Universidade Estadual de Maringá 08 e 09 de Junho de 2009 OS SÉCULOS XVI E XVII: OS DETERMINANTES DA ARTE DE ENSINAR NUM CONTEXTO DE TRANSIÇÃO NEVES, Sandra Garcia (UEM) GASPARIN, João Luiz (Orientador/UEM) Introdução Alguns acontecimentos do século XVI e XVII foram tão decisivos que mudaram, definitivamente, o modo de pensar e agir humano a partir de então. Especificamente, no campo educativo, estas transformações contribuíram com a expansão das escolas e ampliou, conseqüentemente, o número de alunos integrantes da instrução pública o que exigiu, por sua parte, nova organização, meios e instrumentos de ensino. Poderíamos citar centenas de nomes, de filósofos, cientistas, religiosos e outros, contudo, como esta empreitada para nós é extremamente difícil, optamos por citar alguns nomes, não menos significativos, para exemplificar como as transformações no modo de produção e na organização social, interferiram na constituição das escolas e dos métodos de ensino. Nosso objetivo é expor parte dos acontecimentos do período referido e seus reflexos na Arte de Ensinar. Séculos XVI e XVII: os determinantes “Acabou-se o velho tempo, estamos numa época nova”, é a frase que Brecht (1970, p. 11) escreveu para o professor de matemática na peça de teatro “Vida de Galileu”. Esta frase curta, porém, cheia de significado, resume as características dos séculos XVI e XVII chamados de “séculos do método” (GASPARIN, 1994b, p. 213). Nestes séculos, a transição da Idade Média para a Idade Moderna é a “[...] passagem do estático, fixo, imutável, fechado, de verdades reveladas, para o dinâmico, variável, mutável, aberto, de verdades por descobrir [...]” (LORA apud GASPARIN, 1994a, p. 32). 1 Universidade Estadual de Maringá 08 e 09 de Junho de 2009 O século XVI e o XVII foram marcados pelo grande crescimento da ciência, das artes, da economia, da política e da filosofia. Neste período, decisivamente “[...] a imprensa foi a mais poderosa ajuda dada aos reformadores religiosos e o principal processo do despertar intelectual” (EBY, 1976, p. 14). A propagação dos livros tanto na área da ciência quanto da filosofia possibilitou que os estudos chegassem, e com isso, pudessem ampliar ou mesmo reafirmar, as descobertas realizadas pelo homem no mundo todo. Acerca desta passagem, Lora (apud GASPARIN, 1994a, p. 32) aponta que [...] como tendência dominante, a ruptura, a mudança, a transição do modo de produção feudal ao incipiente capitalismo, com todas as transformações que isto implica na mentalidade, nas crenças, nos valores, nas formas de vida das pessoas e das sociedades. Pode-se dizer, de forma esquemática, que se opera uma alteração na ordem socioeconômica, política, religiosa e cultural. Para todo homem, e, em qualquer lugar do mundo, estas mudanças estruturais alteraram os costumes, os valores, as crenças e as atitudes. Nos escritos, por exemplo, os títulos dos livros científicos publicados no transcorrer do século XVII, como a Didática Magna de Comênio e o Novum Organum de Francis Bacon, Exprimiam significativamente as exigências, inquietações e insatisfações de uma época que era sensível à insuficiência da formação tradicional do homem. Anunciavam ao mesmo tempo a realidade diferente que estava nascendo, não apenas nova, mas grande, universal, na qual era necessária e fundamental a cooperação de todos (GASPARIN, 1994a, p. 36). A distinção do século XVI e o XVII, por compreender um período de transição, que não poderia mais ser feita [...] por sinais de declínio de um e indícios de ascensão de outro, mas pela fase mais desenvolvida de cada um, o que não esclarece a fase de transição entre ambos, em que o velho ainda não se esgotara e o novo apenas começara a emergir, coexistindo elementos de um e de outro período (GASPARIN, 1994a, p. 32). Gasparin (1994a, p. 35) complementa que “a Igreja, como o símbolo da estrutura econômica feudal que [sustentava a velha estrutura], cedia lentamente lugar ao avanço 2 Universidade Estadual de Maringá 08 e 09 de Junho de 2009 das forças produtivas da burguesia, apoiadas nas novas relações de trabalho e de propriedade”. Junto ao avanço burguês, veio a mudança da centralidade do pensamento: de Deus e da religião, para o Homem, individual e social. [...] à medida que o processo de passagem se concretizava, o homem aumentava sua confiança em si, em suas potencialidades individuais e sociais, contrariamente à anterior confiança plena em Deus, e inaugurava gradativamente uma nova fase de relações entre os homens. Foi o momento em que a burguesia começou a se constituir. Nessa transição, o ponto de partida era uma estrutura de economia feudal que estava findando, e o ponto de chegada, uma incipiente economia capitalista que dava seus primeiros passos na constituição da nova estrutura da sociedade (GASPARIN, 1994a, p. 32). Na primeira metade do século XVII, “[...] a Escolástica [conservou] uma influência considerável; [continuou] sendo a filosofia oficial, a da Igreja, dos Colégios, a eventualmente protegida pelos poderes públicos” (GALVÃO, 1996, p. VIII). Esta filosofia É uma tentativa de organização racional do dado humano na perspectiva da fé, através de instrumentos conceituais de origem peripatética. Por outro lado, é obra exclusivamente de homens da Igreja e de professores, preocupados acima de tudo em defender e transmitir as idéias reveladas. Daí suas principais características (GALVÃO, 1996, p. VIII). Referindo-se a civilização européia, do decorrer da última parte do século XVI, Eby (1976, p. 99) atenta para que Tendo-se abrandado o impacto inicial da Renascença e da revolta protestante, as diversas forças começaram a se reajustar [...] a civilização européia não conservava mais a sua unidade, como na Idade Média. Rivalidades nacionais se intensificaram e a corrida para o imperialismo mundial começou. Mas, a maior causa de conflito foi a determinação da Igreja Romana de recuperar a hegemonia que havia perdido. Isto resultou na reforma católica, em vários esforços para o restabelecimento da unidade religiosa e em um século de guerras sangrentas. A favor da organização racional citada por Galvão (1996), um grande representante foi Bacon com a (1561-1626), “[...] crítica sobre os erros tradicionais, a insistência sobre a experiência concreta e a pesquisa sobre uma nova classificação das ciências [...]” (MANACORDA, 1995, p. 218). 3 Universidade Estadual de Maringá 08 e 09 de Junho de 2009 Contrapondo-se ao pensamento de centralidade, imobilidade da Terra e manutenção desta crença pela Igreja de sua época, Brecht (1970, p. 12), em uma das falas de Galileu (1564-1642), apresenta o espírito científico e investigador do professor de matemática relutante ao afirmar: “mas precisamente porque é assim, a partir de agora deverá ser diferente”. Numa época em que as descobertas e investigações eram consideradas disparates, transformava-se “[...] num enorme prazer investigar os fundamentos, os princípios de todas as coisas”, considerando-se que “já se descobriram muitas coisas, mas há ainda muitas mais que podem ser descobertas” e que “[...] onde antigamente havia a fé, agora há a dúvida”. Descartes (1596-1659) (1996, p. 13) também acreditou que muitas coisas poderiam ser descobertas, tanto que no Discurso do Método escreveu que [...] assim que a idade me permitiu sair da sujeição de meus preceptores, deixei completamente o estudo das letras. E, resolvendo-me a não mais procurar outra ciência além da que poderia encontrar-se em mim mesmo, ou então no grande livro do mundo, empreguei o resto da juventude em viajar, em ver cortes e exércitos, em conviver com pessoas de diversos temperamentos e condições, em recolher várias experiências, em experimentar-me a mim mesmo nos encontros que o acaso me propunha, e, por toda parte, em refletir sobre as coisas de um modo tal que pudesse tirar algum proveito. Pois parecia-me que poderia encontrar muito mais verdade nos raciocínios que cada qual faz parte sobre os assuntos que lhe dizem respeito, e cujo desfecho deve puni-lo logo depois, se julgou mal, do que naqueles que um homem de letras faz em seu gabinete, sobre especulações que não produzem nenhum efeito, e que não terão outra conseqüência a não ser, talvez, a de que extrairá delas tanto mais vaidade quanto mais afastadas estiverem do senso comum, pelo fato de ter tido de empregar tanto mais espírito e artifício para torná-las verossímeis. No estudo de Galileu sobre a Astronomia, no de Pascal (1623-1662) sobre a Geometria e no de Bacon sobre o Empirismo, a preocupação com o método, tanto de ordem prática quanto teórica, caracterizava “[...] novas formas de agir, pensar e ser [...]”, num momento histórico em que havia “[...] um clima geral onde o método era um elemento respirado por todos [...]”, e em que a preocupação com o “[...] método não era, conseqüentemente, algo de específico ou próprio da educação ou do ensino” (GASPARIN, 1994b, p. 213). 4 Universidade Estadual de Maringá 08 e 09 de Junho de 2009 Como expressão desta prática, a dedicação do pensamento a um estudo específico e metódico foi valorizada por Pascal (1973, p. 49) ao afirmar que “como não se pode ser universal e saber tudo o que é possível saber de tudo, é preciso saber um pouco de tudo [...]”. Considerou ser mais belo “[...] saber alguma coisa de tudo do que saber tudo de uma coisa [...]”. Neste sentido, os exemplos citados são propícios, pois reforçam a idéia de que “[...] partindo dos elementos comuns a todos os setores, cada pensador, cada cientista, segundo sua história pessoal de vida, capta e desenvolve um aspecto particular dessa realidade global, mantendo as características gerais desse período”, e possibilitaram que “os avanços da ciência e da técnica nos séculos XVI e XVII foram um fator decisivo na configuração do modelo geral do pensamento humana de então” (GASPARIN, 1994b, p. 220). Ocorreu, assim, “[...] a ciência experimental moderna, que também se constituía nesse período, buscando desvendar os segredos e as leis da natureza, trazia um novo método de conhecer que influenciava o método de ensinar” em que “[...] o homem buscava a conexão que existia entre os elementos naturais”. Contudo, “[...] defronta-se com o pensamento escolástico dominante que ainda ensinava os nexos divinos, isto é, a criação e a dependência, a sujeição do humano e do natural à providência de Deus” o que, por sua vez, não impede que “o homem [se torne] o centro das explicações das coisas [...]” (GASPARIN, 1994b, p. 217). Neste período de expansão da ciência da natureza, Pascal (1973, p. 56) questionou: Afinal, que é o homem dentro da natureza? Nada em relação ao infinito; tudo em relação ao nada; um ponto intermediário entre tudo e nada. Infinitamente capaz de compreender os extremos, tanto o fim das coisas como o seu princípio permanecem ocultos num segredo impenetrável, e é-lhe igualmente impossível ver o nada de onde saiu e o infinito que o envolve. Mas, se perdido entre o nada e o tudo, entre a ciência e a religião, métodos foram propostos para que o homem chegasse ao conhecimento e explicação das coisas. Assim foi que Pascal (1973, p. 55) defendeu a experiência sensível ao considerar que Todo esse mundo visível é apenas um traço imperceptível na amplidão da natureza, que nem sequer nos é dado conhecer mesmo de um modo vago. Por mais que ampliemos as nossas concepções e as projetemos além dos espaços imagináveis, concebemos tão-somente átomos em comparação com a 5 Universidade Estadual de Maringá 08 e 09 de Junho de 2009 realidade das coisas. Esta é uma esfera infinita cujo centro se encontra em toda parte e cuja circunferência não se acha em nenhuma. Pascal se conscientizou da sujeição do homem a Deus e de sua dependência em relação à onipotência divina, mesmo porque, no realismo do início do século XVII, “[...] a atenção não estava inteiramente concentrada na observação do mundo exterior” (EBY, 1976, p. 143). Já na segunda metade do século XVI, Bacon (1973, p. 22) havia ressaltado a necessidade do método ao afirmar que Os descobrimentos até agora feitos de tal modo são que, quase só se apóiam nas noções vulgares. Para que se penetre nos estratos mais profundos e distantes da natureza, é necessário que tanto as noções quanto os axiomas sejam abstraídos das coisas por um método mais adequado e seguro, e que o trabalho do intelecto se torne melhor e mais correto. Para Bacon (1973, p. 33; 55) a verdade não deveria “[...] ser buscada na boa fortuna de uma época, que é inconstante, mas à luz da natureza e da experiência, que é eterna”. O cientista considerou que “a verdadeira e legítima meta das ciências é a de dotar a vida humana de novos inventos e recursos”. Ressaltadas as transformações sofridas no campo da ciência e da filosofia, dentre os sinais de transição, Hoff (2002, p. 46) cita a mudança dos modos de produção: da manufatura inicial para a manufatura plena. Em suas palavras, A mediação histórica, que faz a distinção entre a manufatura inicial – a do domínio da pequena burguesia, incluindo-se o pensamento e a atividade das seitas – e a manufatura plena, sob o domínio do capital da burguesia triunfante está a indicar novo tipo de ruptura. A manufatura plena rechaçou o elemento religioso de seus princípios e enveredou pelo direito natural emancipado do religioso e relativizado [...] a nova concepção do direito natural se firmava com a afirmação de que todos os seres humanos nascem iguais, mas os méritos os diferenciam naturalmente. Foi no século XVI que se iniciaram os agrupamentos de trabalhadores para desenvolvimento cooperativo em que socializavam também os instrumentos de produção, que, após a manufatura plena, deram lugar ao produto industrializado. Resumindo as características destes modos de produção, Larroyo (1970, p. 425) cita Ponce para esclarecer que 6 Universidade Estadual de Maringá 08 e 09 de Junho de 2009 Quando a máquina de fiar substituiu a roca, e o tear mecânico substituiu o tear manual, a produção deixou de ser uma série de atos individuais para converter-se numa série de atos coletivos. Essa maneira de transformar as insignificantes ferramentas do artesão em máquinas, cada vez mais poderosas, e por isso mesmo só manejáveis por uma coletividade de obreiros, pôs em mãos da burguesia um instrumento tão eficaz que em poucos séculos a humanidade percorreu um trajeto como não o havia feito até então em milhares de anos. O domínio sôbre a Natureza, pelo qual o homem vinha suspirando desde as idades mais remotas, atingiu um grau tão intenso que uma transformação profunda se refletiu nas ideologias. Alves (2006, p. 81) explica que “[...] a preocupação do capital concentrou-se mais decisivamente na reunião, dentro de um único local, dos artesãos antes espalhados, do que decorreram a concentração física dos meios de produção e a edificação de instalações maiores e menos dispendiosas do que as acanhadas e dispersas oficinas artesanais”. Ao utilizar estes meios e recursos a soma de capital destinada à produção de mercadorias foi reduzida e resultou na diminuição tanto nos custos quanto na própria produção de mercadorias. A nova forma de trabalho que estava se instituindo determinava que não mais se habilitasse o indivíduo para ser diferente dos outros, por sua produção particular, mas que todos se assemelhassem pelo uso dos novos instrumentos e pela forma de trabalho coletivo, onde as capacidades e habilidades de cada um já não se expressavam em obras singulares, mas em produtos de trabalho cooperativo. Neste novo processo de produção da vida humana todos os homens se tornavam iguais para o trabalho, uma vez que os instrumentos supriam as deficiências e freiavam [sic] as genialidades, buscando um ponto de equilíbrio, próprio das inteligências médias. Era um novo método de produzir objetos, mercadorias, que esta surgindo (GASPARIN, 1994b, p. 214). A mudança na forma de trabalho caracterizou o término do período feudal e o início da idade moderna. Gasparin (1994b, p. 214) assim descreve esse período: Do artesanato passava-se à manufatura, isto é, do processo de trabalho em que o mestre era proprietário de sua ferramenta, da matéria-prima e do produto de sua ação, caminhava-se gradativamente para aquela forma em que o trabalhador era livre tanto como pessoa, dispondo de sua força de trabalho como mercadoria que podia vender a quem quisesse, e livre também no sentido de não dispor das ferramentas, da matéria-prima, nem do produto de seu trabalho. A manufatura colocava o trabalho em novas bases, transformando as relações de propriedade, bem como as relações sociais. 7 Universidade Estadual de Maringá 08 e 09 de Junho de 2009 A manufatura caracterizava-se pela divisão do trabalho e pela cooperação, mas o trabalhador realizava somente uma parte do processo “[...] seguindo um método comum, universal, que devia ser obedecido por todos, independentemente das capacidades particulares”. Decorria que “o método único de trabalho nivelava a todos na nova forma de produzir a vida material e social [...]”. Isto porque, “a nova ordem social onde todos deviam trabalhar, ou eram tornados aptos para o trabalho, implicava a divisão e valorização do tempo, o mesmo ocorrendo nas escolas” (GASPARIN, 1994b, p. 215). É neste sentido que Alves (2005, p. 64, grifo do autor) esclarece que “a superação do artesanato pela manufatura, portanto, pode ser entendida como o resultado da emergência de uma nova força produtiva, imanente ao caráter social assumido pelo trabalho, que, ao elevar sua produtividade, redundou num salto qualitativo, pois, sobretudo, fundou as bases da produção capitalista”. A Arte de Ensinar num contexto de transição Apresentados os determinantes que marcaram o século XVI e o XVII, apresentaremos as características gerais da Arte de Ensinar conforme as modificações decorrentes, especificamente, da manufatura inicial para a manufatura plena. No século XVI e no XVII, a relação entre o modo de produção artesanal esteve estritamente ligada à arte do ensino referente a qual Alves (2006) explica o que o termo artes abrangia também a manufatura, mas ao caracterizá-las, o termo pareceu antiquado. Se no período medieval o termo correspondia ao artesanato, na sociedade feudal, esta definição designou também a manufatura. Para Alves (2006, p. 71) ocorreu que [...] a manufatura, depois de ter-se apropriado da base técnica do artesanato, representava a sua superação, pois, através da divisão do trabalho, havia decomposto o todo do ofício medieval em suas operações constitutivas; ao mesmo tempo, especializara não só os artífices em uma ou poucas dessas operações, mas, até mesmo, os instrumentos de trabalho, que ganharam formas mais adequadas às operações nas quais eram utilizados. O desenvolvimento da manufatura se deu pela combinação das atividades de diferentes trabalhadores e aumentou a produtividade do trabalho e nos permite afirmar que “a 8 Universidade Estadual de Maringá 08 e 09 de Junho de 2009 superação do artesanato pela manufatura [...] pode ser entendida como o resultado da emergência de uma nova força produtiva, imanente ao caráter social assumido pelo trabalho, que, ao elevar sua produtividade, redundou num salto qualitativo, pois, sobretudo, fundou as bases da produção capitalista” (ALVES, 2006, p.72, grifo do autor). Conforme citamos acerca dos estudos de Pascal, Bacon e Galileu, “as grandes transformações materiais que determinavam uma nova concepção de mundo e, conseqüentemente, de homem, de pensamento, de ciência, de educação, de ensino, encontram-se expressas nas obras dos pensadores que souberam apreender seu tempo” (GASPARIN, 1994b, p. 280). A Cidade do Sol de Tomás Campanella (1568-1639) é uma destas obras e sobre a qual Manacorda (1995, p. 217) salienta [...] a universalidade do conteúdo da instrução, o seu caráter moderno e científico, a didática revolucionária, a articulação da instrução com o trabalho, a importância do trabalho agrícola, sempre marginalizado na reflexão dos filósofos e pedagogos, o reconhecimento da nobreza do “fazer” são motivos que revolucionam a tradição pedagógica e mereceriam uma análise mais profunda [...]. O livro de Eby (1976) História da Educação moderna: teoria, organização e prática educacional referente aos séculos XVI ao XIX discorre tanto sobre a ciência ou filosofia em si e apresenta as contribuições dos diferentes pensadores para a instrução e o método. Entre estas contribuições, Eby (1976) cita, por exemplo, Bacon e afirma que este não propôs um método de instrução original ou melhor do que as práticas dos jesuítas, mas seus estudos com relação do progresso do saber, do método indutivo e da aplicação prática da ciência foram significativos. Bacon não estava interessado na descoberta da natureza por pura curiosidade, ou em favor do conhecimento como um fim em si mesmo, mas de preferência em utilizar as forças da natureza para o bem-estar da humanidade. Não pertence ao grupo de cientistas interessados primordialmente na compreensão da natureza do mundo e do homem e que procuram acumular conhecimento para o seu próprio proveito. Bacon faz parte do grupo de cientistas práticos, que utilizam os segredos da natureza para fazer invenções em benefício do homem (EBY, 1976, p. 136). 9 Universidade Estadual de Maringá 08 e 09 de Junho de 2009 O método indutivo de Bacon baseava-se nas “[...] observações dos fenômenos do mundo exterior pelos sentidos, combinados com a experimentação [...]” (EBY, 1976, p. 138). Neste sentido, a experimentação deveria ligar-se à observação, envolver o controle das condições para facilitá-la ou simplificá-la. Ratke (1571-1635), um representante do pensamento burguês alemão no período feudal, foi contemporâneo de Bacon. Tratando-se à Arte de Ensinar, Hoff (2008a, p. 5) apresenta como preocupação do pedagogo alemão que “[...] o antigo, a não-razão, o irracional, o não-natural, deveriam ser substituídos pela organização didática e social que ele propunha ser natural e racional”. Permeados deste objetivo, os textos de Ratke “[...] revelam o pensamento burguês a combater e a eliminar o pensamento feudal”. Em resumo, a proposta educacional de Ratke “[...] conserva a idéia do desenvolvimento do indivíduo livre, criador, versátil, multifacetado e poliglota; que propõe uma vida feliz para todas as pessoas a viver numa pátria alemã unificada, harmônica, sem conflitos e progressista” (HOFF, 1995, p. 47). Como reflexo do modo de produção de sua época, o estudo que Hoff (2008a, p. 1) sobre Ratke é justificado por que [...] pretendeu estender seu novo método de ensino a toda a Reforma Luterana; renovou a instituição escolar e a didática, 45 anos antes da edição da Didática Magna de Comênio; inaugurou práticas escolares inovadoras à base da divisão do trabalho didático que persiste até hoje nas nossas escolas; institui um pensamento pedagógico que proporcionasse educação para todos; pressionou os príncipes a instituir escolas e o ensino renovado; propôs uma instrução econômica em tempo e em recursos financeiros; e organizou o trabalho didático a partir de uma nova sociedade que, também, originou novos conhecimentos e um novo método de ensino. Em consonância com o espírito de sua época, de universalidade, gratuidade e inovação, a Arte de Ensinar de Ratke, assim como a Didática Magna de Comênio, é fruto do modo de pensar de sua época. É neste sentido que Hoff (2008a, p. 7), ao analisar a proposta didática de Ratke considerou que ser a “[...] instrução pública para todas as crianças e instrução coletiva que resultou na divisão do trabalho didático e na utilização de manuais didáticos” os princípios político-pedagógicos que nortearam seu pensamento. 10 Universidade Estadual de Maringá 08 e 09 de Junho de 2009 Ratke propôs sua pedagogia com temas e práticas educacionais adaptadas às novas situações históricas de sua época caracterizada basicamente pela “[...] administração estatal, educação para todos, ensino público, obrigatório e gratuito, a participação intensa da sociedade, a economia de tempo e de recursos, o método intuitivo de ensino, distribuição gratuita de manuais didáticos para efetivar a arte de ensinar” (HOFF, 2008b, p. 2). Em conformidade com a divisão do trabalho material, Ratke (apud HOFF, 2008a, p. 8) propôs para o trabalho didático “[...] um único professor, com a presença de dezenas de alunos, num mesmo lugar e, utilizando o mesmo instrumento de trabalho, o manual didático, ministrava o mesmo ensino a todos, na mesma hora e ao mesmo tempo”. Encontramos a expressão desta organização do trabalho didático na Didática Magna de Comênio descrita por Manacorda (1995, p. 222) como [...] a freqüente analogia a máquinas modernas, imaginando, por exemplo, a escola como uma “tipografia vivente” (Typographeum vivum é o título de um dos últimos dos seus escritos), pela qual imprimir, como um livro, os conhecimentos na mente das crianças, é indicativa da sua atenção para as minúcias da didática e as visões milenaristas, como também para o moderno desenvolvimento da técnica. Em resumo, “o plano de Comenius de educação pansófica compreendia a arte de ensinar tudo a todos [...] o ideal que inspirou [...] foi a nobre visão de educar cada criança de tal forma de que esta pudesse participar, até a plenitude de suas capacidades, de todo o conhecimento e da vida social” (EBY, 1976, p. 156). Esta prática foi possibilitada devido à “[...] a objetivação e a simplificação do trabalho didático [...] à semelhança do ocorrido com as manufaturas, seu efeito desencadearia a redução do custo de formação dessa modalidade de trabalhador parcial e, como resultado direto, o barateamento dos serviços escolares” (ALVES, 2006, p. 86, grifo do autor). Dentre as possibilidades de barateamento do trabalho didático do professor, na sala de aula, o manual didático centrou o poder até então exercido pelo professor. Foi assim que “o manual didático, comportando toda a gama de suas especializações, decorrentes dos diferentes momentos da escolarização e das distintas áreas do conhecimento, estreitou os limites do saber 11 Universidade Estadual de Maringá 08 e 09 de Junho de 2009 exigido do professor, pois, objetivamente, restringiu-os aos seus próprios limites” (ALVES, 2006, p. 88). Concretizou-se na escola, a reprodução da divisão do trabalho manufatureiro. Outra implicação acerca da existência das escolas, dos professores e do trabalho didático é relembrada por Alves (2005, p. 63) ao afirmar que “com a maior complexidade da sociedade, que transitava do feudalismo para o capitalismo e transformava profundamente as relações entre os homens, tornara-se patente a impossibilidade de os genitores assumirem, diretamente, a educação dos filhos”. Referindo-se a organização e constituição das escolas de sua época, Bacon (1973, p. 65) criticou que “[...] nos costumes das instituições escolares, das academias, colégios e estabelecimentos semelhantes, à sede dos homens doutos e ao cultivo do saber, tudo se dispõe de forma adversa ao progresso das ciências”. Ao descrever esta realidade, o filósofo enfatizou que “[...] as lições e os exercícios estão de tal maneira dispostos que não é fácil venha a mente de alguém pensar ou se concentrar em algo diferente do rotineiro”. Ao lado de Ratke e Comênio, Vives “[...] profeta do Realismo [...] deve ser encarado também como o primeiro grande estudioso moderno da teoria educacional” (EBY, 1976, p. 42; 43) que “[...] dedicou-se à Psicologia, tendo em vista fazer dos princípios e das operações da mente a base da prática docente”. Neste sentido, o pedagogo valenciano foi considerado o precursor da Psicologia empírica, pois considerava que o estivesse nas artes estaria primeiramente na natureza. Segundo Eby (1976, p. 43), Vives “criticou o método usual de ensino das artes e organizou um plano compreensivo de educação adaptado às necessidades de seus dias”. Como vimos, o século XVII apresentou caracteres singulares para a pedagogia. Foi o século de transição do Humanismo e da Reforma do Século XVI para a ilustração e o Despotismo esclarecido do século XVIII. Assim, os caracteres próprios referentes à educação são resumidos por Luzuriaga (1984, p. 125) em: 12 Universidade Estadual de Maringá 08 e 09 de Junho de 2009 1.º) Acentuação do aspecto religioso tanto no caso da Reforma protestante como no da Contra-Reforma católica. Duas fases se distinguem, por sua vez, dentro desses movimentos: uma dogmática, cerrada e outra de caráter mais íntimo e piedoso. 2.º) Incremento da intervenção do Estado na educação nos países protestantes, com legislação escolar mais ampla e compreensiva. 3.º) Introdução paulatina das novas idéias filosóficas, tanto da corrente idealista (DESCARTES, LEIBNIZ), como da empirista (BACON, LOCKE). 4.º) Igualmente, repercussão das novas idéias científicas que haviam começado a desenvolver-se no século passado (KEPLER, GALILEU). 5.º) Finalmente, como conseqüência desses movimentos filosóficos e científicos, nascimento da nova didática n seio da pedagogia (RATKE e COMENIUS). Como vimos, a transição significou a passagem da centralidade na religião e em Deus para a ciência e o Homem, do artesanato para a manufatura, do ensino individual e particular para o ensino mútuo e público. Considerações finais Gasparin (1994a; 1994b) ao referir-se ao século XVI e XVII como os “séculos do método” e Alves (2005; 2006) ao descrever o trabalho didático neste período apresentando os elementos constitutivos da manufatura inicial e plena, apresentam-nos duas idéias essenciais que nos ajudaram na compreensão do que foi e como foi a Arte de Ensinar neste período. Neste período de transição, da manufatura inicial para a manufatura plena, da centralidade na religião e em Deus para a ciência e o homem, Vives, Ratke e Comênio, propuseram a Arte de Ensinar universal e gratuita. REFERÊNCIAS ALVES, Gilberto Luiz. A produção da escola pública contemporânea. 4 ed. Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2006. 13 Universidade Estadual de Maringá 08 e 09 de Junho de 2009 ALVES, Gilberto Luiz. O trabalho didático na escola moderna: formas históricas. Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2005. (Coleção Educação Contemporânea). BACON, Francis. 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