O NASCIMENTO DE DEUS NA ALMA
Maria Aparecida Rafael – Bolsista PET - Filosofia / UFSJ (MEC/SESu/DEPEM)
Orientadora: Profa. Dra. Glória Maria Ferreira Ribeiro - DFIME / UFSJ (Tutora do Grupo PET Filosofia)
Resumo: Este trabalho visa abordar a questão da pobreza no pensamento do místico
medieval Mestre Eckhart. Segundo ele existem dois modos de pobreza, a interior e a exterior. A que
será objeto de nossa análise é a pobreza interior, que se faz a condição necessária para que
aconteça o nascimento do Filho de Deus na alma.
Palavras–chave: Pobreza, Deus, Alma.
J
oão Eckhart nasceu em Hochheim, uma região da Turindia, por volta do ano
de 1260. Ingressou na ordem dos frades dominicanos em Efurt e como
membro dessa ordem em 1302 torna - se professor de teologia em Paris, passando a
ser chamado desde então Mestre Eckhart. Eckhart chegou a exercer cargos de alta
relevância em sua ordem, tendo se destacado principalmente por suas pregações.
Além de pregador Eckhart escreveu também várias obras. Elas podem ser divididas
em duas partes, obra latina e obra alemã. A primeira ele escreveu para os mais
doutos, pois naquela época somente a elite conhecia o latim. Já a segunda era
composta de sermões que Eckhart proferia nas suas pregações para o povo mais
simples. Além de ser frade dominicano, filosofo e teólogo, Eckhart é considerado
também um grande místico e devido a isso ele despertou inveja tanto nos membros de
sua própria ordem como na ordem dos Franciscanos, que o acusaram de pregar
heresias contra a Igreja. Eckhart escreveu 120 teses, das quais 28 foram consideradas
heréticas e por isso foram condenadas pelo Papa João XXII. Porém, Eckhart morreu
no ano de 1327 um ano antes da condenação de suas teses.
O nosso interesse é tentar compreender o fenômeno da pobreza em Mestre Eckhart.
Para tanto, utilizaremos o seu Sermão de número 52 que se intitula “Sobre a Pobreza”
e se encontra no “Livro da Divina Consolação e outros textos Seletos”. Esse tema se
faz importante, pois, segundo Eckhart a pobreza é a condição fundamental para que
aconteça o nascimento de Deus na alma. Porém, Eckhart nos diz que existem dois
modos de pobreza. O primeiro modo é a pobreza exterior, que consiste na vontade
dos fiéis em realizar práticas de boas ações almejando alcançar por meio delas a
salvação. Porém, não é desse modo de pobreza que aqui iremos tratar, mas a
pobreza que se faz tão necessária para que o homem alcance a sua unidade com
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Deus é a pobreza interior, a de espírito. Segundo Eckhart, aqueles homens que
cultivam esse modo de pobreza são chamados bem aventurados pela boca da própria
Sabedoria Divina.
Mas, em que consiste essa pobreza e como pode ser caracterizado esse homem pobre
esse bem–aventurado? Ora, segundo Eckhart essa pobreza consiste em nada querer,
nada saber e nada ter. E o homem pobre de espírito é aquele que tem essas três
características da pobreza, é aquele que nada quer nada sabe e nada tem.
Pois bem, o homem pobre que nada quer é aquele que encontra-se vazio de toda e
qualquer vontade ou querer de tal forma que a única vontade que esse homem deseja, é
fazer aquilo que Deus quer dele. É um nada querer que não quer, nem mesmo fazer a
vontade de Deus, pois se esse homem tem uma vontade, ainda que seja querer fazer a
vontade de Deus, ele não se doou por inteiro a Deus e portanto não tem a pobreza de
espírito da qual o Mestre nos fala. Por sua vez o homem pobre que nada sabe é aquele
que se tornou vazio de todo saber. De acordo com Eckhart é necessário que o homem se
livre de todas as representações do conhecimento, pois o homem só conhece por meio
das faculdades da alma, por meio de mediações. Porém, Deus é livre de todas as
mediações, e para o homem estar em Deus ele não pode nem mesmo saber da ação de
Deus em sua vida. E por último, podemos dizer que o homem pobre que nada tem é
aquele que não tem nem mesmo o ser o qual ele habita. O nada ter, torna-se então a
característica mais radical da pobreza. O homem percebe a sua finitude. Somente quando
ele reconhece a finitude do ser que lhe dado, é que ele se volta novamente para o seu
interior, para a pobreza que caracteriza a sua condição humana e que o permite
compreender que ele nada é.
Dessa forma podemos dizer que o ser do homem é um ser imperfeito, pois este para
existir depende essencialmente do ser de Deus. Devido a isso podemos afirmar que a
existência humana necessita do outro. O homem jamais poderá compreender a si
mesmo, a sua própria existência a partir dele mesmo, já que o seu ser é um ser
imperfeito e contingente. De acordo com Eckhart só Deus é o Ser por excelência que
se revela ao homem como o outro, na pessoa do filho, do Cristo, e lhe concede a sua
existência, a sua identidade. A existência humana, por sua vez, só se mantém nessa
relação de total dependência de Deus. Contudo, para o homem continuar sendo o que
ele é a todo o momento ele necessita deixar de ser, ou melhor, a sua existência
precisa ser desfeita para que ele possa retornar para Deus. Ao retornar para Deus, o
homem perde todas as suas determinações para acolher unicamente Deus no fundo
de seu ser criado. Deus que se faz outro, se faz Filho, ao criar o homem e tudo o que
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há. Mas para que Deus possa nascer no fundo da alma, para que a geração eterna
possa acontecer é necessário antes de tudo que o interior da alma esteja
completamente vazio para receber Deus. No instante em que a criatura recebe Deus
em seu interior, o filho é gerado e concomitante dá-se assim o momento da criação. O
homem ganha então o ser. Mas, não significa, porém, que ele já se apropriou desse
ser, pois essa apropriação só acontece quando Deus, na pessoa do Filho nasce no
fundo da alma. Podemos dizer então, que o homem se apropria do ser que lhe é dado
quando ele está mergulhado nos seus afazeres cotidianos. É no cotidiano que o
homem se apropria do ser e é também nele que o homem se afasta dele. O homem se
afasta do ser quando ele se esquece de onde provém a origem do ser que lhe é dado.
A partir desse momento o homem começa a se relacionar com esse ser com tanta
familiaridade, como se esse ser fosse uma propriedade sua. Desse modo, ao se
apegar a este ser o homem se afasta do criador. Mas o que o homem deve fazer para
se unir novamente a Deus?
Ora, segundo Eckhart, para o homem se unir a Deus é necessário que ele se volte
para o seu interior. No interior é que está a parte mais nobre da alma, o fundo da alma,
e é aí, no que ela tem de mais nobre, que se dá o encontro de Deus com o homem. O
interior da alma o qual o Mestre nos fala é a pobreza de espírito.
Ser pobre de espírito é experienciar a pobreza da própria existência humana. É
experienciar a perda da familiaridade com o esse ser que recebemos de Deus. Quando
essa perda se concretiza, o homem se vê lançado num abismo sem fundo e nesse
instante caem todas as certezas com as quais ele sempre se manteve apegado.
O que sempre lhe foi familiar torna-se estranho, torna-se outro. O outro, o estranho não é
outra coisa senão o próprio Deus, que desde sempre já habitava no interior desse homem,
embora este nunca tenha percebido, posto que ele ainda não podia ser considerado um
homem pobre se espírito. O homem pobre de espírito é aquele que se mantém livre e
vazio de tudo. Ele não pode se apegar a nada, pois o seu interior, o fundo de sua alma
precisa estar completamente vazio para acolher apenas Deus. No fundo da alma só Deus
mesmo pode habitar, já que nesse fundo somente Ele consegue chegar. Antes de nascer
no fundo da alma, Deus é somente Deidade.
Deidade, para Eckhart é o próprio Uno, é Deus Nele mesmo antes se diferenciar na
pessoa do Pai, do Filho e do Espírito Santo. No instante em que antecede essa Geração,
não havia diferença entre Deus e o homem, pois tudo estava Nele como pura possibilidade
de vir a ser algo. E tudo só vem a ser no instante em que Deus realiza a sua obra de
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Geração e Criação no fundo da alma. Mas como é possível Deus realizar a sua obra de
Geração e Criação no fundo da alma?
Ora, segundo Eckhart o fundo da alma é anterior a toda a criação. A alma para Eckhart já
preexistia a criação. É devido a esse fato que ela participa dessa obra de Geração e
Criação Eterna.
Porém, embora Eckhart nos fale que essa geração eterna acontece em cada criatura, ele
nos alerta para o fato de que somente a alma fiel é capaz de se unir a Deus. A alma fiel é
a alma pobre de espírito. Ser pobre de espírito é retornar para esse antes de ter sido, é se
manter sempre disponível para receber Deus, para se estar na unidade com Ele. Mas
como é possível ao homem retornar para Deus, para o Uno para o Principio?
Pois bem, Eckhart nos diz que esse retorno só se faz possível quando se instaura o
mais absoluto Silêncio. Silêncio que não pode ser compreendido, como a mudez do
nada dizer, ou seja, o Silêncio do qual Mestre Eckhart nos fala não se confunde com
linguagem, com ausência de sons ou palavras, mas é aquele que expressa o meio
pelo qual se dá o encontro do criador com a criatura no fundo da alma. Esse é o
momento que antecede a Geração Eterna. Geração essa em que Deus, enquanto,
Deidade se diferencia de si, se nega em si mesmo e se torna Pai ao gerar o filho, o
Cristo, no fundo da alma, por intermédio do Espírito Santo, que é aquele que
estabelece essa relação de amor entre o Pai e o Filho. O Filho embora sendo Deus,
não é o Pai, ele é a imagem perfeita do Pai. O Pai ao gerar o Filho, concede a Ele o
seu Ser, e, por conseguinte, o Filho concede esse ser que recebeu do Pai ao homem.
O ser do homem é um ser que ele recebeu de empréstimo do Filho, do Cristo. Assim
podemos dizer que o homem foi feito à imagem e semelhança do Filho e não do Pai,
pois é o Filho, o Cristo o mediador entre o homem e Deus.
Antes desta geração acontecer Deus repousava no mais absoluto Silêncio, posto que
a palavra não tinha ainda sido pronunciada, o verbo ainda não havia se reverberado,
se tornado carne. Consoante, Eckhart nos diz:
No meio da noite, quando todas as coisas se recolhiam no silêncio, foi-me dita
uma Palavra misteriosa, que chegou furtiva a maneira de um ladrão (Sb, 18,
14.15). Como pode-se chamar de Palavra se é misteriosa? E Ela se abriu e
brilhou a minha frente para me revelar algo e me anunciou Deus: daí chamar-se
de palavra.1
1
ECKHART, Mestre. O Silêncio da criação. In: O Livro da Divina Consolação e outros Textos Seletos.
Petrópolis: Vozes: 2005. p.186.
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Como podemos perceber na passagem acima é no meio da noite que essa Palavra
misteriosa se revela a criatura. Quando tudo repousa no mais profundo silêncio, quando
tudo está mergulhado na total escuridão do ainda não ser, uma luz se irradia no momento
oportuno, luz que se torna verbo, palavra. A Palavra é o Cristo, o verbo eterno do Pai.
Verbo aqui não significa uma fala racional, porque nesse momento o ser ainda não havia
se determinado como linguagem. Verbo é Palavra de mistério. É o próprio ato de ser em
que o filho Unigênito de Deus se determina como homem, como Filho, para comunicar aos
homens a Palavra do Pai. Palavra que é a mesma força de manifestação desde o qual o
Ser que se encontra na unidade com Deus ganha a sua determinação.
No entanto, observando tudo o que já refletimos até aqui, podemos perceber que o homem
pobre de espírito, é aquele que permanecendo nesse silêncio que vigora no fundo da alma
é capaz de acolher essa Palavra de mistério. Silenciar é simplesmente deixar que essa
palavra da Sabedoria divina ressoe silenciosamente em nosso interior para que possamos
assim acolhê-la no tempo oportuno. Mas qual seria esse tempo oportuno?
Segundo Eckhart, o tempo oportuno é cada momento, é agora e sempre já que essa
Palavra é acolhida e gerada continuamente em nós. Nós não podemos percebê-la, pois,
Deus, a Palavra, só pode ser percebido na solidão perfeita Dele mesmo. Deus ao criar
todas as coisas ele não deixa de ser Deus. Em momento algum Ele se confunde com as
criaturas, pois somente Ele é Livre e incriado. O homem pobre de espírito é aquele que se
assemelha a Deus na medida em que ele ao se manter livre e desprendido de tudo, acolhe
no mais íntimo do seu ser o próprio Deus.
Concluindo, podemos então dizer que o homem pobre de espírito é aquele que
participa e colabora com a obra da geração divina. Esse homem merece ser chamado
o bem aventurado, pois este permite sem nem mesmo saber, que Deus habite no
interior de seu ser e ali possa nascer. E, é por não saber que Deus habita no fundo de
seu ser e, portanto, também por nem mesmo querer, pois ninguém pode querer aquilo
que não sabe, é que esse homem recebe como recompensa o Reino dos Céus.
O homem pobre de espírito é bem aventurado porque constantemente, ele volta a ser
aquilo que ele era quando ainda não era, ou seja, quando ele ainda não havia se
determinado como homem. É bem aventurado porque se coloca na inteira disposição de
acolher no fundo de sua alma o próprio ser de Deus, ao se tornar disponível e desprendido
de tudo. Ao acolher Deus, esse homem acolhe a si mesmo enquanto um ser criado, finito
e, portanto, dependente de Deus. O homem bem aventurado, pobre de espírito é aquele
que se torna pequeno por saber acolher o seu limite. Ao acolher a sua condição limitada
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ele é capaz de acolher um Deus que também se faz pequeno porque quis depender do
próprio homem se fazendo humano para ser Deus junto com o próprio homem. Esse é o
maior mistério de amor que não nos é dado compreender, mas nos é permitido acolher, já
que nós fazemos parte desse mistério não por escolha nossa, fomos escolhidos não
apenas para que fizéssemos parte dele, mas para que ainda colaborássemos para que ele
acontecesse.
Referências Bibliográficas
ECKHART, O silêncio da criação. In: O Livro da Divina Consolação e outros Textos Seletos.
Petrópolis: Vozes, 2005.
HARADA, Hermógenes. Importa não ser. In: Ensaios de Filosofia. Homenagem a Emmanuel
Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 35-49.
_______. O Meio Silêncio. In: Arte Palavra. Fórum de Ciência e Cultura UFRJ.
_______. Do Sermão 52 de Eckhart. In: Scintilla - Revista de Filosofia e Mística Medieval. FFSB:
Curitiba, 2004.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. Tradução por Márcia Sá Cavalcante. 4 ed. Petrópolis:
Vozes, 2005.
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