Relações de Trabalho em Organizações Não Governamentais
Autoria: Lucimeiry Batista da Silva, Márcia da Silva Costa
RESUMO
Este artigo objetiva compreender as relações de trabalho no âmbito das Organizações Não
Governamentais (ONG’s) e como as tendências recentes de flexibilização do trabalho afetam
seus trabalhadores. Sua contribuição empírica foi extraída de pesquisa qualitativa realizada
através do recurso da entrevista com dirigentes e trabalhadores de cinco ONG’s sediadas na
cidade de João Pessoa - PB. As décadas de 1970 e 1980 no Brasil foram marcadas por uma
efervescência política que deu surgimento a inúmeras organizações da sociedade civil
voltadas para a defesa de direitos sociais e democráticos. Tendo como sua principal razão de
existência o combate ao crescimento das mazelas sociais, a exploração ambiental e os
autoritarismos políticos, essas organizações se proliferaram e se profissionalizaram na década
de 1990 dependentes de financiadores ligados ao próprio sistema capitalista e, portanto, sob o
domínio de uma ideologia neoliberal que defende a redução do papel do Estado, sobretudo,
nas áreas sociais e da regulamentação do mercado de trabalho. Entre os principais resultados
encontrados nesta pesquisa pode-se argumentar que os trabalhadores nessas organizações
também sofrem as tendências de flexibilização e precarização dos direitos do trabalho,
sobretudo, em terrenos como os dos salários e das jornadas de trabalho. Pautadas por um
modelo mais amplo que avilta e suprime direitos, as ONG’s atuam, no campo das relações de
trabalho, sob uma lógica que contraria muitos dos seus princípios e finalidades, como a defesa
de direitos. Seus trabalhadores, no entanto, apesar de demonstrarem insatisfação, não
reivindicam veementemente mudanças em função do compromisso e militância social ligados
à própria causa institucional.
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INTRODUÇÃO
No mundo atual, em que a lógica de mercado está em todas as esferas da vida e não
mais apenas na esfera econômica, o mundo do trabalho tem sofrido mudanças que apontam
para uma tendência cada vez mais crescente de remercantilização das relações sociais. A
competitividade global e irrestrita levou mercado e Estado a focarem suas estratégias de ajuste
competitivo no princípio da flexibilidade, da desregulamentação do trabalho e da redução dos
gastos sociais. Esta mudança vai refletir, também, na forma como as Organizações Não
Governamentais (ONG’s), que, ao menos em tese, não são nem instituições do mercado nem
do Estado, atuam no campo de suas relações de trabalho. Essas instituições se expandiram
com o crescimento das desigualdades sociais e com a luta por estabelecer direitos, em um
contexto em que as sociedades capitalistas avançaram em suas iniciativas de reduzir o espaço
da política, sobretudo, com as transformações econômicas advindas da onda neoliberal que
vem dominando o pensamento e as práticas empresariais e dos governos nos últimos trinta
anos. A lógica da flexibilização do trabalho e da desregulamentação de direitos também
afetam as ONG’s. Esse artigo visa discutir como se caracterizam as relações de trabalho e
como as tendências recentes de flexibilização afetam os trabalhadores de Organizações Não
Governamentais, mais especificamente, nos aspectos da caracterização das relações de poder
e da definição das jornadas e dos salários. A base para esta reflexão são informações coletadas
através dos depoimentos dos trabalhadores e gestores de cinco ONG’s sediadas na cidade de
João Pessoa – PB. O interesse maior foi conhecer que parâmetros ou valores pautam a
regulação do trabalho num contexto em que se instala a percepção da força de trabalho como
mercadoria até mesmo em organizações que não visam lucro e que têm mesmo como fim
defender direitos. Esta foi a questão central que guiou as reflexões aqui expostas e a pesquisa
empírica apresentada.
2
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A fundamentação teórica foi dividida em duas seções: (i) a institucionalização das
relações de trabalho no capitalismo e (ii) movimentos sociais e ONG’s no Brasil.
2.1
A institucionalização das relações de trabalho no capitalismo
O capitalismo tem suas origens na Europa, ainda no século XIII, mas foi no século XIX
que seu maior pensador crítico, Karl Marx, identificou suas origens e a lógica de seu
funcionamento, principalmente, na sua obra ‘O Capital’, onde encontramos:
[...] o processo que produz o assalariado e o capitalista tem suas raízes na sujeição
do trabalhador. O progresso consistiu numa metamorfose dessa sujeição, na
transformação da exploração feudal em exploração capitalista (MARX, 1984, p.
831).
Essa sujeição se processa com a desapropriação ou separação dos meios de produção de
seus verdadeiros produtores, transformados em vendedores de força de trabalho. Para Marx,
as relações que se estabelecem, a partir de então, entre patrões e trabalhadores são relações
antagônicas. O capitalista possui os meios objetivos da produção e os meios objetivos da
sobrevivência do trabalhador. Mas o trabalho e, portanto, a valorização do capital, não se
realiza sem a capacidade real e subjetiva que pertence ao trabalhador. É essa contradição,
baseada em relações assimétricas de propriedade e poder, que fundamenta o domínio do
capitalista sobre os trabalhadores. Ao comprar força de trabalho, o capitalista assume o
comando e a finalidade do processo de produção.
Em princípio, essa relação é pautada pela regulação livre das forças de mercado. Em seu
processo histórico, todavia, o questionamento e a transformação da ordem liberal que
regulava as relações de trabalho no capitalismo acontecem entre o final do Século XIX e as
primeiras três décadas do Século XX e sua gênese, conforme discutiu Vianna (1999), era
encontrada na ação de movimentos sociais situados à margem do sistema político. A
regulação do conflito de classe iria se traduzir na ampliação dos direitos de cidadania para os
não proprietários, sobretudo, pela via da institucionalização de direitos trabalhistas e
previdenciários (sociais), institutos estes fundamentais na redução da exploração e na
desmercantilização das relações de trabalho (OFFE, 1989).
A experiência concreta de institucionalização do conflito de classe ou do padrão
produtivo-social nas economias desenvolvidas variou conforme o maior ou menor grau de
intervenção política das forças sociais no mercado, mas foi por meio dessa intervenção que
elas puderam, embora com características nacionais distintas, construir uma matriz estrutural
comum de regulação social e de regulação das relações de trabalho. Por meio dela, o emprego
regulado, as metas do pleno emprego e uma dinâmica sempre crescente de universalização e
melhora da seguridade social constituíram as bases fundamentais da barganha coletiva entre
capital e trabalho e da política econômica e social dos diversos governos. Os contratos
coletivos atuaram como o grande estruturador e regulador dos conflitos do trabalho. (BOYER,
1995; HARVEY, 1994; MATTOSO, 1999; PRIETO, 1999; COSTA, 2007).
Na América Latina, por sua vez, a institucionalização das relações de trabalho seguiu
uma trajetória mais tortuosa. A descoberta do ouro e da prata, a escravidão e o genocídio dos
índios foram os primeiros passos do capitalismo fora da Europa, com as explorações
portuguesas, espanholas e holandesas. Um capitalismo que inicia seu processo de expansão
não com base em relações de mercado, de compra e venda da força de trabalho, mas com base
na sua pura escravização. No Brasil, especificamente, o capitalismo se origina com a
exploração dos chamados ciclos econômicos (madeira, ouro, cana, borracha) sobre a base de
um sistema latifundiário (capitanias hereditárias), agro exportador e escravista que vai gerar
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uma profunda concentração econômica e de renda. Assim, o país já nascia capitalista, pois
toda a produção de riqueza (leia-se extração de riqueza) em seu território atendia aos
interesses dos seus colonizadores. Justamente por causa desses interesses, o processo de
industrialização brasileiro é lento e totalmente subordinado à divisão internacional do trabalho
definida pelas potências capitalistas da primeira leva da revolução industrial que impunham
limites ao desenvolvimento das forças produtivas nos países dependentes. É só a partir do
final do século XIX, com a abolição da escravatura e a emergência das primeiras indústrias,
que o país começa, de fato, embora timidamente, a compor o cenário urbano e a formar um
mercado de trabalho livre assalariado.
No entanto, desde os primórdios da formação de um mercado de trabalho livre no país,
parcela considerável da população ativa, sobretudo os negros, jamais conseguiu se incorporar
ao mercado de trabalho. Nessa ocasião, predominava o modelo liberal, o “laissez faire”, pelo
qual o Estado não interfere no processo produtivo nem na regulação das relações de trabalho.
Nesse contexto, o processo de industrialização impõe ao proletariado condições de trabalho
tão aviltantes que desembocam, nas primeiras décadas do século XX, em intensas
mobilizações e greves dos trabalhadores. O Estado brasileiro, na ocasião, vai tratar a questão
social e operária como um caso de polícia.
Foi nesse contexto, de extrema insatisfação trabalhista e popular, que Getúlio Vargas,
aparentemente se opondo ao modelo de exploração vigente, vai conseguir apoio para
conquistar o poder. Por meio de certa ruptura com o modelo vigente (agro exportador e
liberal), seu compromisso com a continuidade do desenvolvimento capitalista no país vai
tomar como responsabilidade do Estado a regulação da relação capital-trabalho. Essa
regulação, garantindo direitos mínimos aos trabalhadores (a institucionalização da CLT), terá
como principal finalidade impedir que o movimento operário, já organizado em fortes
sindicatos, pudesse atravancar a consolidação do desenvolvimento capitalista industrial.
Refletindo sobre o assunto, Costa (2006, p.53) escreve:
[...] Sob Vargas, os conflitos de classe foram transferidos do mercado para o Estado.
[Mas] o projeto nacional que beneficiava a expansão capitalista se desenvolve acima
da luta de classes [...]. Controlando a ação direta dos sindicatos em troca de uma
legislação minimamente protetora do trabalho, o Estado preparava as bases para a
expansão acelerada do capitalismo no país.
No entanto, essa regulação do trabalho se pautava centralmente por duas vias: pelo
controle sobre a ação política autônoma dos sindicatos, coibindo a sua capacidade de
barganhar diretamente com os patrões as condições e termos do trabalho; e pela exclusão do
leque de direitos que a legislação trabalhista regulamentava dos trabalhadores rurais e de
muitas categorias de trabalhadores urbanos. Em outras palavras, com a chamada Revolução
de 1930, Getúlio Vargas inaugurava, no Brasil, um modo de o Estado se relacionar com o
poder econômico, pelo qual sua presença foi determinante para estimular o processo de
acumulação capitalista: mediante a concessão de subsídios às empresas e a realização, pelo
próprio Estado, de obras que o incipiente capitalismo brasileiro ainda não tinha acumulação
suficiente ou interesse para investir. Todavia, no campo das relações de trabalho e dos direitos
sociais, esse desenvolvimento se realizava sob um modelo de regulação não universal e com
base na repressão e no controle dos sindicatos (da barganha coletiva) e dos movimentos
sociais. Essa característica autoritária do regime de relações de trabalho no país atingirá o seu
paroxismo no período do regime militar. Diferentemente do que acontecia nas democracias do
norte, no Brasil, o padrão de desenvolvimento capitalista se realizou sem distribuição de renda
e sem democracia nas relações de trabalho. Ainda recorrendo à Costa (2006, p. 60):
a política de substituição de importações não veio atrelada a uma política social
ampla encarregada de redistribuir seus frutos por toda sociedade. O crescimento
econômico realizava-se sem uma associação direta com o aumento do padrão de
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renda/consumo e bem-estar da população e sem qualquer compromisso mais sólido
com uma política de pleno emprego.
Durante o regime militar, instaurado em 1964, a intervenção do Estado na economia se
caracterizou pelo seu caráter extremamente autoritário, excludente e concentrador de renda. O
esforço desenvolvimentista e dependente do capital internacional não dava prioridade às áreas
sociais e às demandas dos trabalhadores. É neste cenário que os movimentos sociais no Brasil
começam a (re)aparecer, inicialmente, como forma de enfrentar o regime autoritário
instaurado no país e a exploração econômica (arrocho salarial, controle sobre a negociação
coletiva), tendo como principais bandeiras de luta a recuperação dos direitos políticos, a
liberdade de criação de sindicatos, de realizar negociação coletiva etc. Depois, como
expressão da luta pela ampliação dos direitos sociais.
O modelo de Estado interventor e protetor no campo econômico (embora mais liberal
no campo social) foi forte até o final da década de 1970, quando se assevera a crise política
que iria desaguar na redemocratização do país. A Constituição de 1988 trouxe conquistas
importantes no campo dos direitos do trabalho como a redução da jornada semanal de
trabalho de 48 para 44 horas e a eliminação de alguns dos princípios autoritários encontrados
na CLT, como os que impediam a criação de sindicatos sem o controle do Estado. Todavia, o
chamado movimento do novo sindicalismo não mudou a face extremamente fragmentada da
representação sindical nem teve força suficiente para negociar um pacto social que
viabilizasse o compromisso com políticas mais amplas de emprego e renda.
Conseqüentemente, houve uma maior segmentação do mercado de trabalho, com ampliação
das desigualdades salariais não apenas em âmbito setorial, mas também regional (OLIVEIRA,
1994; SIQUEIRA NETO, 1996; COSTA, 2006).
A forte crise econômica que marcou a década de 1980 foi responsável pela introdução,
no início da década seguinte, das políticas neoliberais que já avançavam nos países
desenvolvidos desde meados da década de 1970 (MATTOSO, 1996; BOITO Jr, 2002). As
transformações produtivas e econômicas advindas sob o impacto dos novos padrões
tecnológicos e competitivos do comércio internacional nocautearam o impulso de luta dos
sindicatos. A abertura econômica e as privatizações expandiram os processos de
reestruturação produtiva nas empresas, cujas estratégias de competição se direcionaram,
predominantemente, para a redução dos custos do trabalho, redundando num fenômeno de
demissão em massa de dimensão nunca vivida na história da industrialização do Brasil. Até a
primeira metade dos anos 90 mais de 1 milhão de empregos foram suprimidos da indústria de
transformação, tendo boa parte de seus trabalhadores caído na informalidade e outra se
deslocado para o setor terciário, onde é ainda mais forte a heterogeneidade das condições de
emprego, com predomínio para os contratos de baixa qualificação e de baixos salários
(MATTOSO, 1999, CARDOSO et al., 2006).
No campo legal, avançavam as medidas de flexibilização da legislação trabalhista. Em
1997 e 1998, como reflexo de iniciativas liberais apoiadas no discurso de que o desemprego
era fruto da rigidez da legislação, um pacote de medidas arbitradas pelo governo federal
legalizava: o banco de horas, que substituía o pagamento das horas-extras; a suspensão
temporária do contrato de trabalho por motivos econômicos; o contrato de trabalho por tempo
determinado, com redução dos encargos sociais; a redução do salário com redução da jornada;
as cooperativas de trabalho, que estimularam, como produto da subcontratação, o crescimento
do trabalho autônomo, desprovido da proteção dos direitos do emprego regular; a abertura do
comércio varejista aos domingos sem o pagamento de horas extras e sem obrigação de
negociação com os sindicatos, entre outros. Essas medidas de modificação da legislação
trabalhista se mostraram perniciosas uma vez que reduziram conquistas e direitos dos
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trabalhadores e foram incapazes de gerar novos empregos ou ampliar a formalização dos já
existentes (KREIN, 1999, COSTA et al., 2006).
As ONG’s, apesar de não se focarem na produção de bens ou serviços que levam a
obtenção de lucro, prestam serviços à sociedade, e, como empregadoras, fazem parte do
mercado de trabalho gerenciando pessoas que recebem remuneração em troca da sua força de
trabalho. As regras da regulação do trabalho dominantes na esfera privada, também pautam a
regulação do trabalho nestas instituições que, por sua vez, também foram afetadas pela onda
de flexibilização e redução de direitos. Será visto mais a frente como as medidas de
flexibilização impactaram as condições de trabalho dos empregados de ONG’s, muitas vezes,
de uma forma que contraria a lógica mesmo de sua existência, qual seja, a de defender
direitos. Antes, porém, cabe brevemente contextualizar o surgimento e a expansão dessas
instituições na nossa sociedade.
2.2
Movimentos sociais e ONG’s no Brasil
Juntamente com a ampliação dos movimentos sociais que pressionaram a
redemocratização do país nas décadas de 1970 e 1980 surgem os centros de assessoria a esses
movimentos sociais e populares, instituições, em geral, ligadas à Igreja Católica progressista e
financiadas por agências internacionais para desenvolver, como discutiu Fraga, (2002, p. 2),
“o papel de mediadores dos movimentos sociais e de apoio às causas populares, no sentido da
luta pela democratização da sociedade brasileira”.
A consolidação democrática do Estado brasileiro e as transformações sócio-políticas e
econômicas ocorridas no mundo ocidental fizeram com que se ampliasse o número de sujeitos
sociais capazes de se tornar interlocutores frente ao Estado, em suas várias instâncias, e frente
ao setor privado. É da expansão e pressão dos movimentos sociais, produto de demandas
sociais e políticas crescentes, que surgem novas entidades e atores na sociedade civil. Neste
contexto, transformava-se, também, o próprio papel das organizações da sociedade civil, que
não podiam mais ser exclusivamente opositoras. Para essas novas entidades, era preciso sair
da pura denúncia e ser propositiva, anunciar que projeto sócio-político defendiam.
Na época de seu surgimento, as organizações da sociedade civil que já existiam no pós1964 ainda não se denominavam ONG’s, mas constituíam o germe de um universo que hoje
chega a 8.600 entidades espalhadas em todo o país desenvolvendo uma imensa diversidade de
ações e empregando quase um milhão de trabalhadores (IBGE, 2004).
Grupos formados por setores da sociedade civil, de apoio mútuo, ou caráter cultural,
político ou filantrópico existem no Brasil desde a época colonial, a exemplo dos grupos de
caráter insurrecionais surgidos em oposição aos colonizadores, dos “clubes” femininos, que
discutiam o acesso das mulheres à educação, ou das agremiações abolicionistas dos fins do
século XIX. Isso sem mencionar as inúmeras formas organizativas surgidas após a
proclamação da República e o crescimento da vida urbana brasileira a partir do início do
século XX.
No entanto, foram poucas as organizações da sociedade civil, no início do século, que
chegaram a questionar a ordem dominante ou a ameaçar a propriedade privada. As
organizações que, naquele momento, de alguma maneira, foram identificadas como capazes
de realizar essas “façanhas”, em especial os partidos e os sindicatos, foram duramente
reprimidos. Os partidos com propostas socializantes foram cassados e seus membros
perseguidos e os sindicatos enquadrados em rígidas regras ditadas pelo Estado, condição que
perdurou até a década de 1980, com raros e pequenos intervalos.
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Até a década de 1970, as organizações que não tivessem no centro de suas preocupações
a tomada do poder (os partidos) ou a propriedade privada (sindicato e outras organizações
classistas, como as Ligas Camponesas) não chegaram a ser consideradas ameaçadoras da
ordem pública ou privada e também não receberam atenção da academia que permitisse o
debate sobre suas características e organização interna.
A partir da década de 1970, surge no cenário político brasileiro um conjunto de
organizações e associações articulando setores antes invisíveis na sociedade: moradores de
bairros populares, mulheres, negros, gays, entre várias outras categorias. Para os autores
Evers, Plantenberg e Spessart (1982), isso ocorreu porque os canais tradicionais de articulação
política (partidos e sindicatos) estavam impedidos de se manifestar ou submetidos à forte
intervenção. Assim, esses movimentos surgiram buscando novas formas de expressão e
resistência social.
Sem dúvida, a conjuntura de repressão combinada com o modelo econômico
concentrador de renda, a desordenada expansão urbana, o crescimento industrial e a
incapacidade do Estado de atender às demandas sociais, sem comprometer a acumulação
capitalista, formam o panorama onde se desenvolveram os grupos denominados, na década de
1980, de “novos movimentos sociais” (SADER, 1988, p. 36), muitos dos quais estão na
origem das denominadas ONG’s, objeto dessa reflexão.
As ONG’s brasileiras, em sua grande maioria, nasceram em função e como
conseqüência da luta política da sociedade civil contra o regime autoritário instaurado para
servir ao grande capital. Nasceram contra o Estado e de costas ou à margem do mercado, de
forma quase clandestina e, segundo Souza (1993, p. 135), “ligadas aos movimentos sociais de
base, às Igrejas, aos movimentos sindicais e populares, executando tarefas fundamentalmente
nas áreas de educação, saúde, habitação, organização, assessoria e consultoria a esses
movimentos chamados ‘populares’ (leia-se sociedade civil pobre e reprimida)”.
Os novos movimentos sociais se caracterizavam por constituírem estruturas
organizativas pouco hierarquizadas e informais, ou por realizarem ações conjunturais e
participantes com “laços frouxos”, uma vez que não havia entre eles um vínculo comum,
como existe, por exemplo, entre trabalhadores de um sindicato que unifica seus interesses em
torno de um “inimigo” comum, o patrão (SADER, 1988).
O processo de abertura política, a volta do pluripartidarismo (1979), o retorno das
legendas comunistas (1985), as dificuldades de mobilização de estruturas muito informais e a
falta de recursos desestabilizaram os grupos populares, permanecendo apenas os Centros de
Educação e Assessoria Popular, também surgidos durante a ditadura, mais estruturados e
formalizados (FRAGA, 2002). Nesse contexto, muitos de seus militantes migraram para as
entidades sindicais e partidárias que se mostravam mais capazes de obter respostas através da
mobilização popular.
A década de 1980 foi marcada pela efervescência política e pela manifestação, com
grande entusiasmo, de variados movimentos, através dos recém criados partidos e
organizações sindicais (CUT e PT, por exemplo). Nesse período, as massas saem às ruas em
caravanas e passeatas, participam de greves gerais e de grandes manifestações (como o
movimento pela realização de eleições diretas – conhecido como “Diretas Já”) e se mobilizam
por uma nova constituinte (1988). Os setores que, naquela conjuntura, não tiveram seus
interesses e reivindicações contemplados pelos mecanismos sindicais e partidários iniciaram
um processo de organização que logo se formalizou, institucionalizando-se em ONG’s. A
maioria desenvolvia temáticas não prioritárias aos partidos e sindicatos, tais como:
discriminação sexual e de gênero, crianças e adolescentes, meio ambiente, doenças crônicas
(prevenção a Aids), entre outras.
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Mas, passada a euforia pela expansão dos direitos democráticos, na década de 1990, um
cenário de apatia começa a se configurar. É nesse contexto que as organizações, agora,
institucionalizadas, dependentes de agências de financiamento internacionais, começam a
ocupar um lugar importante no cenário político brasileiro substituindo, em muitos casos, os
movimentos sociais. É a partir de 1992, com a Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente –
a ECO’ 92, que o termo “ONG”, se populariza no Brasil e ganha adesão de várias instituições.
Esta denominação foi definida pela ONU, em 1946, como toda organização não estabelecida
pelos governos (TEIXEIRA, 2002; GOMES, COUTINHO, 2006).
Ao mesmo tempo, começava a se disseminar no país o modelo de uma política
neoliberal cujo teor central defendia a redução das atividades do Estado: na esfera produtiva
(privatização de empresas estatais e de serviços públicos); na sua capacidade de
regulação/intervenção na economia ou no mercado, sobretudo, pela via da desregulamentação
do mercado de trabalho; e nos gastos sociais. No campo social, esse novo contexto propiciava
a proliferação de ONG’s com os mais diversos fins. Como escreveram Gomes e Coutinho
(2006, p. 1):
a era neoliberal retirou de cena os movimentos sociais e assumiu a centralidade da
cena política as ONG’s. Estas foram alçadas à condição de agentes privilegiados de
mediação entre o Estado e a população, principalmente a mais empobrecida.
Tornaram-se defensoras da “participação da sociedade civil” no Estado trazendo
para si a função de executoras de políticas públicas, apoiando as várias formas de
privatização dos serviços públicos.
Se durante a ditadura, a relação dessas organizações com o Estado era muito tensa, na
década de 1990 estabelece-se um diálogo que, apesar de conquistar a implementação de
algumas políticas públicas e a ampliação do sentido da democracia representativa
(especialmente com a experiência dos Conselhos participativos), é marcado pela submissão de
suas agendas políticas aos interesses dos financiadores. As ONG’s passam, então, a serem
acusadas de “agentes do império” e de apoiarem as várias formas de “manutenção da ordem,
quando muito uma reforma para continuar como antes” (GOMES, COUTINHO, 2006, p. 8).
Neste momento, deixava-se de olhar para a luta por liberdade e passava-se a convocar a
sociedade para olhar para seus excluídos sociais, que estão à mercê das novas formas de
vulnerabilidades sociais. Como observou Pochman:
embora os excluídos sejam parte integrante da sociedade em cada país (estado de
privação), estes tendem a se encontrar desprovidos das condições materiais que os
possibilitem usufruir de benefícios socioeconômicos (emprego, rendimento) ou de
condições institucionais (direitos e deveres) possíveis nos marcos do
desenvolvimento capitalista. Se a inclusão depende da capacidade de o indivíduo
participar do processo de tomada de decisão e negociação – admitida no marco de
institucionalidade econômica, social e política –, a exclusão pode ser associada à
inexistência de condições básicas para a participação e negociação. (POCHMAN,
2002, p. 20)
Por outro lado, a sociedade civil convocada pelas ONG’s para olhar para seus excluídos
tem interesses próprios para manter. Como observou Boito Jr. (2002, p. 27) “uma parcela
importante da classe média, a sua parcela superior, é a favor do neoliberalismo porque é
contra a universalização dos direitos sociais, isto é, porque é contra a implantação, no Brasil,
de um Estado de bem-estar”.
Embora se coloquem como opositoras do modelo neoliberal de governo, as ONG’s
estão inseridas em um contexto de contradições, na medida em que precisam se manter
financeiramente e buscam a chamada sustentabilidade, diversificando suas fontes de recursos
entre governos (federal, estadual e municipal), fundações e agências financiadoras (nacionais
e internacionais), em sua grande maioria mantidas por empresas multinacionais.
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Alguns autores apontam para aspectos que demonstram a utilidade das ONG’s para o
modelo neoliberal, na medida em que estas instituições corroboram para a manutenção do
estado mínimo, característico deste modelo, através do qual a sociedade vai ocupando o lugar
do Estado na assistência aos serviços básicos que deveriam ser de sua obrigação. É nesse
sentido que as ONG’s se transformam em “uma ferramenta ideológica a serviço de uma
agenda neoliberal” e são forçadas a “adotar um enfoque cada vez mais econômico e
‘apolítico’ para trabalhar com os pobres” (GOMES, COUTINHO, 2006, p. 10).
Entre as contradições apontadas sobre as ações das ONG’s no contexto neoliberal, este
artigo quer discutir, particularmente, o tema das relações de trabalho nessas organizações.
Visto que esse é um dos pontos nevrálgicos do debate, pois, a conjuntura de declínio no
financiamento externo dessas organizações, entre outros fatores, as tem levado a um
comportamento fragmentado, quase esquizofrênico, uma vez que seu discurso não condiz com
as relações de trabalho no seu interior. Enquanto o discurso e a missão institucional versam
sobre direitos e garantias, o cotidiano dos seus empregados é marcado por práticas que
traduzem uma tendência à precarização de direitos, como a utilização de mão de obra sem
vínculo ou garantias ou as extensas jornadas de trabalho, entre outras práticas características
da política de flexibilização, criticadas por estas mesmas organizações. Como afirma Fraga
(2002, p. 6) “muitas ONG’s acabam adotando medidas que não garantem os direitos dos
trabalhadores, numa atitude contraditória às suas práticas históricas”.
Essa flexibilização, que vem acompanhada em fala, das iniciativas de
desregulamentação do mercado de trabalho, remete às pressões das empresas por mais
liberdade de contratação e uso da força de trabalho de forma a torná-las mais adaptável às
demandas da competitividade internacional. Ela põe em xeque os fundamentos da estabilidade
dos vínculos de emprego e é reivindicada, sobretudo, na remoção das restrições legais à
contratação por tempo determinado ou em regime de trabalho parcial, na adoção de jornadas
mais flexíveis e na remuneração mais vinculada aos resultados da empresa e ao desempenho
individual dos trabalhadores (DEDECCA, MONTAGNER, 1993). Seu objetivo maior é
permitir que as empresas tenham total liberdade para contratar e se desfazer do trabalhador ao
sabor das oscilações econômicas ou de suas estratégias produtivas. No caso dos problemas
enfrentados pelos trabalhadores das ONG’s, sobressai sua dependência ou necessidade de
adaptação aos projetos aprovados pelos patrocinadores. É para onde apontam os resultados da
pesquisa empírica apresentada logo mais abaixo.
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METODOLOGIA
Além do levantamento bibliográfico que fundamenta as reflexões aqui expostas, esse
artigo utiliza e aprofunda informações coletadas por Silva (2007) para realização de trabalho
monográfico, cujo objetivo era conhecer como se caracterizam as relações de trabalho em
organizações do Terceiro Setor. A coleta de dados se deu com o recurso da entrevista em
profundidade realizada com cinco dirigentes e dezoito empregados de cinco Organizações
Não Governamentais sediadas na cidade de João Pessoa – PB, nos meses de abril e maio de
2007. A amostra das organizações aqui em foco foi selecionada por meio de pré-requisitos, a
partir do critério de intencionalidade, que indicam estas organizações com condições de
representatividade, por serem instituições consolidadas e voltadas para a defesa de direitos
dos cidadãos. Além disso, estas organizações atuam na cidade de João Pessoa há mais de dez
anos, o que demonstra a estabilidade de suas ações e contam com um aporte financeiro anual
situado acima de R$ 100.000,00, aporte este que permite a manutenção de força de trabalho
remunerada, capaz de proporcionar uma análise das relações de trabalho existentes.
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A caracterização do estudo, quanto aos fins utilizou a abordagem descritiva, que,
segundo Vergara (2005, p. 47), “expõe características de determinada população ou de
determinado fenômeno”. A abordagem descritiva foi utilizada visando compreender o
fenômeno das relações de trabalho no âmbito das Organizações Não Governamentais
(ONG’s) e como as tendências recentes de flexibilização do trabalho afetam seus
trabalhadores. Quanto aos meios de investigação esta pesquisa é caracterizada como uma
pesquisa de campo, pois foi realizada no local onde ocorre o fenômeno capaz de explicá-lo
VERGARA, 2005).
Quanto ao método de análise utilizado neste estudo, entre os vários citados por Merriam
(1998), optou-se pela realização de um estudo qualitativo básico, que não tem o objetivo de
construir uma teoria, mas fornecer evidências para compreensão de um determinado
fenômeno. A abordagem qualitativa leva o pesquisador a conhecer a realidade por meio de
uma pesquisa de campo. O pesquisador, ao realizar o estudo, utiliza a descrição e análise de
dados, por meio da identificação de padrões recorrentes, ou seja, categorias de significados e
temas (SILVA, 2005). Merriam (1998) destaca três características para esse método de
pesquisa: inclui descrição, interpretação, e compreensão; identifica padrões recorrentes na
forma de temas ou categorias e pode delinear um processo.
O método utilizado para o tratamento das informações coletadas através das entrevistas
foi o da análise de conteúdo das falas, que segundo Bardin (2008, p. 33) “é um conjunto de
técnicas de análise das comunicações”. Sua finalidade é buscar conhecer mais subjetivamente
o mundo dos sujeitos pesquisados, a sua vivência no que se refere ao fenômeno estudado. Os
resultados foram obtidos a partir da análise qualitativa das entrevistas aplicando-se os
seguintes procedimentos: leitura das entrevistas gravadas digitalmente e transcritas na íntegra
e sua categorização por temas, que constituíram as variáveis chaves por meio das quais
buscou-se alcançar o objetivo da pesquisa, especificamente: as relações de poder e a
flexibilização do trabalho nos terrenos da jornada e do salário. A análise e articulação das
variáveis foram feitas à luz do debate teórico e das tendências discutidas acima.
4
APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
As ONG’s normalmente baseiam suas lutas sociais na defesa dos direitos humanos.
Como organizações “sem fins lucrativos”, suas metas se referem a resultados sociais, como
proposição de políticas públicas, controle social da utilização de recursos de interesse
coletivo, meio ambiente, melhores condições de vida e cultura. No entanto, a sobrevivência
das ONG’s é definida por sua capacidade de responder aos desafios do dia-a-dia e às pressões
por ajustes e transformações necessários a que elas se adaptem às exigências dos seus
financiadores, uma vez que dependem do alcance dos resultados sociais propostos em seus
projetos para terem os financiamentos renovados ou novos projetos aprovados. Assim
também ocorre com os empregados destas organizações, que dependem da aprovação dos
projetos para terem seus salários garantidos, e esta condição se traduz em dependência para
sua sobrevivência.
A evolução e as mudanças ocorridas na forma de compor os quadros profissionais das
ONG’s, indicando a necessidade de mais competência e eficácia, profissionalizaram as
relações de trabalho, bem como as formas de estruturação e expressão das relações de poder
nessas organizações.
9
4.1
As Relações de Poder
No contexto das lutas sociais, os sujeitos sociais transformados em interlocutores frente
ao Estado iniciaram suas atividades de forma bastante horizontal, como grandes
“companheiros”. Com a institucionalização desses movimentos em Organizações Não
Governamentais, alguns desses antigos “companheiros de luta” se tornaram dirigentes,
coordenadores, diretores ou, como se diz internamente no cotidiano dessas organizações, se
transformaram em “chefes”. Essa nova relação de poder estabelecida no interior das
organizações é alvo de constante avaliação e crítica por parte de algumas equipes. Todos
acreditam que, em virtude das missões institucionais versarem, em geral, sobre direitos
humanos e democráticos, as ONG’s têm obrigação ética de gerir os recursos humanos sob a
luz desses mesmos princípios e valores. Cria-se, então, um campo de possibilidades para o
debate sobre o que, de fato, são comportamentos democráticos nas relações de trabalho ou
atitudes autoritárias, baseadas em modelos que contradizem o que prega a filosofia
organizacional.
Estas reflexões baseiam-se nos depoimentos coletados nesta pesquisa, alguns
entrevistados tecem considerações sobre as relações de poder ou sobre a hierarquia e a divisão
das tarefas nas ONG’s, buscando entender o lugar onde trabalham e seu próprio papel.
[...] a gente é funcionário, também, mas pelas atribuições que exercemos e as
responsabilidades que temos, acabamos, em certos momentos, sendo patrão
também. A gente não pode, por exemplo, (o funcionário) não veio, faltou, deixar por
isso mesmo. Então, temos que tomar essas atitudes de ‘patrão’... Mas está dentro
das nossas atribuições. (Depoimento de dirigente).
[...] existe uma relação de parceria, mas há momentos de tensão, que é normal nas
relações humanas. Tem momentos que aparecem posturas autoritárias, mas aí, a
gente questiona e resolve. (Depoimento de empregado).
Em alguns depoimentos percebe-se o desgaste na relação com a hierarquia institucional:
tanto os dirigentes quanto os empregados apontam aspectos negativos nessa relação. Nesses
casos, é ressaltada a falta de transparência e objetividade e posturas antidemocráticas
(autoritarismo, concentração de poder e desrespeito às decisões coletivas).
Eu acho que tem uma relação... uma estrutura de poder. Mas às vezes as coisas não
são colocadas claramente, fica muita coisa no subliminar. Então, existem pressões
subliminares, que não são ditas claramente porque quer se passar a idéia de
construções coletivas, de tomadas de decisões coletivas. Mas, existem pressões que
são expressas através dessas relações de poder, que não são colocadas claramente.
[...] (os coordenadores) passam essa idéia de que todos têm poder de decisão. Mas,
no final, poucas pessoas decidem. (Depoimento de dirigente)
Essa questão parece mais grave, para os entrevistados, quando um dirigente tem “a
última palavra”, desconsiderando todo um conjunto de reflexão de sua equipe, em uma atitude
considerada “antidemocrática e centralizadora”. Isso pode refletir na impossibilidade desses
dirigentes conseguirem conciliar a missão da instituição com um modelo alternativo,
participativo e auto-gestionário, de relações de trabalho. Ao que parece, prevalece o modelo
da gestão privada, assentado em relações assimétricas de poder, um modelo assimilado
mesmo como fator cultural pelos sujeitos.
A relação é bem parecida com o (setor) privado, não vou dizer que não tenha uma
política que é diferente. Mas tem um chefe e se o chefe mandou você tem que
obedecer. Infelizmente, apesar das ONG’s terem aquele outro lado que não tem
nada disso, mas acontece. Você é funcionário, lhe mandaram você fazer isso, você
tenta argumentar, mas você tem que obedecer. (Depoimento de empregado).
10
[...] depende muito de quem está nesse lugar, nesse poder, nessa hierarquia,
responsável por administrar e gerenciar a organização. Eu acho que têm pessoas
que tem mais flexibilidade, sabe lidar melhor com esse lugar, e tem outras pessoas
que são mais autoritárias, que impõem, não trabalha muito com essa prática do
fazer coletivo. (...) Nem todo mundo sabe lidar com o poder, com essa questão de
hierarquia. (Depoimento de empregado).
[...] E essas relações de poder que estão nas entrelinhas, que não são ditas
claramente porque partem da idéia de que a ONG é um espaço mais democrático.
Mas, na verdade, tem uma estrutura forte de poder estabelecido (...), tem pessoas
que tomam as decisões e, às vezes, passam que foi o coletivo que tomou, mas na
verdade o coletivo apenas foi consultado, comunicado ou legitimou uma decisão.
(Depoimento de empregado).
Este aspecto das relações de poder talvez seja um dos mais relevantes quando se busca
conhecer as especificidades das práticas de relações de trabalho em ONG’s. Como foi visto
nos depoimentos, a queixa dos empregados passa pelo questionamento da legitimidade da
existência de uma estrutura hierarquizada e centralizadora, eivada de possibilidades das
lideranças exercerem atitudes antidemocráticas, em organizações, a que, por natureza e por
finalidade e onde, muitas vezes, o próprio engajamento e compromissos são voluntários e por
ideologia, deveria corresponder um comando ou liderança co-participativo ou de colegiado.
Apesar de alguns indivíduos reconhecerem nos seus depoimentos que a hierarquia é
necessária, é esperado que ela seja diferente, que ela seja efetivamente democrática e
participativa em todas as esferas de decisão. Porém não é esta a forma refletida nos
depoimentos colhidos e apresentados neste artigo.
4.2
Flexibilização, precarização e extensa jornada de trabalho
Algumas considerações devem ser feitas sobre o termo “flexibilização”. Para o direito
do trabalho, como argumenta o jurista Alcídio Soares Júnior, flexibilização é um vocábulo
não encontrado nos léxicos, mas amplamente utilizado na doutrina jurídica a partir de seu
equivalente, flexibilidade, que é a qualidade do que é flexível. Em termos especificamente
jurídicos, o termo flexibilidade pode se referir “a mobilidade geográfica e funcional dos
trabalhadores, a maleabilidade nos custos da mão-de-obra, a gestão dos recursos humanos, a
organização do tempo de trabalho, só para citar algumas” (SOARES JR, 2008, p. 2). Mas ele
pode se referir, também, ainda no campo do direito, a uma situação de desregulamentação,
que significa retirada ou redução de direitos, conforme muito bem argumentaram Siqueira
Neto (2006) e também o jurista José Alberto Maciel, em entrevista para um encarte especial
sobre flexibilização do direito do trabalho no Brasil do jornal O Globo de 07/03/2002.
Para além do contexto jurídico, Sennett (2001) se reporta à flexibilidade como um
termo que imaginamos está ligado à disponibilidade do indivíduo estar:
[...] aberto à mudança, ser adaptável, como qualidades de caráter necessárias para a
livre ação – o ser humano livre porque capaz de mudança. Em nossa época, porém, a
nova economia política trai esse desejo pessoal de liberdade. A repulsa à rotina
burocrática e a busca da flexibilidade produziram novas estruturas de poder e
controle, em vez de virarem as condições que nos libertam (SENNETT, 2001, p.
54).
Nesse sentido, a flexibilização é um outro aspecto do que o modelo neoliberal prega
para as relações de trabalho: a flexibilidade da mão de obra com vistas a suprir a
“empregabilidade”, que é vista por Cardoso (2003, p. 81) como “faces da mesma moeda de
destituição ou diluição das instituições sociais de respaldo ao funcionamento do mercado de
trabalho”. Foi encontrado no discurso dos trabalhadores das ONG’s depoimentos que
11
corroboram essa tendência, sobretudo no campo da flexibilização (que também se confunde
com extensão das jornadas). Os depoimentos indicam que, mesmo para quem citou a
flexibilidade como uma vantagem, o excesso de horas de trabalho, sem recompensa
financeira, é quase uma regra entre os profissionais das ONG’s:
Porque a gente luta para que todos tenham uma vida digna (...) Mas não tem isso no
nosso cotidiano, porque a gente tem jornadas de trabalho que extrapolam, não se
consegue ter uma associação harmônica entre a vida pessoal e o trabalho. Vai
trabalhar no domingo, à noite, vai trabalhar fora de horário. Isso nos outros setores
é mais organizado. (Depoimento de empregado)
Uma conseqüência, para qualquer tipo de organização, é que o excesso de horas de
trabalho acaba por impedir que outras pessoas tenham acesso ao mercado de trabalho, pois,
tenta-se dar conta, com o mínimo possível de trabalhadores, da demanda a que a organização
se propõe a suprir. A flexibilidade da jornada, introduzindo variabilidades de horários, traduzse em maior intensificação do trabalho e mais confusão e invasão do tempo de trabalho no
tempo destinado ao descanso e ao lazer. Desta forma, encontram-se também as contradições
entre realizar um trabalho que dá prazer e o custo desta realização para as pessoas.
Eu trabalho incessantemente. Essa é a desvantagem. Porque a gente não tem
domingo, feriado. A gente tem uma carga horária muito pesada. Ao mesmo tempo a
gente está fazendo o que gosta... eu acho que esse é o grande tesão de quem
trabalha em ONG. (Depoimento de empregado).
A equipe é muito pequena e há sobrecarga de trabalho, que é uma das coisas que
mais me desmotiva, porque é muito grande e é muita responsabilidade. Você tem
que responder à varias coisas e, às vezes, eu nem me sinto em condição de
responder. Mas você tem que responder, porque é você quem está lá, você quem
está representando a instituição. (Depoimento de empregado).
(...) Acho que essa coisa de exigirem de você um tempo fora da instituição, um
tempo que pega fim de semana, que pega à noite... Às vezes sem consideração
mínima de que as pessoas têm vidas pessoais. (Depoimento de empregado).
Você trabalha muito mais do que as horas pelas quais você recebe, porque você
acaba fazendo trabalho à noite, no final de semana, viajando e não tem hora extra...
Isso é uma desvantagem e a margem de negociação é complicada, porque é uma
ONG, não uma empresa e entra um pouco da militância, o quanto você é militante
(...). (Depoimento de empregado).
Agora as desvantagens... a estória do tempo, né? Porque a gente trabalha,
teoricamente, com o tempo determinado, mas sempre trabalha mais em nome do
compromisso que a gente tem. Essa é uma desvantagem, porque você tem toda uma
estrutura de empresa, mas na prática você acaba dando mais, por causa do seu
compromisso. São contradições no trabalho numa ONG. (Depoimento de
empregado).
Os depoimentos ainda revelaram que as experiências de flexibilização do trabalho no
ambiente das ONG’s resultaram em redução ou retirada de direitos, incluindo aí a redução da
carga horária e conseqüente redução dos salários praticados.
4.2.1 Baixos salários
Embora já seja notória na mídia a denúncia de muitas ONG’s envolvidas em corrupção
e até mesmo que elas sejam ironicamente chamadas de “pilantrópicas” e concebidas como
gozando de elevados privilégios e cujos empregados vivem uma realidade de altos salários e
pouco trabalho, não foi isto que a pesquisa encontrou nas organizações pesquisadas. No perfil
12
dos entrevistados, a faixa salarial está concentrada em até três salários mínimos, o que não
pode ser considerado um salário alto, mesmo para uma cidade como João Pessoa. Os baixos
salários são apontados como uma das desvantagens de se trabalhar em ONG’s.
[...] o salário, que é bem achatado, o dissídio de categoria não influi, você fica com
aquele salário por 3, 4, 5 anos e seu poder aquisitivo vai caindo ao longo dos anos.
(Depoimento de empregado)
[...] tanto faz uma pessoa ter uma formação de pós-graduação, quanto não ter nem
o segundo grau, o que recebe é o mesmo. Então isso gera um descontentamento
também no profissional. Eu acho que em outros setores isso é mais aproveitado e
valorizado. (Depoimento de empregado)
Porque não dá mais para você fechar os olhos e dizer que a equipe de trabalho está
satisfeita, com mais de três anos sem nenhum tipo de reajuste, sem nenhum
benefício e com a carga de trabalho se avolumando. (Depoimento de empregado).
A remuneração está achatada. [...] Tem que ter uma política de corrigir
sistematicamente esses salários, vincular em seus projetos. Acho que isso não é
pensado. E tem que melhorar, pelo menos, ter plano de saúde, que isso é
fundamental. (Depoimento de empregado).
Os depoimentos que ilustram essa constatação, além da clara insatisfação com os níveis
salariais, apontam, também, para uma atitude de passividade, uma vez que para estes
trabalhadores é impensável, por exemplo, uma greve para reivindicar melhorias. Os
empregados destas organizações não têm nenhum tipo de organização coletiva que lute por
seus interesses enquanto força de trabalho, não há, por exemplo, representatividade sindical
nesta categoria. Esta é uma outra grande contradição das práticas de relações de trabalho
destas instituições. Apesar de elas atuarem no mercado de trabalho como empresas privadas,
estabelecendo vínculos contratuais que caracterizam relações de subordinação, seus
empregados comportam-se, e entendem seu engajamento, como militantes, que agem em
função de uma ideologia que não necessariamente guarda relação com a lógica predominante
na empresa privada. Fazer greve? Diante de que patrão? A quem reivindicar melhoras
salariais ou nas condições de trabalho? Na realidade, a receita destas instituições, que deve
prover os custos salariais de seus profissionais, deriva de projetos que têm seus
financiamentos aprovados ou de contribuições sociais voluntárias. Este é, certamente, um
aspecto que requer um outro tipo de investigação e questionamento que fugiu às
possibilidades deste trabalho. Todavia, cabe trazer à nossa reflexão o fato de que a expansão
das ONG’s nos últimos vinte ou trinta anos é parte da adoção de uma política neoliberal de
organização da sociedade. Esta política concebe muito fortemente o trabalho nessas
organizações como um atributo voluntário, que apela ao espírito de solidarismo, de
humanitarismo social dos indivíduos, portanto, que não pode ser tratado da perspectiva do
conflito de classe, aquela que prevalece no mundo privado e no setor público e que está
sujeita às regras mais básicas de regulação do ordenamento jurídico do trabalho: a negociação
coletiva e o direito de greve.
4.2.2 Contratos de trabalho
No Brasil, uma ONG raramente consegue se manter financeiramente sem o apoio de
projetos custeados pelas agências internacionais de cooperação ou pelos organismos
governamentais. Em geral, os recursos são destinados à execução de projeto com cronograma
definido e tempo limitado.
Os temas e as áreas de interesse costumam apresentar variações determinadas pelos
agentes financiadores, a partir de critérios e prioridades definidas por eles. Desta forma, as
propostas que alcançam financiamento e formam uma equipe para a sua execução, nem
13
sempre conseguem renovar os projetos. Esse processo de continuidade é sempre angustiante e
incerto. Quando um projeto não é renovado, pode resultar em dispensa de pessoal. Esta
realidade é do conhecimento de todos que trabalham nas ONG’s, gerando insegurança e sendo
apontada como uma das desvantagens do setor.
O elemento negativo é a insegurança no que diz respeito ao trabalho, a garantia do
trabalho, a estabilidade, por conta de projetos. Essa situação é muito incômoda,
porque influi na qualidade de vida. Como é que você vai lutar por qualidade de vida
se você olha para sua qualidade de vida e é destoado? Isso é um grande problema.
(Depoimento de empregado).
Em função desta instabilidade financeira os contratos de trabalho nas ONG’s são, em
sua grande maioria por tempo determinado. Ou seja, as pessoas são contratadas para atuarem
em projetos específicos e quando o projeto é concluído elas são dispensadas. Outra
modalidade de contrato encontrada são os serviços prestados, em que o empregado recebe
pela execução de determinada atividade, ficando à margem dos benefícios já conquistados
pelos empregados com carteira assinada.
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observadas pela ótica apontada nesta pesquisa, as ONG’s podem ser vistas como
agentes indiretos do neoliberalismo, ainda que sem consciência dessa forma de atuação e até
mesmo pensando que lutam contra ele, na medida em que reproduzem as relações de trabalho
neoliberais e recebem financiamento de instituições cujo objetivo maior é a manutenção deste
modelo econômico. Quando solicitam maior colaboração de seus empregados, precisam pedir
à sua força de trabalho que seja flexível ou seja, que esteja disponível para responder às suas
demandas, independentemente das contrapartidas, inclusive, das contrapartidas legais. O outro
lado da moeda é ainda mais contraditório: os próprios empregados assimilam a ideologia
neoliberal impregnada das relações e que dissimula suas formas de exploração. Estes
empregados entendem que devem dar mais da sua força de trabalho do que é possível receber
em remuneração e compreendem isto como uma necessidade da organização e até mesmo
como um compromisso de militância social. Os dirigentes e gestores, por sua vez,
reconhecem a necessidade de valorizar as pessoas e também entendem que uma das formas de
valorização seria oferecer melhores condições de trabalho, inclusive, em remuneração, mas
esbarram nas limitações orçamentárias impostas pelos financiadores. Em outras palavras, este
emergente mercado de trabalho é extremamente exigente do ponto de vista de sua
profissionalização, uma vez que demanda profissionais com habilidades cada vez mais
diversificadas e qualificadas, mas pouco propenso a remunerar de forma justa os seus
empregados, se tomado como referência, por exemplo, o nível salarial (ou outras formas de
retribuição) do mercado.
O reconhecimento por parte dos empregados destas limitações e a aceitação de
condições de trabalho precárias (baixos salários, extensa jornada), apesar de causar
insatisfação, não gera reivindicação em função da cobrança por um compromisso e militância
em forma de contribuição “voluntária” para a causa institucional. A contribuição voluntária
vem aqui destacada com o propósito de fazer lembrar que as ONG’s atuam no seio e
subordinadas a um sistema capitalista de mercado. Como visto no início, quando foi
discutido, a partir de Marx, os fundamentos das relações de trabalho no sistema capitalista,
que possui os meios objetivos da produção e os meios objetivos da sobrevivência do
trabalhador. Ao fim e ao cabo, esta contribuição voluntária dos empregados das ONG’s não
pode ser empregada tão ao pé da letra. Eles também vivem as pressões competitivas do
mercado de trabalho que vivem todos os demais trabalhadores, com o agravante de não terem
formas coletivas de representação de interesses.
14
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