ANTIVALOR E SOCIALISMO PERGUNTAS SOBRE O ANTIVALOR OU O CAPITAL NO MEIO DO CAMINHO Francisco Paulo Cipolla* RESUMO A transição do capitalismo para o socialismo foi pensada no marxismo clássico como tendo no seu ponto de partida uma revolução política que desapropriasse a classe capitalista e estatizasse os meios de produção. A suposição era de que isso iniciaria um processo de dissolução das relações mercantis e, portanto, do Estado. A recente débâcle do socialismo da propriedade estatal relançou o desafio de se repensar o problema da transição. A atenção, porém, agora volta-se para os processos intrínsecos ao capitalismo moderno, processos esses que possam indicar mecanismos endógenos de transição. A idéia do antivalor apresentada por Oliveira (1988) constitui uma tentativa de mostrar que a emergência da riqueza pública como pressuposto da acumulação de capital é um processo de autodissolução do mercado na medida em que "estatiza" as relações de produção, isto é, lhes confere uma dimensão pública. Estas notas visam formalizar o argumento do antivalor. Alguns questionamentos emergem dessa tentativa de formalização: os limites que a retração da taxa de excedente global impõem sobre o desenvolvimento do Fundo Público como relação social; a dificuldade de se conceber a origem do financiamento dos gastos públicos sem contradizer a idéia de aumentos das taxas de retorno dos capitais privados; por fim, a possibilidade de redução da teoria a um argumento de tipo estagnacionista, estão entre os mais importantes. Palavras-chave: marxismo; transição para o socialismo; teoria do antivalor. SUMMARY Classical Marxism held that the transition from capitalism to socialism begins with a political revolution expropriating the capitalist class, with the state taking over the means of production. The assumption was that this would set off a process dissolving mercantile relations and, as a consequence, the state. The recent debacle of socialism where the state controlled property launched the challenge to rethink the transition issue. Now, though, attention is focused the processes intrinsic to modern capitalism, processes which can signal the endogenous mechanisms of transition. The anti-value argument presented by Oliveira (1988) constitutes an attempt to show that the emergence of public wealth as an a priori result of capital accumulation represents a process whereby the market dissolves itself insofar as it makes the relations of production state-owned, that is, it gives them a public dimension. These notes seek to formalize the anti-value argument. This attempt at formalization brings up a few questions: the limits imposed by receding rates of global surplus upon the development of public wealth as a social relation; the conceptual difficulty involved in discussing the origin of public finance without contradicting the idea of increases in the return on private capital; finally, the possibility that theory might become reduced to a stagnationist type argument. Keywords: Marxism; transition to socialism; theory of anti-value. 142 NOVOS ESTUDOS N.° 42 (*) O autor agradece o mestrando Eduardo Malheiros Guedes, do Curso de Mestrado em Desenvolvimento Econômico, pelas discussões que ajudaram a viabilizar estas notas. FRANCISCO PAULO CIPOLLA 1. Introdução O colapso do socialismo da propriedade estatal dos meios de produção relançou o desafio de repensar o problema da transição: não a do socialismo para o capitalismo como dirão imediatamente os irônicos, mas a outra, a clássica, a transição do capitalismo para o socialismo. É óbvio que agora tende-se a prestar mais atenção à dialética dos conceitos fundamentais (valor, capital, fetichismo, força de trabalho) e menos ao papel da força. O antivalor (Oliveira, 1988) participa dessa nova conjuntura das idéias. As perguntas que aqui se fazem emergem de uma tentativa de ilustrar o antivalor de um ponto de vista formal. Essa tentativa de formalização suscita dúvidas e questionamentos como se verá a seguir. 2. As determinações autovalorizáveis do capital Como o antivalor é concebido como um processo de dissolução do capital enquanto relação autovalorizável, iniciaremos pela definição desta última. O capital é uma relação social cujo resultado, o aumento da sua massa de valor, é sempre o ponto de partida para uma ulterior expansão do valor. Por isso é uma relação de autovalorização. As determinações autovalorizáveis do capital são o capital total, sua divisão interna entre parte constante e parte variável e a duração da jornada de trabalho. O capital se apresenta como uma multitude de capitais individuais cuja totalidade se estabelece pela distribuição da mais-valia de acordo com o capital total investido por cada capital particular, independentemente da contribuição de cada um para a massa total de mais-valia produzida. A comunidade do capital, portanto, se estabelece pela concorrência. A concorrência, como mecanismo de distribuição da mais-valia, é o processo que instaura a sociabilidade do capital. Esse processo pode ser ilustrado pelo quadro apresentado por Marx (1976) no capítulo IX do terceiro livro d'O capital, "Formação de uma taxa de lucro média": Quadro 1 Formação da Taxa de Lucro Média Capitais 1. 80c + 20v 2. 70c + 30v 3. 60c + 40v 4. 85c + 15v 5. 95c + 5v Diferença Mais- Valor das Custo de Preço das Taxa entre Valor Valia Mercadorias Produção Mercadorias de Lucro e Preço 20 90 70 92 22% +2 30 111 81 103 22% -8 40 131 91 113 22% -18 15 70 55 77 22% +7 5 20 15 37 22% +17 Esse quadro sintetiza o que Oliveira quer dizer por determinações autovalorizáveis: um capital total de 500 cuja parte variável de 110 gera uma massa de mais-valia de 110. Essa mais-valia de 110 se distribui para cada capital de acordo com a taxa de lucro n JULHO DE 1995 143 ANTIVALOR E SOCIALISMO média de 22%. Neste esquema o trabalho se apresenta puramente enquanto parcela do capital que faz variar o valor. A sua autonomia existe somente no mercado de trabalho, na medida em que ali os trabalhadores exercem seus direitos enquanto proprietários da força de trabalho. No processo de produção o trabalho é simplesmente consumido pelo capital. Daí a idéia de subalternidade do trabalho implícita na relação capital. 3. A riqueza pública como antivalor O argumento básico de Oliveira é de que a Riqueza Pública libera o capital de suas determinações autovalorizáveis. À medida que o faz erode também a subalternidade do trabalho inscrita na relação de autovalorização. Subjacente está a idéia de que não somente as forças produtivas mudam, contra o pano de fundo fixo das relações de produção. Como elemento constitutivo das relações de produção, o Fundo Público opera no sentido de substituir a subalternidade do trabalho por uma sociabilidade que implica a legitimação do seu interesse ("alteridade", p. 23). Opera, portanto, no sentido de constituir uma esfera pública como espaço de gestão do conflito social. O Fundo Público atua no sentido de liberar o capital de suas determinações autovalorizáveis de duas formas: no âmbito da reprodução da força de trabalho através dos gastos sociais e no âmbito da reprodução do capital através do financiamento, lato sensu, do capital privado. Essa liberação potencializa a acumulação privada e ao mesmo tempo abre um leque de possibilidades tecnológicas cuja concretização para o capital requer de novo o Fundo Público, uma vez que os lucros são insuficientes para transformar essas possibilidades tecnológicas em acumulação de capital (p. 16). Assim, o Fundo Público, que aparece como pressuposto da acumulação privada, é reposto pela própria lógica de expansão do sistema. Portanto, segundo Oliveira, o Fundo Público é uma relação constitutiva do capitalismo moderno, fazendo parte das relações de produção. As relações de produção são entendidas como um processo de reposição de pressupostos: enquanto processo autovalorizável o pressuposto do capital é a existência do mercado de força de trabalho. A força de trabalho enquanto mercadoria disponível para a compra é um pressuposto continuamente reposto pelas relações de produção, pois nestas o salário é determinado como simples custo de reprodução da força de trabalho. Ao progressivamente desmescantilizar a força de trabalho, o Fundo Público atua no sentido de dissolver o antigo pressuposto da valorização, o capital variável. Assim, as próprias relações de produção vão sendo transformadas: o Fundo Público emerge como pressuposto da valorização e, por conseguinte, como novo elemento das relações de produção. Abre-se, assim, a possibilidade de uma nova forma de organização social na qual o controle do Fundo Público se transforme numa sociedade de gestão da riqueza pública. Essa forma de organização social é, segundo Oliveira, a porta para o socialismo. 4. O fundo público e as determinações autovalorizávais do capital Como dissemos acima, o Fundo Público libera o capital de suas determinações autovalorizáveis de duas formas: através dos gastos sociais relacionados à nnnnnnnnn 144 NOVOS ESTUDOS N.° 42 FRANCISCO PAULO CIPOLLA reprodução da força de trabalho (salário indireto) e através dos gastos relacionados à reprodução do capital. Essas duas formas são ilustradas e discutidas a seguir. Fundo Público e reprodução da força de trabalho No Quadro 2a coluna V- representa os gastos públicos com a reprodução da força de trabalho. A coluna V- afeta todos os capitais mais ou menos igualmente. Dados apresentados por Oliveira mostram que o salário indireto representa cerca de 1/3 do salário total. Daí nossos valores na coluna V- terem sido calculados como 1/3 da soma V + V-. A melhor maneira de mostrarmos o efeito operado pelo Fundo Público sobre cada capital é assumirmos que parte da reprodução da força de trabalho diretamente paga pelos capitais particulares se mantenha a mesma. A essa soma expressa na coluna V acrescentamos os gastos públicos com a reprodução da força de trabalho, gastos estes representados na coluna V-. Quadro 2 Efeito do Fundo Público sobre a Taxa de Mais-Valia 1. 2. 3. 4. 5. V 20 30 40 15 5 V10 15 20 7,5 2,5 S 22,0 33,0 44,0 16,5 5,5 e 110% 110% 110% 110% 110% A coluna S deve sofrer uma alteração: para representarmos um aumento da taxa de mais-valia temos que aumentar os valores da coluna S. Suponhamos então que o efeito do anticapital variável V- seja o de aumentar a taxa de mais-valia para 110%. Isto quer dizer que a força de trabalho posta em uso por um capital de 20, como no caso do capital 1, gera um valor de 22. Mas do que resulta esse aumento? Aqui supomos que o aumento do grau de instrução, saúde, lazer etc. tenham um efeito similar ao aumento da intensidade do trabalho: só assim podemos representar em nosso quadro um aumento da massa total do valor novo criado, isto é, um aumento do dispêndio de trabalho. Basta para isso pensar que maior instrução e saúde façam diminuir o desperdício de tempo de trabalho, tornando menos poroso, e portanto mais intenso, o desprendimento de trabalho durante a mesma jornada de trabalho. A alternativa a esse enfoque, ou seja, o "truísmo" do aumento da produtividade citado por Oliveira para caracterizar a visão da esquerda (p. 15), é na verdade inviável: o aumento de produtividade não aumenta o valor criado, a não ser que tenha o efeito colateral de aumentar o desprendimento de trabalho por unidade de tempo. O efeito de um aumento da produtividade sobre a taxa de mais-valia seria através de uma diminuição do capital variável V, mantendo-se constante o valor novo criado. Neste caso teríamos que representar nosso Quadro 2 com um V menor. Entretanto, na realidade, o aumento de produtividade permitiu um aumento de V ao invés de uma diminuição1. Para os capitais individuais, de acordo com o Quadro 2, a taxa de mais-valia aumenta para 110%. Mas V- não é capital variável e, por conseguinte, não pode nnnnnnn JULHO DE 1995 145 (1) Esta parte da discussão beneficia-se do trabalho de Giussani (1984). ANTIVALOR E SOCIALISMO multiplicar o valor. No entanto, é somado ao capital privado total para efeito do cálculo da taxa de excedente global. Por isso cai a taxa de mais-valia global. Assim, enquanto aumenta a taxa de mais-valia para os capitais privados, para a sociedade no seu conjunto ela cai de 100% para: É isso que Oliveira denomina a "retração da base social da exploração" (p. 18). À medida que V- cresce relativamente a V, a taxa de lucro global vai caindo como decorrência da diminuição de e. Isso é uma modificação fundamental em relação a Marx, para quem a tendência de queda da taxa de lucro se dá não obstante o aumento da taxa de exploração, e. Mas de onde vieram os 55 de anticapital variável? Se tivessem saído da tributação dos lucros do Quadro 1 a taxa de lucro — depois dos impostos — teria caído para 11% (55/500). A taxa de lucro dos capitais individuais teria caído ao invés de aumentar2. A outra alternativa, a emissão de dívida pública, ao invés da tributação, não resolve o problema. Em última instância a capacidade de servir a dívida depende da capacidade de aumentar a tributação à medida que cresce o estoque da dívida. Os nossos 55 (V-) ficam, assim, suspensos no ar: não há teoria coerente com os pressupostos do Quadro 2 que os possam trazer de volta ao modelo. Do ponto de vista das relações de produção V- opera no sentido de tornar o trabalho necessário transparente. V- vai desvestindo a forma salário de sua aparência de pagamento pelo trabalho. À medida que o anticapital variável (V-) torna transparente os componentes da remuneração da força de trabalho, ele vai fazendo brotar de dentro da forma salário o trabalho necessário enquanto categoria geral, separando-a de sua forma mercantil-capitalista. Isto abre espaço para a determinação política da remuneração da força de trabalho e, portanto, para formas de controle social do fundo público (p. 19) nas quais os valores da reprodução da força de trabalho passam a ser valores antimercado, como a cultura, a saúde, a educação etc. (p. 20). Não somente torna-se transparente sua composição, como a determinação do valor da força de trabalho começa a se inverter. Não é mais o valor das mercadorias que determina o valor da força de trabalho. O preço dos bens e serviços públicos passa a definir-se com referência ao orçamento doméstico, o que supõe que o salário direto serve como parâmetro para a determinação dos preços da parte indireta do salário, isto é, para a determinação de preços subsidiados. Aqui também estaria se processando um devassamento do mercado na medida em que a reprodução da força de trabalho estaria determinando o preço de uma gama de mercadorias. É esse processo conjunto de transparência da "cesta" e determinação do preço pela capacidade de compra que Oliveira entende por desmercantilização da força de trabalho (p. 16). Fundo Público e reprodução do capital Imaginemos que o fundo público obtido com a emissão de dívida pública vendida aos próprios capitalistas financie a pesquisa aplicada a ser apropriada pelo capital número 5. Poderíamos representar essa situação como no Quadro 3 abaixo, onde os lucros de 33 do capital número 5 resultam da aplicação de uma taxa de lucro de 22% sobre um capital de 150 (C+V+C-). 146 NOVOS ESTUDOS N.° 42 (2) O retorno do capital privado não é medido pela taxa de mais-valia mas sim pela taxa de lucro. Portanto, o aumento da taxa de mais-valia individual não pode servir para o argumento da crescente tesoura entre liquidez privada e déficit público (p. 16). Além do mais a liquidez privada passa pelo crivo da tributação. Portanto, a evolução dos impostos das empresas como proporção do PIB é um dado importante para avaliar quanto do Fundo Público é financiado às custas da liquidez das firmas. Nos Estados Unidos, durante o pós-guerra, verificou-se uma queda acentuada da contribuição das empresas para o pool da receita tributária. Ademais, essa queda parece ter sido o resultado de uma queda da rentabilidade do setor privado, o corporate sector, em seu conjunto (Cipolla, 1992). FRANCISCO PAULO CIPOLLA Quadro 3 Efeito do Fundo Público sobre a Reprodução do Capital 1. 2. 3. 4. 5. C 80 70 60 85 95 V 20 30 40 15 5 S 20 30 40 15 5 C50- L 22 22 22 22 33 r 22% 22% 22% 22% 33% Neste caso o Fundo Público potencializa a acumulação do capital número 5 permitindo-lhe uma taxa de lucro maior do que a dos outros capitais. Esse fato sugere a seguinte questão: a taxa de lucro de 33% do capital número 5 tem que se obter às custas da mais-valia de outros capitais se a massa de mais-valia não cresceu. Seria uma espécie de lucro extraordinário. Mas o lucro extraordinário é tipicamente uma forma de crescimento às custas dos concorrentes. Não se estaria reeditando, "sem querer", a versão estagnacionista pela qual a maior absorção de excedente por parte dos oligopólios se daria, neste caso não pelo fato de aumentar a produtividade sem diminuir os preços — como em Baran e Sweezy (1968), por exemplo — mas via Estado, ao abocanharem uma fração extra do excedente? O estagnacionismo neste caso é apenas um corolário: ao absorverem excedente a uma taxa maior do que a taxa de crescimento do mercado, estariam na verdade comprometendo a própria possibilidade de investir o excedente, gerando, portanto, deficiência de demanda efetiva. No entanto, o antivalor como teoria requer que se vede a brecha do estagnacionismo, na qual os gastos públicos perfazem uma lógica com implicações teóricas diferentes. De qualquer modo, o Quadro 3 mostra que a valorização de cada capital tem como referência não só o próprio capital mas também o Fundo Público incorporado em sua reprodução. O valor não pode mais reportar-se somente a si mesmo (como em D-M-D') mas agora tem no Fundo Público um novo pressuposto de sua valorização. O Fundo Público não se põe para o capital privado de acordo com a lógica do valor e da concorrência. A disposição do fundo público para o capital privado responde à "lógica" dos lobbies, prioridades nacionais, pesquisa de ponta, programas especiais de produção, incentivos fiscais etc. É o que Oliveira denomina de relação ad hoc entre o Fundo Público e cada capital particular (p. 15). O Fundo Público, portanto, substitui progressivamente a concorrência capitalista pela concorrência pela riqueza pública. Como esta última implica uma sociabilidade direta, o Fundo Público age no sentido de dissolver o mercado como locus da sociabilidade e abre a possibilidade do manejo da riqueza pública como forma de socialização do excedente. O capital total cinde-se em pelo menos duas frações: a taxa média de lucro que rege a concorrência entre os capitais fora do círculo de apropriação do Fundo Público, e uma variedade de taxas de lucro entre os capitais privados que logram potencializar-se com a riqueza pública. Entre estes últimos pode haver uma taxa de lucro média? A resposta me parece ser negativa não obstante a afirmação em contrário por parte de Oliveira (p. 14). Essa ruptura do capital enquanto totalidade tem o efeito de substituir a socialização dos capitais via distribuição da mais-valia, pela particularização dos capitais nas suas relações com a riqueza pública. Aqui novamente se instaura o nnnnnn JULHO DE 1995 147 ANTIVALOR E SOCIALISMO espaço para novas formas de gestão do Fundo Público que possam estabelecer prioridades que possam ir além da mera potencialização da acumulação privada. 5. Conclusões e questionamentos A liberação do capital de suas amarras autovalorizáveis levou a um desenvolvimento sem igual das forças produtivas. Esse agigantamento das forças produtivas tornou o lucro capitalista insuficiente para concretizar para o capital as novas possibilidades de progresso técnico. A apropriação pelo capital privado dessas novas possibilidades tecnológicas requer, por sua vez, a apropriação de parcelas crescentes da riqueza pública. Daí a reiteração do antivalor como pressuposto da reprodução ampliada do valor-capital. Daí a conclusão clássica de Oliveira que vê a superação do sistema a partir do desdobramento das contradições internas: o pressuposto da reprodução do capital contém em si mesmo os elementos mais fundamentais de sua negação. Como se pode perceber, o argumento repousa sobre a hipótese de que o Fundo Público tenha uma dinâmica de alargamento. A teoria visa capturar o processo de transformação do sistema capitalista em outro no qual "o manejo do fundo público é o nec plus ultra". Seria, portanto, necessário mostrar que existe uma tendência ao alargamento contínuo do Fundo Público. Isso é feito através da necessidade do Fundo Público para concretizar para o capital as possibilidades de desenvolvimento tecnológico que ele mesmo desatou. O argumento relativo a essa espécie de "gênio" de Aladim do Fundo Público tem dois lados. O primeiro é o fato de que, ao interferir na reprodução da força de trabalho, o Fundo Público libera o progresso técnico de sua relação com o custo da força de trabalho, em outras palavras, o capital privado já não tem o custo da força de trabalho como referência para as mudanças tecnológicas. Mas se os gastos públicos com a reprodução da força de trabalho têm o efeito de diminuir o capital variável relativamente aos custos de reprodução da força de trabalho, então por que deveria o capital privado acelerar o progresso técnico? Ademais, a análise do "capital em geral", tanto nos Grundrisse quanto n'O capital, sugere uma tendência à mecanização independentemente da taxa de salário. Se isso é verdade, então essa parte do argumento de Oliveira fica prejudicada. Pelo lado do capital o argumento não parece mais robusto. O processo que potencializa a acumulação privada destapa possibilidades de progresso técnico impossíveis de serem materializadas pelo lucro privado. O Fundo Público tem que reaparecer para tornar possível a transformação de possibilidades tecnológicas em produto e processos operacionalizáveis3. Porém, Oliveira aponta para o fato de que o desenvolvimento do Fundo Público, à medida que aumenta a taxa de mais-valia dos capitais individuais, diminui a taxa de excedente global. O Fundo Público, porém, só pode sobreviver sobre a base do excedente global. A "retração da base social da exploração" não estaria levando à uma exaustão do Fundo Público? Se assim fosse estaríamos de frente a um processo incompleto, uma espécie de dialética interrupta: o capitalismo gera condições para um outro tipo de sociabilidade mas aborta essa possibilidade na medida em que a queda do excedente global mina a chance do desenvolvimento do Fundo Público em um outro tipo de gestão social. Parafraseando Drummond, é o capital no meio do caminho: a necessidade do socialismo sempre acenada no horizonte em face da contínua erosão de suas possibilidades de concretização. 148 NOVOS ESTUDOS N.° 42 REFERÊNCIAS Giussani, Paolo. Complex and simple labor in the marxian labor theory of value. New School for Social Research, 1984, mimeo. Oliveira, Francisco de. "O surgimento do antivalor". Novos Estudos, nº 22, outubro 1988, pp. 8-28. Marx, Karl. Le capital, livro I: capítulos XIV, XVII e XXII; livro III: capítulo IX. Paris: Editions Sociales, 1976. ——. Fondements de la Critique de L'Économie Politique (Grundrisse), vol. 3: Chapitre du Capital (suite). Paris: Editions Anthropos, 1968. Baran, Paul A. e Paul M. Sweezy. Monopoly capital. Nova York: Modern Reader Paperbacks, 1968. Cipolla, Francisco Paulo. "Taxa de lucro e déficit público nos Estados Unidos". Revista de Economia Política, vol. 12 (2), pp. 143-9. (3) Seria esse o único processo de reprodução ampliada do Fundo Público? O estudo das relações sociais que forçam a permanência e alargamento do Fundo Público constitui uma área de muito interesse para pensar-se o antivalor como teoria de transição. Recebido para publicação em abril de 1995. Francisco Paulo Cipolla é professor da Universidade Federal do Paraná. Novos Estudos CEBRAP N.° 42, julho 1995 pp. 142-148