A sociedade feudal conheceu, entre os séculos XI e XIII, um período de grandes mudanças, assinalado pelo renascimento comercial e urbano e pelo advento da arte gótica e das universidades. O acontecimento que deu início a essas transformações foi o crescimento da população, proporcionado pelo fim das invasões e das epidemias que assolaram a Europa durante a Alta Idade Média. Juntamente com outros processos, esse fato contribuiu decisivamente para o aumento da produção agrícola e a diversificação das atividades econômicas. No final do século XI, a ordem feudal sofreu outro impacto de grandes proporções: as Cruzadas, expedições de caráter religioso e militar destinadas a arrancar a Terra Santa das mãos dos muçulmanos. Com elas, o mundo feudal europeu saiu do imobilismo. Sob o estímulo das Cruzadas, cidades começaram a surgir ou a renascer. Lentamente, o comércio também voltou a florescer. No começo, os senhores feudais se beneficiaram com esse processo de mudanças. As cidades em crescimento ficavam geralmente em suas terras e lhes pagavam impostos. Com as Cruzadas, eles passaram a comprar produtos do Oriente. Para aumentar seu poder de compra, ampliaram a cobrança de tributos entre os camponeses. Assim, inicialmente, as mudanças reforçaram a servidão feudal. A longo prazo, porém, elas colocariam em crise a ordem feudal, provocando o surgimento de um novo grupo social, a burguesia, minando as relações entre o rei e a nobreza e levando a uma nova forma de organização da sociedade. 1. UMA POPULAÇÃO EM EXPANSÃO A população européia era de aproximadamente 18 milhões de pessoas no ano 800. Em trezentos anos, até o ano 1100, esse número aumentou em cerca de 8 milhões de habitantes, saltando a população total para quase 26 milhões. Em 1200, foi atingida a marca de 34 milhões de habitantes. Isso quer dizer que em apenas quatrocentos anos a população da Europa praticamente dobrou. A diminuição das invasões a partir do século X gerou um clima de estabilidade social sem precedentes no mundo feudal. O isolamento entre os feudos permitiu que o número de mortes por epidemia diminuísse consideravelmente. Sem disputas contra invasores e momentaneamente livres das epidemias, o número de nascimentos começou a superar o de mortes, ocasionando o aumento populacional. O crescimento da população trouxe consigo a ampliação do mercado de consumo e da oferta de mão-de-obra. Dessa forma, cresceu a demanda por alimentos. Esse problema foi resolvido por meio da ampliação das áreas de cultivo mediante a ocupação de florestas e pântanos. Ao mesmo tempo, algumas técnicas de cultivo foram aperfeiçoadas, elevando a produtividade do trabalhador rural. O resultado da combinação desses dois fatores foi o aumento da produção agrícola. Entretanto, isso não foi suficiente para alimentar a população crescente dos feudos. Os senhores feudais começaram então a expulsar o excedente populacional. Banidos dos feudos geralmente sob a alegação de quebrarem alguma regra, muitos servos viram-se obrigados a mendigar ou a saquear nas estradas. Enquanto isso ocorria com a população mais pobre, os filhos de senhores feudais viram-se na contingência de abandonar a propriedade paterna. Para garantir a supremacia dos feudos e não dividir suas posses, os senhores feudais fizeram do filho primogênito o único herdeiro. Assim, os outros filhos eram praticamente expulsos das terras, tendo de encontrar novos meios para sobreviver. Essas circunstâncias acentuavam o clima de disputa entre os nobres cavaleiros. Durante esse período, efetuavam-se também combates e torneios que transformavam os campos em verdadeiras arenas. Foi necessária a intervenção da Igreja, instituindo dias para os torneios, como forma de regulamentá-los e evitar que a produção agrícola fosse prejudicada. Esse ambiente, dominado pelo espírito guerreiro, favoreceu o movimento das Cruzadas, promovido pela Igreja. 2. AS CRUZADAS No século XI, grande parte dos domínios árabes, incluindo a Terra Santa — que englobava Jerusalém e outros lugares onde Jesus viveu e pregou sua doutrina —, caiu em poder dos turcos seldjúcidas, um povo vindo do Ori- ente, que se convertera ao Islã. Diferentemente dos árabes, que nunca haviam se oposto às peregrinações dos cristãos à Terra Santa, os turcos as proibiram. Diante disso, o papa Urbano II, falando aos nobres reunidos em Clermont, na França, em 1095, fez-lhes um apelo pela libertação da Terra Santa. Por trás da exortação estava o interesse da Igreja em aumentar seu prestígio e expandir seu domínio sobre os territórios controlados pelos muçulmanos. A adesão dos nobres ao apelo do papa foi quase imediata. Para eles, as expedições à Terra Santa seriam uma forma de conquistar terras, prestígio e riquezas no Oriente. Afinal, muitos estavam empobrecidos por causa do direito de primogenitura. Assim, no ano seguinte, tiveram início as Cruzadas. Costurando cruzes vermelhas sobre as roupas, nobres, camponeses, pobres, mendigos e até mesmo crianças partiram da Europa em grandes expedições militares com o objetivo de conquistar a Terra Santa, tomando-a dos muçulmanos. A primeira Cruzada (1096-1099) conseguiu conquistar Jerusalém após três anos de lutas. A vitória permitiu a criação de alguns Estados cristãos na Palestina, nos quais as terras foram distribuídas como na Europa feudal. Pouco tempo depois, entretanto, a Terra Santa foi novamente tomada pelos muçulmanos. Fizeram-se outras sete Cruzadas, a última das quais em 1270. Todas fracassaram. Apesar disso, como conseqüência delas, o Mediterrâneo foi reaberto à navegação européia e os contatos culturais e comerciais entre o Ocidente e o Oriente foram restabelecidos. As Cruzadas contribuíram ainda para aumentar a circulação de pessoas e de riquezas na Europa. Por meio delas, o comércio se fortaleceu e acabou estimulando o povoamento das cidades. 3. O RENASCIMENTO COMERCIAL E URBANO A partir das Cruzadas, a mudança mais visível na Europa ocidental ficou conhecida pelo nome de renascimento comercial e urbano. Ele significou o desenvolvimento do comércio e das cidades, que tinham tido pouca importância durante os séculos anteriores. O comércio, ainda incipiente, era praticado nas feiras que se realizavam nas vilas ou perto dos castelos e outros lugares fortificados. Inicialmente periódicas, as feiras tornaram-se permanentes, propiciando o aparecimento de núcleos urbanos, os chamados burgos. A partir dos burgos, desenvolveram-se novas cidades, ao mesmo tempo que ganharam vida as mais antigas, que não haviam desaparecido por completo. As cidades atraíam cada vez mais artesãos, que nelas se fixavam para viver de seu oficio. Atraíam também servos camponeses que as buscavam para tentar vender os seus excedentes agrícolas ou para viver como trabalhadores livres. Atraíam, ainda, comerciantes de sal, de ferro e de inúmeras outras mercadorias, provenientes de regiões distantes. As moedas voltam a circular As atividades comerciais restabeleceram o uso regular da moeda. Logo, diferentes moedas circulavam nas feiras e nos núcleos urbanos, provenientes de vários feudos e regiões da Europa (os senhores feudais podiam cunhar suas próprias moedas). Essa variedade criou a necessidade do câmbio, isto é, da troca de moedas. Os que se dedicavam a ele eram chamados de cambistas. Mais tarde, os cambistas passaram a realizar empréstimos e a fazer outras operações financeiras. Assim surgiram os bancos, palavra de origem italiana que designava o assento ocupado pelo cambista. Durante muito tempo, os banqueiros mais importantes eram os da península Itálica, pois era ali que, inicialmente, o comércio era mais intenso. Isso porque algumas cidades da península Itálica, como Gênova e Veneza, já mantinham relações comerciais com o Império Bizantino e os árabes séculos antes das Cruzadas. Mercadores e camponeses Embora os contatos dos mercadores com os camponeses tenham sido menores do que com os demais grupos sociais, foram mais importantes do que normalmente se crê. Na Idade Média, cidade e campo não viviam isolados entre si. Nas regiões fortemente urbanizadas, onde desde cedo os mercadores se tornaram poderosos, sua ação sobre o campo se fez sentir. No princípio, os comerciantes colaboraram na liberação de camponeses, pois isso era um meio de luta contra os senhores feudais —ocasião para a compra da terra aos nobres privados da mão-de-obra, ou aos camponeses proprietários. Por meio da liberação de camponeses e de sua migração para as cidades, também se conseguia mão-de-obra barata para a manufatura e o comércio. Em certas regiões, os mercadores revolucionaram também as condições de exploração da terra e de vida dos camponeses. Investiram dinheiro para melhorar as técnicas de agricultura (como em Flandres e no vale do rio Pó), construindo grandes obras hidráulicas e moinhos. Substituíram também as culturas de subsistência por ou- tros cultivos voltados para a manufatura têxtil (como na Inglaterra e na península Itálica) e ampliaram o plantio de árvores frutíferas e de plantas utilizadas nas tinturas de tecidos. A burguesia entra em cena As cidades que se formaram ao pé das fortificações estavam estreitamente vinculadas aos senhores feudais. Esses nobres, proprietários das terras onde ficavam os burgos, cobravam pesadas taxas daqueles que os habitavam. No início, toda a população do burgo chamava-se burguesia; posteriormente esse termo passou a designar apenas comerciantes, banqueiros e alguns artesãos enriquecidos. Com o aumento do comércio e o fortalecimento da burguesia, alguns desses burgos obtiveram pacificamente autorização para negociar sem pagar aos senhores nenhuma tributação. Isso era conseguido por meio de um documento conhecido como Carta de Franquia, que os moradores do burgo compravam ao senhor feudal ou a um eclesiástico quando as terras onde ficava a cidade pertenciam à Igreja. Em muitos casos, porém, os burgos tiveram de lutar, unindo-se aos reis, a fim de conseguir dos senhores feudais a licença (franquia) para efetuar suas atividades nas cidades. Os artesãos se organizam Nas cidades, a produção artesanal e o comércio tornaram-se tão intensos que aqueles que se dedicavam a essas ocupações passaram a se organizar em associações com o intuito de regular suas atividades. As chamadas corporações de ofício dos artesãos controlavam a produção e impediam a concorrência desleal, fixavam preços, salários e padrões de qualidade. Dentre todas essas funções, destacava-se a de reservar o mercado da cidade aos seus membros, além, é claro, de torná-los mais fortes para negociar com os senhores feudais. Da mesma forma que as corporações dos artesãos, formaram-se associações de comerciantes ou guildas, como medida para regular o mercado no interior dos burgos. Garantir a proteção contra os comerciantes de regiões distantes era uma das principais funções das guildas. Essas associações de artesãos e comerciantes negociavam também os impostos com os senhores feudais. Quando a organização interna das cidades adquiria completa autonomia em relação aos feudos, elas passavam a cuidar da administração das cidades livres. Religião e negócios A moral católica medieval tinha como verdadeiro que "é difícil não pecar quando se exerce a profissão de comprar e vender". Por isso, a Igreja procurou coibir as ambições dos homens de negócios, sempre preocupados com o lucro, impondo o justo preço e condenando a usura. A noção do justo preço excluía qualquer idéia de lucro e devia levar em conta apenas o custo das matérias-primas e um pequeno ganho pelo trabalho prestado. Além da tentativa de exploração pelo preço, era considerado usura todo negócio que implicasse em pagamento de juros — por exemplo, o empréstimo. Esse ideal foi inicialmente adotado por artesãos e comerciantes, cujas atividades eram rigorosamente controladas pelas corporações. Na prática, porém, não era mais possível à Igreja aplicar suas imposições com rigor. Além disso, os homens de negócios sempre encontravam meios de contornar as interdições religiosas. 4. O COMÉRCIO DE LONGA DISTÂNCIA As Cruzadas deram grande impulso às atividades comerciais no Mediterrâneo. Cidades da península Itálica, como Veneza e Gênova, passaram praticamente a monopolizar o contato com o Oriente. Os produtos orientais trazidos pelos comerciantes da península Itálica eram revendidos para outras regiões da Europa. A península Itálica tornou-se, dessa forma, o principal centro comercial europeu. Outro importante pólo de atividades comerciais desenvolveu-se simultaneamente no norte da Europa, na região de Flandres (norte da atual Bélgica). A partir dele, o comércio se propagou para o mar Báltico, chegando até a Rússia. Mais tarde, as cidades do Sacro Império Romano-Germânico formaram uma liga comercial chamada de Hansa Teutônica, que monopolizou o comércio nessa vasta região. Ligando Flandres (norte) à península Itálica (sul), desenvolveu-se uma rota terrestre que atravessava a região franca de Champanhe. Nesse percurso realizavam-se, durante todo o ano, grandes feiras, que serviam de ponto de encontro aos comerciantes europeus. Desse modo, entre os séculos XIII e XIV formou-se na Europa uma verdadeira teia de rotas por onde começou a fluir um próspero e intenso comércio. 5. PRIMEIROS PASSOS DO CAPITALISMO MERCANTIL O renascimento comercial e urbano, ocorrido a partir do século XI, introduziu muitas novidades na organização da sociedade feudal. Surgiram diferentes grupos sociais, tais como a burguesia e os trabalhadores assalariados. Criaram-se novas formas de enriquecimento, por meio do crescimento das atividades bancárias e do comércio de mercadorias. Ganharam importância o comércio em grande escala e a produção para o mercado. Essas novidades indicavam o lento aparecimento de um novo sistema econômico: o pré-capitalismo. Uma das características do novo sistema era o fato de sua economia estar baseada na moeda e não na troca de produtos, como ocorria antes. Aos poucos, ele ganhou espaços cada vez maiores na ordem feudal e começou a entrar em choque com ela. A antiga nobreza, rica em terras, adaptava-se com dificuldade à nova economia. Enquanto isso, comerciantes e banqueiros enriqueciam e começavam a disputar poder com os senhores feudais. A partir do século XV, com o início das Grandes Navegações, o pré-capitalismo se transformaria lentamente em capitalismo mercantil. Com este, o capital investido no comércio passou a dominar a produção e o trabalho assalariado se expandiu. No lugar das corporações de ofício, surgiram as manufaturas. Pouco a pouco, a ordem feudal entrou em crise e o capitalismo mercantil se tornou dominante em toda a Europa ocidental. 6. A FOME, A PESTE E A GUERRA A dissolução do feudalismo foi apressada por uma sucessão de acontecimentos que geraram a chamada "crise do século XIV". A produção de alimentos sempre foi deficiente no sistema feudal, de modo que a fome era uma ameaça constante. Entre 1315 e 1317, a situação se agravou e provocou surtos de fome em vários lugares da Europa. A falta de estrutura das cidades para suportar o aumento populacional, associada ao problema da fome, acabou facilitando a propagação de uma série de epidemias. A pior de todas foi a chamada peste negra, que assolou a Europa entre 1348 e 1350 e matou cerca de um terço de toda a população. Inúmeras guerras também contribuíram para aumentar a mortandade e tornar a situação na Europa ainda mais difícil. A maior delas foi, sem dúvida, a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), travada entre as monarquias da Inglaterra e da França. Sob a ação dos três flagelos do século XIV — a fome, a peste e a guerra —, a população diminuía e a mão-deobra se tornava cada vez mais escassa. Isso levou os senhores feudais a aumentar a exploração sobre os camponeses. Em conseqüência, houve inúmeras revoltas, nas quais os camponeses rebelados queimavam propriedades e assassinavam senhores feudais. Em algumas cidades, se verificaram desordens e motins. A crise abalou também a estrutura de poder descentralizada típica do feudalismo, que não conseguia gerar respostas para os problemas que surgiam. Os governos centralizados começaram então a ganhar força, pois conseguiam arbitrar os conflitos inevitáveis em uma sociedade cada vez mais complexa. Foi nesse contexto que se deu o fortalecimento do poder dos reis e a conseqüente formação do Estado moderno. Desse modo, pode-se dizer que as transformações da Baixa Idade Média — desenvolvimento do comércio e das cidades, uso da moeda, aparecimento da burguesia, fortalecimento do poder central nas mãos do rei — condenaram o feudalismo à dissolução. A essas mudanças podemos acrescentar o Renascimento na península Itálica, no século XIV, e as Grandes Navegações, no século XV, todas apontando para o advento dos chamados tempos modernos, que veremos em seguida.