CONSIDERAÇÕES SOBRE LUIZ AGUIAR F ora a honrosa exceção do livro “A Força Indômita” de Marcus Góes, editado em 1996, ainda não se fez um estudo minucioso sobre a vida de Carlos Gomes. Apesar da existência de uma série de livros, biografias e citações em diversas enciclopédias universais, o que se tem visto e lido é um amontoado de informações baseadas sempre nas mesmas superficialidades, nas mesmas fontes e, o que é pior, uma repetição constante de equívocos que vão se sedimentando... Esses equívocos vão desde a data do nascimento de Carlos Gomes até suas origens. Muitas dessas informações se baseiam no livro escrito por sua filha, Itala Gomes Vaz de Carvalho que, romanticamente, descreve seu pai como de origem espanhola, descendente dos Gomez de Pamplona e por aí vai... Na verdade Antônio Carlos Gomes (com S e não com Z) é filho de Manoel José Gomes, mulato, que por sua vez era filho de português com negra. A mãe de Carlos Gomes, Fabiana Maria Jaguari Cardoso, era filha de branco com índia. Nenhum traço espanhol, pois, em sua descendência. Outro equívoco que se perpetua e continua sendo divulgado – o fato de Carlos Gomes ser um imitador de Verdi – o que aliás, não seria nenhum demérito. Na verdade, Carlos Gomes sempre teve uma grande 54 veneração pelo Mestre de Le Roncole. Uma veneração artística, veneração pessoal, vizinha da adoração. Em seu critério e escalonamento, Carlos Gomes colocava Verdi logo abaixo de Deus e, em seguida, vinha sua família. Neste particular é bastante conhecida a narrativa de Luiz Guimarães Júnior sobre a primeira grande emoção que a música de Verdi provocou no jovem Carlos Gomes. Famosa, também, a história de seu primeiro contato com um “spartito” de Il Trovatore, em 1853, ainda em Campinas, meses após a estréia da ópera. Desta emoção surgiu a composição da Parada e Dobrado sobre motivo de Il Trovatore para banda. Esta partitura foi – em 1976 – recuperada, revisada e reescrita por nós. É obra interessantíssima, em que o jovem Carlos Gomes, então com 17 anos, compõe para os instrumentos que dispunha na Banda em que seu pai era o regente. Um tema, de autoria do próprio Carlos Gomes, dá início à Parada (Desfile) e em seguida surge o tema do Dobrado (cabaleta – “Di tale amor” que sucede à belíssima ária “Tacea la notte placida”). Solos alternados de trompete e clarineta. Estranhamente esta Parada e Dobrado termina em compasso ternário, quase uma valsa. Que Verdi foi o grande ídolo e modelo de Carlos Gomes, não resta a menor dúvida. Mas não podemos esquecer – isto é muito importante – da influência francesa de Gounod, no detalhe orquestral e, muito especialmente, de Meyerbeer, na grandiloqüência da “Grand Opera”. Carlos Gomes chega a Milão no ano da morte de Meyerbeer (1864). Bellini e Donizetti já haviam falecido em 1835 e 1848, respectivamente, e o “bel canto” já dava sinal de envelhecimento... agonizava. Rossini, que viverá até 1868, encontrava-se afastado da cena lírica, em ócio voluntário. Verdi domina a cena!!! Senão vejamos: Temporada 1864/1865 – “Teatro Alla Scala”: 02/janeiro – I Lombardi – Verdi 19/janeiro – Ginevra di Scorzia – Rota 02/fevereiro – I Vespri Siciliani – Verdi 23/fevereiro – Gli Ugonotti – Meyerbeer (em italiano, bem se vê) 10/março – Le Aquille Romane – Chélard 26/dezembro – La contessa d’Amalfi – Petrella 31/dezembro – Norma – Bellini A temporada prossegue pelo ano de 1865 com Faust (Gounod), em italiano – Rigolleto (Verdi) – Favorita (Donizetti) e L’Ebrea de Halévy (em italiano), do original La Juive. Sabemos, também, que o próprio Verdi, por motivos diversos, se auto exilara em Paris, somente voltando a compor em 1871 (Aída), e em 1874 (Messa da Requiem). Neste período de aparente ócio, Verdi, após Don Carlos em francês – (1867), revisava suas óperas anteriores (Macbeth, I Lombardi, Simon Boccanegra, Forza del Destino...). Mas, ao mesmo tempo, Verdi se preparava e se reciclava para sua volta à ópera com o Otello em 1887 e Falstaff em 1893. Verdi sabia que não tinha o menor sentido continuar escrevendo outras óperas no mesmo estilo e que a ópera estava prestes a sofrer uma renovação. Paralelamente a este momento, a este auto-exílio de quase 17 anos, eclode o movimento dos “scapigliati”. Na verdade Carlos Gomes nunca foi um “scapigliato” na acepção da palavra. Mas era simpático ao movimento de renovação da ópera e das artes em geral. Conviveu, com toda certeza, com Boito, Faccio, Praga, Mariani e freqüentou os salões da Condessa Carlos Gomes. Figurinos da ópera Lo Schiavo. Assinado por Luigi Bartezago. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO 55 56 Maffei. Dessa convivência surgiram influências mútuas. É possível que Carlos Gomes tenha influenciado, com sua verve tropical, seu exotismo, sua originalidade melódica, harmônica e rítmica, aos compositores contemporâneos daquele movimento. Na verdade, a noite de 19 de março de 1870 (estréia de Il Guarany no Teatro “Alla Scala”) marca uma época na história da ópera. O autor, jovem maestro brasileiro, vindo de um país desconhecido. O libreto, baseado em romance de outro brasileiro desconhecido – José de Alencar. O tema, o amor de uma branca por um índio. Lutas de tribos rivais, presença de um cacique aimoré, antropófago e que, também, se apaixona pela moça branca, filha de um fidalgo português. Era muito exotismo junto. Tudo bastante estranho; e o 3º ato – Campo dos Aimorés – com suas danças, evocações a Tupã, utilização de instrumentos exóticos e inusitados – inubias, maracás... Tudo isto aliado a uma música que já prenunciava novos caminhos: tendência à melodia infinita; abandono gradativo do esquema de árias, duetos, trios, quartetos, alternando com recitativos; música mais adequada ao texto, num desenvolvimento natural e espontâneo; nada de “belcantismo”, ao contrário, uma forte tendência na criação de situações dramáticas com a utilização de temas recorrentes e caracterizantes de uma determinada personagem ou situação; temas musicais com grandes saltos melódicos ascendentes e descendentes realçando uma certa virilidade em seus meandros e arroubos harmônicos; tendência acentuada ao cromatismo; uso deliberado dos intervalos de quintas e sétimas, principalmente os chamados quinta aumentada e sétima diminuída, modulando com elegância e beleza; uso atrevido de nonas. Mas o grande progresso, rumo à personalíssima caracterização melódico-rítmico-harmônica de Carlos Gomes se daria em 1873 com a ópera Fosca, verdadeira obra-prima. Antecedendo 2 anos à Carmen de Bizet (1875) e de 3 anos à Gioconda de Ponchielli (1876), a ópera Fosca é um grito de alerta de uma nova tendência lítero musical – o “verismo”. E, na Fosca, Carlos Gomes está perfeitamente seguro de si. Nem uma nota a mais, nem uma nota a menos. Tudo em dose certa. Melodia, harmonia, ritmo se unem para a mais perfeita e bela ópera de Carlos Gomes. Tudo que havia se evidenciado, de forma discreta, em Il Guarany (1870), atinge seu apogeu com o enriquecimento de novas combinações tímbricas na orquestra, resultando uma instrumentação plena de matizes. Tratamento objetivo do libreto, excelente por sinal, de autoria de Ghislanzoni, sem divagações e repetições desnecessárias. O final da ópera, a partir da frase “Non m’abborrir... compiagimi tu” é um dos mais belos momentos líricos de toda a história da ópera. “Fosca”, que fracassou na estréia em 1873, conheceu o sucesso em 1878, já reformulada. É muito importante realçar que Carlos Gomes não é somente o autor de Il Guarany, que muitos acreditam ser apenas os dez minutos orquestrais da abertura, impropriamente chamada de protofonia. Por que não nos referimos a esta abertura com o seu título original – sinfonia – como Carlos Gomes a denominou e como Página ao lado: Carlos Gomes. O Guarany. Imprensa Nacional. Rio de Janeiro, 1986. Desenho de Álvaro M. Seth. Carlos Gomes. Caricatura publicada na Revista Illustrada, Anno 5, 1880 FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE ICONOGRAFIA FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE PERIÓDICOSIA 57 era uso corrente naquela época? O caso do prelúdio primitivo (da estréia em 19 de março de 1870) é uma outra história. Outras pessoas, entretanto, acrescentam que Carlos Gomes é, também, o autor da modinha Quem sabe? com versos de Bittencourt Sampaio (“Tão longe, de mim distante...”). Mas param por aí. Carlos Gome é muito mais. Mesmo fora do Brasil, a partir de 1864, ele participou e viveu os problemas sociais e políticos brasileiros. Embora não se deva confundir conscientização com engajamento. Monarquista convicto e declarado, grande admirador DISCOGRAFIA IL GUARANY Plácido Domingo Verónica Villarroel Carlos Álvarez Chor und extrachor der Oper Stadt Bonn Orchester der Beethovenhalle Bonn. Regência: John Neschling Sony SK66273 / 2 CDs COLOMBO Inacio de Nonno Carol Mc Davit Fernando Portari Maurício Luz Coros e Orquestra Sinfônica da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Reg.: Ernani Aguiar UFRJ MUSICA - emufrj - 004 ABERTURAS E PRELÚDIOS Orquestra Sinfônica Brasileira Reg.: Yeruham Scharovsky. OSBCD0001/98 SONATA PARA CORDAS ”BURRICO DE PAU” Orquestra de Câmara de Londrina. ETU 112 Videos VHS e CDs FOSCA Gail Gilmore Krassimira Stoyanova Roumen Doykov Orquestra, Coro e Solistas da Ópera Nacional de Sófia Reg.: Luís Fernando Malheiro FUNARTE / São Paulo Imagem Data / Sudameris 1997 MARIA TUDOR Eliane Coelho Kostadin Andreev Elena Chavdarova-Isa Orquestra, Coro e solistas da Ópera Nacional de Sófia Reg.: Luís Fernando Malheiro FUNARTE / São Paulo Imagem Data 1998 58 de D. Pedro II e da família imperial era, entretanto, a favor da causa abolicionista. Possuidor de um temperamento difícil, irascível, meticuloso, detalhista (que o digam suas cartas) era sensível, nobre, generoso. Jamais um mesquinho. Romântico por natureza, mas suas óperas estão apoiadas no realismo, na corrente naturalista que desembocaria no “verismo” (de vero = verdade). As personagens das óperas de Carlos Gomes são humanas, de carne e osso. Nada de deuses, ninfas, mitos ou coisas que tais. Ouçamos, com atenção a Fosca (1873) – a Maria Tudor (1879) – Lo Schiavo (1889) e, principalmente, Condor (pronuncia-se Côndor), de 1891. Esta última, inclusive, surge num momento de “crise universal”da ópera: quando o gênero lírico não era mais o centro do mundo musical. A Itália, também, volvia seus olhos e ouvidos à música instrumental. É nestas águas que Carlos Gomes, também, foi se banhar. Compõe a Sonata para quinteto de cordas que, em última análise, é um quarteto de cordas com o acréscimo do contrabaixo. Não se trata de uma sonata nos moldes clássicos e tradicionais. Mas é música inspirada, espontânea, bem escrita e seu último movimento – “vivace” leva o sub-título de Burrico de Pau. Música descritiva, não resta dúvida. O romantismo musical brasileiro encontra, de fato, sua expressão mais ampla em Carlos Gomes e Zito Batista Filho chega a afirmar que “genialidade é fenômeno irreprimível e seu primeiro sintoma é o desafio ao horizonte”. Assim foi com Carlos Gomes: De Campinas (então São Carlos) para São Paulo, numa fuga arquitetada, bem pensada e concretizada em 1859. De São Paulo ao Rio de Janeiro, uma distância considerável por terra e mar. A chegada na corte imperial, a Condessa de Barral, o imperador D. Pedro II, seu ídolo, Francisco Manuel da Silva (autor do Hino Nacional Brasileiro e diretor do Conservatório Imperial de Música), D. José Amat (diretor da Ópera Nacional). Vieram logo as perseguições, invejas e intrigas... As duas primeiras composições importantes, as cantatas Salve dia de ventura e A Última Hora do Calvário, ambas de 1860, estrearam em 15 de março e 16 de agosto, respectivamente. Seguem-se suas duas primeiras óperas, também em português: A Noite do Castelo (1861) e Joana de Flandres (1863). Do Rio de Janeiro (8 de dezembro de 1863) a Milão (1864), passando por Portugal e França, em busca de conhecimento, de glória, num sonho que lhe trará o reconhecimento e a imortalidade. Trajetória de luminosidade crescente, com momentos de escuridão, depressão, dúvidas, sacrifícios e angústias, mas que, certamente, constitui uma página das mais belas da História do Brasil. Funerais do maestro Carlos Gomes. Fotografia assinada por Fidanza. 1896. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO Num balanço sucinto, a “vol d’oiseau”, podemos registrar, como finalização destas considerações, que a obra de Carlos Gomes se apóia no resumo abaixo: 1) Óperas completas, estreadas e muitas vezes apresentadas: 9 a) em português – A Noite do Castelo – 1861 Joana de Flandres – 1863 b) em italiano – Il Guarany –1870 Fosca –1873 Salvator Rosa –1874 Maria Tudor –1879 Lo Schiavo –1889 Condor –1891 Colombo –1892 (na verdade um poema vocal – sinfônico mas claramente pensado como ópera) 2) Revistas musicais (vizinhas das operetas), estreadas e inúmeras vezes encenadas: 2 Se sa minga –1867 Nella luna –1868 3) música vocal de câmara: 47 (5 em português, 2 em francês, 1 em dialeto veneziano e 39 em italiano) 4) Missas: 3 (Brevis – 2 e Solemnis –1) a) São Sebastião – 1856 b) Nossa Senhora da Conceição – 1859 c) Sem título específico – 1852 5) Partes avulsas de missas (inacabadas (?) - perdidas as demais partes (?) a) Kyrie – 1865 b) Qui tollis – ? c) Credo – ? 6) Música instrumental de câmara: 4 a) Aria para clarineta e piano – 1857 b) Al chiaro di luna (para bandolim ou violino e piano) – ? c) Sonata para quinteto de cordas (Burrico de Pau) – 1894 d) Variações para bandolim (Vem cá, Bitu) – ? 7) Música para piano: 36 (32 para piono solo e 4 para piano a 4 mãos) 8) Cantatas para coro masculino: 2 a) La fanciulla delle Asturie – 1866 (coro e piano) b) Sacra bandiera – 1895 (coro e piano) 9) Arias avulsas para vozes e orquestra: 4 a) Aria do cozinheiro (Eis-me aqui nesta cidade) – 1855 b) Aria do alfaiate (Senhor mestre, veja lá) – ? (na verdade um dueto) c) Aria de Teresa (Ogni brivido... ogni rumor) 1872 d) Mama dice (anteriormente composta para canto e piano – 1882 e em 1892 orquestrada pelo próprio compositor) 10) Coro “a capella” : 6 a) Fugas tonais – 1866 b) Fugas reais – 1866 11) Música orquestral: 3 a) Variações sobre o tema do romance Alta Noite – 1859 b) Lalalayu (anteriormente compsota para piano – 1866 e em 1867 orquestrada pelo prórpio autor) c) Eva (valsa) – 1871 12) Música para banda: 4 a) Parada e dobrado sobre motivo da ópera “O Trovador”- 1856 b) “L’Oriuolo” (galope) composta em 1888, posteriormente instrumentada para banda por Giuseppe Mariani – 1891 c) Ao Ceará Livre – 1884 d) Cruzador Escola “Benjamin Constant” – 1893 13) Música para coro e banda: 2 a) Inno Marcia (Al fianco abbiam l’acciar) – 1883 b) A Camões ( O teu dia irromperá da história) – 1880 14) Música para coro, banda e orquestra: 3 a) Il Saluto del Brasile (Salve glorioso suol) – 1876 b) Inno Alpino (In alto... in alto) – 1884 c) Coro triunfal – também conhecido como Hino Progresso (Pela estrada de flores repleta) – 1885 15) Voz “a capella” (O Vos omnis) − ? 16) Óperas inacabadas: 2 a) I Moschettieri (Gabriella di Blossac) − 1871 (2 atos completos somente para canto e piano) b) Morena – 1887 (idem) LUIZ AGUIAR Pianista, maestro, compositor, pesquisador, restaurador e revisor da obra de Carlos Gomes. 59