“É questão de honra Cambahyba virar assentamento”, dizia liderança do MST assassinada
O trabalhador rural assentado Cícero Guedes não conseguia conter as lágrimas quando recordava da
mística que homenageou militantes incinerados nos fornos da Usina Cambahyba pela ditadura civilmilitar brasileira nos anos 1970 e 1980. Era angustiante para ele imaginar que naquele lugar pelo
menos dez militantes torturados e mortos no DOI e na Casa da Morte haviam sido incinerados por
lutarem por justiça social. Décadas depois, no mesmo lugar, a liderança do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), Cícero Guedes, tomba pelo sonho de ampliar a reforma
agrária no país.
“A mística foi muito forte, ninguém merece ser queimado. Muita gente faz atrocidade neste mundo
e não é queimado. É questão de honra para o movimento esse latifúndio virar assentamento. A gente
se emociona porque somos seres humanos e sabemos e sentimos na pele o companheiro que luta por
justiça social”, disse Cícero, sobre o ato promovido em agosto pelo MST e pela ArticulaçãoEstadual
Memória, Verdade e Justiça na usina.
Coordenador do acampamento Luiz Maranhão, localizado no parque industrial da Usina
Cambahyba, Campos dos Goytacazes-RJ, Cícero Guedes dos Santos, de 54 anos, foi assassinado
com mais de dez tiros na cabeça por pistoleiros na madrugada desta sexta-feira (25), em Campos
dos Goytacazes. Ele participou de uma reunião na noite anterior no acampamento e foi baleado em
uma emboscada quando retornava de bicicleta para sua casa no assentamento Zumbi dos Palmares.
Cícero fazia parte da Direção Estadual do MST no Rio de Janeiro.
O velório vai acontecer neste domingo 27/01, na capela do cemitério Campo da Paz em Campos
dos Goytacazes a partir das 9h e o enterro ocorrerá às 13h. Antes do enterro o MST fará um ato
político de denúncia da violência do latifúndio na região. Já confirmaram presença o presidente do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Carlos Guedes, o senador Lindbergh
Farias (PT), os deputados estaduais Robson Leite (PT) e Marcelo Freixo (Psol), o delegado do
Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), José Otávio, o superintendente do Incra, Gustavo
Noronha e diversas entidades de direitos humanos.
“Pedimos e reivindicamos que investiguem e punam os responsáveis, que garantam a segurança
para os familiares de Cícero que moram na região, além da imediata desapropriação da Cambahyba.
Este é mais um crime do latifúndio de Campos dos Goytacazes, que envolve diretamente as
questões da Cambahyba”, declarou Marina dos Santos, da coordenação estadual do MST. “A gente
está considerando um crime semelhante ao que aconteceu com Sebastião Lan que foi assassinado
pelo latifúndio em Campos Novos em Cabo Frio da década de 1980. Ele era presidente do sindicato
dos trabalhadores rurais. Da mesma forma que Cícero, Sebastião era referência para o movimento e
fazia o trabalho de organização dos trabalhadores”, acrescentou Marina.
A Polícia Civil emitiu um comunicado afirmando que está empenhada na investigação da morte da
liderança. O órgão também informou que medidas cautelares estão sendo adotadas para esclarecer a
autoria e a motivação do crime.
“Desafio é pra ser cumprido”
Cícero acompanhava todas as áreas que estavam na luta pela terra na região de Campos. Ele atuava
nos diversos assentamentos e era responsável pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) do
governo federal. Na ocupação de Cambahyba, ele planejou todo o processo de organização das
famílias. Referência na produção agroecológica, Cícero também era organizador e entusiasta das
Feiras da Reforma Agrária do MST que acontecem no Largo da Carioca, no centro do Rio, com a
venda de verduras e frutas livres de agrotóxicos. “Realizar mais feiras é um desafio e desafio é pra
ser cumprido. Tudo pra nós é desafio, estamos acostumados com essa situação. Esse negócio de
veneno é uma babaquice desses filhos da puta. O capitalismo é cruel e devasta tudo. Não tem esse
negócio de remédio, é veneno mesmo e veneno mata”, dizia Cícero.
O alagoano Cícero vivia desde 1998 no Sítio Brava Gente no assentamento Zumbi dos Palmares.
De Alagoas, trazia lembranças de uma vida sofrida, onde trabalhava em condições desumanas e até
passava necessidade. Foi nos canaviais de Campos dos Goytacazes que Cícero, junto com a esposa
Maria Luciene, iniciou suas atividades na cidade. Depois, como operário da construção civil,
participou das obras da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf). O sonho de ter sua
própria terra para plantar se concretizou com a mobilização popular da primeira ocupação de terras
na região, em 1996, da Usina São João, que deu origem ao maior assentamento do estado, o Zumbi
dos Palmares.
Mesmo assentado, com seu lote garantido, Cícero nunca perdeu de vista a necessidade de fortalecer
o movimento e ampliar a reforma agrário no Brasil. Ele coordenava o acampamento Cambahyba
que pressionava o Governo Federal a destinar para fins de reforma agrária as terras da usina que são
consideradas improdutivas pelo Incra há 14 anos. Em dezembro, o Incra sinalizou que retomaria o
processo de desapropriação para fins de reforma agrária. mais ainda não há nada concreto.
A usina Cambahyba é um complexo de sete fazendas que totaliza 3.500 hectares. A área pertencia
ao já falecido Heli Ribeiro Gomes, ex-vice governador biônico do Rio de Janeiro (1967-1971),
ligado à Tradição Família e Propriedade (TFP) e agora é controlada por seus herdeiros. De extremadireita, Heli permitiu que a usina funcionasse como braço operacional das execuções, uma
alternativa para eliminar os vestígios dos mortos pelo regime. Segundo o ex-delegado Claudio
Guerra, no livro Memórias de uma Guerra Suja, a usina recebeu até benefícios dos militares pelos
serviços prestados com acesso fácil a financiamentos.
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