A LIBERDADE EM MESTRE ECKHART E NO ZEN BUDISMO Pablo Fernando Dantas Andrade1 O tema da liberdade é uma constante nos escritos de Mestre Eckhart e nos dos mestres do budismo Zen. Poderíamos dizer que a liberdade, enquanto experiência individual completamente aberta e livre de todos os impedimentos, é a questão fundamental tanto de um quanto do outro. Claro que, por serem de diferentes culturas, cada um abordará a questão à sua maneira e com linguagens distintas, mas o mais importante é a experiência mística, que não tem fronteiras e é multicultural. Então, o objetivo desse trabalho é promover, antes de tudo, o diálogo entre o pensamento místico cristão e o budista, percebendo entre ambos as convergências e divergências no que diz respeito às questões fundamentais da existência humana. Para tanto, esse texto foi composto a partir da leitura dos livros Sobre o desprendimento (2004) e os Sermões alemães (2006), de Mestre Eckhart, Zen y filosofia (2004) de Shizuteru Ueda e Mística: cristã e budista (1976) de Daisetz Teitaro Suzuki. Para quem não conhece os autores faremos uma breve apresentação: Mestre Eckhart (1260-1328) foi um filósofo medieval alemão, que se situou nas origens da chamada “mística renana”. Era da ordem dos dominicanos assim como Tomás de Aquino e Alberto Magno, mas não conseguiu ser canonizado como eles, pois foi condenado como herege por causa de seus escritos e sermões. Shizuteru Ueda (1926-) graduou-se em Filosofia pela Universidade de Kyoto e doutorou-se em filosofia pela Universidade de Marburg, onde escreveu tese sobre Mestre Eckhart. Ele pertence à chamada terceira geração de filósofos da Escola de Kyoto e é considerado o mais importante filósofo japonês vivo. Daisetz Teitaro Suzuki (1870-1966) foi o primeiro pensador japonês responsável pela divulgação do budismo, do zen e do shin para o ocidente, professor de filosofia budista na Universidade de Otani e autor de diversos livros e traduções. A concepção de liberdade que tentaremos compreender em Eckhart e no Zen está muito além da liberdade entendida no sentido político ou ético. Poderemos constatar isso com uma história zen, contada por D. T. Suzuki, e com uma passagem do 1 Aluno do curso de Filosofia – bacharelado da UFRN. Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET). Orientador: Prof. Dr. Oscar Federico Bauchwitz. E-mail: [email protected] ensaio “sobre o desprendimento” do filósofo alemão. A história zen é a seguinte: “Bodhidharma, o primeiro patriarca da seita zen, na china, foi interpelado pelo imperador Wu (primeiro da dinastia Liang, que reinou de 502 a 549), a respeito do mais santo e supremo principio do budismo. O sábio [Bodhidharma] respondeu: ‘um vasto vazio sem nada santo dentro dele’.” (SUZUKI, 1990, p. 72). Já Eckhart afirma, com frequência em seus sermões, que para o homem unir-se mais estreitamente a Deus ele precisa ser “totalmente desprendido e livre, como Deus está desprendido e livre em si mesmo” (Eckhart apud Ueda, 2004, p. 56 e 57). Nos dois exemplos se entrever uma visão de liberdade muito peculiar, que tanto Eckhart quanto o Zen vai expressar em suas linguagens, embora de formas diferentes. É uma liberdade que nos conecta ao que temos de mais essencial, a um reconhecimento de si, longe de qualquer tipo de convenção e sem nenhum tipo de acréscimo. Em Eckhart, percebe-se a tentativa de integração entre a liberdade radical e a verdade de Deus, já no Zen-budismo a liberdade está relacionada com o processo de auto-realização do homem na existência a caminho do verdadeiro si-mesmo. A liberdade ou o desprendimento é, para Mestre Eckhart, a virtude que nos proporciona o caminho mais estreito para o ser uno com Deus, pois nos tornamos pela graça aquilo que Deus é por natureza: o desprendimento perfeito não visa a sujeitar-se a nenhuma criatura nem a elevar-se sobre criatura nenhuma – não quer estar abaixo nem acima de ninguém, antes quer estar em si mesmo, não fazendo bem nem mal a ninguém, não querendo ser igual nem desigual em relação a nenhuma criatura, nem isto nem aquilo: quer apenas ser. O desprendimento não quer ser isto nem aquilo porque quem quer ser isto ou aquilo quer ser algo; ele, porém, não quer ser nada. Por isso dispensa todas as coisas (ECKHART, 2004, p. 7). Em dispensar todas as coisas e nesse “não querer ser nada” estar o mais extremo desprendimento, que também abarca o próprio Deus, pois ao estar sem-Deus e desprendido dele, Deus mesmo se faz presente como é em si mesmo, um nada. Não simplesmente nada, como quando se diz: Deus não existe. Mas sim um nada absoluto, como Deus é por natureza (Cf. UEDA, 2004, p. 57). Em outro sermão Eckhart afirma: “sempre que o espírito livre está em reto desprendimento, atrai Deus necessariamente para o seu ser; e se pudesse permanecer nesse estado sem forma nem acidente algum, abraçaria o próprio ser de Deus” (Eckhart apud Ueda, Ibid). Nessa passagem é perceptível o ser uno com Deus, na medida em que para se abraçar o ser de Deus é necessário está totalmente liberto e em absoluto desapego, não só dos meus próprios atributos (a subjetividade que se possui) como também da ideia de um deus pessoal. Isso porque Deus só é tudo à medida do nada que ele é, livre de todas as coisas e de si mesmo, livre da sua própria liberdade em relação a todas as coisas e a ele mesmo; de sorte que o homem não constitui “uma só forma” com ele a não ser desprendendose de “Deus”, tal como este é pensado pela criatura. É nesse sentido que o sermão 52 ousará dizer: “pedimos a Deus que sejamos livres de ‘Deus’” (ECKHART, 2004, p. XVIII-XIX). Em suma, o que podemos compreender a partir da obra de Mestre Eckhart e do que já foi abordado nesse texto é que a liberdade ou o desprendimento ou o absoluto desapego nos faz retornar ao lugar onde “eu e Deus” somos um. Nesse caso, a unidade com Deus é estabelecida a partir de um acontecimento que se dá através da essência de Deus, a “deidade” e o fundo da alma, o fundo anímico do homem. Para Eckhart, Deus e Deidade são tão diferentes como o céu e a terra, pois Deus pode ter um nome e fazer parte da história de um povo, mas já a Deidade é sem nome, puro nada e abismo insondável. Portanto, o homem em total desprendimento conhece e experimenta que só há Deus derradeiramente e por estar liberto tanto do efêmero como do “Deus” das injunções ou das retribuições, o homem que alcançou assim o estado primeiro e derradeiro, pelo qual ele constitui “uma só forma” com a “deidade”, é o único capaz de viver plenamente sua existência humana na diversidade das suas tarefas e dos seus interesses (Cf. op. cit., p. XVII). É interessante notar também a importância da liberdade na vida do próprio M. Eckhart, pois no século XIII quando era pregador dos dominicanos teve que se confrontar tanto com o formalismo rígido da ortodoxia quanto com a radicalidade simplista dos hereges da época, no qual transcendeu essas vias com suas próprias concepções. Além disso, foi um dos primeiros a fazer seus sermões em língua vernácula diferente do que ocorria na época, na qual o latim era dominante. E foi condenado como herege por causa de vinte e oito teses que, segundo o papa João XXII, iam contra a fé católica. A liberdade está presente no Zen-budismo através de diversas palavras como iluminação, nirvana, não-ego, vacuidade, nada absoluto, etc. E o que elas tem em comum é o objetivo de despertar à verdade do si-mesmo e realizar o eu verdadeiro. Então, mostraremos como a liberdade radical ou o nada absoluto se manifesta no zenbudismo através de uma antiga história zen: o boi e seu pastor.2 Nessa história apresenta-se explicitamente o processo de auto-realização do homem, em dez estações. Nas estações, o boi é entendido como símbolo temporário do si-mesmo que está sendo procurado, enquanto o pastor representa o homem que se esforça por atingir o verdadeiro si-mesmo através de um processo evolutivo que passa por vários estágios. Segundo Ueda “o trecho da 1ª até a 7ª estação mostra, em um progressivo desenvolvimento, os momentos consecutivos dos ensinamentos budistas, do exercício da meditação, da disciplina rigorosa e intensa, da unificação na bem-aventurança, etc.” (2008, p. 166). Mas na 7ª estação ainda não foi realizado o verdadeiro si-mesmo como é compreendido no zen-budismo, pois o pastor corre o perigo de tornar-se arrogante ou indiferente. É somente na oitava estação, na qual tanto o boi quanto o pastor são esquecidos, que se caracteriza o verdadeiro si-mesmo no zen-budismo. Nesse circulo vazio tudo foi deixado para trás, não há nem boi nem pastor, apenas o nada absoluto. No budismo, isso não significa dizer que nada exista, mas sim, que o nada absoluto deve libertar o homem do pensamento substancializante, egocentrado, que cria distinções e hierarquias. Segundo Ueda, “o verdadeiro si-mesmo, que na compreensão budista é um si-mesmo abnegado, diria sobre si mesmo: ‘Eu sou eu e ao mesmo tempo eu não sou eu’ (de acordo com a formulação do Prof. Nishitani), ou: ‘Eu sou eu porque eu não sou eu’ (Daisetzu Suzuki). O eu-homem deve morrer definitivamente em função do querer do verdadeiro si-mesmo, que é abnegado.” (2008, p. 169). Então, o processo evolutivo da 7ª estação para a 8ª conduz, de uma vez por todas, a um passo decisivo em direção ao nada absoluto, pois agora, todas as conquistas foram deixadas para trás e toda ideia de sacralidade foi abandonada, “aonde não há mais nem pastor que procura nem boi que é procurado, nem homem nem Buda, nem dualidade nem unidade” (Ueda, 2008, p. 170). Na 8ª estação o homem habita o 2 As imagens podem ser acessadas no seguinte endereço eletrônico: <http://de.wikipedia.org/wiki/Der_Ochse_und_sein_Hirte>. Acesso em: 15 jun 2012. verdadeiro si-mesmo, entra no “morrer maior”, como se diz no zen-budismo. Com isso, é importante não cair no erro de considerar o nada, aqui, como uma forma de substância, como um princípio, já que conforme Ueda: “O nada absoluto se movimenta como o nada do nada.” (2008, p. 172). Ou como já tínhamos citado mais acima: “um vasto vazio sem nada santo dentro dele.”. Na 9ª estação, vemos a ressureição do homem em seu verdadeiro si-mesmo. Depois do “morrer maior” nascemos de novo a partir do nada. Nessa aquarela “A natureza, como as flores florescem, como o rio flui, é o primeiro corpo ressuscitado do si-mesmo abnegado, a partir do nada.” Aqui se adquire um ponto de vista inteiramente novo, olhamos as coisas tal como elas são. Percebemos conforme o poema de Angelus Silesius que “a rosa é sem porquê; / floresce por florescer / não olha para si / nem pergunta, se alguém a vê” (Angelus Silesius apud Carneiro Leão, 1997, p. 209). Além disso, o movimento da 8ª estação para a 9ª, não se desenvolve mais por um progresso evolutivo, mas sim como uma copertença, como os dois lados de uma mesma moeda. Sengundo Ueda, “trata-se, portanto, da coincidência absoluta do nada com o que tem forma, na qual, porém a entonação não se situa na identidade – isto seria novamente uma substancialização equivocada – e sim na perspectiva dupla relacional, que por sua vez relaciona “morte e ressurreição” em um âmbito existencial” (2008, p. 173). Agora na 10ª e última estação, o verdadeiro si-mesmo volta para o mundo, volta para a comunidade da vida em comum, que pode ser entendido como o segundo corpo ressuscitado do si-mesmo abnegado. Aqui, estar no mundo é celebrar a vida sem abandonar o nada absoluto. O velho e o jovem são os mesmos, pois carregam, respectivamente, o verdadeiro si-mesmo. Em outras palavras, o despertar do velho para o verdadeiro si-mesmo só se afirma na medida em que é permitido também ao jovem o despertar, e de uma maneira própria. Em suma, no encontro com o jovem, o velho não faz nenhuma pregação, não busca ensinar nada. Apenas faz perguntas simples. E as perguntas podem despertar no jovem a procura pelo seu verdadeiro si-mesmo. Com isso, a 10ª estação não é um fechamento, mas sim o início da 1ª estação, no qual o jovem começa a procurar pelo boi. Nas palavras de Ueda, “Trata-se da transmissão do si-mesmo, de si-mesmo para si-mesmo” (2008, p. 176). REFERÊNCIAS ECKHART, Mestre. Sobre o desprendimento e outros textos. Trad. Alfred J. Keller. São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Col. Breves Encontros). ______. Sermões Alemães, Vol. 1. Trad. Enio Giachini. Petrópolis: Vozes, 2006. SUZUKI, Daisetz Teitaro. Mística: Cristã e Budista. Trad. David Jardim. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1976. UEDA, Shizuteru. Zen y filosofia. Trad. Raquel Bouso García e Illana Giner Comín. Barcelona: Herder Editorial, 2004. ______. O nada absoluto no Zen em Eckhart e em Nietzche. In: Natureza Humana: revista internacional de filosofia e psicanálise, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 165-202, jan/jun. 2008.