PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). POSSIBILIDADES DE ARTICULAÇÃO DO SUJEITO CONTEMPORÂNEO
MEDIADAS PELO CONSUMO1
Raquel Hadler2
ESPM
Resumo
Este artigo discute sobre algumas possibilidades de articulação do sujeito contemporâneo em uma sociedade
em que o consumo é colocado como mediador das relações sociais. Para isso, é dado enfoque nas relações de
poder existentes entre produtores e consumidores, evidenciando um mecanismo dialético que envolve as
estratégias e táticas utilizadas por cada qual, pontuando-se a ressignificação operada pelo consumidor e,
consequentemente, seu papel de negociador. Desta forma, o consumo é colocado como um espaço de
produção de sentido, influenciando a forma como o sujeito se constroi e é construído, ou seja, discute-se que
o consumo tem uma forte influência no processo de construção de identidades na contemporaneidade.
Palavras-chave: consumo; sujeito contemporâneo; identidade; relações dialéticas.
Considerações iniciais
Recentemente, aproximadamente nas últimas semanas, diversas manifestações ocorreram
em centenas de cidades brasileiras para reivindicar serviços públicos dignos, desde transporte
público gratuito para estudantes como a necessidade de melhoria nos sistemas de transporte, saúde e
educação. Tais manifestações entraram para a história do nosso país e se configuram como
populares, organizadas por cidadãos comuns através das redes sociais e por movimentos sociais
independentes como o Movimento Passe Livre3, causando perplexidade e abalando polos de poder
que se consideravam mais estáveis.
1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 10: Comunicação, Consumo, Poder e Discursos Organizacionais, do 3º
Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 10 e 11 de outubro de 2013.
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM (PPGCOMESPM), bolsista CAPES/PROSUP, e- mail: [email protected]
3
O Movimento Passe Livre é um movimento autônomo, independente, apartidário, cuja principal
reivindicação é o passe-livre estudantil no transporte coletivo urbano. Este movimento teve importante
atuação nas manifestações ocorridas a partir de junho de 2013 em diversas cidades brasileiras.
PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). Um aspecto muito interessante dessas manifestações foi a articulação entre os participantes,
orquestrando encontros entre milhares de pessoas em vias públicas, além de delimitar um caráter
pacífico e apartidário para o movimento. Não houve uma liderança específica, mas sim, a
proliferação de diversas vozes, que representavam os diversos indivíduos presentes, comumente
vistos apenas através de sua faceta de consumidores numa sociedade dita consumista, mas que, no
entanto, estavam ali fazendo reivindicações explicitando sua faceta de cidadãos.
Essa necessidade de questionar, o que pressupõe uma reflexão, é de longa data uma das
críticas à sociedade brasileira em relação aos recursos públicos precários e recorrentes escândalos
de corrupção. Desta forma, além da importante repercussão que essas manifestações estão
provocando no cenário político, podemos dizer que expressam um momento histórico da sociedade,
na medida em que os sujeitos brasileiros mostraram suas diferentes vozes, provocando o
rompimento com o que muitos chamavam de passividade.
Assim, em um contexto que grita problemas sociais, econômicos, políticos e ecológicos, a
atuação de cada sujeito foi algo que chamou muito a atenção, até mesmo da mídia que, após
monitoramento das redes sociais, mudou de opinião algumas vezes para não ‘bater de frente’ com
seus receptores. Insere-se a necessidade de uma conscientização em relação às direções em que
estamos indo, sendo que independente dos jogos de poder e da legitimidade dos discursos que
trabalham com essa necessidade, questões mais reflexivas em torno da sociedade em que vivemos
começam a ser cada vez mais debatidas.
Ao pensar sobre a localização desta sociedade, é importante destacar sua característica de
sociedade de consumo sob a regência do capitalismo avançado. Essa denominação, trazida à
conjuntura atual da sociedade brasileira, faz emergir diversas indagações sobre os sujeitos de uma
sociedade de consumo: nesta sociedade, haveria espaço, então, para atuações mais críticas e
reflexivas? Consumidores poderiam ser questionadores?
Observa-se grupos de pessoas que tentam, sob a ótica mais crítica em relação ao consumo,
ativar seu papel de sujeito e questionar seu papel de consumidor, seja pela forma do não consumo
ou via propostas alternativas de consumo. Percebe-se uma busca, refletida no consumo, por modos
de vida que estejam atrelados a uma vida de qualidade, ou seja, atrelada a uma proposta de uma
vida que vale a pena ser vivida na visão de cada sujeito, do que a uma qualidade de vida, atrelada às
estatísticas de sobrevivência e índices de consumo medidos dentro de uma visão hegemônica de
sociedade.
2 PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). Diferentemente de grupos que se organizam para lutar por uma causa específica, como fez o
feminismo, como ainda é feito pelos homossexuais, essa busca por um posicionamento mais crítico
enquanto sujeito, por uma não sujeição à sociedade de consumo, não é algo localizado e específico
em nossa sociedade. Refere-se a algo que tem sido construído junto com a identidade do sujeito,
localizado em sua singularidade enquanto indivíduo, mas disperso na sociedade enquanto
movimento formatado, o que pode ser exemplificado pelo fato dos movimentos citados não terem
uma liderança específica.
Neste cenário contemporâneo, como pensar a construção social e cultural do sujeito? Tornase importante indagar até que ponto o indivíduo, que também é um consumidor, tem a possibilidade
de refletir e questionar suas diversas formas de atuação na sociedade, em contraposição com as
apropriações que são feitas destas formas de reflexão pelos detentores do poder hegemônico, como
a mídia e os empresários.
Desta forma, podemos dizer que o indivíduo se coloca, em geral, frente a situações
ambíguas, nem sempre claras, que se movimentam dialeticamente. Isso traz, portanto, a pergunta
sobre como esse sujeito se constrói e é construído, como ele negocia seus valores, desejos e a busca
por uma vida melhor em uma sociedade em que o consumo é colocado como mediador das relações
sociais.
Essa questão se configura como uma discussão extremamente relevante dentro da
conjuntura brasileira atual, mas, acima de tudo, como uma questão contemporânea por estar atrelada
ao modo de funcionamento das sociedades atuais. Assim, com o intuito de delinear um caminho de
resposta para a pergunta colocada, coloca-se como objeto de discussão deste artigo algumas
possibilidades de articulação do sujeito contemporâneo através das diferentes formas de consumo
com que se vê enredado na vida cotidiana.
Dilemas entre produção e apropriações de sentido
Para iniciar a discussão deste artigo, é importante situar a visão de consumo que o abrange.
O consumo está, aqui, sendo entendido como forma de se relacionar e de estar no mundo, como um
ato individual e coletivo de produzir e trocar valores, sendo que o que é consumido reproduz os
mecanismos das relações entre pessoas. Esta visão não se alinha com uma forma de analisar o
consumo embasada apenas em uma visão economicista, como resultado das leis de oferta e procura.
A visão de consumo que embasa a presente discussão está fundamentada no campo das
ciências sociais contemporânea. Assim, faz sentido citar a forma que o antropólogo Arjun
3 PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). Appadurai classifica o consumo, como algo “eminentemente social, relacional e ativo, em vez de
privado, atômico e passivo” (APPADURAI, 2010, p. 48). Neste sentido, é importante a colocação
de Appadurai sobre a demanda estar longe de ser apenas uma resposta à disponibilidade de bens e
dinheiro ou às necessidades individuais e, sim, representar uma “expressão econômica da lógica
política do consumo” (APPADURAI, 2010, p. 48).
A demanda, mesmo atrelada aos desejos individuais, é colocada como “impulso gerado e
regulamentado socialmente” (APPADURAI, 2010, p. 50), até porque o autor realça que é
“impossível ver o desejo por bens como algo sem fundamentos ou independente da cultura”
(APPADURAI, 2010, p. 46).
Dando sequência a essa discussão, Appadurai aponta dois aspectos da relação entre
consumo e produção que afetam mutuamente a demanda. O primeiro está relacionado à
determinação da demanda através de forças econômicas e sociais, sendo o outro referente à
manipulação que a própria demanda faz dessas forças dentro de seu limite de atuação.
Michel de Certeau (1994) desenvolve uma discussão que dialoga com esses apontamentos
de Appadurai. Em seu livro “A Invenção do Cotidiano”, aponta para as relações de poder existentes
na trama social, fruto das organizações estratégicas que são conferidas aos detentores de poder,
como também das táticas, conferidas aos ausentes de poder, conforme é colocado abaixo:
À produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e espetacular,
corresponde outra produção, qualificada de “consumo”: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao
mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar
com produtos próprios mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem
econômica dominante (CERTEAU, 1994, p. 39).
Essa colocação relaciona o valor das mercadorias a uma subjetividade provisória, pois como
argumenta Appadurai, “o valor jamais é uma propriedade inerente aos objetos, mas um julgamento
que os sujeitos fazem sobre ele” (APPADURAI, 2010, p. 15).
Este valor transitório remete ao fato de que mercadorias estão sempre em movimento e que
ser denominada de mercadoria pode significar uma fase na vida das coisas. Assim, o autor defende
que “o fluxo de mercadorias, em qualquer situação determinada, é um acordo oscilante entre rotas
socialmente reguladas e desvios competitivamente motivados” (APPADURAI, 2010, p. 31).
O desvio de uma rota representa um aspecto extremamente significativo na dinâmica do
consumo e está vinculado com a ação de um sujeito ativo, que se articula em sua localização de
sujeito, com a biografia das coisas e com a história social. O desvio de mercadorias tem um
significado arrojado, pois manipula regras já estabelecidas e socialmente aceitas. Sair da rota
4 PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). sinaliza um momento de crise ou criatividade, o que pode ocorrer tanto no âmbito econômico
quanto estético e que traz a abertura de novos caminhos, como é colocado abaixo:
Tal desvio não é apenas um instrumento de desmercantilização do objeto, mas também a
(potencial) intensificação da mercantilização pelo aumento de valor que resulta deste desvio.
Este aumento do valor por meio do desvio está por trás da pilhagem de objetos de valor dos
inimigos em tempos de guerra, da compra e exibição de objetos utilitários “primitivos”, do
deslocamento dos objetos “encontrados”, da formação de coleções de qualquer espécie. Em
todos estes exemplos, o desvio das coisas combina o impulso estético, o vínculo
empreendedor e um toque de choque moral (APPADURAI, 2010, p. 45).
Desta forma, é importante citar Certeau (1994), pois discute a importância de se romper com
uma visão acadêmica que supõe a passividade dos consumidores, colocando a necessidade de
analisar as operações do uso e apropriações que os usuários fazem de seus bens ao invés de se
preocupar com os produtos oferecidos no mercado. Indagado como que uma sociedade não se reduz
às estratégias dos poderes hegemônicos, Certeau vai a campo e descobre que “ ‘maneiras de fazer’
constituem as mil práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas
da produção sócio-cultural” (CERTEAU, 1994, p. 41).
Certeau encontra o que chama de uma rede de antidisciplina, composta por astúcias de
consumidores, de acordo com o que argumenta abaixo:
Essas maneiras de se reapropriar do sistema produzido, criações de consumidores, visam
uma terapêutica de socialidades deterioradas, e usam técnicas de reemprego onde se podem
reconhecer os procedimentos das práticas cotidianas. Deve-se então elaborar uma política
dessas astúcias. Na perspectiva aberta por Mal-estar na civilização, ela deve também
interrogar-se sobre aquilo que pode ser hoje a representação pública (“democrática”) das
alianças microscópicas, multiformes e inumeráveis entre manipular e gozar, realidade
fugidia e massiva de uma atividade social que joga com sua ordem (CERTEAU, 1994, p.
52).
Assim, é destacado a relação do consumo com um murmúrio incansável, com uma quaseinvisibilidade que tem a arte de utilizar produtos que lhe são impostos pela impossibilidade de
produzir o que lhe é próprio. Com isso, Certeau evidencia que existe uma distância entre o que se
produz no mercado e o uso que se faz dessa produção.
Este uso pode ser associado a uma atividade leitora, sobre a qual o consumidor pode criar
suas significações, o que não lhe confere propriedade, mas permite escapar da lei que estrutura o
meio social. Essa atividade leitora também é abordada por Jesús Martin-Barbero, sobre a qual
destaca a ressignificação operada pelo consumidor e, desta forma, o seu papel de negociador:
Se entendemos por leitura a atividade por meio da qual os significados são organizados por
meio de um sentido, resulta que na leitura – como no consumo – não existe apenas
reprodução, mas também produção, uma produção que questiona a centralidade atribuída ao
texto rei e à mensagem entendida como lugar da verdade que circularia na comunicação.
Levar a centralidade do texto e da mensagem à crise implica em assumir como constitutiva a
5 PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). assimetria de demandas e competências encontradas e negociadas a partir do texto”
(BARBERO, 2009, p. 293).
Este debate acerca da atividade leitora do consumidor, coloca o consumo como um espaço
de produção de sentido. Essa produção implica um sujeito ativo, pensante, que pode reproduzir
também, mas que coloca em ação o seu poder de reflexão. Desta forma, é importante ressaltar neste
artigo o consumo como espaço de reflexão, como explica Jesús Martin-Barbero:
O espaço da reflexão sobre o consumo é o espaço das práticas cotidianas enquanto lugar de
interiorização muda da desigualdade social, desde a relação com o próprio corpo até o uso do
tempo, a hábitat e a consciência do possível para cada vida, do alcançável e do inatingível.
Mas também enquanto lugar da impugnação desses limites e expressão dos desejos,
subversão de códigos e movimentos da pulsão e do gozo. O consumo não é apenas
reprodução de forças, mas também produção de sentidos: lugar de uma luta que não se
restringe à posse dos objetos, pois passa ainda mais decisivamente pelos usos que lhes dão
forma social e nos quais se inscrevem demandas e dispositivos de ação provenientes de
diversas competências culturais (BARBERO, 2009, p. 292).
Quando o sujeito começa a produzir seus próprios significados em relação àquilo que
consome, esquivando-se do controle e manipulação social do poder hegemônico, realiza-se uma luta
política através desta luta por significados e prazeres, de acordo com o que argumenta Douglas
Kellner (2001). Porém, é importante sinalizar uma possível despolitização da luta e da resistência à
medida que modos de dominação atuam em diversos âmbitos das interações sociais (governos,
empresas, instituições de ensino, de artes, etc), criando uma ideologia do que se denomina “cultura
popular” totalmente inofensiva ao poder hegemônico, e sim congruente à ele. Essa relação é
abordada no trecho abaixo:
O prazer em si não é natural nem inocente. Ele é aprendido e, portanto, está intimamente
vinculado a poder e conhecimento. Desde Foucault, passou-se a admitir que o poder e o
conhecimento estão intimamente imbricados, e que o prazer está vinculados a ambos. (...)
Um sistema de poder e privilegio, portanto, condiciona nossos prazeres de tal modo que
procuramos certos prazeres sancionados socialmente e evitamos outros (KELLNER, 2001, p.
59).
Dentro desta discussão, vem a indagação se a busca por prazeres, que pode ser encarada
como um desvio de rota feito pelo consumidor, chega realmente a contribuir para uma vida com
mais qualidade, ou se na verdade representa um outro meio de prender o consumidor nos laços de
uma cotidianidade que acaba o degradando e o oprimindo. Desta forma, Kellner alerta que
“Resistência e prazer não podem, portanto, ser valorizados em si como elementos progressistas da
apropriação dos textos culturais, mas é preciso descrever as condições específicas que dão origem à
resistência ou ao prazer em jogo e a seus efeitos específicos” (KELLNER, 2001, p. 59).
Assim, a partir do momento que o desvio de rota só ocorre quando o sujeito que o realiza vê
um sentido nesta ação, pode-se inferir que existe uma grande produção de significado neste desvio.
6 PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). O que Kellner (2001) nos coloca é que a resistência, que podemos entender como desvio, é
proveitosa e ajuda a proliferar o poder hegemônico, o que podemos denominar como as rotas
socialmente determinadas na linguagem de Appadurai (2010). Segue um trecho que ilustra esse
pensamento:
(...) a produção de significados alternativos e a resistência aos “significados preferidos”
podem funcionar como um modo eficaz de cooptar os indivíduos para a sociedade
estabelecida. A produção de significados pode criar prazeres capazes de integrar os
indivíduos nas práticas consumistas que, acima de tudo, são proveitosas para a indústria da
mídia. Essa possibilidade obrigada quem valorize a resistência a ressaltar que tipo de
resistência, que efeitos e que diferença a resistência produz (KELLNER, 2001, p. 59).
Assim, fica evidente a complexidade que abrange a discussão deste artigo, evidenciando
uma trama extremamente dialética e dialógica que constitui a sociedade atual, em que o consumo é
colocado como mediador das relações sociais. É importante destacar que é sob este contexto que as
possibilidades de articulação do sujeito estão submetidas. Desta forma, para compreender com mais
profundidade como esse sujeito se constrói e é construído, é fundamental abrangermos em tal
discussão o processo de construção de identidades na contemporaneidade.
Construção de identidades descentradas
Para pensar no processo de construção da identidade do sujeito contemporâneo, faz-se
relevante trazer à tona a discussão sobre identidade que Stuart Hall (2006) desenvolve no livro “A
identidade cultural na pós-modernidade”. O livro foca a questão da identidade do indivíduo,
evidenciando o declínio de um modelo unificado de identidade, a partir de um deslocamento de
estruturas e processos centrais das sociedades modernas, abalando os quadros de referências que
davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social e que repercute em uma crescente
fragmentação do sujeito.
É pertinente destacar que a conceito de sujeito centrado, com uma identidade unificada,
fruto da concepção de “sujeito cartesiano” formulada no século XVII pelo pai da filosofia moderna,
nasceu em meio à dúvida, de acordo com o que Hall destaca no trecho abaixo:
Ele (Descartes) foi atingido pela profunda dúvida que se seguiu ao deslocamento de Deus do
centro do Universo. E o fato de que o sujeito moderno “nasceu” no meio da dúvida e do
ceticismo metafísico nos faz lembrar que ele nunca foi estabelecido e unificado como essa
forma de descrevê-lo parece sugerir (Hall, 2006, p.26).
Segundo Hall (2006), é no período que denomina de modernidade tardia, segunda metade do
século XX, que se intensifica o descentramento do sujeito cartesiano. Hall relata 05 grandes
avanços na teoria social e nas ciências humanas que ocorreram neste período, cujo principal
impacto foi a aceleração do processo pelo qual a identidade, que se constituía como fixa e estável,
7 PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). se transforma em uma pluralidade de identidades abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas,
do sujeito contemporâneo.
O primeiro ponto destacado é a reinterpretação do pensamento marxista na década de 60,
que pode ser exemplificado por um novo olhar à seguinte frase de Marx “homens fazem história,
mas apenas sob as condições que lhes são dadas”
(HALL, 2006, p. 34). O resultado dessa
reinterpretação é o deslocamento de duas proposições básicas da filosofia moderna, uma sobre a
existência de uma essência universal do homem, sendo a outra a consideração de que cada
indivíduo teria essa essência como atributo. Isso desconsidera o fato do homem como ser localizado
no âmbito social, politico, econômico e cultural, e que isso molda suas possibilidades de ação.
Outro avanço é a descoberta do inconsciente por Freud, que coloca que a estrutura de nossos
desejos, sexualidade e identidades, são formadas com base em processos psíquicos e simbólicos do
inconsciente. A questão é que essa estrutura funciona com uma lógica muito distinta da lógica da
razão, mostrando um sujeito dividido que possui a fantasia de si mesmo como uma pessoa
unificada. Assim, ao invés de se referir à identidade como algo acabado, deveríamos nos referir a
ela como identificações e como um processo em andamento. A origem da identidade não se faz a
partir de uma plenitude identitária dentro de cada sujeito, mas sim da necessidade de ser preenchida
a partir de nosso exterior, através de como nos relacionamos com nós mesmos e com os outros.
Outra contribuição para o descentramento do sujeito foi o trabalho de linguística estrutural,
de Ferdinand de Saussure, o qual argumenta que nós não somos os autores das afirmações que
fazemos, pois “falar uma língua não significa apenas expressar nossos pensamentos mais interiores
e originais; significa também ativar uma imensa gama de significados que já estão embutidos em
nossa língua e em nossos sistemas culturais” (HALL, 2006, p. 34). Além disso, Saussure contribui
com a noção de que as palavras não tem significados fixos e sim, instáveis, visto que a formação de
significado ocorre através das relações que as palavras têm umas com as outras, tanto de
similaridade quanto de diferença, no interior do código da língua. Aqui Hall (2006) cita a colocação
de Lacan, que diz que a identidade e o inconsciente são estruturados como a língua.
O quarto descentramento destacado por Hall (2006) é o trabalho do filósofo e historiador
Francês Michel Foucault ao propor um novo tipo de poder, que é o poder disciplinar, cujo objetivo
básico consiste em produzir um sujeito que possa ser tratado como um corpo dócil. Dentro de sua
argumentação sobre regimes disciplinares, Foucault coloca o paradoxo de que quanto mais a
natureza das instituições da modernidade tardia for coletiva e organizada, maior tende a ser a
individualização do sujeito, seu isolamento e sua vigilância.
8 PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). O último descentramento, sobre o qual Hall (2006) enfatiza sua enorme importância, foi o
feminismo. Além de fazer parte dos novos movimentos sociais que emergiram nos anos 60, críticos
ao capitalismo liberal, o feminismo criticava a política de classe, as formas burocráticas de
organização e constituiu o que veio a ser conhecido como política de identidade, um nascimento
histórico que contribuiu para vincular cada movimento social a uma identidade própria. Foi o
movimento que teve uma relação mais direta com o descentramento do sujeito pelos seguintes
aspectos: questionou a distinção clássica entre o dentro e o fora, o público e o privado; abriu para
contestação política arenas novas de vida social (família, sexualidade, trabalho doméstico, etc);
explorou a forma sob a qual os sujeitos são formados e produzidos como sujeitos como uma questão
de cunho político e social; ajudou na formação das identidades sexuais e de gênero; questionou o
fato do homem e da mulher serem vistos como parte da humanidade que lhes conferiam uma
mesma identidade, inserindo a questão da diferença sexual.
Desta forma, em uma época caracterizada por mudanças constantes e rápidas, esse processo
de descentramento faz nascer um complexo jogo de identidades. Surgem novas formas de
interconexões sociais que cobrem o globo, além de mudanças profundas em características íntimas e
pessoais, aspectos que evidenciam uma descontinuidade em relação aos tipos tradicionais de ordem
social e deslocamento de poder para uma pluralidade de centros de poder.
Neste contexto, Steven Connor (2004) aponta para o desenvolvimento de uma cultura pósmoderna, caracterizada através da passagem das grandes narrativas à autonomia fragmentadora das
micronarrativas, já sinalizado por Jean-François Lyotard. Além disso, Connor caracteriza o que
denomina de cultura pós-moderna pelo apagamento do sentido de história também já apontado por
Frederic Jameson, ao se referir à noção de um presente perpétuo sem profundidade, sem definição e
sem identidade segura.
Deste modo, é importante destacar o impacto que a globalização, inserida em uma cultura da
modernidade tardia, causa sobre identidades culturais. Como um complexo processo de mudanças
de relações de forças sociais, que se distancia da ideia clássica da sociedade como um sistema bem
delimitado, a globalização tem como um dos seus mais importantes aspectos a compressão de
distâncias e de escalas temporais.
À medida que o espaço e tempo são as coordenadas básicas de todos os sistemas de
representação, isso evidencia que todas as identidades estão localizadas no espaço e tempo
simbólicos. Assim, “a moldagem e a re-moldagem de relações espaço-tempo no interior de
9 PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). diferentes sistemas de representação têm efeitos profundos sobre a forma como as identidades são
localizadas e representadas” (HALL, 2006, p. 34).
Esse aspecto pode ser associado com o que Lúcia Santaella (2010) coloca sobre a influência
da mobilidade em nossa vida cotidiana atual, mudando a nossa percepção sobre o tempo e o modo
de nos relacionarmos, como é explicado abaixo:
Hoje as pessoas estão constantemente em movimento nas esferas da vida pessoal,
profissional e social. Movimentam-se de uma esfera para outra dentro de uma mesma esfera.
Em lugar de permanência, mobilidade tornou-se a norma. Kellerman (idem, p.1) afirma que
a dimensão mais notável da mobilidade encontra-se na expansão espacial do eu pela
transmissão e recepção de informação que tem produzido mobilidades virtuais. (...)
Entretanto, a mobilidade virtual não apenas se potencializou e se diversificou com o advento
da internet e das mídias moveis, como também adquiriu novos significados, a saber, a
habilidade humana para fazer uma entidade abstrata, a informação, fluir eletronicamente
(Santaella, 2010, p. 110).
Além disso, outro efeito que a globalização gera é o deslocamento, ou até o apagamento, das
identidades nacionais em prol de identificações globais, conforme ilustra o trecho abaixo:
Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e
imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de
comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas –
desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem “flutuar
livremente”. Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades (cada qual nos
fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece
possível fazer uma escolha. Foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja como
sonho, que contribuiu para esse efeito de “supermercado cultural”. No interior do discurso do
consumismo global, as diferenças e as distinções culturais, que até então definiam a
identidade, ficam reduzidas a uma espécie de língua franca internacional ou de moeda
global, em termos das quais todas as tradições específicas e todas as diferentes identidades
podem ser traduzidas. Este fenômeno é conhecido como “homogeneização cultural” (HALL,
2006, p. 75).
No entanto, é importante destacar que a homogeneização das identidades globais é um
processo desigual sobre o globo, caminha em paralelo com uma reafirmação de identidades locais,
mas as relativiza pela compressão espaço-tempo. Instaura-se uma dialética das identidades,
explicada no trecho abaixo:
Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão
suspensas, em transição, em diferentes posições; que retiram seus recursos, ao mesmo
tempo, de diferentes tradições culturais; e que são o produto desses complicados
cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo globalizado.
Pode ser tentador pensar na identidade, na era da globalização, como estando destinada a
acabar num lugar ou noutro: ou retornando a suas raízes ou desaparecendo através da
assimilação e da homogeneização, mas esse pode ser um falso dilema (HALL, 2006, p. 88).
Considerações finais (porém ainda em processo)
10 PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). Após discorrer sobre o processo de descentramento das identidades e como isso está
imbricado com o tempo histórico em que vivemos, fica mais claro a importância do papel do
consumo para o sujeito contemporâneo. Importância esta que não se encontra fundamentada como
lastro da demanda, mas sim como forma de expressão do indivíduo.
O consumo comunica de forma fluida, efêmera, de acordo com a necessidade de mobilidade
e de mudança frente aos contextos pelos quais cada sujeito transita. O consumo funciona como
elemento balizador de quem este sujeito é ou poderia vir a ser, ajudando ele a se situar dentre as
diversas possibilidades de identificações que constantemente se modelam para ele.
Com isso, neste contexto de descentramento e dissolução das identidades, o consumo
assume um papel de garantir uma sensação relativamente estável ao indivíduo. É através de um
processo de escolha conduzido aparentemente por cada sujeito que ocorre o processo de
conhecimento e re-conhecimento de si e do mundo em que vive.
Desta forma, a partir do momento que percebe-se que cada indivíduo possui a habilidade de
tentar desenvolver suas próprias lógicas de usos do que consome, o consumo torna-se um espaço
rico para analisar como ele negocia seus valores, desejos e a busca por uma vida melhor.
Assim, através do consumo pode-se exemplificar diversas tentativas do sujeito buscar uma
vida com mais qualidade, o que é visto muitas vezes pela tentativa de se exercer um papel crítico na
sociedade, seja pelo não consumo de determinadas mercadorias, seja pela denúncia de marcas que
agem fora da lei, etc. Isso pode influenciar outros consumidores, gerar tendências, e, pela lógica do
mercado, será apropriada pelo discurso de marcas para vender mais produtos, o que está muito
distante do princípio ético plantado pelo sujeito consumidor.
No entanto, por mais que essa dinâmica dialética e dialógica da busca por uma posição
reflexiva pareça não ter garantias de efetividade, assim como a dinâmica das rotas e desvios, ela
deixa seus rastros e pode ser encarada como um meio de transformação social, as quais sempre são
lentas. A propaganda, que tende a expressar os hábitos e costumes de sua época, reflete mudanças
de discursos no decorrer das últimas décadas.
Com o intuito de funcionar como uma ferramenta que visa ativar a demanda, hoje em dia o
discurso da propaganda não está mais vinculado ao produto e às técnicas específicas de vendê-lo
como ocorria em meados do século XX, e sim à associação a um estilo de vida desejado na
sociedade vigente. Isso remete a uma mudança de valor e de demanda no decorrer do tempo, o que
pode ser relacionado ao seguinte trecho:
A maior parte das imagens sociais que criam essa ilusão de exclusividade pode ser explicada
como o fetichismo do consumidor em vez daquele da mercadoria. As imagens de
11 PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). sociabilidade (pertencimento, apelo sexual, poder, distinção, saúde, intimidade família,
camaradagem) que subjazem a grande parte da propaganda visam à transformação do
consumidor a tal ponto que a mercadoria particular que está sendo vendida fica em segundo
plano. Essa dupla inversão das relações entre pessoas e coisas poderia ser vista como o
movimento cultural crucial do capitalismo avançado (APPADURAI, 2010, p. 77).
Isso ilustra o fato de que o ato de consumo está se vinculando explicitamente, cada vez mais,
a aspectos simbólicos. A simbologia do que se comunica tem mais peso do que a própria
mercadoria. Percebe-se que o grande motor do consumo não é a sua concretude, mas sim valores e
estilo de vida que intermedeiam as relações entre as pessoas.
Assim, é importante ressaltar a influência que o imaginário cultural tem sobre o consumidor,
como advoga Martin-Barbero “Começamos a suspeitar de que o que faz a força da indústria cultural
e o que dá sentido a essas narrativas não se encontra apenas na ideologia, mas na cultura, na
dinâmica profunda da memória e do imaginário” (BARBERO, 2009, p. 308).
Dentro dessa discussão, vale relembrar Michel de Certeau (1994), que ressalta que não se
pode ignorar que no imaginário do consumidor circulam discursos hegemônicos, fruto de uma rede
de comunicação estrategicamente construída. Isso vai influenciar a forma como vão lidar com a
realidade e negociar valores, mas como relembra Certeau:
Mas onde o aparelho científico (o nosso) é levado a partilhar a ilusão dos poderes de que é
necessariamente solidário, isto é, a supor as multidões transformadas pelas conquistas e as
vitórias de uma produção expansionista, é sempre bom recordar que não se devem tomar os
outros por idiotas (CERTEAU, 1994, p. 273).
Contudo, realizar um paralelo do processo de construção e desconstrução das facetas
identitárias do sujeito, com seu imaginário e com o processo de desenvolvimento humano mostra-se
fundamental. Como coloca Morin (1973):
é necessário pensar que o desfraldamento do imaginário, que as derivações mitológicas e
mágicas, que as confusões da subjetividade, que a multiplicação dos erros e a proliferação
da desordem, longe de terem constituído desvantagens para o Homo sapiens, estão, muito
pelo contrário, ligados aos seus prodigiosos desenvolvimentos (MORIN, 1973, p. 108).
Portanto, todos os progressos associados à natureza humana se desenvolvem contendo
algum ponto de ligação com a desordem, visto que para Morin “é a ordem humana que se
desenvolve sob o signo de desordem” (MORIN, 1973, p. 108). Assim, sempre que alguma questão
que indaga sobre a natureza humana ou suas relações apresentar uma resposta complexa e
contraditória, essa resposta deve ser considerada adequada.
Deste modo, pensar as possibilidades de negociação do sujeito na sociedade de consumo
contemporânea implica em se estar atento a uma multiplicidade de fatores imbricados nas
complexas relações de produção de sentidos, de apropriações, e de resistências que envolvem este
sujeito em suas diversas práticas de consumo.
12 PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). Referências bibliográficas
APPADURAI, Arjun. “Introdução: mercadorias e a política de valor”. In:____________. A vida social das
coisas: a mercadoria sob uma perspectiva cultural. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense,
2010.
DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Editora DP&A: Rio de Janeiro, 2006.
KELLNER, Douglas. “Guerras entre teorias e estudos culturais”. In____________. A cultura da mídia.
Bauru (SP): Edusc, 2001.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. “Mapa noturno para explorar o novo campo”. In: _________. Dos meios às
mediações – comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 1997.
MORIN, Edgar. “Sapiens-Demens”. In:_________________. O paradigma perdido: a natureza humana.
Lisboa: Europa-América, 1973.
SANTAELLA, Lúcia. “Lugar, espaço e mobilidade”. In:________________A ecologia pluralista da
comunicação: conectividade, mobilidade, ubiquidade. São Paulo: Paulus, 2010.
CONNER, Steven. A cultura pós-moderna: introdução às teorias do contemporâneo. São Paulo: Loyola,
2004.
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possibilidades de articulação do sujeito contemporâneo