Práticas Matemáticas em Construções de Instrumentos Musicais Chrisley Bruno Ribeiro Camargos1 GD5 – História da Matemática e Cultura Resumo: Esta pesquisa tem o objetivo de discutir as práticas matemáticas em construções de instrumentos musicais como uma prática situada na perspectiva de Lave. Para atingir tal objetivo, será analisado como se manifestam os “jogos de linguagem” que constituem as práticas dos alunos e professor na construção dos instrumentos musicais, onde as matemáticas participam. Serão observadas as disciplinas: Construção de Instrumentos e Organologia I e II, ambas lotadas ao Laboratório de Construção de Instrumentos Musicais do Departamento de Artes e Comunicação da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Partindo do princípio de que a linguagem matemática pode ser interpretada como um jogo de linguagem, serão utilizados elementos da filosofia de Wittgenstein na interpretação desses jogos de linguagem, atendendo, inclusive, ao quesito das diferentes matemáticas simultâneas. Também serão utilizados conceitos descritos em Lave e Wenger referentes às “comunidades de prática”, às matemáticas presentes a usos situados e contextuais como parte de “práticas situadas”. Corroborando com a filosofia wittgensteiniana, conjectura-se que os usos das matemáticas presentes nestas práticas de construções de instrumentos musicais não poderiam simplesmente serem caracterizadas como uma matemática “acadêmica ou escolar”, porque um jogo de linguagem compreende “a totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as quais ela vem entrelaçada”, e este faz parte e só faz sentido em sua forma de vida. Palavras-chave: matemática; música; jogos de linguagem; práticas matemáticas; prática situada. Introdução Para esclarecer um pouco sobre as razões e o interesse em analisar relações entre matemática e música sob uma perspectiva educacional, tentarei, de forma resumida, descrever um pouco sobre minhas influências, para que seja possível aos leitores entenderem minha opção acadêmica e profissional. Sempre fui um garoto curioso, gostava muito de matemática e me dava bem na escola com esta disciplina. A matemática era trivial para mim, não entendia porque tantas reclamações de alguns colegas. Eu realmente gostava de matemática e apresentava certas habilidades em lidar com expressões numéricas e algébricas, mas não me lembro de ter me destacado ao ponto de receber algum elogio de professores ou ter sido notado por ter um “dom”. Eu apenas seguia as regras do jogo, era estudioso, tirava boas notas e gostava de matemática, assim como vários outros estudantes. Em relação à música, comecei a ter um contato mais direto com ela, por volta dos meus treze anos de idade. O período em que mais me dediquei à música (1994 a 2001), deixou marcas profundas em minha personalidade, apesar de ter tentado ingressar numa 1 Universidade Federal de São Carlos, e-mail: [email protected], orientador: Dr. Ademir Donizeti Caldeira. faculdade de música, não fui bem em uma das etapas, e resolvi estudar por minha própria conta e risco, porque já estava ingressando em uma banda e não me preocupava muito em fazer uma graduação. Em algum período de minha vida, percebi a necessidade em voltar aos estudos “convencionais”, com o tempo, a música passou a ficar em segundo plano. Em agosto de 2002, ingressei no Curso de Licenciatura em Matemática. Com o tempo, o envolvimento com a matemática foi me conquistando cada vez mais, principalmente pelo fato de perceber relações matemáticas na música, isso me fez querer estudar mais a respeito. Naquela época, pensava em como seria um professor de matemática que pudesse utilizar a música como ferramenta, conforme disse Wittgenstein (I. F. § 456)2 “quando se tem algo em mente, tem-se a si mesmo em mente; desta forma movimenta-se a si mesmo”, logo, como seria lançar isso à frente? Como seria esse movimento futuro onde eu pudesse envolver relações matemático-musicais? Em novembro de 2003 ministrei minha primeira oficina, denominada “Matemática e Música”, no III Encontro Mineiro de Educação Matemática – UFMG. Começava aí minha jornada por estratégias de ensino que me deixassem próximo destas duas artes que, até então, foram marcantes em minha vida. Atualmente, como professor de matemática no Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG – Campus Formiga), tento dividir com outros educadores e professores em formação inicial do Curso de Licenciatura em Matemática, alguns conhecimentos sobre as relações entre a música e a matemática, por meio de oficinas, minicursos, de disciplinas como, por exemplo, a disciplina optativa “Tópicos de educação Musical e Matemática” e de projetos como do PIBIC (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica). Em meio há esses anos envolvido com o tema “música e matemática”, estudei autores que tratassem e pudessem fornecer ferramentas para discussão dessas relações, alguns como Garland e Kahn (1995), Abdounur (1999), Rodrigues (1999), Cunha (2006), Du Sautoy (2007), dentre outros. No entanto, em grande parte desses autores, observei uma tentativa de colocar a música (música ocidental) em moldes matemáticos, de expressar uma possível racionalidade musical a partir da matemática como uma ciência que explica e modela fenômenos musicais, como por exemplo: as partituras de precisão, o temperamento musical, as frequências de afinação e modelos matemáticos para construção de instrumentos. Não percebi nestes autores, uma tentativa de compreender as relações entre a 2 Neste trabalho, a abreviação I. F. sempre se referirá à obra Investigações Filosóficas de Wittgenstein e o símbolo § ao parágrafo correspondente, conforme a obra original ou traduções. matemática e a música por meio de uma ótica conjunta, entre o olhar musical e o olhar matemático, sob uma tentativa de relacioná-las como linguagens semelhantes, de evidenciar as semelhanças de famílias existentes entre as duas linguagens, de sair daquilo que Wittgenstein (I. F. § 593) define como “dieta unilateral”, uma “causa principal das doenças filosóficas”, onde “alimentamos nosso pensar só com uma espécie de exemplos”. A meu ver, podemos utilizar tais “semelhanças de família”, sob uma interpretação wittgensteiniana, para entender essas duas linguagens que se relacionam, assim como podemos também evidenciar as diferenças encontradas e discuti-las sob um novo olhar. Conforme se observa em Bréscia (2003), a música pode ser considerada uma linguagem universal e parte ativa da história do homem, essa enunciação também pode ser observada em relação à matemática, porque o discurso científico viveu sobre forte influência do racionalismo até provavelmente o início do século XX, conforme descreve Gottschalk (2008, p. 76), quando “matemáticos e físicos pareciam não duvidar de que haveria uma harmonia interna do mundo, expressa através de leis matemáticas, única realidade objetiva, única verdade que podemos atingir”. No entanto, atualmente, poderíamos evidenciar uma infinidade de linguagens da música, se olharmos sob uma perspectiva etnomusicológica3 onde essas múltiplas linguagens se modificam esteticamente, de cultura para cultura. Em pesquisas realizadas no decorrer de minha especialização, do mestrado e de pesquisas realizadas no Instituto Federal de Minas Gerais, onde trabalho atualmente, dentre os anos de 2007 a 2013, analisei formas de se construir instrumentos musicais por meio de modelos matemáticos envolvendo frações, proporções e progressões geométricas, sempre partindo da matemática para se criar um instrumento musical. Em 2013, participei de uma disciplina de pós-graduação na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), denominada "Etnomatemática, pesquisas e práticas em Educação Matemática: apropriando resultados, métodos e princípios” que influenciou muito minha forma de refletir sobre as pesquisas que havia realizado e em pesquisas futuras que, possivelmente, poderia realizar. Em um momento desta disciplina, ao analisar o artigo de Fernández (2004), baseado em uma conferência ministrada no II Congresso Internacional de Etnomatemática, em agosto de 2002, senti uma necessidade de 3 Em estudos etnomusicológicos observamos vários tipos de linguagens musicais, como de tribos indígenas, tribos africanas, grupos de gamelão (na Ásia), até mesmo em músicas presentes no Ocidente como a Música Eletroacústica, a Música Eletrônica, A Música Concreta, dentre outras. compreender as “práticas populares” descrita em seu artigo, isso porque Fernández propõe um desafio, um novo olhar aos pesquisadores da Etnomatemática: ao invés de olhar as práticas populares a partir da matemática, olhar a matemática a partir das práticas populares. O que ocorrerá se invertermos este olhar? Enquanto pesquisador, busquei refletir sobre essa proposta. Em Camargos et al (2013) publicamos resultados de uma pesquisa em que analisamos o projeto de um professor de Educação Musical de uma escola pública que criava instrumentos feitos de sucata ou materiais descartáveis, juntamente com seus alunos. Tentamos observar modelos matemáticos presentes na construção dos instrumentos baseados em modelos matemáticomusicais conhecidos. Apesar do professor não voltar sua atenção para a matemática que eles faziam, pudemos perceber várias situações onde o professor utilizava “sua matemática” e “percepção musical” na construção dos instrumentos. Ao ler o desafio de Fernández (2004), novamente fiquei questionando a minha prática agora como pesquisador e com influências da Etnomatemática: como olhar a matemática a partir da construção daqueles instrumentos por percepção musical? Pensando neste desafio, ao ingressar no Programa de Pós-Graduação em Educação na UFSCar, no primeiro semestre de 2014, procurei entrar em contato com professores e alunos do Curso de Licenciatura em Música desta instituição. Tive a oportunidade de conhecer o Prof. Eduardo Nespoli e descrevi a ele sobre meu interesse em analisar o seu trabalho envolvendo construção de instrumentos e ele me convidou para participar de uma aula da disciplina “Construção de Instrumentos e Organologia III”. Neste primeiro contato com o professor, fiz uma breve descrição sobre o trabalho que desenvolvi em minha dissertação de mestrado e relatei sobre alguns trabalhos que realizei analisando modelos matemáticos na construção de instrumentos musicais e também construindo instrumentos musicais a partir de modelos matemáticos. Em seguida, expliquei a ele sobre meu interesse em analisar como é feita a construção de instrumentos musicais no Curso de Música e o professor me convidou a continuar a participar de suas aulas. Também participei da disciplina Música Eletroacústica I, no segundo semestre de 2014. Participando como ouvinte nestas disciplinas, já com um olhar de pesquisador (com uma intenção de pesquisa), pude perceber vários jogos de linguagem nos diálogos entre professor e alunos, onde a matemática escolar ou acadêmica parecia fazer parte, assim, fui amadurecendo minhas ideias de pesquisa e pensando na possibilidade de analisar as práticas de construções de instrumentos musicais. Analisando a grade curricular do Curso de Licenciatura em Música, percebi que duas disciplinas: “Construção de Instrumentos e Organologia I e Construção de Instrumentos e Organologia II”, seriam importantes para o desenvolvimento de minha pesquisa, desta forma, pedi permissão ao professor das disciplinas e à coordenação do Curso para participar destas disciplinas. Para isso, foi necessário submeter meu projeto de pesquisa ao Comitê de Ética da UFSCar. O projeto foi submetido à análise do Comitê de Ética no final do ano de 2014 e aceito em fevereiro de 2015. Objetivos e Problema de Pesquisa Esta pesquisa tem o objetivo de discutir as práticas matemáticas em construções de instrumentos musicais como uma prática situada na perspectiva de Lave. Para isso, serão observados os trabalhos realizados nas disciplinas “Construção de Instrumentos e Organologia I e Construção de Instrumentos e Organologia II”, disciplinas da matriz curricular do curso de Licenciatura em Música da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Nestas disciplinas, os objetivos principais estão relacionados à criação e experimentação de instrumentos musicais pelos alunos. As práticas relacionadas à construção de instrumentos musicais são realizadas no laboratório de Construção de Instrumentos do Departamento de Artes e Comunicação da UFSCar, coordenados pelo Professor Eduardo Nespoli. Com o objetivo de corroborar com as ideias de Lave (1996) de que a prática matemática pode assumir formas específicas de acordo com a situação, podendo ser categorizada como uma “prática situada”, pretendo analisar as práticas do professor e dos alunos onde as matemáticas participam. Inicialmente, denominarei essas práticas de “práticas matemático-musicais”, tais práticas envolvem métodos de medir, aferir, calcular, comparar ou procurar objetos que apresentem medidas lineares, áreas ou volumes visando obter um som (ou nota) musical, por meio de um “olhar matemático”, analisando a estrutura e formato do material, utilizando também a percepção musical para entender o som como uma possível nota musical. Podemos estender a ideia de práticas matemáticomusicais às práticas de contagem em música, como por exemplo, ao contar ou marcar os tempos dos compassos em uma música, ao fazer a divisão de notas para um sistema binário, ternário ou outro, ao se utilizar rotações, translações e reflexões horizontais, verticais ou deslizantes em escrita musical, conforme nos mostra o trabalho de Carvalho; Júnior e Bassanezi (2009), ou ao se relacionar matemática e música por meio de modelos matemáticos para construção de instrumentos ou obtenção de notas musicais, conforme fizeram os pitagóricos a mais de 2500 anos. Sintetizando o que fora descrito anteriormente, para atingir o objetivo de discutir as práticas matemáticas em construções de instrumentos musicais como uma prática situada na perspectiva de Lave, abordarei as seguintes questões: Minha questão norteadora: “No decorrer das práticas de construções de instrumentos musicais, como se manifestam os jogos de linguagens onde as matemáticas participam que não poderíamos simplesmente caracterizar como uma matemática “acadêmica ou escolar”, mas que podemos identificar e discutir sob uma perspectiva das práticas situadas?” Corroborando com as ideias de Wittgenstein (I. F. § 7) de que um jogo de linguagem compreende “a totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as quais ela vem entrelaçada”, e este faz parte de uma forma de vida, e só faz sentido nesta, outras questões que poderão auxiliar no desenvolvimento da pesquisa são: Quais são, e como se manifestam, os jogos de linguagem no meio musical que constituem as práticas e diálogos entre alunos e professor na construção dos instrumentos musicais, onde as matemáticas participam? Seguindo ideias de prática situada (Lave, 1996), as práticas matemáticas dos pesquisados apresentam características específicas de acordo com a situação? Como discuti-las sob uma perspectiva das práticas situadas? Assim como temos diferentes jogos de linguagem numa perspectiva do segundo4 Wittgenstein, onde não há uma essência na palavra ou em uma única língua, o significado de uma palavra está para o seu uso nestes jogos de linguagens, a linguagem matemática pode ser interpretada como um jogo de linguagem, assim como descreve Vilela (2013, p. 21). Desta forma utilizarei conceitos da filosofia de Wittgenstein, atendendo, inclusive, ao quesito das diferentes matemáticas simultâneas, desta forma, os jogos de linguagem utilizados pelos estudantes e professor em suas construções de instrumentos, poderão, ou 4 Quando me referir ao segundo Wittgenstein, assim como muitos que estudam suas obras, estarei me referindo aos escritos do filósofo posteriores à sua obra “Tratactus, Lógico-Philosophicus” (1921). não, serem interpretados como uma linguagem que se refere a algum tipo de linguagem matemática. No decorrer das práticas analisadas, conforme descreve Lave (1996, p. 112-113), pretendo observar se pode haver “combinação e transformação de relações de quantidade na atividade corrente, em vez de se partir do princípio de que tal atividade é (ou deveria ser) pontuada por formas de resolução do tipo formal” (do tipo que envolva algum tipo de matemática acadêmica ou escolar), ou seja, se há algum tipo de modelo formal, matemático, seguido pelos alunos nas construções de instrumentos, ou, se eles utilizam estratégias além da simples resolução do “tipo formal”, modificando ou combinando relações de quantidades durante as suas práticas. Serão utilizadas adjetivações descritas em Vilela (2013), como por exemplo: “matemática escolar”, “matemática do dia a dia”, “matemática de um grupo profissional”, “matemática acadêmica”, dentre outras, que remetem a uma “pluralidade de jogos de linguagem” dos quais as matemáticas participam. Esses jogos expressam, por sua vez, os usos de matemáticas específicas em diferentes práticas sociais. O significado de matemática aqui não converge para um sentido único, como é comumente pensado, mas para interpretações distintas relacionadas ao meio onde está sendo empregada e aos jogos de linguagem da qual esta participa. De acordo com a autora, nesta tese, considerarei que “ao contrário de uma concepção essencialista, os diferentes jogos de linguagem possuem, no máximo, semelhanças de família” (Vilela, 2013, p. 25). Metodologia e Procedimentos da Pesquisa Para atingir os objetivos desta pesquisa, serão analisadas, no decorrer do período letivo de 2015, duas turmas do Curso de Licenciatura em Música da UFSCar, especificamente nas disciplinas: “Construções de Instrumentos e Organologia I (primeiro semestre de 2015) e Construções de Instrumentos e Organologia II (segundo semestre de 2015)”. Para obtenção dos dados, será utilizado um diário de campo pelo pesquisador, sendo possível também a utilização de entrevistas, questionários e gravações de áudio e/ou vídeo das atividades desenvolvidas, seguindo as normas estabelecidas pelo Comitê de Ética da UFSCar, mediante a utilização do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) quando necessário. Apesar das diferentes práticas matemáticas que poderão ser descritas com esta pesquisa, não pretendo fazer apontamentos quantitativos como em uma “estrutura formal acadêmica do conhecimento matemático, encarada como um fim em si mesma” e que busque retratar as performances dos sujeitos pesquisados como uma “perícia matemática”, conforme descreve Lave (2002, p. 70). De acordo com Lave (2002, p. 71, grifos meus): Se a prática matemática assume formas específicas de acordo com a situação [...], isso implica que as propriedades matemáticas formais dos problemas potenciais não são suficientes para determinar quais questões emergirão na prática. Outros fatores envolvidos em uma dada situação dão forma aos problemas: as atividades em andamento, a estrutura da situação, as relações entre esta e aquelas. Sendo assim, os experimentos, a compra de mantimentos e as atividades culinárias são situações em que (ao menos) duas coisas estão acontecendo ao mesmo tempo. Combinadas, elas devem dar origem a múltiplas realizações da prática matemática. Assim, conforme retrata Lave (2002, p. 71), nesta pesquisa buscarei mostrar que “a prática matemática assume formas específicas de acordo com a situação”, mostrar que outros fatores relacionados à cultura do grupo local, ou as suas experiências de vida, influenciam ou dão forma às atividades ou problemas relacionados às construções de instrumentos musicais no decorrer das disciplinas analisadas. Mesmo que tenhamos que “adjetivar” as matemáticas presentes nos “jogos de linguagem”, conforme descreve Vilela (2013), essa estratégia não será simplesmente numa perspectiva de analisar as semelhanças com matemáticas do tipo acadêmica ou escolar, mas, também evidenciar as diferenças. Lave (1996, p. 111-112) destaca que, no passado, muitas das teorias cognitivas destacavam ser a mente, ela própria, “estruturada matematicamente”, em outras perspectivas, era a matemática “uma estrutura dos processos de pensamento”, ou ainda, “que o conteúdo matemático do raciocínio (ou intuição matemática) constitui o conteúdo mais poderoso do pensamento” (o pensamento científico), desta forma, a autora considera que as “práticas matemáticas do quotidiano”, podem oferecer “uma via bastante prometedora para a exploração de certas questões relativas à ciência, ao quotidiano e ao modo como se pensa o “outro””. Assim, conjecturamos que a análise in loco destas práticas poderão nos fornecer uma descrição de como são realizadas as práticas nas construções de instrumentos musicais. Poderiam essas práticas se restringirem a uma prática matemática algorítmica? Ou seriam práticas matemáticas distintas, com elementos que as distinguiriam do pensamento puramente científico? Procurarei tratar essa pesquisa de forma qualitativa, seguindo preceitos de Chizzotti (2014, p. 26), corroboro com a ideia de que as pesquisas qualitativas não apresentam um padrão único, “porque admitem que a realidade é fluente e contraditória e os processos de investigação dependem também do pesquisador – sua concepção, seus valores, seus objetivos”. Será o caminho no decorrer da pesquisa que determinará as estratégias, técnicas e métodos o na investigação, à procura de “como as coisas podem ser conhecidas”, de qual a “melhor forma de conhecê-las” e de que “visão de mundo ou teoria” explicará melhor os fatos observados e quais “critérios” que validarão esses conhecimentos. De acordo com Chizzotti (2014, p. 27-28, itálico do autor): Se, [...], o pesquisador supõe que o mundo deriva da compreensão que as pessoas constroem no contato com a realidade nas diferentes interações humanas e sociais, será necessário encontrar fundamentos para uma análise e para a interpretação do fato que revele o significado atribuído a esses fatos pelas pessoas que partilham dele. Tais pesquisas serão designadas como qualitativas, termo genérico para designar pesquisas que, usando, ou não, quantificações, pretendem interpretar o sentido do evento a partir do significado que as pessoas atribuem ao que falam e fazem. Chizzotti (2014, p. 55-56) destaca que algumas pesquisas de caráter qualitativo a partir da “década de 1990 em diante”, “propendem para reconhecer uma pluralidade cultural, abandonando a autoridade única do pesquisador para reconhecer a polivocalidade dos participantes”. Assim, considero que esta pesquisa apresentará essas características ou tendências descritas por Chizzotti (2014), convergindo para uma abordagem de investigação relacionada à Etnomatemática. Barton (2004), descreve que a Etnomatemática seria um programa de pesquisa que estuda os diferentes modos como grupos culturais entendem, trabalham e utilizam conceitos e práticas que os matemáticos descrevem, tendo ou não este grupo cultural, um conceito matemático pré-definido, ou seja, reconhecendo a pluralidade cultural e a “polivocalidade” dos participantes. Essa pesquisa apresentará um caráter qualitativo com viés etnográfico, segundo Chizzotti (2014, p. 70), sensíveis ao discurso “pós-moderno”, as pesquisas de cunho etnográfico tendem a “desconstruir meta-narrativas universais onipotentes, desfazer-se do evolucionismo gradualista, do eurocentrismo colonial [...]”, desvencilhando-se de regimes sutis de poder e testemunhando “miríades de lutas sociais e inscrevê-las em um texto narrativo”, assim, este tipo de pesquisa tende também a não apenas descrever uma descrição de uma observação participante, mas também, “discutir as observações do participante”, que é uma das metas desta pesquisa. Portanto, pretendo manter essa característica etnográfica da pesquisa, assumindo o pressuposto de Chizzotti (2014, p. 65), no qual “a interação direta com as pessoas na sua vida cotidiana pode auxiliar a compreender melhor suas concepções, práticas, motivações, comportamento e procedimentos, e os significados que atribuem a essas práticas”. Conforme descrito anteriormente, a pesquisa será realizada no ambiente de interação dos sujeitos participantes. Desta forma, segundo Lüdke e André (2014, p. 34), poderei me situar enquanto um “observador como participante”, porque minha identidade de pesquisador e meus objetivos foram revelados ao grupo pesquisado desde o início. De acordo com Lüdke e André (2014, p. 34) “Nessa posição, o pesquisador pode ter acesso a uma gama variada de informações, até mesmo confidenciais, pedindo cooperação do grupo. Contudo, terá em geral que aceitar o controle do grupo sobre o que será ou não tornado público pela pesquisa”, assim, conforme fora apresentada ao Comitê de Ética de Pesquisa da UFSCar, a pesquisa foi autorizada pelos envolvidos por meio de minha apresentação enquanto pesquisador, da explanação inicial dos objetivos do projeto e mediante a assinatura do “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido” (TCLE). A pesquisa também apresentará uma característica descritiva. Segundo Barton (2004), em uma atividade descritiva, a primeira tarefa de um pesquisador em uma pesquisa com características da pesquisa Etnomatemática, consiste em descrever práticas ou concepções que serão consideradas, e esta descrição, se possível, deverá ser feita dentro do contexto da cultura analisada, que também faz parte do objeto de pesquisa. Resultados Esperados Pretendo elaborar uma discussão teórica analisando as atividades desenvolvidas no decorrer das aulas de construções de instrumentos musicais, mostrando que “muitas relações de quantidade têm relações mais estreitas com outros aspectos da atividade do que as que têm entre si” (Lave, 1996, p. 120), em algumas situações, o simples modelo matemático universal não conseguirá atingir o objetivo neste grupo específico, porque para eles, o cálculo (a matemática escolar) é apenas outra ferramenta que acompanha sua prática, o relevante para eles, parece ser a percepção sonora do que estão realizando. Tratase de uma prática situada, portanto, devemos tomar o cuidado para não restringirmos as matemáticas ao aspecto de uma “matemática universal”, mas como ferramentas que acompanham utilização de outros aspectos como, por exemplo, a “percepção musical”. Citando novamente Lave (1996, p. 120), “As pessoas são verdadeiras histórias ambulantes dos cálculos que fizeram no passado [...]”, da mesma forma, os participantes da pesquisa têm uma ligação musical que os influenciaram a seguir sua formação acadêmica, portanto, trata-se de um grupo específico, e para eles, as operações ou práticas utilizadas no decorrer da atividade podem ser “inventadas no momento”, fazendo parte integrante de uma “atividade normal e situada”, influenciadas pelas suas concepções. REFERÊNCIAS BARTON, Bill. Dando sentido à etnomatemática: etnomatemática fazendo sentido. Educational Studies in Mathematics 31, Netherlands: Kluwer Academic Publishers, 1996. p. 201-233. 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