à autoridade
(Mees, 2001). Se os princípios militares e religiosos guiaram a disciplina nas
escolas no passado, hoje os fundamentos ditos não falocêntricos marcam as
relações hierárquicas, inclusive as de professor e aluno. O Estado ou o divino
não são mais balizas para a pedagogia. O mestre/professor, que guiava por
estágios que pretendiam quase a perfeição, atualmente está mais para parceiro
amigável do que figura de autoridade diante de seus alunos. Combina-se aí um
vasto ganho de liberdade, com o esmaecimento da alteridade demarcadora da
diferença de lugares.
A escola atual, em vários aspectos, está longe daquela do final do século
XVIII descrita por Foucault:
[A organização linear na escola] é sem dúvida de origem religiosa.
[...] A ideia de um ‘programa’ escolar que acompanharia a criança
até o termo de sua educação e que implicaria de ano em ano, de
mês em mês, em exercício de complexidade crescente traz o tema
da perfeição, em direção à qual o mestre exemplar conduz, tornase entre eles o de um aperfeiçoamento autoritário dos alunos pelo
professor (Foucault, 1997, p. 155).
De outro lado, algumas similaridades com a atualidade se afirmam, como
a do controle sobre o tempo, através da compartimentação do saber, visando
organizar durações rentáveis.
Esse é o tempo disciplinar que se impõe pouco a pouco à prática
pedagógica – especializando o tempo de formação [...]. Recolhe-se a
dispersão temporal para lucrar com isso e conserva-se o domínio de uma
duração que escapa. O poder se articula diretamente sobre o tempo:
realiza o controle dele e garante sua utilização (Foucault, 1997, p. 154).
125
Lúcia Alves Mees
A escola, assim, segundo o autor, é um exemplo do fenômeno da aplicação
das técnicas de apropriação do tempo das existências singulares, de controle
desse tempo, de tentativa de reger os corpos e as forças, a fim de realizar uma
acumulação da duração que busca o lucro ou a utilidade. Tal processo tem
origens e localizações diversas, ao mesmo tempo em que se apoiam uns nos
outros, esboçando pouco a pouco um método geral.
Walter Benjamin (2009), em uma de suas primeiras produções dirigidas à
educação, em 1915, considera que a produção passou a substituir a criação,
atendendo à demanda do mundo do trabalho.
A falsificação do espírito criador em espírito profissional, que vemos
em ação por toda parte, apossou-se por inteiro da universidade e a
isolou da vida intelectual criativa e não enquadrada no funcionalismo
público. O desprezo, típico de casta, por grupo de artistas e eruditos
livres, estranhos ou até hostis ao Estado, é um sintoma claro e
doloroso dessa situação (idem, p. 39).
Lyotard (2008), mais tarde, junta-se a essa tese, enfatizando o aspecto
mercantilista da escola. Trata-se aí de subjugar a escola ao mercado e aos
ditames do capital. Para ele, o estatuto do saber se alterou depois dos anos 50
e 60. A partir daí, não se tratava mais da formação no sentido amplo, visando à
condição de cidadão de cada aluno e, sim, do saber que passa a ser vendido e
consumido de acordo com as regras de produção: “O princípio do desempenho
[...] tem por consequência global a subordinação das instituições do ensino
superior4 aos poderes constituídos” (idem, p. 91).
Silviano Santiago (2008), no posfácio do livro de Lyotard, chama atenção
para outra consequência da mudança na relação com o saber: a diferença na
relação entre aluno e professor. Pondera o autor que o saber cada vez mais
prolifera nas bibliotecas, laboratórios de pesquisa, em museus, em arquivos
públicos, além da informatização desses dados, levando aluno e professor a
não possuírem um desnível entre si no acesso à informação.
Observe-se que o autor se refere às instituições de ensino superior, entretanto, parece-nos
que sua tese principal pode ser transposta para a educação de modo geral. O texto de Lyotard
foi encomendado pelo Conselho das Universidades do Quebec, portanto, por isso a ênfase no
terceiro grau.
4
126
Implicância ou bullying?
[No passado] o indivíduo tinha de se entregar, desde a mais tenra
interiorização do saber,
tanto de um saber universal e multidisciplinar básico, quanto de
saber disciplinar e superior. A escola e os professores, donos de
uma informação completa do saber, eram os principais responsáveis
por esse trabalho junto aos alunos que, por definição, tinham
informações incompletas. O desnível justificava a autoridade do
professor e a obediência do discípulo (idem, p.128).
id a d e ,
a
u m
le n t o
e
g r a d a t iv o
p r o c e s s o
d e
Essas breves considerações sobre a educação servem aqui para assinalar
a progressiva alteração das relações de autoridade na escola, assim como a
crescente incidência do mercado (seja ele de trabalho ou de capitais) na
determinação dos rumos da pedagogia. Percebe-se a educação acompanhando
os grandes eixos organizadores da cultura: das promessas religiosas, passando
pelo apogeu da ciência no século XIX, até o alargamento do discurso capitalista,
principal guia atual na determinação das relações.
O espaço do saber contemporâneo, o espaço da técnica, ou melhor,
das tecnociências, pois estas se inscrevem mais facilmente no
discurso capitalista do que no discurso universitário, está em ruptura
com o espaço, o universo infinito das ciências que se inscreviam
no lugar do discurso do mestre, em substituição ao discurso
religioso. A especificidade maior desse discurso capitalista é que
[...] este não produz nenhuma promessa do supereu coletivo, a
não ser essas ‘promessas de nada’, evocadas por Lacan no fim da
última guerra mundial (Rassial, 1997, p.99).
Tal ausência de promessa-guia tem o efeito de desorientação, sobretudo
para os adolescentes, na medida em que
[...] as tecnociências, capitalistas e pós-modernas, consagram o
adolescente a uma errância sem objetivo e sem esperança, a não
ser aquele – melancólico, para qualificar o gozo – de ‘perder-se’
em redes não orientadas (idem, p. 99).
Isso porque,
[...] para permanecermos em nosso lugar, não basta que um lugar
seja designado, é preciso que ele tenha validade garantida por um
127
Lúcia Alves Mees
saber atribuído a um sujeito e que ele esteja associado a uma
promessa de gozo ou de possibilidade de gozo (idem, p.98).
Qual promessa orientaria o jovem na direção de um mais além? Quem
encarnaria o lugar do saber, interditor e proporcionador de um horizonte de gozo?
Pois, se aquilo que justifica a escola se torna exterior a ela (a produção, o
sucesso), como seria reconhecida uma autoridade intrínseca àquele que
representa a instituição, ou seja, o professor? Se o saber está diluído em várias
fontes de conhecimento, como a escola guardaria seu lugar de transmissora
desse saber e, portanto, de reconhecimento?
São essas relações de prestígio, sucesso e valor que o bullying parece
denunciar. O popular, o nerd, o loser, a pati, designam aqueles que ganham
lugar de fracasso ou o avesso dele, sobretudo no ambiente escolar. O bully, o
valentão, é outra figura na galeria de personagens que as crianças e jovens
vivenciam hoje no colégio.
O termo bullying compreende todas as formas de atitudes agressivas,
intencionais e repetidas, que ocorrem sem motivação evidente, adotadas por
um ou mais estudantes contra outros, causando dor e angústia, e executadas
dentro de uma relação desigual de poder. Portanto, os atos repetidos entre
iguais (estudantes) e o desequilíbrio de poder são as características essenciais,
que tornam possível a intimidação da vítima. Por não existir uma palavra na
língua portuguesa capaz de expressar todas as situações do bullying possíveis,
o quadro a seguir relaciona algumas ações que podem estar presentes: colocar
apelidos, ofender, zoar, gozar, encarnar, sacanear, humilhar, discriminar, excluir,
isolar, ignorar, intimidar, perseguir, assediar, aterrorizar, amedrontar, agredir, bater,
chutar, empurrar, ferir, roubar, quebrar pertences. O bullying é um problema
mundial, sendo encontrado em toda e qualquer escola, não estando restrito a
nenhum tipo específico de instituição: primária ou secundária, pública ou privada,
rural ou urbana. Pode-se afirmar que as escolas que não admitem a ocorrência
do bullying entre seus alunos, ou desconhecem o problema, ou se negam a
enfrentá-lo5.
Em recente pesquisa sobre o bullying em Porto Alegre (Rolim, 2010),
dentre os muitos aspectos levantados, dois se destacam para análise aqui: a
faixa etária de maior incidência do fenômeno, entre 11 e 13 anos (idade média
Disponível em: www. bullying.com.br/BConceituacao21.htm#inicio. Ultimo acesso em 15/02/
2012.
5
128
Implicância ou bullying?
dos que sofreram bullying é de 12,81); e as consideradas piores ofensas presentes
na chacota: “veado” para os meninos6, “vagabunda” para as meninas7.
O período da vida de presença mais intensa do bullying nos remete à
puberdade e seu lugar desencadeador da adolescência enquanto processo
psíquico, ou “momento simbolígeno”, como afirma Rassial (1997). As mudanças
no corpo dão início ao que se coloca como reapropriação deste pelo eu. Pois a
puberdade não mudou apenas a aparência, mas o estatuto e o valor do corpo,
exigindo a reconfiguração da imagem corporal. O Outro também fica em suspenso
em sua consistência imaginária e simbólica. Até então, o sujeito estava
resguardado do apelo de responder por seus atos, visto sua infância ser guiada
pelos pais. Seu ser criança era afetado por aquilo que seus pais lhe indicavam
como realização. Uma nova pergunta sobre o desejo do Outro se impõe
contundentemente na adolescência. O âmbito restrito da família, que perfazia
quase toda a lei e a identidade a ser seguida, dá lugar a uma indagação que se
dirigirá ao laço fraterno e ao outro sexo. Propomos que a puberdade e a
adolescência reposicionam o sujeito também em relação à fantasia, reencenando
sua construção, tal como a fantasia de espancamento o faz. De novo, nesse
tempo da constituição do sujeito, tratar-se-á de compor suas implicações. Mais
uma vez estará em causa a implicação com o rival, enquanto aquele que indaga
sobre o lugar de cada um, sobre o desejo do Outro e seu objeto de satisfação.
Ainda, de novo, a implicação com a sexuação e o lugar diante do pai que “bate”,
marca e submete, assim como o destaque de um objeto que anime o desejo. O
corpo, da mesma forma, volta à cena, implicando uma nova imagem e a indagação
sobre sua sexuação.
O fenômeno do bullying parece responder a tal encenação da fantasia de
fustigação, revelando as dificuldades na construção fantasmática e as do
adolescer. A fantasia é, porém, encenada no cotidiano escolar: a rivalidade entre
“[...]aqueles que possuem dificuldades de relacionamento com as garotas, que são tímidos
demais, ou desajeitados; os que já tentaram, mas foram rechaçados por não serem ‘desejáveis’,
estes todos são chamados de ‘veados’, bichinhas’, ‘baitolas’. Não é necessário, para isso, que
possuam trejeitos, hábitos ou um estilo especial; basta que não ‘fiquem’ com as meninas [...]”
(Rolim, 2010, p.103).
7
“uma das ofensas mais graves praticadas entre as alunas consiste em qualificar uma delas de
‘vagabunda’ [...] a que ‘dá para qualquer um’, que é uma ‘puta’. O impressionante, no caso, é que
aquelas que empregam termos do tipo, em sua grande maioria, ainda não se iniciaram sexualmente”
(idem, p.106).
6
129
Lúcia Alves Mees
os irmãos/colegas passa facilmente da implicância/implicação para rechaço,
luta fratricida pelo suposto risco da própria expulsão. A autoridade que “bate”
está difusa, de modo que o lugar é ocupado por qualquer um, mas a ilegitimidade
em fazê-lo transforma a função inerente ao lugar em violência. Na impressão de
que todos estão potencialmente sob ameaça de ficarem de fora dos laços, alguns
parecem tomar a posição ativa de expurgar, como se garantisse a possibilidade
de permanecer. Ingresso imposto à força, com o preço de estar preso à violência
e condenado à resposta insuficiente que essa produz. “Ser violento” não é o
mesmo que “tornar-se homem”, e ter um lugar não se satisfaz com a expulsão
dos pares. Da mesma forma, difamar o colega não responde sobre quais traços
são os próprios a cada um. Estar submetido à violência também não produz a
inscrição no corpo de um novo estatuto para ele, não produz a submissão que
diria de assunção da castração e que conferiria um lugar. Ou seja, o bullying8
pode encenar as grandes questões da puberdade e da adolescência, mas não
permite sua conclusão. Condena à repetição, impedindo a elaboração acerca
da implicação do corpo e do nome de cada um.
Freud já apontara que a homossexualidade e a promiscuidade são as
formas de pôr o pai em xeque nas duas heranças que a função paterna traz: a
da escolha sexual e a do acato à lei. A atenção dos jovens na escola a esses
dois aspectos faz coro com as questões que importam na adolescência: como
se tornar homem, apropriando-se de um corpo, agora autorizado a levar a termo
a relação sexual, e provando – através de atos – uma posição ativa frente à
linguagem? Para as meninas, a implicação é a de se tornar mulher, sexuada,
desejada, mas sem deixar de guardar algo do pai e da lei. O recato traduziria o
acesso à sexualidade sob algumas balizas: não todos os homens. A “vagabunda”
pode bem representar aquela que acede a todos, desviando-se do ditame de
deixar ao menos um sob interdição.
Mas o que fracassa a ponto de que a passagem adolescente se sintomatize
na violência? Qual a responsabilidade de pais e professores nesse processo?
Qual o lugar da escola diante disso?
A adolescência atual se vê às voltas com a sobreposição do questionamento do Outro, próprio da juventude, com a tendência crescente dos adultos
de não ocuparem um lugar na cena. Os adolescentes não demandam aos pais
e professores suas respostas sobre si, como implicação lógica da juventude.
8
130
Sobre o bullying veja também Pinho (2011) e Ribeiro (2011).
Implicância ou bullying?
Soma-se a isso, em alguns casos, a demissão de pais e professores do próprio
lugar de alteridade diante do jovem.
A função do Nome-do-Pai é histórica, e se é essencialmente
intrapsíquica, ela só funciona através da intersubjetividade, uma
intersubjetividade socialmente determinada. É assim que o declínio
da função paterna, do qual Freud falou, no laço social e no laço
familiar, não é só imaginário, mas afeta a própria inscrição simbólica
do sujeito (Rassial, 1997, p. 51).
A escola da atualidade, como dissemos antes, está frequentemente
submetida ao discurso capitalista. Tal discurso busca produzir objetos de gozo,
anulando a falta própria do desejo. Lacan (1971-1972) fala em verwerfung da
castração, rejeição da castração nos campos do simbólico. Tal rejeição leva ao
apagamento da divisão estrutural do sujeito, desligando-o do “não saber do
inconsciente” e levando-o a desconhecer “as coisas do amor”. A verwerfung
ainda modifica a relação do sujeito com o objeto, transformando-o em consumidor
que pode alcançar o que procura.
Junta-se a isso a presença das ciências. O saber é transmutado em
objeto, com estatuto de bem de consumo, regido pela lógica utilitária. O
significante-mestre capital passa a comandar o saber científico: é ele que financia
as pesquisas, patrocina os pesquisadores, induz a elaboração do saber, obrigando
a aderir às “política dos resultados”. Pois o saber científico, praticamente
subsumido pela tecnologia, tem que produzir objetos úteis e consumíveis. As
instituições de ensino, assim, ficam pressionadas a uma política de resultados
e direcionadas para o mercado.
O discurso do capitalista falha enquanto regulador do laço social, pois
tende a ser promotor de segregação. A via de tratar as diferenças na cultura
científica capitalista é a segregação determinada pelo mercado: os que têm ou
não acesso aos produtos consumíveis. Trata-se, portanto, de um discurso que
não forma propriamente laço social, pautando-se sobretudo pela exclusão.
A escola, mais e mais submetida ao discurso da produção, do capital,
vem sendo palco do não elaborado na posição adolescente diante da castração.
O risco da segregação problematiza o laço entre os pares, que são agora
destinatários da indagação sobre o lugar de sujeito e o objeto. O tempo, encurtado
pela proximidade com o objeto de consumo, cobra do púbere que desde cedo
saiba responder sobre seu ser e seu sexo (“És gay?” “És puta?”). E pode fazer
reagir violentamente às demonstrações inevitáveis de que a adolescência requer
um trabalho psíquico até que possa responder sobre isso.
131
Lúcia Alves Mees
Estariam os púberes e adolescentes condenados a se bater e se debater
indefinidamente na busca de uma marca do Outro que possibilite a construção
da fantasia, indispensável à conclusão do adolescer? Ou ainda, na dificuldade
de destacar o objeto de desejo, guia do porvir, os jovens se arriscariam a compor
a impessoalidade perversa como saída ou como sintoma da permanência nos
laços utilitários/segregadores da cultura atual?
REFERÊNCIAS
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Ed. 34, 2009.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
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_____. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente [1957-1958]. Rio de
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LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio,
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MEES, Lúcia. Abuso sexual: trauma infantil e fantasias femininas. Porto Alegre: Artes
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PINHO, Gerson. O sujeito do bullying. In: Autoridade e violência. Porto Alegre: APPOA,
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RASSIAL, Jean-Jacques. A adolescência como conceito da teoria psicanalítica. In:
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SANTIAGO, Silviano. Posfácio. In: A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José
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Recebido em 13/04/2012
Aceito em 11/05/2012
Revisado por Beatriz Kauri dos Reis
132
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p. 133-145, jan./jun. 2011
TEXTOS
DO BRINQUEDO
AO TRABALHO:
os avatares na passagem
da infância à adolescência
Carmen Backes1
Resumo: A adolescência muito recentemente se recorta da infância e torna-se
um momento diferenciado. Antes ambas eram vistas como integrando o mesmo
processo contínuo que levava o sujeito a atingir a idade madura. Na clínica
psicanalítica constatamos que, para pensar a adolescência, faz-se necessário
passar pelo infantil, pois muitos processos se reeditam, e o adolescente precisa
refazê-los e reintegrá-los. Neste artigo, propusemos pensar nos avatares da
transformação do brincar na infância, em estudo e trabalho na adolescência,
que não se opera sem recorrer aos processos sublimatórios.
Palavras-chave: infância, adolescência, brincar, trabalhar.
FROM PLAY TO WORK:
the avatars in the passage from childhood to adolescence
Abstract: Very recently adolescence distinguishes itself from childhood and
becomes a different time in life. Before, both were seen as part of an ongoing
process that lead the subject to reach adulthood. In the psychoanalytic clinic, to
consider adolescence, it is necessary to go through the infantile, due to the
facet that many processes are reissued and the teenager needs to remake and
re-integrate them. In this article, we purpose to consider the avatars of the
transformation from playing in childhood to study and work in adolescence, which
does not operate without resorting to sublimatory processes.
Keywords: childhood, adolescence, play, work.
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA); Psicóloga do
Instituto de Psicologia (UFRGS); Doutora em Educação (UFRGS). Autora do livro: O que é ser
brasileiro? (Escuta, 2000) e organizadora do livro: A clínica psicanalítica na contemporaneidade
(Editora da UFRGS, 2008). E-mail: [email protected].
1
133
133
Carmen Backes
A
infância e a adolescência apenas recentemente destacaram-se uma da
outra como categorias próprias e diferenciadas. Muito já foi escrito sobre a
história da infância, da família e do casamento; contudo, não há uma obra de
referência sobre a história da adolescência. Talvez, justamente, por ser
considerada como invenção recente, datada da segunda metade do século XX.
É no Pós-Segunda Guerra que a adolescência distingue-se das outras “etapas
da vida”, vindo a se constituir como aquele período que empurrou “a infância para
trás e a maturidade para frente”, e ganha, talvez pela primeira vez na história, um
lugar social. Os anos 90 assistiram aos jovens francamente instalados como
categoria, ganhando estatuto próprio e transformados em paradigma do sujeito
contemporâneo. É nesse contexto que vemos surgir o adolescente, após a
infância, impulsionado pelos efeitos corporais da puberdade e pelas exigências
sociais, mas, que, todavia, ainda não é um adulto.
Aquilo que se opera na infância carrega seu registro pela adolescência,
permitindo os processos de sublimação, que vão pautar, por sua vez, toda a vida
do sujeito adulto. Deve-se à psicanálise o reconhecimento da sexualidade já
presente na infância e o alerta de que a sua repressão ocasionaria o sofrimento
e a doença neurótica. Contudo, Freud atribui lugar especial ao processo de
educação das pulsões para a vida em sociedade. Por outro lado, o autor alerta
imediatamente para o fato de ser esse o fator preponderante na constituição e
no desenvolvimento dos processos neuróticos. Esse é o preço a ser pago por
uma vida comunitária e a razão do mal-estar constituinte de todo sujeito humano.
O pai da psicanálise atribui papel central ao mecanismo psíquico da sublimação,
como um dos destinos das moções sexuais, favorável ao desenvolvimento de
atividades artísticas e de investigação intelectual. De que forma a educação
poderia promover a integração das crianças na ordem social vigente auxiliandoas a tomar os rumos da própria sexualidade sem, no entanto, causar excessiva
frustração?
A psicanálise denomina de latência o período da segunda infância, que
se caracteriza por uma renúncia temporária da satisfação das pulsões sexuais.
A latência situa-se entre dois tempos de forte efervescência pulsional: o edipiano
e o pubertário. Essa época de “adormecimento” das pulsões é decisiva para a
aquisição de capacidades sublimatórias, na medida em que Freud ([1915] 1981)
considera que a sublimação é um dos destinos pulsionais que proporciona uma
modalidade de satisfação efetiva diferente da descarga direta.
Consideramos que os destinos pulsionais de tipo sublimatório constituídos
na infância são de extrema relevância na adolescência, pois é o momento em
que o sujeito precisa derivar libido para o campo das decisões intelectuais e
profissionais. Do mesmo modo, trata-se de um mecanismo importante para
134
Do brinquedo ao trabalho...
auxiliar o sujeito a desvencilhar-se dos objetos infantis. A infância, ainda
considerada, na cultura atual, como um momento feliz puro e belo, é cercada de
objetos que, por sua pregnância, são de difícil desistência, pois altamente
idealizados dentro desse contexto.
Nos Três ensaios para uma teoria sexual, Freud ([1905] 1981) inclui um
elemento que vai nos interessar sobremaneira para pensar na reativação dos
processos infantis na adolescência e na vida adulta, qual seja, que a sublimação
caracteriza-se por uma mudança que não se faz por meio do retorno do recalcado
sob a forma de sintoma. A libido vai encontrar sua satisfação diretamente em
atividades socialmente valorizadas, às quais o grupo dá sua aprovação, uma vez
que são de “utilidade pública”. Nesse texto o autor aponta primordialmente o
campo da arte, ciência, cultura e literatura como aqueles indicados a propiciar
sublimação.
Para falar sobre a sublimação, Freud convoca a experiência do artista
como aquele indivíduo que não renunciou aos seus anseios por satisfações de
toda ordem, mesmo que estas lhe tenham sido negadas pela realidade de variadas
formas. Se essas satisfações são negadas na relação com o “mundo exterior”,
ele é levado a retirar libido dos objetos externos e a introjetá-la. Tal como no
neurótico, essa libido será agora investida em suas construções mentais
impregnadas de desejo, em suas fantasias. No entanto, a semelhança com a
neurose termina aí, pois, a sublimação implica que essa libido investida na
fantasia não será submetida aos processos de condensação e deslocamento
que o recalcamento opera.
Na neurose, esses processos deformam o material fantasístico, criando
as condições necessárias para que se suspendam as barreiras do recalque e o
conteúdo retorne à consciência, sob a forma de sintoma (retorno do recalcado),
fonte de sofrimento para o sujeito. No caso do artista, essa libido investida na
fantasia será sublimada, o que implica que seu destino não é o recalque e o
retorno como uma formação do inconsciente. Em seu artigo As pulsões e suas
vicissitudes, Freud ([1915] 1981), de fato, estabelecia a sublimação e o recalque
como destinos distintos que a pulsão pode adotar.
Há, portanto, identidade entre o processo de sublimação e o do
recalcamento que vai até o nível da introjeção da libido e seu investimento na
fantasia; daí para diante se distinguem. A sublimação implica um percurso da
libido que não exclui a passagem pelo recalcado originário. O recalque originário
é o significante que originalmente ficou encarregado de representar psiquicamente
a pulsão e jamais teve acesso à consciência. Quando a libido retorna do mundo
externo, devido às frustrações sofridas, ela vai alimentar estruturas articuladas
em torno do recalcado originário. Portanto, quando Freud ([1915] 1981) diz que,
135
Carmen Backes
na sublimação, o destino da libido não passa pelo recalcamento, devemos ter
em mente que se trata do recalcamento secundário, e não do primário.
Se, na sublimação, a fantasia vem à tona por uma via que não a distorce,
ela traz consigo não o recalcado originário enquanto tal, mas a si mesma como
uma construção intimamente ligada e próxima a ele, moldada a sua semelhança.
Nesse sentido, as obras de arte, imagem fiel da fantasia, são manifestações do
recalcado originário, manifestações da pulsão que originalmente foi dirigida ao
objeto materno, primeiro objeto de amor e também de frustração.
As moções pulsionais mais arcaicas da criança são, ao mesmo tempo,
um ponto de partida e um núcleo nunca inteiramente resolvido sob o primado da
genitalidade. Lacan, por sua vez, sugere falar de “um ponto de limite, um ponto
irredutível” (Lacan, [1959-1960] 1988, p. 119). Mas se há, por um lado, a insatisfação intrínseca, por outro lado, Freud ([1915] 1981) aponta para a abertura que
parece, à primeira vista, quase sem limite, das substituições que podem ser
feitas no nível do alvo. A sublimação é o processo psíquico inconsciente, que
permite substituir um objeto sexual por um objeto não sexual, socialmente
“indicado”.
A puberdade, por ser o momento específico em que “a carne insiste”,
coloca o adolescente momentaneamente desancorado frente ao descontrole da
explosão pulsional pubertária. É o real do corpo que urge pela Coisa e necessita
novamente ser capturado pelas vias significantes.
***
Por seu nascimento prematuro, o bebê humano, através da relação de
amamentação, coloca-se numa posição de total dependência do Outro e, com
isso, instala-se a representação mais primordial da imago materna. Delineiamse aí os “sentimentos mais arcaicos e mais estáveis que unem o sujeito à
família” (Lacan, [1938] 2003, p.36), sendo o complexo do desmame inteiramente
dominado por fatores culturais e, portanto, diferente dos instintos. No homem,
“é uma regulação cultural que condiciona o desmame”2 (id., ibid., p.36).
Assim, o desmame deixa no psiquismo humano uma marca permanente,
pois interrompe aquilo que Lacan nomeia de uma “relação biológica” com a mãe
e que moldará as experiências psíquicas posteriores. Ele pode, portanto, ser
Colocaríamos a palavra cultural entre aspas, pois o desmame, ou a passagem de uma fase da
libido a outra está na relação direta a um reviramento na demanda do Outro originário.
2
136
Do brinquedo ao trabalho...
aceito ou recusado e, na falta de um eu que afirme ou negue, pois que ainda em
estado rudimentar, a aceitação ou recusa não pode ser considerada uma escolha.
Dessa forma, os complexos familiares dão a ver que é por crises dialéticas
que o indivíduo cria a si mesmo e aos seus objetos. Aquilo que faz laço entre os
humanos apoia-se no traço do recalque das relações primárias com o Outro
originário. Através do complexo do desmame, definido por Lacan ([1938] 2003),
com sua fixação da imago materna e posterior abandono, sabemos que essa
imago instala-se precocemente e de forma extrema, tendo em vista a prematuridade do bebê humano ao nascer, que o joga numa total dependência do Outro.
O “corte” realizado pelo desmame opera ambivalência na relação ao objeto
primário e, por ser de ordem vital para o bebê, a imago imprime-se profundamente
no psiquismo, provocando uma nostalgia da mãe, de difícil sublimação, o que
faz supor que a relação a esse objeto primeiro possa se refazer incansavelmente.
A respeito do complexo de intrusão e sua reiteração da perda objetal,
destacamos a relação com um objeto outro – o rival, com o qual pode se desenvolver uma montagem imaginária, que inclui desde a sedução até o despotismo,
através de uma identificação mental com o outro, pois não depende necessariamente da sua participação direta. Caracteriza-se por ser uma relação ambígua
(amor e ódio), de domínio e subjugação. A insistência na relação imaginária com
o objeto do complexo de intrusão pode fazer insistir também a reiteração da
perda do objeto, com seus sucessivos e infindáveis substitutos.
Por fim, o último dos complexos é relativo ao conflito edipiano, que instaura
a relação objetal a três, dominada por moções pulsionais sexuais, agressivas e
temor de retaliação. O ultrapassamento desse conflito, através do recalcamento
e da sublimação do objeto primeiro e da constituição de ideais, retiraria o terceiro
da condição de rival a ser vencido, deslocando-o para uma posição de referencial.
Nesse sentido, o terceiro não é aquele frente ao qual se insiste em tomar o
lugar, em substituí-lo como objeto, mas, sim, aquele que lança o sujeito adiante,
na via do desejo.
Se situamos que na adolescência se dá a reedição do complexo de Édipo,
e que é necessária, nesse momento, a ratificação do recalcamento, poderíamos
perguntar: por que o objeto primário insiste na adolescência? Um esclarecimento,
porém: tomamos aqui as relações de objeto de um grande número de
adolescentes, como tendo a particular característica de serem repetidamente
renovadas, como no caso de Gustavo, que descrevo a seguir.
Gustavo é um adolescente tardio, de 26 anos, que está cursando a
faculdade de Design, depois de ter transitado por duas outras, sem concluir
nenhuma, preocupado com o fato de, a essa idade, ainda não ter se formado e
depender financeiramente dos pais, sem perspectiva imediata de mudar tal
137
Carmen Backes
situação. Aparenta não ter dificuldade de relacionamento com as mulheres,
pois já teve muitas namoradas: assim como termina com uma, logo inicia com
outra, sem transcurso de tempo entre uma e outra. Esse modo de funcionamento
não lhe traz interrogação, mas, sim, o fato de, nos últimos tempos, insistir para
ele a imagem de uma mulher mais velha, Fernanda, com quem se relacionou,
mas que não seguiu adiante por julgá-la inadequada, pois se trata de uma mulher
mais velha, madura, independente, de opiniões firmes, com a vida profissional
decidida, “uma mulher masculina.... como minha mãe”. Para melhor defini-la,
“Garota Nacional” da Banda Mineira Skank: “Eu detesto
o jeito dela mas, pensando bem, ela fecha com meus sonhos como ninguém...”.
Depois de findo o namoro, logo se apaixona por outra garota, mas são os
pensamentos em torno da namorada anterior que insistem, algo que, para ele, é
novo, pois facilmente se desprende de um relacionamento e vincula-se a outro,
da mesma forma apaixonada de sempre.
Irritado com pensamentos que não consegue controlar, vai a uma festa e
“toma um porre”. No dia seguinte, da amnésia alcoólica lhe restam um cupom
fiscal no bolso e uma lembrança da infância: picolé Chicabom (chocolate e leite)
que desfrutava nas madrugadas, depois das festas com Fernanda, o mesmo
que lembra ter conhecido com a mãe, em idade bastante precoce. Por associação
e não com toda a certeza, julga ter saído da tal festa e ido ao mesmo posto de
gasolina, comprado novamente o picolé, porém desta vez sem a companhia de
Fernanda.
Esse recorte clínico sugere pensar nos paradoxos (amor e ódio) associados ao objeto, apontando para a dificuldade de substituição, pois, se nenhum é
suficientemente adequado, poderíamos perguntar sobre aquele insituável, que
teria dado origem à série. Nesse sentido, o fragmento clínico coloca em relevo a
insistência da imago do objeto primeiro e permite lançar a hipótese de certa
recusa em ceder o objeto, operando uma substituição que seja efetiva e duradoura
– se é que a substituição efetiva seria possível. Ao mesmo tempo, Gustavo
denota a ambivalência primordial, dando a ver os índices da imago materna e
revelando o papel psíquico que representa a imagem da mulher forte, que ele
“detesta”, mas que o acompanha em seus sonhos diurnos. Renovando
incansavelmente a exclusão, é sempre ele que põe um final nas relações, pois
não suportaria “levar um pé na bunda”. Triunfa agora, colocando-se ativo na
reedição do abandono, ativando a agressividade que os restos infantis dos
complexos familiares colocam em ação.
Rassial (1997), em seu livro A passagem adolescente, afirma que o sujeito
necessita, a posteriori, realizar novamente uma série de operações fundadoras.
Primeiramente, se na fase do espelho eram o olhar e a voz maternos que lhe
c ita
138
u m
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ú s ic a
Do brinquedo ao trabalho...
asseguravam consistência e existência, na adolescência o jovem deverá – se
não se apropriar desses objetos parciais – ao menos deslocá-los para os pares.
Em segundo lugar, se, na fase fálica, na circulação pelo complexo de Édipo,
tudo girava em torno da mãe, é o reconhecimento da função paterna que, na
infância, provocará a “desistência” do objeto materno e, na adolescência, a validação
do Nome-do-Pai permitirá o acesso a uma relação genitalizada ao outro do Outro
sexo. A adolescência comporta, portanto, a confirmação do reconhecimento da
diferença sexual, como também o reconhecimento do próprio sexo.
Por último, na infância, o sujeito se constitui enquanto alguma coisa para
o desejo dos pais, principalmente da mãe; na adolescência ele deverá reorientar
a pergunta sobre o desejo: se antes tudo se articulava em torno de como satisfazer
melhor ao Outro originário, agora ele deverá operar o giro de tomar-se da
responsabilidade sobre seu desejo.
Como vimos, o infantil faz retorno na adolescência de forma massiva,
tendo em vista a necessidade da ratificação ou não, a posteriori, das operações
fundadoras realizadas na infância. Esse é o norte que orienta as colocações
aqui desenvolvidas.
O trabalho da adolescência é, principalmente, operar os lutos que a
puberdade impõe, colocando algo no lugar daquilo que falta. Porém, adiantamos
que o luto – luto pelo corpo infantil, pelos pais da infância, pelos objetos –, que
a adolescência implica, traz em si a radicalidade de uma falta que não inclui a
possibilidade de substituição.
Talvez um segundo desmame – guardando as devidas proporções com
relação à infância – precisasse ocorrer, para que o adolescente pudesse desejar
algo mais do que o aconchego quentinho do lar materno e paterno, “ato necessário,
no caminho da autonomia possível, que a passagem adolescente requer”
(Cabistani, 2009, p. 91).
Metamorfoses do objeto: do brinquedo ao trabalho
A origem da relação do sujeito com o objeto está para sempre perdida e,
embora fundante, é inacessível ao sujeito. A relação ao objeto no brincar, além
de dar suporte à fantasia, é também prática significante que implica uma produção
relativa à constituição libidinal do próprio corpo. O outro originário “empresta”
significantes para que a criança possa ir recobrindo seu próprio corpo, retirandoo, desta forma, do lugar de puro objeto. Esse procedimento contribuirá para a
posterior operação de separação eu/Outro.
Por outro lado, a dificuldade, ou mesmo a impossibilidade da criança de
desprender-se do corpo materno ou de seus substitutos interfere em suas
139
Carmen Backes
possibilidades lúdicas. Assim, o brincar nos traz notícias preciosas sobre o
estado de desenvolvimento simbólico da criança a partir das condições de operar
esse desprendimento. Essa dificuldade intervém em sua capacidade de brincar
e nas condições de aceitar situações de separação.
Freud ([1920] 1981) em Mais além do princípio do prazer, descreve o jogo
do fort/da, na experiência de seu neto brincando com o aparecimento e
desaparecimento de um objeto, ensinando assim que a palavra é o que pode dar
suporte à ausência. Nessa brincadeira, a criança joga um carretel amarrado
com um barbante para fora da borda do berço, fazendo-o desaparecer e puxandoo de volta até que reapareça. Durante o processo, ele dá, ao ato de jogar o
carretel e puxá-lo, um suporte fônico, dizendo – “ooo” (fort, em alemão = embora
ou fora) e “aaa” (da , em alemão = aqui). Na brincadeira completa então (embora/
aqui), o menino encena, recria a presença/ausência da mãe.
Dessa forma, o fort/da nada mais é do que a possibilidade de recobrir
com palavra a ausência do outro materno. Essa brincadeira, então, caracterizase, principalmente, como a simbolização da ausência da mãe, ao mesmo tempo
em que introduz uma distância entre a criança e o Outro. O jogo auxilia a fazer
a operação de separação: insere significantes numa experiência vivida,
transformando-a em brincar. Brincar, assim, permite fazer novas experiências e
prescindir da presença do outro. Nesse sentido, brincar é um novo significante
incluído no universo simbólico da criança.
No decorrer da constituição subjetiva ocorre a metamorfose (transformação) do brincar em outra coisa: estudar na latência; estudar e trabalhar na
adolescência. Que não se confunda, porém, a transformação do brincar em
estudar e trabalhar, com a oposição entre lúdico/sério, ou prazer/desprazer,
confusão essa que acarretaria um empobrecimento, além de retirar do estudo e
do trabalho importante fonte de satisfação. Não haveria razão, sugere Rodulfo
(1990), para operar disjunção entre brincar e trabalhar.
Transformações na função do brincar ocorrem em diferentes momentos
da estruturação subjetiva. Interessa-nos aqui dar alguma visibilidade a essas
transformações no decorrer da passagem adolescente. “Onde era o brincar, o
trabalho deverá advir”, é uma paráfrase utilizada por Rodulfo (1990, p. 158) para
designar que, se o trabalho do brincar não foi realizado na infância, comprometese, na adolescência, tudo o que for da ordem da sublimação, mormente a
sublimação necessária para a inserção em um trabalho profissional, porque
[...] em maior ou menor grau, as formações de desejo, longamente
desdobradas e desenvolvidas no campo do brincar infantil e
adolescente, passam, cedem grande parte de sua força e de seu
140
Do brinquedo ao trabalho...
poder intrínseco para o trabalho, como atividade central da existência
adulta, outorgando-lhe assim uma base pulsional decisiva [...]. Sem
esta base, o trabalho ou não pode se constituir, ou se pseudoconstitui, como uma fachada talvez socialmente muito produtiva,
mas subjetivamente vazia de significação (Rodulfo, 1990, p. 158).
Segue o autor referindo que, em contrapartida, podem ocorrer inúmeras
dificuldades em operar a metamorfose do brincar em trabalhar na adolescência,
que poderiam sugerir algo de uma insistência do objeto primeiro.
Algumas atividades dos adolescentes, embora socialmente reconhecidas,
ocupam o lugar do trabalho profissional e remunerado que eles não conseguem
constituir. Rodrigo, outro exemplo clínico, mantinha-se “atarefado”, numa
“brincadeira” agradável e prazerosa com meninos3, economizando-se da angústia
de construir um projeto que lhe proporcionasse independência financeira da
família. O trabalho toma um caráter somente lúdico, e não propriamente
profissional.
Gustavo, de quem já falamos acima, ocupava-se com estágios acadêmicos
que tomavam caráter de profissão. Frequentemente, contudo, encontrava
dificuldade de relacionamento com superiores hierárquicos, pois considerava-se
um “excelente profissional”, conforme suas próprias palavras, o que o levava a
fazer reivindicações “salariais” diferentes daquelas de um estagiário.
Rodulfo (1990) também afirma que o devaneio constitui-se, para muitos
adultos, como a única forma do brincar remanescente da infância que não cedeu
lugar ao trabalho profícuo. Nisso, encontramos também outros elementos que
remetem ao caso de Rodrigo, quando cria um logotipo para roupas de surf 4 e
sonha para si um futuro muito promissor com o projeto da marca guardado na
gaveta da escrivaninha.
“Brincar de trabalhar” é a expressão que melhor definiria a ocupação de
Rodrigo. Ao mesmo tempo, essa foi a única atividade que conquistou por esforço
próprio, pois, diante da impossibilidade de ser o ideal, como o irmão mais velho,
acabava sempre sendo sua versão negativa e, para não sê-lo, fantasia uma vida
profissional que mistura brincar e trabalhar: ser o estagiário-fisioterapeuta dos
meninos que jogam bola num time famoso, ou enriquecer surfando.
Era o estagiário (não remunerado) de fisioterapia nas categorias de base de um time de futebol.
Inspirado no criador da marca Mormaii, cuja história o fascina, pois trata-se de um médico que
abandona a profissão, lança a marca, consegue fazer fortuna e manter-se morando à beira do
mar, tendo como atividade principal a administração da marca e a prática do surf.
3
4
141
Carmen Backes
Os mesmos elementos de análise encontram-se no caso de Gustavo,
que escolheu seu primeiro curso superior – analista de sistemas – porque sempre
fora “muito fera” com o computador. A segunda faculdade foi de designer gráfico,
que se constituía como uma continuação da primeira. Alcança muito prazer e
satisfação trabalhando no computador, criando e projetando objetos, porém,
tem muita dificuldade em transformar uma ou outra em atividade profissional. O
caso oferece elementos para situar um ponto de fracasso dessa metamorfose
do brincar em trabalhar, que impede o investimento no campo profissional, pois
a atividade lúdica acaba prevalecendo e impedindo o deslocamento de um
quantum libidinal de um campo a outro.
“Há coisas que devem cair no brincar infantil para que o trabalho advenha
como possibilidade” (Rodulfo, 1990, p.170). A respeito dessa afirmação do autor,
uma outra característica chama a atenção no caso de Gustavo: não conseguia
permanecer por muito tempo num mesmo local de estágio, sempre era
dispensado precocemente. Alegava que os trabalhos que lhe eram destinados
para executar eram muito primários (“Sei fazer muito mais e melhor do que
aquilo”) e, de fato, suas produções eram de potencial elevado, tendo sido premiado
várias vezes com objetos por ele criados. Também adotava um jeito próprio de
executar os projetos, o que acabava sempre por desagradar seus empregadores.
Nesse sentido, não conseguia adaptar-se às regras dos locais de trabalho; em
casa, executava os projetos do seu jeito e no seu tempo, isto é, com as regras
“inventadas” por ele próprio.
O brincar infantil coletivo implica obedecer regras estabelecidas conjuntamente. Chama a atenção que Gustavo pareceria ter dificuldade em aderir às
normas impostas pelo outro e “fazer passar suas qualidades por um certo código
e aceitar entrar em contato com procedimentos e saberes já instituídos” (Rodulfo,
1990, p. 170). Parecia instalar-se numa onipotência infantil, que dificultava o giro
necessário para transformar o brincar em trabalhar e, portanto, poder aderir às
regras que o Outro institui.
Por outro lado, brincar tem um código privado, que não necessariamente
é compartilhado com uma comunidade, pois a criança pode fazê-lo sozinha.
Nesse sentido, o brincar guarda semelhança com o sonho e, por isso, precisa
ser “decifrado”. Portanto, para que o brinquedo entre no circuito do trabalho, ele
necessita entrar num âmbito mais amplo, compartilhado e com outras regras.
Essa é a primeira e essencial transformação do brinquedo em trabalho. “Brincar
com outra coleção de significantes” (Rodulfo, 1990, p.172) é a expressão que o
autor utiliza para melhor definir a passagem do brincar ao trabalhar.
Por que trago aqui as funções do brincar na infância? Porque o brincar é
o suporte da fantasia e porque tanto esta como aquelas se redimensionam na
142
Do brinquedo ao trabalho...
adolescência, se reestruturam. A primeira importante função do brincar na infância
diz respeito à possibilidade da construção de uma superfície corporal relacionada
à fase do espelho, responsável pela constituição eu/Outro. Na adolescência
ocorre a reconstituição da fase do espelho diante da necessidade de reapropriação
da imagem corporal que a puberdade fez vacilar. O brincar toma aí uma
importância fundamental. Veja-se, a exemplo disso, o quanto a prática de esportes
lúdicos é bem-vinda para o adolescente, como uma forma de operar a contenção
desse corpo que transborda.
Conforme vimos acima com o fort/da, outra função do jogo na infância, é
a de auxiliar a operar a simbolização da presença/ausência da mãe; na
adolescência, esse jogo se reconstitui com o objetivo de operar a separação
familiar/social. As viagens “experimentais” dos adolescentes, desacompanhados
da família, frequentemente para fora do país, sob a forma de intercâmbios
estudantis, cumprem a função de exercitá-los nessa passagem do estranho
(estrangeiro) ao familiar.
Ainda outra função do brincar é auxiliar no acesso ao corpo do Outro,
através dos jogos sexuais, para daí extrair material para a constituição de sua
própria imago corporal. Se, na infância, essa operação dava-se a partir do
“esburacamento” do corpo materno, na adolescência passa a se operar com o
“manuseio” do corpo do outro, que inclui o reconhecimento da existência do
Outro sexo e a correlativa iniciação na atividade sexual.
Renunciar ao prazer do jogo e do brinquedo não é tarefa fácil. Na realidade,
diz Freud ([1908] 1981), não conseguimos renunciar a nada, o que fazemos de
fato é trocar, substituir umas coisas por outras. Os pais frequentemente precisam
auxiliar os filhos a se desvencilharem dos objetos infantis, utilizando-se para
isso de diversas “manobras”.
Nesse sentido, pareceria que um “direcionamento” sublimatório, por parte
das autoridades parentais, funcionaria melhor do que a recriminação superegoica.
Queremos com isso salientar a diferença entre o superego repressivo parental e
aquilo que pode ser transmitido como um “saber gozar pulsional”,5 que o
adolescente percebe como sendo acessível a ele, além de apreciado e
recomendado pela autoridade parental. Portanto, “dar exemplo” ao adolescente,
através de um saber-fazer com a realidade, funcionaria melhor, em termos
educativos, do que a repressão superegoica.
5
Expressão utilizada por Penot (2005).
143
Carmen Backes
Na continuidade entre as gerações opera-se um jogo entre repetição e
diferença. Os jovens inscrevem, com mais ou menos sofrimento, alguma diferença
no mundo dos mais velhos, ao mesmo tempo em que fazem outras tantas
repetições. Faz efeito aí a maneira pela qual o outro parental terá sabido se
“desfazer”, ceder de seus objetos, como também se prestar à operação de
simbolização de seu rebento. Nesse caso, o investimento pulsional parental
sobre seu objeto (filho) precisa ter suficiente qualidade sublimatória, para que
não se produza uma modalidade de recusa parental.
Quais as soluções pulsionais o sujeito será capaz de colocar em operação
diante do drama existencial que a adolescência implica? Certamente entrará
em jogo a capacidade dos jovens de se entregarem a atividades sublimatórias à
sua disposição, e a tarefa dos adultos será de abrir e incentivar o acesso a
satisfações pulsionais, em lugar de pura descarga excitatória, quase aditiva. A
possibilidade do adolescente de se enganchar num projeto, seja ele profissional,
amoroso ou intelectual, será diferente se nisso estiver incluído o reconhecimento
pelo adulto parental, e não somente pelo social. De qualquer modo, nunca é
demasiado lembrar que, para o pulsional, não haverá satisfação integral.
A possibilidade de orientação e aquisição de consistência, a partir das
significações e dos referenciais oferecidos pelo Outro familiar, é a “rede de
proteção” de que o adolescente necessita. O jovem, por estar exatamente
atravessando o processo de constituição fantasmática, frequentemente encontra
dificuldade dupla na consecução desse projeto: naquilo que ele necessita
sistematicamente apoiar-se para fortalecer essa construção, sistematicamente
insiste em não se oferecer à simbolização, por certa recusa de significação e de
valor, por parte de seus referentes.
Em contraste com a inibição da pulsão, poderiam se abrir novas margens
de “negociação”, permitindo ao jovem maior liberdade e novos destinos, que
permitirão também um ganho subjetivo. Nesse sentido, é necessário o cuidado
de não incentivar as inibições, nem sufocar os “desvios” pulsionais, mas antes
lançar interrogações e buscar arejar com análises desapaixonadas.
REFERÊNCIAS
CABISTANI, Roséli. A economia da angústia na adolescência. Revista da Associação
Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 36, p. 85-92, jan./jun. 2009.
FREUD, Sigmund. Tres ensayos para una teoria sexual [1905]. In: ______. Obras
completas. 4. ed. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. v. 2.
______. El poeta y los suenõs diurnos. [1908] In: ______.______. v. 2.
______. Los instintos y sus destinos. [1915] In: ______.______. v. 2.
______. La represion. [1915] In: ______.______. v. 2.
______. Mas allá del principio del placer. [1920] In: ______.______. v. 3.
144
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LACAN, Jacques. Os complexos familiares na formação do indivíduo [1938].
In:______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 29-90.
______. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise [1959-1960]. Rio de Janeiro: J.
Zahar Ed., 1988.
PENOT, Bernard. A paixão do sujeito freudiano. Rio de Janeiro: Companhia de Freud,
2005.
RASSIAL, Jean-Jacques. A passagem adolescente. Porto Alegre: Artes e Ofícios,
1997.
RODULFO, Ricardo. O brincar e o significante. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
Recebido em 17/10/2011
Aceito em 06/01/2012
Revisado por Deborah Nagel Pinho
145
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Revista 40.2 - APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre