PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) Adultização da Infância e Infantilização do Adulto: Uma Análise Sobre Consumo, Identidade e Estilo de Vida na Década de 901 Milena Gomes Coutinho Pereira2 Universidade Federal Fluminense Resumo Este trabalho busca analisar o paradigma identitário emergente nos anos 90 composto por adultos infantilizados e crianças adultizadas. Diante de um cenário capitalista e globalizado, onde o núcleo familiar cada vez se vê mais diluído em meio às demandas do capital, emerge de um lado a figura de uma criança cada vez mais “autossuficiente” e “esperta”, e de outro, um adulto resistente à ideia de envelhecer. Frente a esse paradoxo, a proposta desta pesquisa é compreender como o consumo de produtos e experiências contribuiu, na década de 90, para a reorganização do mercado, bem como para a construção identitária dos sujeitos e a ressignificação de suas práticas sociais. Palavras-chave: Consumo; identidade; estilo de vida; infância; publicidade. 1. Introdução Os anos 90 marcam uma importante passagem histórica e social, afinal, tratase justamente da década limiar entre o século XX e XXI. Mais do que uma simples transição temporal, o período promove uma mudança significativa na sociedade como um todo, incluindo alterações no espaço, nas relações e na identidade dos indivíduos. Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, Consumo e Infâncias, do 4º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014. 2 Mestranda em Comunicação do PPGCOM-UFF na linha de pesquisa Mídia, cultura e produção de sentido; bacharel em Estudos de Mídia também pela Universidade Federal Fluminense e Pedagoga pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. (HALL,2011, p.9) Segundo Stuart Hall, todas essas mudanças no cenário social moderno caracterizam uma descentração do indivíduo, tanto no que se refere ao lugar do mesmo na sociedade quanto em relação a ele próprio, internamente. Responsável pela fragmentação das identidades modernas, este deslocamento seria o motivo da crise identitária vigente. Embora a palavra “crise” soe como algo negativo, isso não é necessariamente ruim; afinal, é muito por razão dela que vem emergindo novas possibilidades de articulações sociais - menos engessadas que os períodos anteriores -, e derivadas da produção de novos sujeitos descentrados. Diante disso, se antes o sujeito possuía uma identidade estável, com a modernidade ele se viu frente a um leque de opções possíveis, ainda que nem sempre harmônicas entre si. A falta de coerência entre tantas identidades gera um conflito interno que, por sua vez, se reflete no comportamento do sujeito em atuações sócias ressignificadas. Sendo as sociedades modernas entendidas, então, enquanto sociedades de mudança constante e rápida, a identidade dos sujeitos também passa a acompanhar este fluxo. As sociedades da modernidade tardia, argumenta ele [Esnest Laclau], são caracterizadas pela „diferença‟; elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes „posições de sujeito‟ – isto é, identidades – para os indivíduos. (HALL, 2011, p.18) No final do período moderno, compreendeu-se que a identidade é algo construído, e não algo que nasce com o sujeito. Esta noção permitiu que o indivíduo se criasse (e recriasse) de forma muito mais plural e flexível. “Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação [sic], e vêla como um processo em andamento.”, esclarece Hall (2011, p.39). PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) A lógica de identificação já é algo utilizado há tempos pelas mídias, em especial, pelas propagandas. A publicidade desenvolve suas narrativas fazendo uso de imagens ou estilos de vida que toquem o telespectador/consumidor a ponto de ele identificar-se em algum grau com o que é representado no anúncio. Quando o consumidor se familiariza com algum perfil ou circunstância exposto(a) na propaganda, aquilo faz sentido para ele e, portanto, adquirir o produto/serviço anunciado passa a ser uma prática mais natural, já que é coerente com o estilo de vida que ele tem – ou desejaria ter. Os estilos de vida constituem, em resumo, uma forma por intermédio da qual o pluralismo da identidade pós-moderna é administrado pelos indivíduos e organizado (e explorado) pelo comércio. Para os sujeitos que não podem mais se apoiar na estabilidade oferecida pelos modos de vida tradicionais, comunitários, o estilo de vida funciona, inegavelmente, como uma (precária) âncora identitária. (FILHO, 2003, p.74) Assumir-se pertencente a um (ou vários) estilos de vida, acaba sendo uma tentativa de enquadrar-se minimamente em algo que confira ao indivíduo algum tipo de identificação. A identidade, dessa forma, revela-se uma “falta de inteireza que é „preenchida‟ a partir do nosso[sic] exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros [sic].” (HALL, 2011, p.39) 2- A década de 90: Consumindo para Ter e Ser Com o capitalismo sendo um sistema já consagrado nos anos 90, inevitavelmente a busca por referenciais externos em prol da estruturação de uma consciência interna do sujeito – refletida na identidade – se dava pelo consumo. Como Kathryn Woodward lembra, “existe uma associação entre a identidade da pessoa e as coisas que uma pessoa usa. (...) Assim, a construção da identidade é tanto simbólica quanto social.” (2000, p.10). PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) Segundo Woodward, o social e o simbólico são processos diferentes, embora complementares. “A marcação simbólica é o meio pelo qual damos sentido a práticas e a relações sociais.” (2011, p.14), explica. Sobre isso, de acordo com Mary Douglas e Baron Isherwood, “os bens são neutros, seus usos são sociais; podem ser usados como cercas ou como pontes.” ( 2013, p.30). Assim, embora os bens consumidos sejam simbólicos, o uso social deles é que confere sentido a determinadas práticas. Por exemplo, comprar uma blusa preta pode ser algo neutro; por outro lado, a forma como for usá-la revela o simbolismo e o sentido social daquele bem: vesti-la em uma festa pode ser associado à elegância, vesti-la em um velório relaciona-se a luto etc. “É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos”, diz Woodward. O consumo, assim, contribui nas relações entre indivíduos e grupos bem como na significação de práticas sociais. Quando o sujeito consome, ele busca que o grupo ao qual pertence reconheça no bem adquirido uma marca de sua identidade. Reveladoras, as relações de consumo são, então, relações sociais. Quando se diz que a função essencial da linguagem é sua capacidade para a poesia, devemos supor que a função essencial do consumo é sua capacidade de dar sentido. Esqueçamos a ideia da irracionalidade do consumidor. Esqueçamos que as mercadorias são boas para comer, vestir e abrigar; esqueçamos sua utilidade e tentemos em seu lugar a noção de que as mercadorias são boas para pensar: tratêmo-las como um meio não verbal para a faculdade humana de criar. (DOUGLAS; ISHERWOORD, 2013, p.106) Como a sociedade do final do século XX estimula a criação de identidades mais flexíveis, consumir bens para fazer-se reconhecer pertencente a determinado grupo/tempo/espaço acaba sendo uma prática intensa, afinal, um mesmo sujeito pode pertencer a grupos diferentes, pode circular por espaços diferentes etc. Para dar conta de tantas identidades em tantas circunstâncias distintas – e considerando ainda a efemeridade característica da modernidade -, o sujeito tende a consumir intensamente. PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades [sic] se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem „flutuar livremente‟. Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível fazer uma escolha. Foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja como sonho, que contribuiu para esse efeito de „supermercado cultural‟. (HALL, 2011, p.75) Esse “supermercado”, que Stuart Hall comenta, supõe que todo tipo de identidade está alcançável pelo consumo. É possível – e cada vez mais necessário - ter para ser, ou parecer ser. Sobre isso, Gilles Lipovetsky (2007) reforça a importância do mercado em nosso tempo e diz que vivemos na sociedade de hiperconsumo, ou seja, em uma época onde o consumidor assume o papel central, e na qual "o imperativo é mercantilizar todas as experiências em todo lugar, a toda hora e em qualquer idade (...)." (p.13). Para Lipovetsky, a sociedade do hiperconsumo seria caracterizada pela centralidade do consumidor. Segundo ele, o triunfo do capitalismo acaba suplantando o poder do Estado em prol do poder do mercado, e este novo cenário social contribui para que se construa um ethos consumista e conseqüente, um novo tipo de sujeito. Este novo sujeito, o hiperconsumidor, não deseja apenas consumir materialmente; ele deseja consumir sensações, experiências. Um Homo consumericus [sic] de terceiro tipo vem à luz, uma espécie de turboconsumidor desajustado, instável e flexível, amplamente liberto das antigas culturas de classe, imprevisível em seus gostos e em suas compras. De um consumidor sujeito às coerções sociais da posição, passou-se a um hiperconsumidor à espreita de experiências emocionais e de maior bem-estar, de qualidade de vida e de saúde, de marcas e de autenticidade, de imediatismo e de comunicação. (LIPOVETSKY, 2007, p.14) Nesta nova sociedade, apesar de vender-se a ideia de felicidade a todo momento e a qualquer custo, os sujeitos – de todas as faixas etárias, já que “nenhuma categoria de idade escapa às estratégias de segmentação do marketing” (2007, p.14) – PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) são cada vez mais inseguros, depressivos, frustrados; estas contradições, segundo Lipovetsky, configurariam a chamada “felicidade paradoxal” vigente. Porém, ainda que consumir não garanta a felicidade idealizada, tal prática, segundo o autor, não deixa de ser uma fonte de realização para o sujeito moderno, que, embora em uma escala instável de altos e baixos, de otimismo e pessimismo, faz uso do consumo para se tornar um “colecionador de experiências” (LIPOVETSKY, 2007). O consumo, assim, passa a ser uma maneira de expressar-se. O sujeito consome para quebrar uma rotina, para sentir algo novo, para poder ser quem quiser. Consumir torna-se uma forma de comunicação, uma maneira de revelar algo sobre si – personalidade, desejos, intenções – e também, uma forma de recompensa - um prazer em forma de distração, um prazer de reinventar-se. É preciso interpretar o apetite consumista como uma maneira, decerto banal, mas mais ou menos bem-sucedida, de conjurar a fossilização do cotidiano, de escapar à perpetuação do mesmo pela busca de pequenas novidades vividas. Através do ato do consumo, é a rejeição de uma certa rotina e da coisificação do eu que se exprime. O hiperconsumo é a mobilização da banalidade mercantil, com vista à intensidade vivida e à vibração emocional. (LIPOVETSKY, 2007, p.69) Este mesmo desejo de evitar a fossilização, dita por Lipotesky, vai além do cotidiano. O sujeito do fim do século XX - e do século XXI também - não deseja nada que lembre um estado fóssil. Nada que soa como fixo, como antigo, como retrógrado, ultrapassado, atrai a esmagadora maioria dos indivíduos modernos. Experiências novas, roupas novas que acompanhem a tendência, lançamentos do mercado, tudo que remeta ao novo tende a ser valorizado. Além do ter coisas novas, o sujeito quer ser jovem. Preocupações com o corpo, e com tudo que se refere à estética são questões altamente presentes na vida do indivíduo moderno; a busca pelo estado de jovialidade igualmente acompanha esta PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) preocupação. Instaura-se socialmente o sonho da juventude eterna e, neste cenário, rejuvenescer passa a ser uma meta tanto física quanto espiritual. Como Lipovetsky diz, “se os velhos querem parecer jovens, os jovens adultos „recusam-se‟ a crescer: (...) parecem querer viver no eterno prolongamento de sua infância ou de sua adolescência.” (2007, p.71). 3- A adequação do mercado: novos produtos e experiências Com a emergência das novas necessidades do sujeito moderno, o mercado teve de se adequar. Entretenimento, moda, e tantos outros ramos mercadológicos investiram na disponibilização de produtos que oferecessem ao consumidor a sensação de jovialidade. “Por meio da „entretenimentização‟ da economia, a TV, os filmes, os parques temáticos, os videogames, os cassinos, etc, se tornam os maiores setores da economia nacional”, afirma Douglas Kellner (2006, p.6). No campo do entretenimento, pode-se destacar o boom nos anos 90 das chamadas “festas goonies”, ou “festas ploc”, cuja característica principal é promover uma espécie de triunfo ao saudosismo. Com músicas famosas da década de 80, presença de artistas de sucesso da época, produtos típicos do período homenageado etc, essas festas tornaram-se a própria celebração do desejo de reviver um tempo que não volta mais. Também nesta época, diversos filmes com temática jovem e infantil foram lançados. Muitos HQs estrelaram no cinema para alegrar aos adultos que queriam relembrar suas infâncias. Podemos citar como exemplos: Batman & Robin, As Tartarugas Ninjas, O Fantasma, Capitão América, O Máskara, Sabrina- a bruxa adolescente, Flash, entre muitos outros. Uma enorme lista de desenhos animados – que encantou crianças e adultos também foi lançada, como O Rei Leão, Toy Story, A Bela e a Fera, Alladin, Mulan, Pocahontas, Tarzan, O Corcunda de Notre Dame, 101 dálmatas etc...Isso sem contar PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) os filmes estrelados por crianças e adolescentes, como As patricinhas de Beverly Hills, Esqueceram de mim (e todas as suas sequências), Os Batutinhas e Meu primeiro amor, por exemplo, que mostravam a esperteza e a alegria infantil e juvenil. Na TV, os Simpson faziam sucesso com públicos de todas as idades. No campo da moda, pode-se dizer que a década de 90 foi invadida pelas referências infantis, com roupas estampadas com personagens de desenhos animados, macacão jeans, mochilas e acessórios coloridos, como bonés e relógios. A febre dos patins, patinete e videogames, então diversões infantis, também alcançou os adultos nos anos 90. Diante deste vasto cenário de produtos, nota-se como ponto comum o enorme esforço do mercado em oferecer o maior número possível de opções em todos os ramos para conseguir realizar o desejo do adulto moderno: não envelhecer. Ao mesmo tempo em que os anos 90 consagravam o capitalismo e toda sua ânsia por trabalho e lucro, o adulto – estressado com tudo isso – e em crise com seu infinito leque de identidades possíveis tinha no consumo uma espécie de “válvula de escape” que lhe oferecia, através de uma série de produtos, o conforto de uma lembrança boa da infância e a promessa de que aquele tempo bom e com tão poucas preocupações poderia estar ao alcance dele. De um lado a Arcádia da mercadoria impele os indivíduos a responsabilizarse por si, informar-se, tornar-se gestores adultos de sua vida. Do outro, ela funciona como um agente de 'infantilização' dos adultos. Uma das propensões do hiperconsumidor é menos para impor-se como 'gente grande' diante do outro que para voltar a ser 'pequeno'. (LIPOVETSKY, 2007, p.71) Como grande parte dos adultos modernos têm contas a pagar e uma família para assumir, não é possível simplesmente abrir mão de tudo e voltar à infância; e esta é uma consciência tão concreta na modernidade quanto o desejo de que não o fosse. Com isso em mente, se por um lado o indivíduo moderno nutre o sonho de PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) rejuvenescer de corpo e de espírito, por outro, ele visa chegar o mais próximo disso delegando mais responsabilidades para a criança. 4- O paradigma identitário moderno: crianças adultizadas e adultos infantilizados Ao alimentar a autonomia e a adultização da criança, o adulto a reconhece enquanto ser capaz de escolher o que comer, o que vestir, o que assistir, o que consumir em geral - tanto para ela quanto para toda família. Eis aí a crise do paradigma identitário dos anos 90, que se mantém e se intensifica até hoje: um adulto que quer reviver tardiamente sua infância e adolescência, e uma criança que se vê tendo de amadurecer o quanto antes. Segundo Rita M. Ribes Pereira, “como desdobramento disso, temos um esvaziamento do lugar do adulto no que se refere às suas responsabilidades para com a criança, que, por sua vez, experimenta a controvertida aventura do “virar-se sozinho” (2002, pág.83). Assim, enquanto a criança assume uma postura mais independente e central na família tornando-se o novo "reizinho do lar" (GUIMARÃES; PEREIRA, 2009); o adulto – que deseja ter um estilo de vida menos esgotante - passa, assim, a "comprar para si ursinhos, usar camisetas Barbie, circular de patins ou patinetes, participar de reuniões sociais em que se cantam as canções dos programas de televisão de sua infância." (LIPOVETSKY, 2007, p.71). Como o adulto nutre este desejo por uma vida mais leve, ele incentiva que a autonomia da criança floresça mais precocemente para que ele próprio usufrua de uma certa jovialidade por mais tempo; assim, o adulto abdica de determinado poder no núcleo familiar e a criança, por sua vez, progressivamente e cada vez mais cedo, o ocupa. Ao contrário do que possa parecer em um primeiro momento, nem sempre estas posições sociais ocupadas por adultos e crianças são escolhas planejadas por PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) cada indivíduo, muitas vezes elas acabam sendo fruto de uma consciência discursiva e coletiva da modernidade que ressoa no pensar e agir individual de cada sujeito constituinte da mesma. Como Kathryn Woodward diz, “as posições que assumimos e com as quais nos identificamos constituem nossas identidades. (...)” (2000, p.55), porém, ainda segundo ela, há também a ação do inconsciente. A “descoberta” do inconsciente, de uma dimensão psíquica que funciona de acordo com suas próprias leis e com uma lógica muito diferente da lógica do pensamento consciente do sujeito racional, tem tido um considerável impacto sobre as teorias da identidade e da subjetividade. A ideia de um conflito entre os desejos da mente inconsciente e as demandas das forças sociais, tais como elas se expressam naquilo que Freud chamou de supereu, tem sido utilizada para explicar comportamentos irracionais e o investimento que os sujeitos podem ter em ações que podem ser vistas como inaceitáveis por outros, talvez até mesmo pelo eu consciente do sujeito. (WOORDWARD, 2000, p.62) Assim, se por vezes o sujeito moderno opta por adotar um estilo de vida mais infantilizado, ou por delegar responsabilidades demais à criança, ele pode, ao mesmo tempo, se condenar por isso e viver em conflito por desejar conscientemente agir de um modo que vai contra a sua prática. Nem sempre a ação feita é a resposta coerente de uma reflexão anterior. Woodward lembra mais algumas dessas situações em que vamos contra nossos interesses racionais, como, por exemplo, quando nos apaixonamos por pessoas com as quais sabemos que não vai dar certo, ou gastamos um dinheiro que sabemos que nos fará falta. Vale ressaltar que estas análises psicanalíticas não são consenso, como a autora comenta, no entanto, o que nos vale de discussão desse campo é o quanto que os desejos conscientes e inconscientes podem interferir no processo de identificação do sujeito. É importante pensarmos sobre este ponto justamente porque a mídia, e a publicidade televisiva em especial, estrutura seus discursos (por textos, imagens, sons etc.) em prol de promover esta identificação com o sujeito para convencê-lo do consumo – de produtos, serviços ou identidades. PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) Na verdade, a Comunicação de Massa não explicita o desejo de mandar em ninguém sob nenhum ponto de vista. Ela certamente pode convencer, enganar, mistificar, mentir, persuadir, convencer, iludir, engodar, seduzir e muitas outras qualificações quantas vezes atribuídas. Os adjetivos são legítimos, mas o fato é que essas qualidades não instauram propriamente uma ordem de comando, pois mandar mesmo, ordenar efetivamente, se ver obedecida é algo estranho – ou ao menos não é muito necessário – na experiência dentro da Indústria Cultural. A ideia de um poder exercido na dimensão interna da Comunicação de Massa é de difícil sustentação. Ela não precisa mandar, uma vez que pode convencer. (ROCHA, 2012, p. 174) Tendo em vista o poder de convencimento da propaganda televisiva, nota-se a relevância de debruçar-se sobre seu conteúdo para identificar do que exatamente os anúncios querem convencer; para além do óbvio – a compra do produto exibido – acerca de que práticas, que comportamentos, e com que tipo de pensar eles querem persuadir o sujeito moderno. 5- A publicidade dos anos 90: quando crianças falam para adultos Nos anos 90 houve um grande número de anúncios publicitários televisivos de produtos que teoricamente seriam destinados ao público adultos, mas que, por causas ainda nebulosas, foram estrelados por crianças. Em tais anúncios, as crianças assumiam uma identidade mais amadurecida do que se espera em suas faixas de idade; elas tinham voz ativa e "adultizada", e ofereciam os produtos ao telespectador/consumidor com muita segurança e conhecimento de causa, ainda que, repito, não fossem produtos os quais elas poderiam usufruir diretamente, como contas no banco, postos de gasolina etc. Por outro lado, nestas mesmas propagandas, o adulto era retratado com um ar mais infantil, atuando na posição daquele que não apenas se curva frente à sabedoria dos pequenos, como também aprende com a esperteza deles e, quiçá, inveja-o em seu espírito jovial. Frente a este cenário, presume-se então que o segmento publicitário tenha percebido uma certa reorganização de papéis na família e na sociedade e, PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) identificando o visível desgaste do adulto com responsabilidades, tenha reparado, assim, a existência de um novo sujeito definidor do consumo na família: a criança. Nos anos 90 houve um aumento considerável do leque de produtos estrelados por atores e atrizes mirins. De acordo com Inês Sampaio (2000), são quatro as principais razões que levam os publicitários a escolherem uma criança para estrelar em produções midiáticas: 1) a criança ouve outra criança, ou seja, ela é particularmente sensível à interpelação de outra criança; 2) a criança tem um forte apelo emocional ou, (...), ela tem um „apelo mágico‟ que emociona o adulto e o sensibiliza; 3) a criança pode contribuir para o rejuvenescimento da marca; 4) a criança tem empatia com os anunciantes, favorecendo a aprovação dos comerciais. (SAMPAIO, 2000, p.152) Conforme Sampaio esclarece, na década de 90 a lógica capitalista já identificava a importância da exibição infantil para o incentivo a prática do consumo. Já naquela época, o uso da imagem da criança vinculava-se (e vincula-se até hoje) tanto para ser uma ponte mediadora de comunicação entre o produto e o consumidor final – entendido enquanto aquele que tem o poder efetivo de compra, no caso, o adulto -, quanto para revigorar a própria marca e fazê-la mais aceitável socialmente. Neste cenário, a televisão teve uma importância crucial, tendo em vista que ela é um meio de comunicação de massa que deseja justamente atingir o maior número de espectadores, incluindo, logicamente, as crianças. Mesmo com a regulação etária de algumas programações, a lógica da produção televisiva é justamente ser o menos específica possível para, assim, fazer jus ao poder de alcance massivo que possui. Segundo Neil Postman (1999), a televisão contribui para a redução da distância entre a infância e a idade adulta. Na visão do autor, assim como a prensa gráfica criou e delimitou a categoria “infância”, a mídia eletrônica está fazendo com que a mesma desapareça. PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) Desenhos animados exibidos à noite, fantoches infantis em programas de adulto, crianças em comerciais de carro, anúncios de materiais de limpeza com animações infantis; a sensação que dá é a de que a programação televisiva deseja ser cada vez mais híbrida no que se refere ao seu endereçamento de público. 6- Conclusão Todo esse cenário midiático e hiperconsumista (LIPOVETSKY, 2007) bem como o reflexo de ambos na estruturação social, faz com que entendamos os anos 90 como um período histórico de “crise”. Conforme vimos, o conflito do sujeito para consigo e para com as mudanças do mundo marcaram o período de divisão entre os séculos XX e XXI. Nessa época vivenciamos uma sociedade que orbita o consumidor, avidamente desejosa de experiências e sensações, extremamente pautada na mídia, nas tecnologias e nas “novidades”. Diante de tantas mudanças e instabilidades, o sujeito passou a desejar ter um estilo de vida mais leve e despreocupado, ou seja, um estilo mais “infantil”. Este mesmo desejo foi identificado pela mídia e pelo mercado, que então passaram a oferecer ao adulto uma série de bens, serviços e programações capazes de fazê-lo se aproximar deste novo desejo de vida. Assim, crianças e elementos infantilizados começaram a fazer parte cada vez mais ativamente das programações televisivas, da publicidade, das práticas de consumo e, consequentemente, da sociedade. Isso fez com que as fronteiras existentes entre crianças e adultos fossem esfumaçadas e suas identidades, posições e práticas sociais fossem ressignificadas. PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014) Referências DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2013. ( Coleção Etnologia). FILHO, Freire João. 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