A A<;XO DE ENUNCIAR EM "A CAUSA SECRETA" DE MACHADO DE ASSIS MARIA DE LOURDES ORTIZ GANDINI BALDAN (UNESP) ABSTRACT: This paper deals with the theme of literary enunciation, as it is discussed in Roman lakobson's poetics. The text "A causa secreta" of Machado de Assis is an interesting example for discussing about these questions. KEY WORDS: Enunciation, literature, narrative, narrator/narratee, metonymy. "Era uma vez um rei e uma rainha que viviam em um castelo distante ..." Assim com~am os contos de fada na maioria das 3;11tologias,recolhidas na maior parte da literatura oral do mundo. A expressao "era uma vez" transporta 0 leitor para urn mundo imaginlkio especffico, em cujo espa~o relacionam-se fadas e bruxas, em um tempo organizado de forma linear e simples. Esse protocolo de inicia~ao recorta o objeto da leitura, estabelecendo os valores que circuiarao entre os sujeitos e excluindo, de antemao, 0 que 0 leitor nao encontrarli nesse tipo de narrativa: descri~oes minueiosas do carliter da personagem ou das paixoes que podem envov~-la, alem da sofistica~ao de justaposi~ao de cenas e quebra de expectativas e outros procedimentos. Mas, antes de mais nada, nao encontrarli 0 leitor, em contos de fada, um narrador com caracterfsticas pr6prias que se insinue ao leitor e conte a hist6ria explicitamente a partir do ponto de vista dele. Se 0 narrador das narrativas de tradi~ao oral 6 coletivo e inapreenslvel, a obra de arte literlkia localiza muito bem 0 seu, que (0 qual) tern um sotaque pr6prio, trabalhado, e conta, na maioria das vezes, mais que uma hist6ria: a pr6pria aventura da lingagem. E assim 0 narrador de "A causa secreta" de Machado de Assis. E, ao inves de um protocolo de inicia~llo esteriotipado, e recortada no conto uma Cena com a qual 0 narrador escolhe come~ar nos contar a sua hist6ria. A cena e deslocada de um ponto da narrativa, como se de uma sequencia ffimica, retirlissemos um fotograma e 0 coloclissemos a frente de todos. Assim, deslocado, ele dli 0 tom, condensando metonimicamente 0 que se verli. Essa e a primeira li~ao que esse conto nos dli: a prosa literlkia e construfda por um processo de metonimiza~ao que contagia todos os outros procedimentos, colocando-os a seu servi~o e man tendo com eles uma tensao definidora e defmitiva. 0 narrador age com a lucidez de um professor que, ao propor uma equa~ao aos seus alunos, adianta alguns detalhes, acena para alguns procedimentos, con vida para 0 jogo. ~~ "Garcia, em pe, mirava e estalava as unhas. Fortunato, na cadeira de balan\(o olhava para 0 teto; Maria Luisa, perto da janela, conclufa um trabalho de agulha. Havia jA cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, - de Catumbi, onde morava 0 casal Fortunato, e de uma casa de sa-tIde,que adiante se explicarA.Como os tres personagens aqui presentes estao agora mortos e enterrados, tempo e de contar a hist6ria sem rebu\(o." (1985, p. 511) A apresenta\(ao das personagens, flagradas em uma cena de convfvio domestico, e s6 aparentemente simples. A intromissao do narrador redimensiona a cena. Mais que apresentA-los, 0 narrador opera a debreagem enunciativa estabelecendo 0 ~ (Garcia, Fortunato e Maria Luisa), o..li.(casa do casal Fortunato em Catumbi) e 0 .entaQ (0 tempo passado em que aconteceu a hist6ria) pr6prios do enunciado. Mas, com a sua intromissao, ele nao s6 opera como demonstra a debreagem instalando 0 presente de referencia (aQui- espa\(oda escritura) e 0 personagem de referencia Cw-narrador). Com a instala\(ao do w, e~ pr6prios da enuncia\(ao, 0 narrador opera uma ilusao dupla: cria uma personagem especular (urn ~ que e w) tratando-se a partir de enta~ comO"se fosse 0 sujeito da enuncia\(ao, com todos os direitos e saberes que esse papel Theatribui, e insere-se explicitamente na hist6ria. 0 narrador nao s6 cria a tic\(ao como ensina como faze-Io. A continua\(ao da mesma cena ilustra 0 que acabamos de verificar e adianta outros procedimen tos: m "Tinham falado tambem de outra coisa, alem daquelas tres, cousa tao feia e grave, que nao lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saMe. Toda a conversa\(ao a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luisa parecem ainda tremulos, ao passo que M no rosto de Garcia uma expressao de severidade, que the nao e habitual. Em verdade, 0 que se passou foi de tal natureza, que para faze-lo entender, e preciso remontar a origem da situa\(ao." (1985, p. 511) A cena que havia sido desmontada de sua posi\(ao original termina como 0 narrador pedindo a sua remontagem. Ficam estabelecidos.dois presentes (dois ~). Um que e uma figurativiza\(ao do ~ narrativo ("Agora mesmo os dedos de Maria Luisa parecem ainda tremulos ...") e 0 outro e 0 presente de referencia ("Como os tres personagens aqui presentes estao ~ mortos...") 0 primeiro e heterodiegetico, 0 segundo extradiegetico na terminologia de Genette. Alem da sofistica\(ao no entrela\(amento de nfveis, essa primeira cena e exemplar na manifesta\(ao metonfmica da descri\(ao que se seguira. as personagens saD descritos atraves de uma parte ("os dedos de Maria Luisa parecem ainda tremulos") ou de sua atividade. As rela\(oes temporais saD substituidas pelas espaciais ou com elas se confundem, como na descrir;ao do quadro em que os personagens san apresentados. A descrir;ao que aqui se esbor;a e vai prosseguir pelo conto todo nao ~ metonimia no sentido que a ret6rica cIassica da a figura po~tica, vendo-a como resultado da substituir;ao, num dado contexto, de uma palavra por outra equivalente. A metonimica de que estamos falando e tal como Jakobson a formulou, ou seja, como procedimento engendrador de significar;ao, como forr;a que organiza a prosa literatia, fazendo-a tender a sucessividade. Esse procedimento de metonimizar;ao ~ a manifestar;ao do paralelismo que faz projetar sobre a sequencia 0 principio da equivalencia, ou seja, man~m simultaneidade em tensao com contiguilidade. E como na prosa literatia, a tendencia mais forte ~ a da sucessividade, 0 paralelismo que se instala e cromiltico, mais difuso. 0 elemento marc ado no paralelismo ~ determinado pelo narrador. E ele que acentua determinadas cenas, determinadas relar;oes entre personagens, determinada organizar;ao causal. No nosso conto, podemos exemplificar com a scrie de encontros entre Garcia e Fortunato que van formando uma rede de cenas paralelas que, ao mesmo tempo que elucidam 0 carilter de Fortunato, constroem a hist6ria que 0 narrador nos conta. o primeiro encontro se dil na porta da Santa Casa (Fortunato safa de lil), 0 segundo se di em. um teatro "cuja pe~a eta urn dfll1llalMo, cosido a facadas, ouri~ado de imprecar;oes e remorsos". 0 terceiro encontro acontece como 0 ferimento de Gouveia, de quem FortWlato cuida com rara dedicar;ao e, uma vez curado, trata com absoluto desd~m. Depois desses encontros, Garcia e FortWlato ficam amigos e, por ideia do Ultimo, montam jWltOS uma casa de saMe (aquela a qual 0 narrador se refere na primeira cena) para a qual Fortunato dedica todo 0 seu tempo. Mas essa serie de encontros nao e descrita pelo narrador com isenr;ao, ainda que falsa. Atraves de construr;oes metonfmicas, ele nao economiza ironias e sugestoes de que nao seria propriamente bondade 0 sentimento que movia Fortunato (p. 513). A descri\;ao que 0 narrador faz de Maria Luisa, sua fragilidade nervosa, acentua 0 carilter misterioso de seu marido. A relar;ao Garcia-Maria Luisa, cheia de amor e cuidado, tamMm serve ao intuito do narrador em preparar a personalidade de FortWlato que se esclarece, em clfmax, na cena em que ele sacrifica um rato. (1985, p. 516). 0 comentatio de Garcia "Castiga sem raiva ...pela necessidade de achar uma sensa~ao de prazer, que s6 a dor aIheia Ihe pode dar: e 0 segredo deste homem" parece explicar 0 titulo do conto e a hist6ria toda. Mas, neste momento, volta a primeira cena, reencaixada (0 narrador nos faz lembrar dela atraves dos mesmos dedos tremulos de Maria Luisa), e segue com a morte de M. Luisa, vitima da tisica. 0 sofrimento que antecede a sua morte e vivido pelo marido dedicadamente. 0 narrador parece nao perdoar: "Nos Ultimos dias, em presenr;a dos tormentos supremos da morra, a indole do marido subjugou qualquer outra afei~ao. Nao a deixou mais, fitou 0 olho ba~o e frio naquela decomposi~ao lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as afli~oes da bela criatura agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte. Egoismo asperrimo, faminto de sensa~oes, nao the perdoou um s6 minuto a agonia, nem lhos pagou com uma s6 lagrima, publica ou intima. 86 quando ela expirou, e que ele ficou aturdido." (1985, p. 518) Essas cenas formam uma (rede), uma estrutura que sustenta 0 conto, organizando-se como um processo que, num crescendo, vai acrescentando informayoes e detalhes ate a completa compreensao da hist6ria. Mas 0 narrador reserva aos leitores uma liyao [mal: descrevendo a cena em que Garcia, desesperado pela morte de Maria Luisa, chora sobre 0 cadaver, 0 narrador mostra Fortunato, mais uma vez, saboreandoa explosao de dor moral ao saber do amor de Garcia. E termina 0 conto dizendo que a explosao "foi longa, muito longa, deliciosamente longa." A frase final condensa metonimicamente 0 processo que movimenta 0 conto: do nilo saber ao saber por pequenos acrescimos de informayao. Ela marca a produyao do sentido feita pela reitera~ao, pela equivalencia, pelo paralelismo. Denuncia, enfim, urn narrador que usou de seu direito de narrar, nos castigando sem raiva, prolongando determinadas cenas, acelerando outras, deslocando e condensando e fazendo iconicamente, o que seu personagem fez: saborear a nossa perplexidade diante da miseria humana. Com 0 mesmo gesto ele nos transformou em Fortunatos, interlocutores ativos, nos proporcionando, com a leitura, urn ''vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audiyao de uma bela sonata ou a vista de uma estatua divina, alguma coisa parecida com apura sensayao estetica". (1985, p. 517)