POR UMA SOCIOLOGIA DAS “NOVAS” E “VELHAS” FORMAS DE EVASÃO NAS ESCOLAS PÚBLICAS Profa. Dra. Ângela Maria de Sousa Lima (C.Sociais/UEL) Profa. Ms. Nilda Rodrigues de Souza (C.Sociais/UEL) Prof. Dr. Ricardo de Jesus Silveira (C.Sociais/UEL) Profa. Dra. Ileizi Luciana Fiorelli Silva (C.Sociais/UEL) RESUMO Com este artigo pretendemos demonstrar as primeiras reflexões teóricas sobre evasão escolar, realizadas a partir de uma investigação sistemática em três escolas estaduais do norte do Paraná: Altair Mongruel (Ortigueira), Polivalente (Londrina) e Prof. Francisco Villanueva (Rolândia), onde levantamos dados junto aos professores, estudantes e, também, com o envolvimento dos pais de alunos, com o objetivo de não apenas conhecer melhor o fenômeno, mas de construir meios, no âmbito das escolas e das comunidades, para a diminuição de suas taxas. Com este trabalho queremos colaborar com a superação das fronteiras entre ciência e a escola, de modo a criar metodologias inovadoras de pesquisa e de ensino, capazes de apontar para a diminuição das desigualdades sócioeducacionais nestas regiões. Encontramos nos dados exploratórios e nas pesquisas consultadas, problemas sociológicos clássicos e contemporâneos, o que nos dá uma oportunidade única de formação de novos pesquisadores e docentes da Educação Básica e das Ciências Sociais para investigar um problema sociológico e educacional que mesmo antigo continua pertinente para estas comunidades. As pesquisas sobre os processos de abandono da escola terão como variáveis e categorias orientadoras, os valores e as representações acionadas pelos agentes/sujeitos na relação ensinoaprendizagem, atentando-se para a multiplicidade de categorias sociais que atuam de modo articulado para a reprodução das desigualdades. Em concomitância com a estrutura de classes sociais, fatores como gênero, sexualidade, cor da pele e etnia exercem impactos na trajetória escolar e na prática educativa e, portanto, também estão sendo investigados. São fatores que, em muitas circunstâncias, combinam-se e reforçam-se reciprocamente na produção das desigualdades sócioeducacionais, sendo a evasão um dos sintomas visíveis desses ciclos, por isso a relevância em estudá-los conjuntamente com as três instituições. Neste artigo, apresentaremos nossas principais razões de pesquisa e as contribuições que pretendemos trazer tanto para o aprofundamento deste debate, quanto para repensar alternativas conjuntas que auxiliem as escolas a amenizarem tal problemática. Palavras chave: sócioeducacionais evasão escolar; pesquisa ação; desigualdades 80 INTRODUÇÃO Os estudos sobre as desigualdades sociais e educacionais fazem parte da tradição da Sociologia da Educação. Diferentes recortes e metodologias foram mobilizados nos últimos trinta anos do século XX, tendo como problemas recorrentes o “sucesso” e o “fracasso” escolar, com diferentes critérios e descritores de identificação dos estudos (FORQUIN, 1995). Não obstante, o conhecimento acumulado com o crescimento do número de pesquisas e avaliações sobre o funcionamento dos sistemas escolares e seus processos de reprodução ativa das trajetórias de classes sociais, gênero, “raça” e etnias, o problema do esvaziamento das escolas, em países como o Brasil, persiste em fenômenos como o da evasão, abandono da escola pelos alunos, e o da repetência, assim como outros processos de “fracasso” escolar. Os mecanismos sociais ativos nesses processos podem ser associados a problemas que persistem desde o início da República do Brasil, bem como a problemas modernos e pós-modernos, com naturezas diversas e complexas. Chamamos de “velhas” e “novas” formas de evasão dos alunos, porque o Brasil só expandiu o acesso a escola, de maneira acelerada, após os anos de 1970 e após a LDB de 1996. Porém, chegamos ao século XXI sem, de fato, resolver o acesso com qualidade nas escolas de todos os níveis de ensino, da Educação Infantil ao Ensino Superior. Há um período crítico que vai do oitavo ano do fundamental ao terceiro ano do Ensino Médio e que precisa ser investigado pela Sociologia. Na fase da juventude, os indivíduos começam a deixar as escolas ou nem chegaram até elas. CONTEXTUALIZANDO: SOCIOEDUCACIONAL A PERSISTÊNCIA DE UM PROBLEMA A reprodução das classes sociais no capitalismo brasileiro tem características peculiares e persistentes, como o desenvolvimento pela expansão das periferias e a ausência de cultura escolar, configurando-se como problema de fundo e “velho” conhecido dos estudiosos. Mas, a este, somam-se 81 outros modos de reprodução de nossas desigualdades que reforçam e se cruzam com os de “raça”, cor, etnia, orientação sexual, ética, tecnologia, memória, entre outros marcadores, que raras vezes são colocados como variáveis, relacionados ou levados em consideração quando se discutem os objetivos finais da escola pública. [...] Já os objetivos finais da escola pública são sempre colocados de forma genérica, imprecisa e ampla. Eles são, por exemplo, definidos através de fórmulas como: a transmissão do saber historicamente acumulado; a transmissão do patrimônio cultural da humanidade; a promoção da continuidade histórica da sociedade; ou para relembrar as fórmulas aparentemente mais concretas da atual LDB, a qualificação para o trabalho e o preparo para a cidadania [...] (SAES, 2004, p.178). As mudanças nas percepções de constituição das identidades, das expectativas de futuro, de inserção na vida produtiva e reprodutiva, de ciclos de vida com projetos mais em longo prazo, enfim, mudanças de ordem social, identitária, sexual e profissional impactam nas escolas despreparadas, tal como nossa sociedade, para o enfrentamento dos problemas tipicamente modernos e pós-modernos do século XXI. Dessa forma, entendemos que o projeto de investigação “Por uma sociologia das “novas” e “velhas” formas de evasão nas escolas públicas” deverá enfrentar o fenômeno da evasão envolvendo os sujeitos/objetos de estudo: os alunos do Ensino Fundamental, médio e médio profissionalizante das escolas públicas, com a intenção de compreender e também intervir, no que for possível, sobre as situações que afastam o aluno da escola, na expectativa de inibir o abandono escolar. Para esse projeto escolhemos três escolas do Norte do Paraná: uma no município de Ortigueira, outra no município de Rolândia e uma terceira no município de Londrina. O desafio teórico é o de articular pesquisas quantitativas e qualitativas comparadas e cotejadas com dados gerais do Brasil, do Estado do Paraná e dos municípios 82 estudados. Além disso, comparar as escolas entre si e detectar padrões, desvios e especificidades nos dados coletados, no sentido de produzir uma teorização consistente para os objetivos do projeto. O fato de o aluno abandonar os estudos por falta de interesse constitui-se, de fato, em um paradoxo, pois mesmo que se tenha uma visão negativa do caráter integrador da educação, não se pode ignorar o impacto da educação em relação à questão da ocupação e da renda, posto que, em regra, o salário do emprego sem escolaridade corresponde a 11,3% do valor do salário do emprego com pós-graduação e, a possibilidade da empregabilidade difere em 59,9% de chance para os não escolarizados, contra 86,4% para os ocupados com pós-graduação, relação que, pressupõe-se, tende a se acentuar em face da competitividade mais acentuada. O impacto positivo da escolarização é igualmente evidente em relação aos rendimentos, visto que o salário médio dos universitários com pós é 544% maior que o dos não escolarizados. Semelhante impacto pode ser percebido na saúde, para o qual a educação e a renda são positivamente correlacionadas, destacando-se que a educação tem peso fundamental nas melhoras subjetivas de saúde, da mesma forma que responde por 89,4% da redução da probabilidade das pessoas ficarem acamadas. Ressalta-se, a propósito, que os benefícios mais significativos da educação sobre a saúde são sentidos à medida que a idade avança, quando já não se é mais jovem, provavelmente, por terem sido observados ao longo da vida hábitos mais saudáveis, relativos à higiene e à alimentação1. A constatação do paradoxo de se abandonar a escola por não ver sentido nela salta aos olhos quando tomamos conhecimento dos dados examinados nos parágrafos anteriores e, mais, de saber que em nenhuma circunstância o educando perde com a educação escolar. Os dados que demonstram o impacto da escolarização na vida dos indivíduos foram extraídos da pesquisa da FGV. Ver: NERI, Marcelo (Coord.) Motivos da Evasão Escolar (2009) FGV. Site: http://www.fgv.br/cps/tpemotivos/. 1 83 Daí, certo incômodo. Todavia, é necessário mais cautela na consideração do fenômeno, pois, obviamente, a percepção da importância da educação para nossas vidas em sociedade é mais fácil para quem já experimentou a educação escolar cercado de condições favoráveis, com mais experiências de sucesso que de fracasso, o que, certamente, não é o caso dos jovens que abandonam a escola por não encontrar razão suficiente para continuar os estudos. Priorizando a reprodução material da unidade familiar, os pais trabalhadores não têm como formular estratégias no plano educacional ou projetar investimentos educacionais em função da previsão de trajetórias escolares absolutamente regulares para seus filhos. [...] As classes trabalhadoras manuais não podem, portanto, se alçar ao primeiro plano da luta pela instauração do ensino elementar obrigatório, pois elas pressentem que podem vir a ser vítimas sociais dessa obrigatoriedade. Um indício dessa atitude é o fatalismo com que muitos trabalhadores encaram a evasão escolar das suas crianças [...] (SAES, 2006, p.28). As teorizações de Bourdieu (2008) sobre a escola conservadora, compreendida não apenas como reprodutora das condições desiguais de existência e barreira a qualificações mais avançadas aos alunos com pouca ou nenhuma herança cultural, mas, sobretudo, como legitimadora do sucesso e do fracasso escolar ao assegurar o acesso escolar a todos os alunos a partir de critérios universais cujo fundamento é o tratamento igualitário, formal, independentemente das desiguais condições de existência, parece trazer alguma luz ao nosso problema. Ao atribuir aos indivíduos esperanças de vida escolar estritamente dimensionadas pela sua posição na hierarquia social, e operando uma seleção que – sob as aparências da eqüidade formal – sanciona e consagra as desigualdades, ao mesmo tempo em que as legitima [...] conferindo uma sanção que se pretende neutra, e que é altamente reconhecida como tal, a aptidões socialmente condicionadas que trata como desigualdades 84 de ‘dons’ ou de mérito, ela transforma as desigualdades de fato em desigualdades de direito, as diferenças econômicas e sociais em ‘distinção de qualidade’ e legitima a transmissão da herança cultural. (BOURDIEU, 2008, p. 58-59). Muitas vezes, não compreendendo a complexidade deste processo, a escola sai à procura de “culpados”. A responsabilidade recai, na maioria dos casos, na instituição familiar, vista por alguns docentes, de modo errôneo, como “desestruturada”. São questões que mais afastam do que aproximam escolas, arranjos familiares e comunidades. A forma extrema de revolta popular dentro da escola pública consiste, portanto, em responsabilizar a instituição social mais próxima e palpável para o jovem, culpando-a por abandoná-lo, e à sua família; bem como por não promover a redenção familiar dos alunos pobres. [...] no fim das contas, os seus contatos imediatos se estabelecem basicamente com a escola, e não com outras instituições sociais, como a empresa, a repartição pública etc. É a escola que o aluno pobre pode endereçar a sua queixa contra a precariedade da situação material de sua família e de sua própria situação material. (SAES, 2004, p.175). Pois, nos leva a considerar que se a escola adotasse outro perfil curricular que levasse em conta as desigualdades de origem dos alunos, certamente, os resultados escolares poderiam ser diferentes, com chances educacionais maiores de sucesso para um maior número de alunos e, com influência positiva sobre o fenômeno da evasão. Não deixa de ser uma perspectiva de análise sedutora que, a propósito, estamos considerando como uma orientação da pesquisa. Pensar a possibilidade de um sistema escolar, constituído por um projeto pedagógico e 85 disposições disciplinares voltados a acolher o não previsto, o contingente, seria supor uma escola mais constitutiva que constituinte da sociedade, cuja autonomia, neste sentido, só parece ser possível construir em momento de crise, quando a legitimidade do processo educacional está em questão, justamente por faltar à escola a autonomia necessária para encontrar caminhos próprios que faça da educação o que ela nunca deveria ter deixado de ser o meio de emancipação dos homens, o que acreditamos, se começa a construir desde muito cedo, antes de se ocupar um lugar no sistema de produção e reprodução da sociedade. [...] a escola pública se mostra incapaz de conduzir um processo de revalorização das conexões entre conhecimento científico, produção cultural e prática social. A primeira grande evidência dessa limitação ideológica e política da escola pública é não valorização sistemática da experiência prática dos alunos, enquanto prática social e de massa, enraizada na esfera do trabalho (de onde os alunos são oriundos). [...] A escola pública tende, no máximo, a valorizar a prática individual, em correspondência com a valorização puramente protocolar da prática nas diretrizes curriculares oficiais. A segunda grande evidência do confinamento ideológico-político da escola é a tendência sistemática, no plano pedagógico, à ocultação da conexão estreita entre a produção de conhecimentos e a prática social. [...] (SAES, 2006a, p.05). Todavia, a ideia de que o problema da evasão é mais da escola que do aluno não implica em considerar que o conhecimento sobre sua ocorrência e solução tornou-se mais fácil, por assim dizer. É bem verdade que há limitações a ser consideradas a certa autonomia da escola, que varia de escola para escola, que permite à sua direção e corpo docente mobilizar recursos para desenvolver práticas que resultem benéficas à educação. 86 Há espaço suficiente para que diretores e docentes desenvolvam uma atividade ideológica e cultural junto à comunidade escolar, mostrando que os objetivos nobres oficialmente atribuídos à escola pública poderiam orientar a construção de um projeto educacional alternativo e se converter em realidade num novo modelo de organização social, não mais orientado pelo objetivo de maximização do lucro. Digamo-lo de uma maneira mais incisiva: a consciência da verdadeira raiz dos conflitos sociais ou funcionais aqui abordados pode contribuir para o envolvimento de diretores e docentes numa movimentação intelectual pela construção, a partir de sua própria prática escolar e pedagógica, de uma nova hegemonia de classe. (SAES, 2004, p.180). Mas, raramente as iniciativas e as eventuais práticas alternativas são possíveis e, quando o são resultam insatisfatórias em face, quase sempre, da ausência de estímulos e recursos da parte do estado. Assim, a par do desestímulo das políticas salariais, todo esforço para solução de problemas resulta, ora negativo ora positivo, da abnegação de parte, sempre em número reduzido, do corpo docente da própria escola, compromissada com a educação voltada à emancipação. A propósito dessa realidade escolar, não são desconhecidos os problemas da educação brasileira que afetam diretamente a sua qualidade. Devemos ter sempre presente, para compreensão histórica da educação brasileira, a crescente massificação do ensino básico, paralelamente ao número cada vez maior de escolas privadas, as quais passam a abrigar alunos de melhor renda, e não por outra razão melhor equipadas, e a deterioração das escolas públicas, nas quais se concentram a população de alunos de baixa renda. Um processo que teve início nos anos 1960/1970 e que desde então segue sem interrupção, tendo chegado ao século XXI com praticamente toda a demanda de matrículas no ensino básico asseguradas em todo o país. 87 Observamos, ainda, que a massificação educacional seguiu os passos da urbanização industrial do país, primeiro nas capitais e regiões metropolitanas do Sul e Sudeste, depois, e pouco a pouco, chegando às demais regiões do país e cidades médias. Processo no qual se verificou, e se verifica, ainda que com menos intensidade, a paulatina deterioração das condições de ensino. Os recursos financeiros sempre escassos potencializam os problemas da falta de infraestrutura física, com ausência ou deficiência de bibliotecas e de equipamentos elementares tanto para as atividades práticas das disciplinas de ciências, como os laboratórios, como para as disciplinas de educação física, como as quadras esportivas. Além, é claro e, certamente, o mais importante, a ausência de políticas salariais compatíveis com as necessidades do exercício profissional e a valorização da atividade docente. No mesmo patamar, lembramos a ausência de políticas efetivas para a formação continuada de professores que levem em consideração as necessidades e a voz destes sujeitos. Provavelmente as articulações entre as mudanças no mundo do trabalho, as políticas públicas e as políticas educacionais, com base no que se configura o novo modelo de formação de professores, não são ainda suficientemente compreendidas pelos professores de educação média e profissional. [...] Talvez essa pouca clareza explique, em parte, a cena inusitada, para não dizer dramática, vivida pelos professores e suas organizações {nos últimos dois anos}, que protagonizaram um desordenado processo de construção de propostas, uns aderindo, outros resistindo, outros deixando-se usar ou sendo usado [...] (KUENZER, 1999, p. 1). Nesta trama de busca por “culpados” individuais, muitos professores deixam de cobrar do estado políticas públicas para a educação. A não compreensão destes contextos, assim como o isolamento das variáveis a 88 serem investigadas, serve como atributo para a desmobilização dos docentes. Portanto, a pesquisa-ação sobre a evasão pretende aprofundar a visão dos mesmos sobre a escola, sobre o fazer do professor, sobre as relações de poder e de conflitos que permeiam o ambiente escolar, mostrando que a política de formação continuada, por exemplo, pode ser uma política de estado. Uma vez dotado de maior conscientização política dessa realidade institucional, o professor pode sentir-se mais co-responsável pelo processo de mudança. [...] a necessidade e a urgência da realização de uma análise aprofundada, a fim de compreender as concepções sobre as quais se assenta a política oficial de formação de professores, de modo a contribuir para o estabelecimento de uma pauta mínima que nos permita enfrentar os novos desafios postos pelas políticas educacionais formuladas a partir da LDB. [...] A tarefa que resta a ser feita por esses profissionais é traduzir o novo processo pedagógico em curso, elucidar a quem ele serve, explicitar suas contradições e, com base nas condições concretas dadas, promover as necessárias articulações para construir coletivamente alternativas que ponham a educação a serviço do desenvolvimento de relações verdadeiramente democráticas. (KUENZER, 1999, p.3). REPENSANDO OS SENTIDOS DA ESCOLA PÚBLICA O quadro que encontramos, hoje, nas nossas escolas do ensino básico, já vencida a primeira década do século XXI, é de crise. Especialmente pela baixa qualidade do ensino atestada nos exames nacionais de avaliação do aprendizado. E, à baixa qualidade, soma-se uma série de fenômenos pertinentes às mudanças sociais de um mundo em permanente transformação que afetam diretamente a população adolescente e jovem, com os quais a escola passa a vivenciar sem, no entanto, estar preparada para enfrentá-los, como a violência associada à questão das drogas, o recorrente e cada vez mais freqüente, bullying, a gravidez na adolescência, e outros problemas com os quais a escola precisa aprender a lidar, sem o que não há como melhorar a 89 qualidade da educação e, muito menos, é uma expectativa, senão resolver, pelo menos diminuir o problema da evasão. Não há dúvida que a solução do problema da evasão passa pelo equacionamento dos problemas que afetam os alunos, alguns dos quais exemplificamos acima. E, ainda que a grande maioria dos alunos tenha certa identidade com a escola, enquanto espaço físico, por proporcionar o encontro e as relações de amizade, é de se supor que o contrário também ocorra, que as amizades já não estejam mais presentes na escola, e, neste sentido, que o desinteresse pela educação como causa da evasão corresponda ao fato do aluno não se sentir bem escola. Mas, muitas vezes, a escola não fala a linguagem dos alunos, muito menos dedica-se a tentar compreender as razões históricas da precarização cultural a que foram sucessivamente submetidos. As pesquisas e experiências do Núcleo de Estudos sobre Reestruturação Produtiva e Educação (Nere), da UFPR, vêm reforçando estudos que já tem mostrado que a precarização econômica, ao inviabilizar experiências socioculturais variadas e significativas, conduz a uma precarização cultural que se expressa nas dificuldades de linguagem, de raciocínio lógico-matemático e de relação com o conhecimento formalizado, que dificilmente a escola consegue suprir. [...] Evidentemente, a ninguém ocorreria imaginar que a escola pública pudesse resolver essa questão, o que significaria atribuir-lhe o poder de mudar as estruturas que determinam as desigualdades sociais. Contudo, é inegável o compromisso da escola pública, e portanto de seus professores, com o enfrentamento das desigualdades, pela democratização dos conhecimentos que minimamente permitirão aos alunos participar, da melhor forma possível, da vida social e produtiva (KUENZER, 1999, p. 6). 90 O que se está considerando aqui é que a escola deixou de ser um território de domínio exclusivo escolar, de acolhimento, para ser, também, de domínio da rua, pois ainda que esta não chegue, literalmente, ao seu interior, os problemas que abriga já chegaram. Embora seu objeto de estudo sejam todos os processos pedagógicos que ocorrem no âmbito da sociedade e do trabalho, a especificidade de sua função se define pela sua intervenção em processos pedagógicos intencionais e sistematizados, transformando o conhecimento social e historicamente produzido em saber escolar, selecionando e organizando conteúdos a serem trabalhados com formas metodológicas adequadas, construindo formas de organização e gestão dos sistemas de ensino nos vários níveis e modalidades e participando do esforço coletivo para construir projetos educativos, escolares ou não, que expressem os desejos do grupo social com que está comprometido. (KUENZER 1998b apud, KUENZER, 1999, p. 5). Como define Kuenzer (1999), esses processos não se restringem necessariamente aos espaços escolares, por isso esta concepção não elimina outros campos de atuação nos quais se desenvolvem processos amplamente pedagógicos que demandam supervisão ou mesmo intervenção de professores ou especialistas em educação. Aí a importância de nos apropriarmos das diferentes formas de leitura e interpretação da realidade destas escolas, pois elas se constituem em objeto de vários campos do conhecimento, bem como estabelecer interlocução para produzir categorias de análise que permitam a elaboração de uma síntese peculiar, que tome como eixo os processos educativos, permitindo não apenas a sua compreensão, mas principalmente a intervenção na realidade. Essas são considerações não conclusivas, até pelo fato de que não dispormos de informações mais adequadas. Não obstante, em análise da 91 pesquisa recente que fizemos sobre o perfil dos alunos, nas mesmas escolas onde agora propomos essa pesquisa, tal percepção foi reforçada ao constatarmos que muitos dos alunos estão mais voltados para fora da escola que para dentro dela. A explicação possível talvez seja a exigência de ter que trabalhar, associada ao abandono do aluno, nos termos da teorização de Lahire (2008)2. Uma combinação de motivos que pressiona o aluno, já com idade não adequada à serie cursada, a avaliar sobre a compensação de tanto esforço, ao qual pesa de modo marcante a baixa estima revelada pelos professores e o inadequado controle por parte do sistema escolar ao que mais os motivam ir para a escola: o encontro com os colegas. Em escolas públicas e privadas: vemos forte desanimo dos docentes, em função da sua desvalorização pelos alunos e familiares; do desrespeito ao magistério por parte da mídia e de muitos dirigentes; do medo de perder o emprego; do clima autoritário de trabalho; da sobrecarga de alunos em sala de aula; da falta de espaço de trabalho coletivo constante na escola; do pouco investimento das mantenedoras em pesquisa e formação, da falta de sentido para o trabalho educativo [...] sensação de impotência toma conta do cotidiano educacional. Instala-se um círculo vicioso: o desmonte das condições de trabalho provoca no sujeito o desânimo para a luta, o que acaba perpetuando as condições [...] Para evitar moralismo – equipe deveria abordar a realidade a partir de algumas categorias dialéticas: criticidade (ir além da aparência); totalidade (perceber a trama das relações que envolve o problema) e historicidade (análise da Conforme Bernard Lahire “[...] podemos dizer que os casos de ‘fracassos’ escolares são casos de solidão dos alunos no universo escolar: muito pouco daquilo que interiorizaram através da estrutura de coexistência familiar lhes possibilita enfrentar as regras do jogo escolar...” O autor desenvolve sua teoria com base em estudo voltado a explicar o “sucesso escolar nos meios populares”, com alunos do 2ºano básico, correspondente ao nosso nível básico fundamental. Sua investigação visa explicar particularidades não contempladas na análise macro-sociológica. 2 92 gênese e desenvolvimento do problema) [...] Outro caminho para despertar a necessidade de mudança é fazer uma reflexão (também não moralizante), sobre as contradições que estão presentes na instituição. [...] São tantos os obstáculos que na escola acabamos gerando inimigos ao invés de aliados: falta de uma linguagem comum; falta de uma linha comum de atuação; perda da força do coletivo. (VASCONCELLOS, 2002, p. 38 a 40). Por que, então, a escola criar constrangimentos ao aluno como lugar de pertencimento? É uma pergunta adequada a fazer. Assim, sem desviar o foco da escola como fonte maior do problema (e também da solução), até porque é válida a desconfiança de que a maioria das motivações de evasão decorre da não identificação do aluno com a escola, parece necessário e oportuno que a escola volte a ter importância como instituição legítima para a coletividade e reconquiste seu lugar de importância para o aluno. Nestes termos, considerá-lo, também, sujeito do conhecimento, e não tábua rasa na qual se deposita um conhecimento construído à sua revelia nos parece a alternativa mais próxima. Ademais, chamá-lo para pensar junto a solução de um problema no qual ele figura como ator principal é, no mínimo, uma questão de bom senso pedagógico, um modo elementar de valorização do aluno, de chamá-lo a pensar a escola como uma aliada e não como espaço hostil. O problema não está tanto na discrepância entre desejo e prática, mas na falta de percepção coletiva desta distância; e na falta de instrumentos para diminuí-la. [...] No momento da tentativa de mudança é que sentimos a fragilidade da nossa teoria e da nossa organização. É impossível mudar a prática de sala de aula sem vinculá-la a uma proposta conjunta da escola, a uma leitura da realidade, à filosofia educacional, às concepções de pessoa, sociedade, currículo, planejamento, disciplina [...] (VASCONCELLOS, 2002, p. 15). 93 Não se trata, obviamente, apenas, de adotar um procedimento como estratégia para “ganhar” o aluno, a ideia de democratização do acesso à educação deve ser acompanhada da democratização da permanência, sob pena de se perder nos dois momentos. Isso significa que a permanência do aluno deve ser acompanhada de condições mínimas, mas suficientes para um aprendizado adequado. Neste sentido, é conveniente que seja feita a reavaliação do projeto pedagógico da escola, evidentemente, dentro dos parâmetros das diretrizes curriculares do Estado, com a correspondente revisão do programa e dos procedimentos didáticos que estejam atentos à cultura e vivência dos alunos, especialmente, no que diz respeito às suas relações de vizinhança. Afinal, como já mencionou Celso Vasconcellos, o “objetivo de todo processo é chegar à ação transformadora, pois a intencionalidade é fruto de um plano e esta ação é fruto de uma necessidade radical do grupo e/ou da instituição, por isso precisamos localizar a necessidade. [...] O grande desafio do planejamento é localizar bem as necessidades. (2002, p. 29). Entretanto, há que se pesar a mão, ou seja, não se trata de produzir uma escola moldada aos interesses dos alunos, pois, supostamente, mais que os professores, os alunos são susceptíveis a serem presas fáceis do espaço público monopolizado, marcados com ferro, para utilizar uma forte expressão, ainda mais quando tangidos pela vontade manipulada do mercado. Ora, não cabe trazer aqui referências que nos distancie do tema em tela, mas nos parece evidente que o papel da educação é educar, com efeito, para além da subjetividade do aluno, ainda que sem ignorá-la, a educação corresponde a educar para a vida em comum, para o respeito à alteridade, e, portanto, voltado à tolerância ao diferente. Ao professor não basta conhecer o conteúdo específico de sua área; ele deverá ser capaz de transpô-lo para situações educativas, para o 94 que deverá conhecer os modos como se dá a aprendizagem em cada etapa do desenvolvimento humano, as formas de organizar o processo de aprendizagem e os procedimentos metodológicos próprios a cada conteúdo [...] em face da complexificação da ação docente, ele precisará ser um profundo conhecedor da sociedade de seu tempo, das relações entre educação, economia e sociedade, dos conteúdos específicos, das formas de ensinar, e daquele que é a razão do seu trabalho: o aluno (KUENZER, 1999, p.05 e 06). Sintetizando, a educação visa a integração, pois é nestes termos que ela pode rivalizar de forma positiva com a cultura trazida da rua de modo acrítica e, assim, não se apresentar, necessariamente como substituta, mas como uma alternativa necessária ao aluno como espaço de sujeito e, igualmente, de distinção. [...] Vamos ler a realidade a partir de nossos “óculos”, e se estas lentes não são explicitadas e socializadas, corremos o risco de distorção. O plano de ação é filho da tensão dialética entre a realidade e a finalidade. (VASCONCELLOS, 2002, p. 35). Essas considerações a respeito da importância do aluno como participante ativo do processo de investigação nos leva a mais uma referência teórica importante como orientação da investigação proposta, trata-se das teorizações de Bernard Lahire (2008). Que pessoa detém o capital cultural? Estará ela sempre presente junto à criança? Ela cuida da sua escolaridade? Muitas são as perguntas, por parecerem banais, não são menos essenciais. Com efeito, a simples existência objetiva de um capital cultural ou de disposições culturais no seio de uma configuração familiar não nos diz nada acerca 95 das maneiras, das formas de relações sociais, a freqüência das relações, etc., através das quais ele se ‘transmitem’ ou não se ‘transmitem’. Se o capital ou as disposições culturais estão indisponíveis, se ‘pertencem’ a pessoas que, por sua posição na divisão sexual dos papéis domésticos, por sua situação em relação às pressões profissionais, por sua maior ou menor estabilidade familiar, por sua relação com a criança, não tem oportunidades de ajudar a criança a construir suas próprias disposições culturais, então a relação abstrata entre capital cultural e situação escolar das crianças perde a pertinência. (LAHIRE, 2008, p. 339). Se com Bourdieu (2008) nos valemos de uma leitura macrosociológica para a compreensão do papel do sistema escolar na reprodução da sociedade capitalista e/ou, na conservação das desigualdades sociais, em Lahire, a partir de pressupostos semelhantes aos utilizados por Bourdieu, mas não equivalentes, o autor busca as particularidades, os motivos e/ou suas combinações singulares que fogem das considerações macro, para explicar, justamente, a exceção, o que não é contemplado naquilo que se toma como a regra, e por isso mesmo escapa à análise, não obstante, é o que explica o fato de, eventualmente, alunos dos meios populares terem sucesso escolar, da mesma forma que alunos oriundos de família com considerável patrimônio cultural terem fracassos retumbantes. É provavelmente por um efeito de inércia cultural que continuamos tomando o sistema escolar como um fator de mobilidade social, segundo a ideologia da ‘escola libertadora’, quando, ao contrário, tudo tende a demonstrar que ele é um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural. (BOURDIEU, 2008, p.41). 96 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOURDIEU, P. Escritos de Educação. Org. NOGUEIRA, Maia A; CATANI, Afrânio. Petrópolis, Editora Vozes, 10ª Edição, 2008. FORQUIN, Jean Claude (org). Sociologia da Educação: dez anos de pesquisa. Petropólis, RJ: Vozes. 1995. KUENZER, Acácia Zeneida.. As políticas de formação: a constituição da identidade do professor sobrante. Educ. Soc. 1999, vol.20, n.68, pp. 163183. ISSN 0101-7330. LAHIRE, B. Sucesso escolar nos meios populares – As razões do improvável. São Paulo, Editora Ática, 2008. NERI, Marcelo (Coord.) 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