Sergio Francisco Carlos Graziano Sobrinho
Globalização e sociedade de controle:
a cultura do medo e o mercado da
violência
TESE DE DOUTORADO
DEPARTAMENTO DE DIREITO
Programa de Pós-Graduação em Direito
Rio de Janeiro, setembro de 2007
Sergio Francisco Carlos Graziano Sobrinho
Globalização e sociedade de controle:
cultura do medo e o mercado da violência
Tese de doutorado
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor pelo Programa de
Pós-graduação em Direito do Departamento de
Direito da PUC-Rio.
Orientador: Professor Doutor João Ricardo Wandeley Dornelles
Rio de Janeiro, setembro de 2007
Sergio Francisco Carlos Graziano Sobrinho
Globalização e sociedade de controle:
cultura do medo e o mercado da violência
Tese de doutorado
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor pelo Programa de
Pós-graduação em Direito do Departamento de
Direito da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.
Professor Doutor João Ricardo Wandeley Dornelles (Orientador)
Departamento de Direito – PUC-Rio
Professor Doutor José Maria Gómez
Departamento de Direito – PUC-Rio
Professor Doutor Florian Fabian Hoffmann
Departamento de Direito – PUC-Rio
Professora Doutora Vera Malaguti Batista
Professor Doutor Castor Bartolomé Ruiz
Prof. Nizar Messari
Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de
Ciências Sociais – PUC-Rio
Rio de Janeiro (RJ), 18 de setembro de 2007
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do
trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.
Sergio Francisco Carlos Graziano Sobrinho
Graduou-se em Direito (Universidade Federal de Santa Catarina) em
1992, concluiu o mestrado em Direito pela UFSC em 2001, ingressou no
doutorado em agosto de 2003, sendo bolsista da CAPES. Membro efetivo
do NUPED (Núcleo de Pesquisa em Estado, Política e Direito, da
Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC), realizando
pesquisa na área da criminologia, violência e Direitos Humanos.
Advogado desde 1992, professor universitário desde 1995.
Ficha catalográfica
SOBRINHO, Sergio Francisco Carlos Graziano.
Globalização e sociedade de controle: cultura do medo e
o mercado da violência / Sergio Francisco Carlos
Graziano Sobrinho; orientador: João Ricardo Dornelles –
Rio de Janeiro: PUC; Departamento de Direito, 2007.
267 p
1. Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito.
Inclui referências bibliográficas.
1. Direito– Tese. 2. Globalização. 3. cultura do medo. 4.
controle social. 5. reprodução do capital. 6 direitos
fundamentais. 7. criminologia. I. Sobrinho, Sergio
Francisco Carlos Graziano. II. Dornelles João Ricardo
W.. III. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Direito. IV. Título.
CDD: 340
Aos meus filhos Victor e Mateus
Agradecimentos
Neste momento, submeto-me a um intenso exame de consciência para
agradecer, profundamente, àqueles que, de alguma forma, me apoiaram e
contribuíram à conclusão dessa pesquisa.
Agradeço à nossa UNESC - Universidade do Extremo Sul Catarinense – na
pessoa de seu Reitor, Professor Antônio Millioli, pelo apoio à pesquisa,
imprescindível para a concretização do curso, demonstrando a preocupação com a
capacitação de seu corpo docente.
Aos amigos Carlos Magno, pela sua compreensão no momento do meu
licenciamento do curso, e Rogério Dultra, pelo incentivo e indicação da PUC e do
Prof. João Ricardo (orientador) como o melhor lugar para alcançar os objetivos de
pesquisa.
Aos colegas de doutorado, Fabiana, Júlio, Thomas e Maurício. Parceiros de
proveitosas discussões.
Ao orientador: meu muito obrigado ao Prof. Dr. João Ricardo W. Dornelles,
pela orientação em si e pelas conversas sempre esclarecedoras. Entretanto, cabe
aqui uma pequena reflexão. A missão de orientação, numa tese de doutorado,
realmente não é fácil. O orientador deve confiar no orientando, pois é seu nome
que também está em jogo. Esta missão se torna um pouco mais difícil, num
doutorado em que o orientando está no interior de Santa Catarina e o orientador
no Rio de Janeiro. Muito embora as ‘inovações tecnológicas’ tenham colaborado e
encurtado tempo e distância, confesso que nossa relação (orientador – orientando)
ultrapassou (ou ultrapassaria) qualquer barreira. Não foi por menos que, em duas
oportunidades (uma na fria Porto Alegre, comendo pizza e tomando vinho, e outra
na congelante São Marcos, no sítio do nosso amigo José) fizemos da orientação
um ritual de aproximação e profunda amizade. O ‘senhor’ e Professor João
Ricardo, exímio orientador e talento intelectual incontestável, tornou-se, com o
passar do tempo, o companheiro João. Muito obrigado, meu caro amigo.
Ao corpo docente da pós-graduação em Direito da PUC-Rio: agradeço,
especialmente, aos professores José Ribas Vieira, José Maria Gómez (professor e
membro da banca de qualificação), Carlos Alberto Plastino, Antônio Carlos Maia,
Ricardo Lobo Torres, Nádia Araújo, Florian Hoffmann, Gisele Guimarães
Cittadino e Adrian Sgarbi (membro da banca de qualificação), Vera Malaguti
Batista (membro da banca de qualificação), bem como meu agradecimento
especial à Professora Jeanine Nicolazzi Philippi, da Universidade Federal de Santa
Catarina, pelos diálogos enriquecedores proporcionados na disciplina que cursei
naquela universidade.
Aos funcionários da PUC-Rio: muito obrigado à querida e simpática
Carmen, ao flamenguista e sofredor Anderson por toda ajuda fornecida e ao
vascaíno Marcos (Marcão) pela inesquecível ajuda nos momentos que precederam
a seleção ao ingresso no doutorado e, durante o curso, pela disposição e amizade.
E, finalmente, meu eterno agradecimento aos amores da minha vida: meus
pais, Sigfrido e Cacilda, pois suas vidas dimensionam cada etapa ultrapassada da
minha; Cristina, minha esposa, Victor e Mateus, meus filhos, pelo incentivo,
respeito e carinho dispensados nestes quatro anos de estudo e ausências (ainda
que, muitas ou na maioria das vezes, não saibam disso...). Muito obrigado.
Resumo
Graziano Sobrinho, Sergio Francisco Carlos; João Ricardo Wandeley
Dornelles (orientador). Globalização e sociedade de controle: a cultura
do medo e o mercado da violência. Rio de Janeiro, 2007. 267p. Tese de
Doutorado – Departamento de Direito. Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro
Diante do contexto globalizado da sociedade e da ‘necessidade’ do controle
social, o sistema penal exerce papel preponderante. A partir dos referenciais
teóricos da economia política e da criminologia crítica à definição de categorias
como criminalidade, exclusão social, violência, direitos humanos e acumulação de
capital, objetiva-se compreender as implicações do fenômeno da violência, do
ponto de vista do controle social e conflitos sociais, diante da lógica
mercadológica propugnada pelo neoliberalismo. A hipótese central é no sentido de
que as estratégias de poder tendem a implementar rigorosas políticas de segurança
pública de perfil cada vez mais autoritário, tipicamente de “combate” e de
“exclusão”, privatizando o controle social, explorando economicamente a
violência. Utilizando-se da cultura do medo e contando com mecanismos de
intervenção estatal, que não refletem ou não significam melhoria na garantia dos
direitos fundamentais, mas atentam contra os mesmos, provocando efeitos em
sentido inverso – mais violência e exclusão social, o controle social serve à
reprodução e acumulação do capital através de conexões entre o fomento aos
mecanismos de regulação, resolução dos conflitos sociais e às “democracias de
mercado”.
Palavras-chave: Globalização, cultura do medo, controle social, reprodução do
capital, direitos fundamentais, criminologia
Abstract
Graziano Sobrinho, Sergio Francisco Carlos; João Ricardo Wandeley
Dornelles (orientador). Globalization and social control: the culture of
fear and the market of violence. Rio de Janeiro, 2007. 267p. Tese de
Doutorado – Departamento de Direito. Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro
According to globalized context of the society and by the ‘necessity’ of the
social control, the penal system exercises the preponderant character. From he
theoretical references of the economy policy and critical criminology in relation to
the definition of categories such as criminality, social exclusion, violence, human
rights and accumulation of capital, the aim is to understand the implications of the
violence phenomenon from the point of view of social control and conflicts, and
through the marketing logic advocated by the neoliberalism. The centra
hypothesis is in the sense that the strategies of power tend to implement rigorous
policies of public security with an increasing authoritarian profile, typically of
“combat” and “exclusion”, privatizing the social control, exploring the economy
of violence. It makes use of the culture of fear and counts on mechanisms of state
intervention which do not reflect or do not mean improvements in the guarantee of
the fundamental rights, but attempt against them, causing effects in the inverse
direction – more violence and social exclusion, the social control serves to
reproduction and accumulation of the capital through connections between the
promotion to the regulation mechanisms, resolution of the social conflicts and the
“market democracies”.
Keywords: Globalization, culture of fear, social control; reproduction of the
capital, fundamental rights, criminology
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO................................................................................................11
2. GLOBALIZAÇÃO E DEMOCRACIA.........................................................18
2.1 Delineamentos da moderna e contemporânea democracia..............................19
2.2 Os reflexos do liberalismo e das globalizações na democracia:
liberdades, separações e polarizações....................................................................28
2.2.1 As objeções democráticas do liberalismo.....................................................28
2.2.2 A globalização e seus reflexos: separações e polarizações..........................32
2.2.3 Os processos de globalização e os pressupostos à violência estatal.............35
2.2.4 Democracia, capitalismo e coerção estatal: uma crítica no
mundo globalizado.................................................................................................51
2.3 As relações entre os processos de globalização e os Direitos Humanos..........63
3. GLOBALIZAÇÃO E CONTROLE SOCIAL...............................................66
3.1 Estado e a relação social da produção..............................................................68
3.2 A intervenção política do Estado na economia................................................79
3.2.1 As formas de intervenção do Estado.............................................................82
3.2.2 O uso dos instrumentos ideológicos e repressivos: o conteúdo
político das funções econômicas do Estado..........................................................87
3.3 A criação de novos espaços à reprodução do capital.......................................90
3.3.1 As transformações no mundo do trabalho....................................................90
3.3.2 O cenário mundial do capital e os ciclos econômicos no último
quarto do século XX..............................................................................................93
3.3.3 Espaço e tempo à reprodução do capital......................................................98
3.3.4 A produção industrial militar e a necessidade do
“consumo destrutivo”...........................................................................................103
3.4 O mercado da violência..................................................................................111
4. CONSTITUIÇÃO DA SOCIEDADE DE CONTROLE............................114
4.1 O mundo do trabalho: do “grande internamento” à normalização
do proletariado no regime de acumulação flexível.............................................118
4.1.1 O proletariado no período fordista e sua relação com o cárcere.................122
4.1.2 O proletariado no regime de acumulação flexível e sua relação
com sistema punitivo............................................................................................130
4.2 A economia política da pena: a relação entre sistema prisional,
fábrica e controle social......................................................................................143
4.3 A sociedade contemporânea como sociedade de controle.............................149
4.3.1. A legitimação da dominação pelo controle................................................153
4.3.2. As tecnologias de poder e as formas de controle.......................................154
4.4 A cultura do medo como legitimadora do controle social: a divulgação
da violência e a banalização dos direitos e garantias fundamentais....................160
4.4.1 O discurso do medo e as práticas de segurança..........................................163
4.5 O controle total da vida dos corpos (ou dos corpos vivos)............................169
5. MERCADO E PRODUÇÃO NORMATIVA DA
DECISÃO POLÍTICA......................................................................................174
5.1. A biopolítica e os Direitos Humanos............................................................175
5.1.1 Os novos espaços e as novas estratégias de poder: o biopoder..................175
5.1.1.1 Um primeiro significado: economia e biopolítica como
estratégia de poder...............................................................................................181
5.1.1.2 Um segundo significado: o biopoder, Direitos Humanos e a
guerra perpétua.....................................................................................................183
5.1.1.3 Um terceiro significado: exclusão social, excesso de biopoder e
violação dos Direitos Humanos...........................................................................188
5.2 O mercado como centro de produção normativa e de decisão política..........195
5.2.1 A exacerbação da divulgação de atos de violência como mecanismos
de controle...........................................................................................................197
5.3 O estado de exceção.......................................................................................201
5.4 Controle social e reprodução do capital: a face oculta da mesma “moeda”..207
5.4.1 O controle social na ordem capitalista globalizada....................................210
5.4.2 A gestão política de Segurança Pública conservadora:
“eficientismo penal”, “tolerância zero” e “teoria das janelas quebradas”
como controle social de classe............................................................................218
5.4.3 A privatização das prisões: retirada da “sujeira” pelo controle social........226
5.4.4 O controle social privatizado: a exploração econômica do medo..............234
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................246
7. BIBLIOGRAFIA...........................................................................................257
1
Introdução
A presente pesquisa tem por objeto analisar as estratégias de poder na
adoção de políticas de segurança públicas em detrimento de outras políticas
públicas de segurança, seus objetivos e tendências voltadas à reprodução do
capital. Portanto, o objetivo, num primeiro momento, concentra-se em entender as
conseqüências da transição do regime de poder soberano (definido por Foucault)
para um modelo de controle disciplinar, típico das sociedades industriais, o qual,
contemporaneamente, é substituído pelo paradigma de controle biopolítico,
especialmente aquele efetivado pelo sistema penal para, não mais treinar corpos
indóceis, não mais excluir ou eliminar o inimigo, vigiando-o e punindo-o, mas
sim observá-lo, induzi-lo a determinadas práticas, potencializando o deslocamento
da soberania do Estado para o mercado.
O marco inicial de análise é a relação muito próxima (quase de
dependência) existente entre a vinculação que se faz da noção liberal de liberdade
que coincide com a realização dos desejos dos indivíduos. Esta noção liberal de
liberdade, identificada na realização dos desejos, forjada a partir dos ideais
oitocentistas do mercado, que garantia um mundo sem desgastes, racional, livre e,
essencialmente com igualdade de condições a todos, é visto, no início do século
XXI, a partir da lógica do sucesso capitalista, isto é do triunfo de seu principal
pressuposto: reproduzir para acumular capital.
Partindo-se dessa constatação, a pesquisa pretende estabelecer os
enlaces teóricos que relacionam o sistema penal (prisão, polícias, poderes
constituídos – o judiciário e político) através de uma visão econômica, de viés
marxista, possibilitando estabelecer pontes que façam a interface entre a severa
atuação do sistema de controle social nos últimos anos – típico da sociedade
burguesa contemporânea – e as formas atuais de reprodução do capital como algo
que subjaz a análise tradicional da punição.
Através, e indo um grau além, de importantes contribuições
prodigalizadas pela criminologia crítica – lembremos das funções veladas do
sistema penal como a estigmatização, docilização da mão-de-obra e a seletividade,
tão bem debatidas por diversos autores como George Rusche, Otto Kirchheimer,
12
Michael Foucault, Dario Melossi, Massimo Pavarini e Alessandro Baratta – a
pesquisa aportar-se em dois elementos históricos à escolha do seu objeto de
estudo e a forma de observá-lo: primeiro, a constatação empírica de um aumento
significativo, não só da população efetivamente encarcerada, mas também
daqueles submetidos a outros tipos de controle sócio-penal (probation, parole,
livramento condicional, suspensão do processo, penas alternativas, etc.) nos
últimos 30 a 40 anos, no Brasil, nos Estados Unidos e em alguns países da
Europa, como a Inglaterra, por exemplo, e; segundo, os complexos processos de
globalização que intensificaram o fenômeno da mercantilização dos direitos
sociais e possibilitaram novas formas de reprodução do capital, levou o sistema
capitalista, diante da crise dos anos 1970, a buscar novos espaços à sua
reprodução, descobrindo-os, aos moldes da acumulação primitiva (como a
expropriação de terras, de que fala Marx), na utilização de recursos antes somente
imaginados à punição e ao disciplinamento.
Portanto, a análise deverá transitar por correntes teóricas que
permitam a visualização dos efeitos desse controle a partir do ponto de vista
econômico, possibilitando identificar as privatizações dos presídios, a
implementação de sistemas de segurança – públicos e privados – o aumento dos
mecanismos de efetivo policiamento ostensivo da população (veículos,
equipamentos eletrônicos, investimento em pessoal, armamentos, etc.), o
incremento, cada vez maior, de alterações nas políticas sociais-penais
direcionadas ao ‘combate’ à criminalidade (crime organizado, ao tráfico de
drogas, ao terrorismo, etc.), como tendências em transformar as políticas de
segurança pública em verdadeiros instrumentos de reprodução e expansão do
capital. Este é, portanto, o ponto central da tese.
Diversos fatores contribuíram para deflagração desses fatos,
importando saber, contudo, que passou a existir e aumentar, especificamente no
período compreendido entre o final da década de 1980 e início dos 90, uma
enorme massa de excluídos, fruto do que se convencionou chamar de pósfordismo (não só pela flexibilização dos direitos trabalhistas e mercantilização dos
direitos sociais, mas também pelas novas dinâmicas do trabalhador da fábrica),
iniciando um intenso processo de desprendimento do indivíduo em relação ao
contexto social, justamente porque estes não se sentiram contemplados, mesmo
diante da potencialidade das promessas da modernidade, de obter vida digna e
13
igualdade para todos.
Portanto, da mesma forma que as fábricas e o trabalho vivo mudaram
sua configuração, as instituições de seqüestro – consideradas instituições
subalternas à fábrica (lembremos não só de Foucault em “História da Loucura”,
mas também das hordas de mendigos, vagabundos e pequenos criminosos que
invadiram as cidades do século XVI e XVII na Europa, muito presente nas
historiografias de Rusche e Kirchheimer e de Melossi e Pavarini, constituindo-se
na classe perigosa, preocupando a burguesia ascendente) – perderam, de certa
forma, sua função original, permitindo, de outro modo, sua realização pela lógica
neoliberal, confirmando sua funcionalidade política, isto é, se havia a necessidade
de treinar corpos, há, entretanto, na contemporaneidade, a necessidade do
controle.
O que ocorre, entretanto, é que não se imaginava a possibilidade de
reproduzir o capital utilizando-se da violência estrutural do Estado. E isto, hoje, é
um fato. Não podemos desdenhar a capacidade do capital. Charles Melnam parece
ter razão: tudo é possível na contemporaneidade. Não há lugar para imprecisões e
dúvidas diante da fúria vociferante do capital e do mercado.
Como explicar este fenômeno? Como explicar ou a quem se socorrer
para explicar esses fenômenos? Será que os mecanismos de intervenção estatal,
relacionados a políticas de segurança pública, ao não refletirem ou não
significarem, diretamente, melhoria na garantia dos direitos fundamentais,
atentam contra os mesmos, provocando efeitos em sentido inverso – mais
violência e exclusão social? Quais conexões podem ser feitas diante do discurso
das políticas conservadoras de segurança pública (especialmente as chamadas
políticas de “tolerância zero” e o movimento de “lei e ordem”), os mecanismos de
auto-regulação (agências reguladoras) e resolução (privatização dos presídios) dos
conflitos sociais com as “democracias de mercado”? Estas são, portanto, os
interrogantes da pesquisa.
Considerando estes objetivos, a proposta é, em primeiro lugar,
identificar os interesses na exploração e divulgação da violência (por exemplo, as
guerras internacionais, combate ao tráfico ilícito de entorpecentes), à consecução
das finalidades resultantes das chamadas economias de mercado, as quais tentam
demonstrar que o problema da segurança pública é prioritário em detrimento aos
direitos sociais e às garantias fundamentais, fomentando o aparecimento de novas
14
formas de controle e, em segundo lugar, referenciar estes efeitos em relação aos
resultados causados pela criação de inimigos comuns (especialmente o tráfico
ilícito de drogas e armas e o terrorismo) e divulgação da multiplicação de atos
violentos, possibilitando a inserção de novos mecanismos de exploração
(econômica) e de controle.
Assim, a hipótese principal de resposta aos problemas até aqui
apresentados, está diretamente relacionada com a adoção das políticas econômicas
neoliberais, significativamente em relação às políticas de segurança pública, em
função do exacerbado sentimento de medo, umbilicalmente vinculado ao
sentimento de insegurança, pois como estas políticas de “combate” à violência
caminham em sentido oposto à implementação de políticas públicas de segurança
(como moradia, saúde, educação, etc.), é possível verificar seus efeitos
devastadores em relação aos indivíduos que ficam “sujeitados” a um violento e
funcional processo de anulação do seu status jurídico, o que proporciona o espaço
próprio da biopolítica (seu significado é o estado de exceção), fomentando novas
formas de controle e de reprodução do capital.
O resultado, na análise conjunta desses fatos, foi, em primeiro lugar, a
percepção de uma sensível alteração das funções da pena, da prisão e dos
mecanismos de controle social exercido pela sociedade contemporânea em
comparação àquelas descritas por Michel Foucault em “História da Loucura na
Idade Clássica” (2004), bem como na clássica obra de Rusche e Kirchheimer
“Punição e estrutura social” (1999); e, em segundo lugar, o surgimento, esses
mesmos excluídos, de um sentimento de “não pertencer” ao grupo, que foi sendo
efetivado através de diversos acontecimentos nos últimos 40 anos.
Podemos pensar, por exemplo, em toda destruição ambiental efetivada
no planeta, na progressiva pauperização das populações, na destruição das
instâncias coletivas e, em conseqüência, a destruição do indivíduo e total
indiferença em relação ao outro, nos intensos processos de subjetivações
existentes, na perda da instância política em detrimento do mercado, com a
transformação dos políticos em gestores da coisa pública (Melman, 2003), na
criação de inimigos comuns ou, ainda, na impossibilidade de ser consumidor
(consumidor falho, no dizer de Bauman). Há um desnudamento dos direitos,
inclusive ao direito à vida: é o homo sacer de Agamben.
Os níveis de exclusão são diversos. A intensidade e efeitos dos
15
mecanismos de controle social provocam sentimentos variados, especialmente
quando a comunidade está com medo, com o que se divulga de descontrole social:
corrupção, atentados, terrorismo, guerras, crimes violentos, ações policiais cada
vez mais intensas, surgindo a necessidade – e de certo modo legitimado por esse
sentimento de insegurança – de se fazer algo, ainda que o custo seja a perda de
direitos.
Apenas a título ilustrativo, basta verificar as constantes alterações
legislativas no âmbito da segurança pública (legislação penal, processual penal e
de execução penal), na discussão sobre a função investigativa das polícias e da
temática em relação a possibilidade ou não da investigação ser realizada pelo
Ministério Público 1 , pelo constante aumento da população carcerária, pela
exibição de programas de televisão que procedem julgamentos públicos de
pessoas, ainda que não formal e judicialmente acionadas criminalmente,
incentivando um sentimento mórbido de vingança e realização de justiça.
Simbolicamente estes fatos colaboram para exacerbar o sentimento de
medo e insegurança, justificando medidas que privam os indivíduos de direitos,
suscetíveis, portanto, ao descrédito das instituições, podendo levar a poderes e
domínios totalitários.
Para alcançar estes objetivos, a pesquisa foi dividida em quatro
capítulos.
No primeiro capítulo será analisado o liberalismo econômico e seu
desenvolvimento no contexto da democracia e da globalização, delimitando o
objeto na perspectiva do papel da democracia na atual sociedade capitalista,
marcada pelo confronto e pela violência. Com esta análise pretende-se verificar as
conseqüências da implementação e desenvolvimento da democracia na
configuração das relações de poder e força do Estado, em função de que o Estado,
necessário ao sistema capitalista, vê-se, hoje, confrontado com a obrigação de
buscar novos espaços à reprodução do capital.
No capítulo segundo serão discutidas as novas formas de ampliação
do capital utilizando-se recursos teóricos da economia política, de viés marxista,
para entender os processos de globalização que intensificaram a excludente
1
O debate sobre a possibilidade de o Ministério Público realizar investigações criminais está
sendo debatido no Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus no 84.548. Apenas
dois Ministros manifestaram seu votos até agora: Marco Aurélio Mello (contra) e Sepúlveda
Pertence (a favor).
16
política social e a mercantilização dos direitos sociais, com a conseqüente
vulnerabilidade dos direitos humanos. Serão ainda analisadas as conseqüências do
capitalismo globalizado, como desemprego em massa, pobreza, xenofobia e, em
última análise, o encarceramento de determinadas parcelas da população e a
utilização do sistema penal para controlar a massa de desempregados ou de “subempregados”.
No momento seguinte, ainda neste segundo capítulo, serão estudadas
as tendências e contradições internas do capitalismo em função de sua dificuldade
à expansão e a busca de novos espaços à reprodução do capital, mapeando as
tendências de controle, proletarização e encarceramento dos excluídos, para
entender a ultrapassagem da lógica do internamento e do disciplinamento dos
corpos.
No terceiro capítulo serão estudadas as estratégias e tecnologias de
poder em um mundo socialmente flexibilizado. Partindo-se das conseqüências das
estruturas políticas e econômicas globalizadas, a pós-modernidade impõe a
“dialética do destino” e que “vença o melhor”: ricos e pobres, criminosos e não
criminosos, intolerância social, consumidores e não consumidores, seletividade
criminal, etc.
O objetivo do capítulo é entender as conseqüências da adoção de
políticas de segurança pública – como a necessidade da construção de mais
presídios, por exemplo – fazendo-se uma leitura da relação existente entre o
aumento das taxas de encarceramento e demais tipos de controle sócio-penal e o
atual cenário de controle, exclusão e barbárie social. Portanto, pretende-se
estabelecer uma relação entre a maximização da divulgação do crescimento da
violência e a criação do sentimento social de necessidade de combatê-la através de
políticas de segurança pública conservadoras.
No quarto e último capítulo, serão analisadas todas as relações
existentes, discutidas nos três capítulos anteriores, vislumbrando estabelecer as
possibilidades de inserções sociais de mecanismos de exploração econômica do
controle social. A hipótese que será discutida neste capítulo é central à pesquisa,
isto porque os efeitos do discurso da suposta crescente violência social atinge, de
frente, os parâmetros da ação política estatal diante da crise da segurança pública,
resultando em políticas cada vez mais autoritárias e truculentas das autoridades
públicas, constituindo-se, contudo, um caminho de portas abertas à necessidade de
17
realização dos pressupostos capitalistas: criação de novos espaços a expansão e
reprodução do capital.
Finalmente, a título exclusivamente metodológico, saliente-se que as
transcrições da obra de Alessandro De Giogi (Il governo dell'eccedenza.
Postfordismo e controllo della moltitudine) citadas no trabalho, em nota de
rodapé, foram traduzidas pelo Professor Sérgio Lamarão, responsável pela
tradução da obra para o português, em correspondências eletrônicas que mantive
com ele. Destaque-se, contudo, que a referida obra somente chegou às prateleiras
das livrarias brasileiras após sua utilização no presente trabalho, razão pela qual
ela não fora utilizada ou refenciada no texto, mas sim o original em italiano
adquirido no ano de sua publicação. A obra traduzida chama-se “A miséria
governada através do sistema penal”, publicada pela Editora Revan em parceria
com o Instituto Carioca de Criminologia, no ano de 2006.
2
GLOBALIZAÇÃO E DEMOCRACIA
2.1 Delineamentos da moderna e contemporânea democracia. 2.2 Os reflexos do liberalismo
e das globalizações na democracia: liberdades, separações e polarizações. 2.2.1 As objeções
democráticas do liberalismo. 2.2.2 A globalização e seus reflexos: separações e polarizações.
2.2.3 Os processos de globalização e os pressupostos à violência estatal. 2.2.4 Democracia,
capitalismo e coerção estatal: ma crítica no mundo globalizado. 2.3 As relações entre os
processos de globalização e os Direitos Humanos
Este primeiro capítulo pretende analisar, num primeiro momento,
como o liberalismo econômico se desenvolveu no contexto da democracia e da
globalização, ou seja, como os países fundados a partir da preservação dos direitos
individuais funcionam sob a lógica capitalista globalizada e caracterizada por uma
sociedade de consumo, de mercado, pela lógica da competição e da atomização.
Há que se perguntar, delimitando o objeto do presente capítulo, qual o papel da
democracia na atual sociedade capitalista, marcada pelo confronto e pela
violência? Neste sentido é importante verificar e entender as razões que levam
alguns autores1 a indicar que há uma relação absolutamente antitética entre
capitalismo e democracia.
Na primeira parte deste primeiro capítulo será descrita a relação entre
“democracia” e “liberalismo”, a partir do que será possível entender o sentido
provocado pelas separações (Igreja e Estado, sociedade civil e comunidade
política, etc.) preconizadas e aplicadas pelos liberais, os quais se opuseram à
forma estruturada no mundo antigo.
Na segunda parte será priorizado o movimento crítico do debate, ou
seja, privilegiará alguns autores do pensamento político moderno, como Norberto
Bobbio, Miguel Abensour e Ellen Meiksins Wood, na tentativa de demonstrar os
acertos e fragilidades do relacionamento da democracia liberal. Por fim, pretendese, não de forma exaustiva, invocar as conseqüências práticas da implementação e
desenvolvimento da democracia no âmbito da sociedade liberal, em especial as
implicações na configuração das relações de poder e força do Estado.
19
2.1
Delineamentos da moderna e contemporânea democracia
A trajetória e herança democráticas têm seu marco inicial estabelecido
nos sistemas da Grécia clássica e em Roma, por volta do século V a. C., onde,
provavelmente os atenienses cunharam o termo democracia (Dahl, 2001, pp.
18/19). Para Robert Dahl a democracia não apareceu na Grécia antiga de uma
hora para outra, nem mesmo teve uma trajetória linear ascendente (em
desenvolvimento)
na
história,
mas,
muito
ao
contrário,
depois
de,
aproximadamente, dois séculos – na Grécia e em Roma – ocorreu seu declínio e
queda. Dahl credita o aparecimento da democracia, na história da civilização, às
condições adequadas de ser implementadas.
Esta idéia de Robert Dahl reflete bem determinadas situações que, à
primeira vista, sejam inconciliáveis, como por exemplo, o liberalismo
democrático, pois ele acredita que a democracia pode ser inventada ou
reinventada, dependendo das condições que se apresentam em determinado
momento histórico, pressupondo, ainda, que a participação democrática
desenvolve-se a partir de uma “lógica de igualdade”. Atenas, a mais importante
cidade democrata grega, possuía um sistema no qual, em assembléia, todos os
cidadãos estavam autorizados a participar. A democracia, hoje, tem uma
conotação de regime político no qual a soberania cabe ao povo, entretanto, para os
antigos, o termo representava algo, no mínimo, diferente, pois a partir da
definição de cidadão, realizada por Aristóteles (na qual estavam excluídos
escravos, mulheres e estrangeiros, por exemplo), estes (os cidadãos) podiam
deliberar diretamente nas assembléias e não por intermédio de representantes e,
igualmente, podiam eleger os magistrados2.
Em Roma o direito de participar das decisões estava restrito aos
patrícios e aristocratas. Mais tarde, depois de muita luta, a plebe também
conseguiu o direito de tomar parte das decisões, entretanto toda participação
1
Neste sentido ver a obra de Ellen Meiksins Wood (em especial “Democracia contra o
capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. 261
p.”).
20
estava restrita aos homens o que, de certa forma, irá permanecer até o início do
século XX.
Foi a partir de diversos pensadores (tais como Maquiavel, Bodin e
Hobbes) que a idéia pré-moderna de visão do mundo toma contornos muito
diferentes, em especial com o deslocamento do governo do povo para o poder real
(concreto do governante). Nesta visão – na qual já se pode falar em modernidade
– o desenvolvimento da democracia não foi apenas uma mera substituição de um
tipo de governo por outro – da monarquia ou absolutismo para a democracia –
mas houve fundamental alteração do objeto em estudo, pois o modelo mais velho
(pré-moderno) estava estabilizado de forma “a colocar em primeiro plano um
cosmos ordenado por força divina, pelo menos parcialmente acessível à percepção
humana, e a pressupor uma intencionalidade ou teleologia divino-natural que
impregna e orienta todos os seres vivos” (Dallmayr, 2001. p. 15.), enquanto que
na modernidade é o sujeito que passa a ser o centro de investigação.
Hobbes ultrapassa o pensamento pré-moderno (pela substituição de
um telos transhumano por uma racionalidade e por uma vontade humanas) com a
idéia de busca individual pelo poder3, insistindo no fato de que o indivíduo só
conseguiria encontrar segurança pública por meio de estabelecimento (contratual)
de um poder soberano “todo-poderoso”, o qual pode ser atribuído, com a mesma
plausibilidade, ao rei e ao corpo coletivo (assembléia) de cidadãos em uma
democracia.
Para Hobbes “a questão principal na escolha do regime é, pois, a unidade e
continuidade do poder”, pois não importa que a soberania recaia em um
indivíduo ou a uma “assembléia”, desde que haja unidade, bem como é
importante haver continuidade pois “o maior problema não é causado pela
longa duração, mas pelos pequenos espaços de tempo que a compõem; pois a
ameaça de uma disputa pela sucessão do trono é mais fácil de agastar do que
o perigo acumulado por pequenas desobediências, que terminam por chamar
e magnificar a rebelião.” (Ribeiro, 1978, p. 45)
Locke – um dos principais pensadores do paradigma liberal2
Sobre Aristóteles, importante ver seu pensamento em “WOLFF, Francis. Aristóteles e a política.
Tradução de Thereza Christina Ferreira Stummer e Lygia Araújo Watanabe. 2a ed. São Paulo:
Discurso Editorial, 2001. 156 p”.
3
Conforme Leo Strauss (1980, p. 75-76), Hobbes, ao traduzir “História da Guerra do Peloponeso”,
de Tudídides, em 1629, deixa claro que concorda com seu pensamento, no sentido de não
concordar com a democracia mas aprovava no mais alto grau o governo real. Hobbes se apresenta
como um defensor da monarquia e um opositor da democracia.
21
individualista – refina o pensamento de Hobbes, eliminando sua idéia do poder
soberano – como destinatário exclusivo e individual da soberania – depositando
sua confiança no governo parlamentar e nas “regras de direito”. Também
legitimada no contratualismo – na racionalidade calculada e na vontade humana –
o estado de direito liberal moderno sempre esteve marcado pelo paradoxo de
investir no “direito” – um “super” poder hobbesiano – ou, então, permitir que a
sociedade seja levada de volta à anomia (Dallmayr, 2001, p. 17). Esta passagem –
da legitimidade para o entorno da legalidade – marca uma fase posterior do
Estado moderno, ou seja, o Estado de Direito, fundado a partir da liberdade
política e igualdade de participação dos cidadãos diante do poder, exercido pela
burguesia através dos instrumentos “científicos” fornecidos pelo direito e pela
economia.
Outros dois referenciais importantes na consolidação da trajetória da
democracia na modernidade foram o pensamento de Rousseau, que propugnava
pela transferência do poder absoluto do soberano (Hobbes) para a vontade geral
do povo e, em meados do século XIX, por Marx, que pretendia transferir a
soberania popular (Rousseau) para o proletariado elegendo-o, assim, como o novo
poder soberano ou identidade coletiva e como motor determinante da mudança
social revolucionária (Dallmayr, 2001, p. 19).
Foi a partir do final do século XVIII, com o advento das revoluções
francesa e americana, que houve a fusão do Estado moderno com a nação
moderna, formando o chamado Estado-nação. Conforme adverte Adauto Novaes
(2003, p. 12), longe de uma visão romântica da nação, principalmente
prodigalizada por historiadores como Ernest Renan e Paul Valéry, que
expressavam a implicação do surgimento da nação ante a evidente
homogeneização cultural, territorial e temporal de uma população, sua história foi
marcada por peças e espólios de guerras, anexações, alianças e dominação de
classe.
Diferente da concepção de Estado Federal do século XVI que, pelo menos
em tese, pretendia garantir um mínimo de autonomia às “nacionalidades”, a
idéia de Estado-nação fez um deslocamento do poder, criando um núcleo
central, que é o Estado: é a soberania do Estado que deve garantir a
independência nacional. Os cidadãos de uma nação não reconhecem
nenhuma autoridade superior à do Estado (Novaes, 2003, pp. 12/13).
22
Esta convergência permitiu que o Estado-nação, como principal forma
de organização política, principalmente como domínio da soberania popular,
tivesse profundas implicações na sociedade democrática. Durante o século XIX a
idéia de “nação do povo” é traduzida como incremento nas lutas pela
democratização, produzindo no imaginário comum a mudança da concepção dos
sujeitos envolvidos no processo, marcando, por exemplo, o domínio agora do
cidadão – relação jurídica – ao invés da relação servil – relação social de produção
típica do período feudal, marcada pela obrigação dos camponeses em trabalhar
aos senhores feudais sem remuneração4.
A política democrática nacionaliza-se. Intercambiável com o termo “povo”,
o termo “nação” passa a ser portador ambíguo do republicanismo e do
nacionalismo, dois componentes que operam juntos embora com sentidos
diferentes: um, legal e político – a nação de cidadão, legalmente capacitados
para exercer seus direitos e obrigações, que proporciona a legitimação
democrática –; outro, pré-político – a nação herdada ou atribuída, moldada
pela origem, cultura, história, língua comum, que facilita a integração social
(Goméz, 2000, p. 50).5
Importante análise a ser percebida é que, com o alargamento das
relações entre Estado e sociedade, a partir do século XVIII, alguns países
europeus começaram a desenvolver programas assistenciais, dentro ainda das
estruturas de poder patriarcal. Algumas razões foram responsáveis pelo
aparecimento e consolidação das políticas assistenciais do Estado, em especial a
luta pelos direitos civis (século XVIII) – liberdade de pensamento, expressão, etc
– as reivindicações dos direitos políticos (século XIX) – organização, voto e
posteriormente o sufrágio universal – significando o desenvolvimento da
democracia e, fundamentalmente, o aumento do poder político das classes
operárias, o que resultará na luta pelos direitos sociais.
Esta forma de aproximação existente entre povo (identidade coletiva)
e Estado (Estado-nação), forjado a partir de uma noção ambígua do termo
“nação”, levou à exacerbação do nacionalismo favorecendo o surgimento de
4
Destaque-se que a relação servil, diversamente da relação burguesa, é marcada na Idade Média
pela pressuposição da existência, desde o nascimento, de sujeitos diferentes. O pertencimento do
ser social se dá com o nascimento, ou seja, há, naturalmente, uma separação entre sujeitos, não
constituindo qualquer categoria econômica pois se há diferença entre as pessoas, há apropriação da
produção (do trabalho, animais, etc.) sem qualquer necessidade de retribuição, já que as trocas
somente ocorrem entre pessoas iguais.
5
Esta citação foi feita por José Maria Gómez, ao interpretar Habermas.
23
ideologias opostas à identidade coletiva (ameaçando o conteúdo republicano do
Estado-nação) – a exemplo do que aconteceu na Europa dos séculos XIX e XX –
como o fascismo e o comunismo stalinista6. Estes, denominados Estados
totalitários, sob o ponto de vista liberal, possuíam uma base industrial avançada
sem, entretanto, apresentar as características institucionais da democracia liberal.
É importante perceber e sublinhar:
(...) o fato de, durante todo esse tempo, a soberania democrático-populista ter
sido apaziguada, talvez até desviada, pelo constitucionalismo liberal, pelo
legado processualista e pelo “estado de direito” (Rechtstaat) de Locke – um
legado que, precisamente como resposta ao totalitarismo, aprofundou sua
própria inclinação pela anomia e pela autobusca individualista. Esta última
tendência foi fortemente sustentada pela expansão do capitalismo
corporativo e do liberalismo de mercado em todo o mundo, uma expansão
tendente a reduzir a política e a vida pública a um complemento da empresa
privada (Dallmayr, 2001, p. 20).
É neste cenário que, no transcorrer dos séculos XVIII, XIX e XX,
estruturam-se as lutas democráticas mais importantes. Entretanto, cumpre destacar
a análise dos acontecimentos, à luz das políticas liberais e de suas conseqüências
políticas
estruturais
na
sociedade,
especialmente
porque
“na
era
da
internacionalização da economia, quando as políticas nacionais perderam grande
parte do poder de decisão, vemos uma reversão espetacular: são os Estados
nacionais que criam estruturas que tendem a neutralizar as diferenças nacionais”
(Novaes, 2003, p. 13). É esta relação que tentaremos trazer nas próximas linhas.
Tomemos, à análise do tema (relação existente entre democracia,
capitalismo e coerção estatal), a contribuição da professora de Ciência Política,
Ellen Meiksins Wood, exposta na obra “Democracia contra o capitalismo: a
renovação do materialismo histórico”, a qual reside na retomada da discussão da
democracia (entendida no sentido socialista e radical do poder pelo povo), pela
6
Estes movimentos de massa que foram classificados por totalitarismo, conforme entendimento de
Giddens, possuem seis características básicas: 1) uma ideologia totalitária; 2) um partido único
comprometido com essa ideologia e normalmente liderado por um único homem, o ditador; 3)
uma polícia secreta totalmente desenvolvida; e três tipos de monopólio ou, mais precisamente, de
controle monopolístico: que são 4) comunicação de massa; 5) armamentos operacionais; 6) todas
as organizações, incluindo as econômicas. Para entender mais sobre totalitarismo ver: a)
ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Cia das
Letras, 1989; b) STOPPINO, Mario. In: Dicionário de política. Bobbio, Norberto (org.), et. al. 12a
ed., v. 2. Brasília: UnB. p. 1247-1259; c) GIDDENS, Anthony. O Estado-Nação: segundo volume
de Uma crítica contemporânea ao materialismo histórico. Tradução de Beatriz Guimarães. São
Paulo: Edusp, 2001. p. 308-321.
24
qual busca esclarecer e recuperar o projeto teórico de Karl Marx, mostrando sua
incompatibilidade com o capitalismo, vez que este representa o governo de classe
pelo capital, bem como limita o poder do povo entendido no estrito significado
político.
Sua contribuição aponta para a crítica ao capitalismo, pois este, diante
da submissão aos ditames da acumulação de capital e às leis de mercado (via
políticas liberais) coloca mais e mais esferas da vida (cidadania) fora do alcance
da responsabilidade democrática, com o firme propósito de conter as massas
(exclusão social), gerando a necessidade de novas formas de dominação e coerção
(Wood, 2003, p. 23).
Conforme apontado por Ellen Wood, o segredo fundamental da
produção capitalista (revelado por Marx) refere-se “às relações sociais e à
disposição do poder que se estabelecem entre trabalhadores e capitalistas para
quem vendem sua força de trabalho”, tendo como condição a configuração
política do conjunto da sociedade, ou seja, o equilíbrio de forças de classe e os
poderes do Estado que tornam possível a expropriação do produtor direto, a
manutenção da propriedade privada absoluta para o capitalista e seu controle
sobre a produção e apropriação (2003, p. 28).
Na interpretação de Ellen Wood (2003, p. 28), no Capítulo I de “O
Capital”, “Marx desenvolve a evolução da forma de mercadoria, passando pela
mais-valia até o ‘segredo da acumulação primitiva’, revelando por fim que o
‘ponto de partida’ da produção capitalista não é outra coisa senão o processo
histórico de isolar o produtor direto dos meios de produção, um processo de luta
de classes e de intervenção coercitiva do Estado em favor da classe
expropriadora”, demonstrando que o problema é, eminentemente, político. Para
Ellen, o que difere a análise de Marx daquela exposta pela economia política
clássica é que “ela não cria descontinuidades nítidas entre as esferas econômica e
política” e Marx é “capaz de identificar as continuidades porque trata a própria
economia não como uma rede de forças incorpóreas, mas, assim, como a esfera
política, como um conjunto de relações sociais”.
As relações sociais em que se insere esse mecanismo econômico – e que na
verdade o constituem – são tratadas como algo externo. No máximo, um
poder político espacialmente separado pode intervir na economia, mas a
economia em si é despolitizada e esvaziada de conteúdo social (Wood, 2003,
25
p. 29).
Esta é a relação que se impõe compreender: a importância ao
capitalismo da separação entre as instâncias econômica e política, para perceber a
existência de questões políticas nas relações econômicas, como na disposição do
poder de controlar a produção e a apropriação, ou a alocação do trabalho e dos
recursos sociais que foram afastadas da arena política (Wood, 2003, p. 28).
Este mecanismo – separação entre fatores políticos e econômicos –
nos permite entender como, historicamente, o Estado tem sido essencial para o
processo de expropriação que está na base do capitalismo, pois como afirma Ellen
Wood (2003, p. 36) a autonomia do Estado capitalista está intimamente ligada à
liberdade jurídica e à igualdade entre cidadãos, estabelecendo-se um vínculo
econômico entre produtores expropriados livres e apropriadores privados que têm
a propriedade absoluta dos meios de produção e, portanto uma nova forma de
autoridade sobre os produtores. “É esse o significado da divisão do trabalho7 em
que dois momentos de exploração capitalista – apropriação e coação – são
alocados separadamente à classe apropriadora privada e a uma instituição
coercitiva pública, o Estado”. Ou seja, se por um lado o Estado tem o monopólio
da força coercitiva, por outro, é essa mesma força que garante o poder econômico
privado (Wood, 2003, p. 36).
Assim é que a relação entre “econômico e político” no capitalismo
está vinculada à separação política da economia privada, ou seja, da extração e
apropriação da mais-valia daquelas vinculadas à esfera pública, com propósitos
7
O conceito de “divisão do trabalho” trará implícita, nos limites da presente tese, a contribuição
marxista que lhe empresta ao termo. Para alguns autores a divisão do trabalho é a simples
distribuição de tarefas entre os indivíduos ou grupos sociais. Entretanto, como bem observa
Marilena Chauí (1996, p. 413) a divisão do trabalho é a “manifestação da existência da
propriedade”, é a separação das condições e os instrumentos do trabalho e o próprio trabalho,
possibilitando a introdução de conceitos diferenciados entre “meios de produção” (instrumentos) e
“força de trabalho” (o trabalho propriamente dito), permitindo “perceber a seqüência do processo
histórico e as diferentes modalidades de sociedade”. Marx escreve que “na produção social da sua
existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua
vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das
forças produtivas materiais” (2003b, p. 5). Significa dizer que o “modo de reprodução de vida
material determina o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral” (2003b, p. 5).
A importância do conceito de “divisão do trabalho” reside, então, na possibilidade de perceber que
a medida que aumenta a complexidade das relações sociais (iniciando pela família) surge a
distinção entre divisão técnica do trabalho (realização de atividade especializada no processo
produtivo, tanto em relação às idéias quanto em relação às coisas produzidas) e divisão social do
trabalho (a divisão da sociedade como um todo), possibilitando e reforçando a autonomia das
idéias e independência dos indivíduos e o nascimento da ideologia e da alienação do trabalhador
em relação ao produto de seu trabalho.
26
mais comunitários.
A separação acima identificada já corresponde aos princípios liberais
(especialmente em relação sociedade civil e comunidade política) o que, em certa
medida, representou a recuperação pelos proprietários capitalistas, através do
controle direto da produção, dos poderes políticos que haviam perdido para o
Estado, os quais retiveram os poderes privados de exploração mitigados das
funções sociais. Com esta transferência de poderes políticos à economia e à
sociedade privada, fruto da referida separação, o Estado capitalista reduziu as
condições efetivas da cidadania (influindo diretamente na responsabilização
democrática), não permitindo, por exemplo, a discussão das condições de
proprietário e de trabalhador, ou seja, o Estado somente pode intervir na
quantidade mas não na qualidade da exploração da mais-valia.
A
dominação
exercida
pelo
capital
é
extrema
e,
mais
contundentemente, em vista de sua dissimulação. Ellen Wood (2003, p. 200/201)
mostra como os oligarcas de 1688 fizeram a revolução em nome da liberdade. A
defesa de seus direitos, especialmente a liberdade, estava diretamente atrelada ao
direito de dispor de seus bens como bem entendessem pois a “propriedade que
defendiam já era em grande parte capitalista, mas a liberdade que invocavam para
protegê-la, o que era praticamente um sinônimo de privilégio, estava enraizada no
senhorio pré-capitalista”. Para ela, neste momento histórico de transição, a forma
de dominação do senhorio havia sido substituída não só por um Estado
centralizado mas também pela propriedade privada, típica do modo de produção
capitalista, isto porque a relação entre proprietários dos meios de produção e
proprietários da força de trabalho, existente nesse modo de produção, exige a
manutenção da propriedade privada.
A configuração atual de liberdade, em comparação com as
aristocracias modernas, não possuem a mesma significação, pois, conforme Ellen
Wood (2003, p. 200), especialmente em função
(...) da economia ter adquirido vida própria, completamente fora do âmbito
da cidadania, da liberdade política ou da responsabilização democrática”,
mesmo porque “a essência da ‘democracia’ moderna não é tanto o fato de ter
ela abolido o privilégio ou estendido os privilégios tradicionais à multidão,
mas, sim, o fato de ter tomado emprestada uma concepção de liberdade
criada para um mundo no qual o privilégio não é o problema. Num mundo
em que a condição política ou jurídica não é o determinante principal das
27
nossas oportunidades de vida e em que nossas atividades e experiências
estão em grande parte fora do alcance de nossas identidades políticas e
legais, liberdade definida nesses termos deixa muita coisa sem explicação
(Wood, 2003, p. 200).
Para Ellen Wood (2003, p. 201), é o próprio capitalismo o responsável
pelo surgimento da relação entre democracia e liberalismo, especificamente com o
surgimento das relações de propriedade burguesas. Esta estreita vinculação (podese dizer: plena identificação pois a democracia é “reduzida” ao liberalismo)
aparece com desenvoltura em função da separação do poder político e jurídico
com as relações econômicas. Com isto, a possibilidade de existir um diálogo entre
as diversas esferas fica submetida e restrita à necessidade e à conjuntura do
mercado, ou seja, as relações de produção não estão mais submetidas ao controle
da responsabilidade democrática do Estado, mas ficam sujeitas ao mercado, que
funciona, dentro dessa lógica liberal, como instância de decisão política e centro
de produção normativa.
A maneira característica com que a democracia liberal trata essa nova esfera
de poder não é restringi-la, e sim libertá-la. De fato, o liberalismo nem
mesmo a reconhece como uma esfera de poder ou de coerção. Isso vale
principalmente em relação ao mercado, que tende a ser percebido como uma
esfera de liberdade, de escolha, até mesmo por aqueles que sentem
necessidade de regulá-lo (Wood, 2003, p. 201).
É necessário perceber que a condição de existência da democracia nas
sociedades liberais é a separação entre a esfera econômica e o poder democrático,
sendo, portanto, possível suscitar a democracia quando necessário restringir
direitos, desde que a liberdade econômica e contratual estejam ameaçadas.
Especificamente, é importante atentar aos efeitos deletérios do
capitalismo, os quais irão desembocar na vertente liberal do capitalismo
globalizado (e suas terríveis conseqüências). Conforme escreve Harnecker (2000,
p. 239), diversos são os problemas causados por este tipo de globalização,
“gerando uma série de fenômenos sociais negativos: apartheid social, fomento do
racismo e da luta étnica, destruição dos direitos da mulher, dos jovens, dos idosos,
dos emigrantes, e freqüentemente estímulo aos confrontos destrutivos entre
nacionalidades”, produzindo não uma globalização da riqueza, mas sim da
pobreza”.
A par da visível recessão que atravessam os países mais ricos, em
28
especial os Estados Unidos e alguns da Europa, os efeitos da economia liberal
estão sendo sentidos em todos os quadrantes: desemprego em massa, pobreza,
xenofobia, etc. Para manter essa massa de desempregados ou de “subempregados”, conseqüências diretas do capitalismo globalizado, é que o Estado
lança mão de seu braço coercitivo de controle social: monopólio legalizado do
emprego da violência física, leis penais cada vez mais rígidas e controle do
desvio.
2.2.
Os reflexos do liberalismo e das globalizações na democracia:
liberdades, separações e polarizações
Neste ponto tentaremos mostrar as implicações do liberalismo no
contexto da sociedade contemporânea e, num segundo momento, quais as
conformações (resultados) à democracia que estão sendo impelidas pelos
processos de globalização econômica.
2.2.1.
As objeções democráticas do liberalismo
“Liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição
(entendendo por oposição os impedimentos externos do movimento); e não se
aplica menos às criaturas irracionais e inanimadas do que às racionais” (Hobbes,
1999, p. 171). Assim, inicia Hobbes seu discurso sobre a liberdade dos súditos.
Partindo dessa definição de liberdade em Hobbes, o pensamento liberal interpreta
que o único conceito válido de liberdade é o definido negativamente. Conforme os
termos de Isaiah Berlin, liberdade significa a não interferência dos outros, ou seja,
“quanto maior a área de não-interferência, mais ampla a minha liberdade” (Berlin,
2002, p. 230). No sentido de que se definem liberdades negativas pela não
interferência e, justamente como a não interferência supõe somente um titular, o
indivíduo como sujeito de direito pode dar o conteúdo que melhor lhe convém ao
exercício de sua liberdade.
Partindo-se da elaboração conceitual e princípios do Estado moderno,
o liberalismo político, fundado na liberdade individual (autonomia do indivíduo),
29
preocupa-se com a liberdade no sentido de ausência de oposição, cumprindo notar
a necessidade de que este indivíduo, numa visão antropológica, tenha plenamente
assegurado, não só, esta liberdade, mas também condições institucionais, através
de um ordenamento jurídico e político, capazes de garantir o pleno exercício
dessas liberdades.
Não basta, por exemplo, para definir o conteúdo da liberdade de um
indivíduo, mostrar-lhe que se não pode conseguir o que deseja, precisa aprender a
desejar apenas aquilo que pode conseguir. Isto apenas restringirá suas liberdades
civil e política. O sentido de liberdade individual empregado por Berlin “implica
não apenas a ausência de frustração (que pode ocorrer quando se destroem os
desejos), mas também a ausência de obstáculos a possíveis escolhas e atividades –
ausência de obstáculos nas estradas por onde um homem pode decidir passar”
(Berlin, 1981, p. 21).
Ocorre que, diante do núcleo duro das liberdades individuais – como a
vida, a propriedade, a segurança, inclusive a tutela de outros direitos como o
devido processo e o acesso à justiça – é a instância do Estado que está
encarregada de velar e aplicar a lei justamente quando algum tipo de direito esteja
sendo violado. Este funcionamento – institucionalmente articulado – somente é
possível quando se cria esta proteção e o elenco dos direitos fundamentais esteja
totalmente vinculado a um Estado que os garante: o Estado de Direito.
É absolutamente necessário entender que a garantia das liberdades
individuais, está vinculada ao paradoxo estatal, ou seja, a antítese opressãoliberdade. Mais especificamente, se por um lado as instituições devem garantir as
liberdades, estas (as liberdades) devem servir como limitadoras do poder estatal à
interferência na vida privada. “Segue-se que é preciso se traçar uma fronteira entre
a área da vida privada e a da autoridade pública” (Berlin, 2002, p. 231),
preservando-se uma área restrita à atuação do indivíduo.
Percebe-se que toda visão liberal está montada sobre a idéia de um
Estado limitado – limitado em seus poderes e em suas funções – porque só assim
este Estado pode chegar a ser a garantia das liberdades individuais, pois sua
atividade institucional está totalmente submetida às regras do direito, nasce a
necessidade, portanto, de estabelecer um corte absoluto entre um domínio público
e o privado. Entretanto, face a ineficácia e violações aos direitos e garantias
individuais ocorridas nos diversos países do mundo, deve-se, por conseqüência,
30
ser ponderada a interferência liberal nas democracias, em especial, nas chamadas
novas democracias.
Reside aqui, o ponto de contato entre a visão liberal de poder político
e o regime democrático do Estado de Direito, ou seja, a necessidade de
diagnosticar o sentido (ou os sentidos) que se deve adotar na definição política da
democracia. Na sua obra “Capitalismo, socialismo e democracia”, de 1942,
Joseph Schumpeter se contrapõe à definição clássica de democracia, enquanto
uma teoria de meios e fins, afirmando que esta (democracia) nada mais é do que
um método, ou seja, trata-se de um determinado arranjo político para se chegar a
decisões políticas. Entretanto esta visão estritamente política se contrapõe à idéia
de democracia como sistema absolutamente afetado pela existência de igualdades,
especialmente, socio-econômicas, social organizativas e políticas.
Diante dessa perspectiva conceitual de democracia, Guillermo
O’Donnell (2000, p 338), opta pela primeira possibilidade (democracia em um
caráter estritamente político – de matriz schumpeteriana), argüindo que a
definição que combina democracia com um grau substancial de justiça ou
igualdade social não é útil em termos analíticos além de perigosa, pois tende a
condenar qualquer democracia existente e, portanto, favorece ao autoritarismo.
Entretanto, independente da opção feita, O’Donnell desenvolve uma análise entre
democracia e alguns aspectos da igualdade entre indivíduos, já como pessoas
legais – portadores de direitos e obrigações, ou seja, cidadãos – fundamentais aos
interesses e objetivos da presente pesquisa.
O’Donnell parte do princípio de que os direitos conquistados pelos
cidadãos pressupõem certa autonomia, o que torna este sujeito responsável por
estas liberdades e direitos conquistados. “Este é o pressuposto que torna todo
indivíduo uma pessoa legal, um portador de direitos e obrigações formalmente
iguais não só no domínio político mas também nas obrigações contratuais, civil,
criminais e tributárias, nas relações com órgãos estatais e em muitas esferas da
vida social” (2000, p 339).
Para O’Donnell, esta presunção de autonomia e responsabilidade que
toca todas as partes que atuam nas transações, demonstra amplas potencialidades
de proporcionar uma maior igualdade entre os cidadãos, muito embora perceba a
seriedade que a crítica marxista realiza em relação à igualdade formal e ao
31
liberalismo8. Neste sentido é que O’Donnell reconhece a importância prática do
argumento segundo o qual a democracia corre sérios riscos de não sobreviver
quando a população de uma determinada sociedade for incapaz, devido a pobreza
extrema, de exercer sua autonomia. O’Donnell (2000, p. 341) afirma que, muito
embora “a democracia não tem nada a ver com esses obstáculos socialmente
determinados, (...), esse é um argumento prático, sujeito a testes empíricos que, de
fato, mostram que as sociedades mais pobres e/ou mais desigualitárias têm menos
probabilidade de ter poliarquias duradouras”.
Observa-se que esta liberdade definida negativamente pressupõe uma
igualdade jurídica como condição de universalizá-la, sem, entretanto, ultrapassar
esses limites. O próprio O’Donnell adverte que esta igualdade – caracterizada
apenas sob o ponto de vista formal – é “estabelecida em e por normas legais que
são válidas (no mínimo) por terem sido sancionadas de acordo com
procedimentos prévia e cuidadosamente ditados, com freqüência regulados em
última instância por normas constitucionais” e também porque “os direitos e
obrigações especificados são universalistas, no sentido de que são atribuídos a
cada indivíduo qua pessoa legal, independentemente de sua posição social, com a
única exigência de que o indivíduo tenha alcançado a maioridade (isto é, uma
certa idade, legalmente prescrita) e não tenha provado que ele sofra de algum tipo
de incapacidade desqualificante (estritamente definida e legalmente prescrita)”
(O’Donnell, 2000, p. 342).
Importante destacar o reconhecimento de que a igualdade formal é
absolutamente insuficiente e que a crítica às liberdades formais revelaram e
induziram duas grandes conquistas. A primeira, com a necessidade de medidas
políticas que, substancialmente, ultrapassem as desigualdades, de modo que todos
tenham, efetivamente, condições de exercer seus direitos. A segunda resultou do
reconhecimento de que essas políticas equalizadoras necessitam de medidas mais
específicas e, como conseqüência, vários tipos de auxílio social e legal foram
criados àqueles que possuem dificuldades para exercerem seus direitos
(O’Donnell, 2000, p. 343).
8
Sobre a crítica que se faz sobre o liberalismo, ver WALZER, Michael. El liberalismo y el arte de
la separación. In: Guerra, política y moral. Buenos Aires: Paidós. pp. 93 – 114.
32
2.2.2.
A globalização9 e seus reflexos: separações e polarizações
A palavra “globalização” teve sua recepção acadêmica através da
metáfora de McLuhan sobre a configuração de uma “aldeia global”, mas tornou-se
conhecida no sentido econômico no início dos anos 80, sendo assimilada pelo
discurso hegemônico neoliberal.
A importância para as relações político-sociais contemporâneas – para
efeito de entendimento da pesquisa – é perceber o conteúdo básico da dimensão
deste processo chamado “globalização”, ou seja, a possibilidade da constituição
de uma economia mundial sem fronteiras (visando altas taxas de lucros através da
globalização dos mercados), através de empresas internacionais, as quais
dominam os mercados financeiros restringindo as políticas econômicas
tradicionais dos Estados. Como conseqüência, “chega-se a afirmar que a
emergência da economia globalizada rompe de tal modo com o passado que se
assiste, virtualmente, à decomposição das economias nacionais e ao fim do
Estado-nação como organização territorial eficaz em matéria de governabilidade
das atividades econômicas nacionais” (Gómez, 2000, p. 20).
Através de uma intensa conceitualização10 sobre globalização, é
possível entendê-la como um processo que envolve diversas conexões, implicando
uma sensível mudança nas organizações sociais contemporâneas, constituindo-se
em uma condição multidimensional em que o crescimento dos padrões de
interconexão global alcança domínios institucionais-chave da vida social moderna
– econômico, cultural, político, tecnológico, legal, ambiental e social – e envolve,
9
GÓMEZ, José Maria. 2000, pp. 18-19. Aqui não será privilegiado o estudo da “globalização”,
por não fazer parte da análise direta da pesquisa.
10
Para uma maior especificação conceitual, Gómez (op. cit. p. 56-57) atribui cinco critérios à
“globalização”: a) esticamento de atividades sociais, econômicas e políticas através de fronteiras
nacionais, de modo que os eventos ou decisões acontecidos em uma parte do mundo têm impacto
imediato em outros lugares distantes; b) intensificação ou incremento de densidade dos fluxos e
padrões em e entre Estados e sociedade que constituem o moderno sistema mundial; c)
aprofundamento e imbricação estreita entre o local, o nacional, o regional e o global, que tornam
crescentemente confusas as separações entre o “interno” e o “externo” dessas instâncias; d)
salienta um conjunto de problemas transnacionais, caracterizados pelas interconexões globais, ao
mesmo tempo que aumenta a sua visibilidade e consciência, de modo que eles só podem ser
resolvidos mediante ação cooperativa entre Estados e instituições e mecanismos multilaterais de
regulamentação; e) configuração de uma teia de relações de interdependência, dinâmica e
contingente, complexa e instável, entre Estados, instituições internacionais, corporações
econômicas transnacionais, organizações não governamentais e todo tipo de associações e
movimentos sociais que constituem um sistema global.
33
necessariamente, organização e exercício de poder social em escala transnacional
e intercontinental (Gómez, 2000, p. 58).
Estas condições – mudança nas organizações sociais contemporâneas,
crescimento dos padrões de interconexão global e a organização e exercício de
poder social em escala transnacional e intercontinental – geram conseqüências
transformadoras na democracia política e, conseqüentemente, na cidadania
democrática tradicional (princípios políticos do Estado-nação e da ordem de
Vestfália11), como por exemplo, a noção de soberania que é colocada em cheque a
partir do momento em que ela (soberania) é limitada ante as condições efetivas
dos intercâmbios globais.
Cumpre, aqui, fazer uma pequena dilucidação. O conceito de
soberania, tanto teórico como prático tem sofrido diversas e importantes
mutações. Seu conceito, em conseqüência, entrou em crise no século XX, tanto
sob o ponto de vista teórico – com as novas teorias constitucionalistas – como
prático – com a crise do Estado moderno visto que não é mais capaz de se
apresentar como centro único e autônomo de poder, sujeito único de poder
político no âmbito internacional. São fatores importantes que contribuíram para
essa crise, a existência de uma sociedade democrática pluralista, a
interdependência entre Estados, tanto no aspecto jurídico e econômico, como
também no sentido político e ideológico, resultando, cada vez mais nítido, o
desaparecimento dos limites (geopolíticos) dos Estados12.
São estas transformações produzidas pela globalização (nos diversos
âmbitos – econômico, social, político, internacional, até mesmo geográfico, etc.),
que permitem dizer que o modelo de Estado-nação de base territorial passe a ser
visto de forma diferente, pois os governos democráticos perdem capacidade de
controlar seus próprios assuntos, ante a agilidade dos fluxos transnacionais.
Ademais, Gómez (2000, p. 64) explica que as formas estabelecidas de
geogovernança internacional e global, com capacidade de regular as atividades
transnacionais, expressam novas e reforçadas concentrações de poder, não
admitindo qualquer forma de controle democrático, afetando a autonomia
11
“Ordem de Vestfália” é a denominação da constituição do sistema internacional dos Estados, na
qual seus princípios normativos centrais são a territorialidade, a soberania, a autonomia e a
legalidade (Gómez, 2000, p. 45).
34
democrática dos Estados individuais e impõe-lhes restrições severas à sua
capacidade tradicional de integração social e nacional.
Os impactos causados pela textura social globalizada são dramáticos,
atingindo “em profundidade a cidadania democrática na sua dupla natureza, como
modo de legitimação e como meio de integração social, como status legal
igualitário de direitos e deveres dos membros da comunidade política em face do
poder político e, simultaneamente, como identidade coletiva baseada no
pertencimento à comunidade nacional de origem e destino”, entretanto, é bom que
se diga, “o incremento da polarização social, em escala doméstica e global, e a
erosão da solidariedade social decorrentes de duas décadas de intensa
globalização (afetando especialmente a figura do Estado de Bem-estar e os
direitos sociais)” têm provocado fortes restrições no duplo registro acima
mencionado, assim como na dimensão sempre presente de ‘cidadania ativa’
comprometida com a busca da ‘boa sociedade’ em termos de democracia
substantiva” (Goméz, 2000, p. 65).
De uma maneira bastante simples é possível identificar as mazelas
institucionais causadas pela globalização, em especial na política econômica
adotada pelo marco referencial teórico de viés liberal, a qual reverte o papel do
Estado em relação à regulação do mercado, bem como na responsabilidade dos
direitos sociais. Cria-se, pois, um verdadeiro paradoxo, entre o discurso da
democracia liberal ante as novas estruturas globalizadas de poder, fundadas em
conseqüência das políticas liberais.
Com a globalização alastram-se os grandes problemas atuais mundiais
– como a degradação ambiental, a busca desenfreada do consumo, a hibridização
cultural e problemas relacionados com a insegurança e o mal-estar da sociedade.
Rompe-se com todos os padrões tradicionais (tanto do Estado-nação como na
“ordem de Vestfália”) e o que se verifica é a deflagração do fenômeno da
mercantilização dos direitos sociais, criando-se um profundo abismo de
expectativas. É possível verificar que:
(...) a poderosa imagem do Estado-nação como forma dominante de
identidade coletiva irredutível, sustentada no pressuposto de uma população
12
Para entender melhor, de forma detalhada, a referida crise no conceito de soberania, verificar o
verbete “Soberania”, item IX – O eclipse da soberania, in: MATTEUCCI, Nicola. In: Dicionário
de política. Bobbio, Norberto (org.), et. al. 12a ed., v. 2. Brasília: UnB. pp. 1187-1188
35
com elevado grau de homogeneidade cultural - que, como se viu, havia
facilitado o desenvolvimento da cidadania legalmente definida, com força de
integração e solidariedade social –, vê-se hoje cada vez mais desafiada por
uma sociedade crescentemente pluralista ou multicultural, no sentido de uma
diversidade enorme das formas culturais de vida, dos grupos étnicos, das
visões de mundo e das religiões, desenvolvidas simultaneamente nos planos
infra-estatal e supra-estatal (Gómez, 2000, p. 66).
Significa dizer, conforme Gómez (2000, p. 66-67) explica, que essa
sociedade, multicultural ou pluralista, representa mais uma entre tantas outras
maneiras de identificação nacional entre os povos, ou seja, é possível dizer que a
identificação dos povos pode ser mais forte ou mais fraca. Citando Krause e
Reinwick, Gómez acrescenta que “outras identidades, por exemplo de gênero,
étnica, de classe social, de raça ou de preferência sexual, que não estão enraizadas
no apego a um território particular, podem ser altamente significativas”, ou seja,
os processos de globalização desestabilizam as identidades coletivas essencialistas
baseadas em concepções territoriais do “nós” e dos “outros”, desencadeando uma
dinâmica de diferenciação em torno e para além do princípio de nacionalidade,
contribuindo para a constituição e expansão de um espaço político global,
multidimensional, contraditório e descentrado.
As transformações causadas pela globalização atingem os mais
diversificados setores sociais (políticos, econômicos, religiosos, culturais, etc.),
em especial pelo visível e crescente fenômeno “do esgotamento e do
desaparecimento das grandes sagas de legitimação, especialmente as da religião e
da política” (Dufour, 2001, p. 01), bem como pela desregulamentação dos direitos
sociais e trabalhistas, os quais estão juntos com a retomada do Estado punitivo.
Desregulação social, ascensão do salariado precário (sobre um fundo de
desemprego de massa na Europa e de “miséria laboriosa” na América) e retomada
do Estado punitivo seguem juntos: a “mão invisível” do mercado de trabalho
precarizado encontra seu complemento institucional no “punho de ferro” do
Estado que se reorganiza de maneira a estrangular as desordens geradas pela
difusão da insegurança social (Wacquant, 2001 a, p. 135). Estas são as
conseqüências da globalização que devem ser entendidas e analisadas.
36
2.2.3.
Os processos de globalização e os pressupostos à violência estatal
É
possível
citar
conseqüências
políticas
dos
processos
de
globalização? É possível relacionar, dentro do contexto político moderno,
aventuras do pensamento religioso e as atitudes de um íntimo relacionamento
entre o poder exercido pela religião e o poder político? Estas e outras indagações
serão objeto de análise e, para tanto, farei incursões conceituais sobre autoridade
(e sua crise), violência, poder e liberdade, utilizando, principalmente, Hannah
Arendt.
Primeiramente é preciso deixar claro que os processos de globalização
conduziram à atual crise de identidade da civilização, isto porque os interesses do
grande capital – traduzida na militarização e hierarquização das potências
hegemônicas – intensificaram a perversa e excludente política social e
humanitária. Conforme Boaventura de Sousa Santos (1996, p. 76/78), essa
modernidade é um projeto ambicioso, revolucionário, de grande complexidade,
rico em idéias e ilimitado nas suas promessas e que seu projeto sócio-cultural,
construído entre os séculos XVI e final do XVIII, assenta-se nos pilares da
regulação (princípio do Estado, do mercado e da comunidade) e da emancipação
(racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura; a racionalidade moralprática da ética e do direito e a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e
da técnica).
Importante contribuição é dada por Hannah Arendt, ao destacar a
impossibilidade do diálogo entre passado e futuro nas experiências políticas e
progressos tecnológicos da ciência, vez que o século XX foi pródigo ao encontrar
na violência e nas diversas possibilidades de destruição em massa formas de
controle, significando à “intromissão massiva da violência criminosa na política”.
Hannah Arendt indica, ainda, que as novas gerações cresceram sob a
cumplicidade dos massacres como os campos de concentração, o terrorismo, o
genocídio, guerras civis, etc (1994, p. 20).
Em contrapartida, ou seja, ante a complexa relação do indivíduosujeito e o mundo dos direitos humanos, entre situações de conflito social e
agressão aos direitos individuais e coletivos, percebe-se que estão de mãos dadas
com o discurso da igualdade, da paz e da solidariedade, o egoísmo, a opressão, o
37
xenofobismo, o acúmulo de capitais, em resumo, as “democracias de mercado”.
Surge, então, uma íntima relação entre racionalidades: por um lado se
pretende um mundo melhor e mais digno, por outro a barbárie das guerras, da
exploração do trabalho infantil, da exploração sexual, a precarização à relação e
aos direitos trabalhistas, a exploração dos países de primeiro mundo em relação
aos países subdesenvolvidos, surgindo com mais intensidade um estado policial e
não mais social.
Estas situações vêm demonstrar as fissuras que não puderam ser
obturadas pelas transformações pretendidas pelos ideais modernos – construídas a
partir dos pressupostos liberais – notadamente a realização do projeto da
modernidade delimitado por Boaventura de Souza Santos.
Neste sentido, e percebendo a centralidade do sujeito nas relações
sociais, Dufour (2001, p. 1), afirma que as formas de destituição subjetiva que
invadem as nossas sociedades estão a revelar esta grande contradição, mostrada
pelos “colapsos psíquicos, o mal-estar no campo cultural, a multiplicação de atos
de violência e a emergência de formas de exploração em vasta escala. Todos estes
elementos são vetores de novas formas de alienação e desigualdade”. Esta
barbárie13 é refletida pela multiplicação dos atos de violência e as novas formas de
exploração. Estes fenômenos podem e devem ser entendidos como mecanismos
consectários do processo de globalização da segurança pública e do controle
social, em resposta à desregulamentação da economia e do esfacelamento do
Estado Social.
Questiona-se, pois, quais foram, efetivamente, as conquistas do
liberalismo ao sistema de leis implantado, pois os símbolos representados pelo
poder deixaram de existir, facultando à utilização da violência e da força àqueles
responsáveis pelos “distúrbios da ordem social”.
É preciso, portanto, estabelecer os lugares de identificação efetiva da
influência dos processos de globalização, especialmente pelo reconhecimento da
existência
dos
limites
intransponíveis
da
responsabilidade,
evitando
a
“normalidade” e “legitimidade” dos imperativos impostos pela contingência da
legalidade estrita e desta como a mais profunda e totalitária forma de expressão do
13
Joel Birman ao apresentar o trabalho do Professor Marildo Menegat (Depois do fim do mundo: a
crise da modernidade e a barbárie) afirma que “barbárie então é a condensação ampla, geral e
irrestrita, de tudo aquilo que fica de fora do estrito campo da razão, tendo, pois, na natureza a sua
condição histórica de possibilidade.” (2003, p. 15)
38
ser humano.
Hannah Arendt (2003), ao narrar o julgamento de Eichmann14, o faz,
de certa forma, demonstrando o lado da opressão dos vínculos normativos que,
naquele instante, ocorreu, pois se de um lado o carrasco burocrata Otto Adolf
Eichmann tinha relativa responsabilidade pelas atrocidades do holocausto, mas se
defendia dizendo ter agido dentro dos precisos limites da legalidade, por outro,
“as irregularidades e anormalidades do julgamento de Jerusalém foram tantas, tão
variadas e de tal complexidade legal que, no decorrer dos trabalhos e depois na
quantidade surpreendentemente pequena de literatura sobre o julgamento,
chegaram a obscurecer os grandes problemas morais, políticos e mesmo legais
que o julgamento inevitavelmente propunha” (2003, p. 275).
Longe de parecer uma vítima de uma suposta fúria vingativa daquela
Corte Distrital de Jerusalém, ante a impossibilidade de obscurecer sua
responsabilidade na deportação de milhões de judeus aos campos de extermínio
nazista, Eichmann, em seu julgamento, ao pretender triunfar a partir de sua
mediocridade, como funcionário público exemplar, honesto e obediente,
fervorosamente um cumpridor de ordens legais vigentes na Alemanha, permitiu a
Hannah Arendt concluir que a banalização do mal está situada não na tragédia do
totalitarismo nazista, mas na incapacidade de pensar, na incapacidade de obter
discernimento entre os limites intransponíveis da vida humana.
Enquanto cumpridor das normas vigentes, Eichmann se despiu das
responsabilidades do holocausto. Mais que isso. Apesar de não existir desculpas
ou inocência, também não existia o monstro, pela total tolerabilidade de sua
conduta. É exatamente neste chão que Hannah Arendt percorre suas reflexões
sobre a ‘banalidade do mal’, sobre a capacidade do ser humano em realizar ações
14
Otto Adolf Eichmann foi um funcionário do regime nazista alemão. Em 1961 Eichmann foi
capturado num subúrbio de Buenos Aires por um comando israelense e levado a julgamento numa
Corte Distrital de Jerusalém por ter cometido crimes perpetrados contra o povo judeu, bem como
ter pertencido a um grupo organizado com fins criminosos, durante a Segunda Guerra Mundial.
Todas as sessões do julgamento foram públicas e acompanhadas por jornalistas do mundo inteiro,
inclusive por Hannah Arendt, enviada pela revista The New Yorker. Eichmann foi condenado e
enforcado em 1962, nas proximidades de Tel Aviv. Hannah Arendt (2003, p. 277) levanta três
importantes objeções contra o julgamento de Eichmann: primeiro, ele estava sendo julgado por
uma lei retroativa e era trazido à corte dos vitoriosos; segundo, as objeções que se aplicavam
apenas à corte de Jerusalém, pois questionavam sua competência ou sua incapacidade de levar em
conta o ato do seqüestro de Eichmann em Buenos Aires e; terceiro, por ter sido acusado de ter
cometido crime “contra o povo judeu” e não “contra a humanidade”, portanto à lei sob a qual
estava sendo julgado, levando-se à conclusão de que somente uma corte internacional poderia
julgá-lo.
39
desumanas normalizadas pela legalidade, especialmente pela violência perpetrada
pelo Estado, aliás, diga-se, uma violência como forma usual de proceder do
Estado.
O pensamento de Hannah Arendt (1994, p. 36) sobre a relação entre
violência e poder é importante pois, em seu entendimento, é na utilização da
violência que o poder tende a desaparecer. O poder quer apenas significar que
“corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em
concerto”, ou seja, a possibilidade de agir em consenso, com o apoio de várias
pessoas, pois “a partir do momento em que o grupo, do qual se originara o poder
desde o começo, desaparece, ‘seu poder’ também se esvaece”.
É o apoio da população ao poder político que pode dar às instituições
condições de instrumentalizar e controlar ações políticas de interesse coletivo em
detrimento da utilização da violência, vez que esta ao ser altamente dimensionada
(através da tecnologia) corrompe as relações de poder gerando, em conseqüência,
novas formas de violência.
Independentemente da ordem instituída, o discurso atual é o do
recrudescimento das leis penais e, a cada instante, aumenta a participação das
polícias (públicas ou privadas) no controle e resolução dos conflitos sociais.
Assim, diante do desaparecimento das instâncias coletivas de controle e
reivindicações (sindicatos, por exemplo) e o surgimento das formas privadas de
resolução dos conflitos, a tentativa de controle da utilização da violência deve
transitar pela exortação à possibilidade de agir em consensos (poder), pois, como
afirma Hannah Arendt (1994, p. 63) “cada diminuição no poder é um convite à
violência”.
É preciso, portanto, entender o conceito de autoridade e sua crise (da
própria autoridade) a fim de perceber as diferenciações entre violência, poder e
autoridade, isto porque a autoridade sempre exige obediência, ou seja, é comum
ser confundida com poder ou com violência, visto que a autoridade exclui os
meios externos de coerção e é incompatível com a persuasão (Arendt, 2002, p.
129).
A análise do pensamento de Hannah Arendt está, inicialmente,
calcada no ideário grego, especialmente em Sócrates e Platão. Sem dúvida a
importância do pensamento grego deriva da sua concepção de homem na
sociedade, colocando o Homem no centro do seu pensamento e vendo na
40
educação um processo de construção consciente, pois para os gregos esta
(educação) não pertence ao indivíduo, “mas pertence por essência à comunidade”
e que “toda educação é assim o resultado da consciência viva de uma norma que
rege uma comunidade humana, quer se trate da família, de uma classe ou de uma
profissão, quer se trate de um agregado mais vasto, como um grupo étnico ou em
Estado” (Jaeger, 2003, p. 4).
Jaeger, ao analisar a história da educação, percebe que, para os gregos,
a educação é fundamental ao crescimento da sociedade, tanto sob o ponto de vista
exterior, como no desenvolvimento espiritual e “uma vez que o desenvolvimento
social depende da consciência dos valores que regem a vida humana, a história da
educação está essencialmente condicionada pela transformação dos valores
válidos para cada sociedade” e que “da dissolução e destruição das normas advém
a debilidade, a falta de segurança e até a impossibilidade absoluta de qualquer
ação educativa”, isto porque a tradição foi violentamente destruída (2003, p. 4).
Para Hannah Arendt, a perda da tradição (e, numa situação análoga,
também ocorreu com a religião), no mundo moderno, provocou a perda de um fio
condutor que conectava, com segurança, aos vastos domínios do passado e, essa
perda significa a privação da dimensão de profundidade na existência humana.
Importante notar que a perda da autoridade foi apenas a fase final de um processo
histórico que durante séculos desvastou, inicialmente, tradição e religião. Assim é
que “a autoridade, assentando-se sobre um alicerce no passado como sua
inabalada pedra angular, deu ao mundo a permanência e a durabilidade de que os
seres humanos necessitam precisamente por serem mortais” (2002, p. 130 e segs.).
Isto é importante a fim de perceber que, no dizer de Hannah Arendt
(2002, p. 130), “com a perda da autoridade, contudo, a dúvida geral da época
moderna invadiu também o domínio político, no qual as coisas assumem não
apenas uma expressão mais radical como se tornam investidas de uma realidade
peculiar ao domínio político”.
No início de sua análise sobre autoridade, Hannah Arendt faz uma
importante distinção em relação a autoridade e sua implicação com o problema
afim da liberdade no domínio da política, pois para as teorias liberais, a História é
caracterizada pelo alinhamento que o progresso deve manter na direção da
liberdade organizada e assegurada, olhando “cada desvio desse rumo como um
mero processo reacionário conducente à direção oposta”, ocorrendo, em
41
conseqüência, a indiferenciação “entre a restrição da liberdade em regimes
autoritários, a abolição da liberdade política em tiranias e ditaduras, e a total
eliminação da própria espontaneidade, isto é, da mais geral e elementar
manifestação da liberdade humana a qual somente visam os regimes totalitários
por intermédio de seus diversos métodos de condicionamento” (Arendt, 2002, p.
133).
Estas distinções são importantes, como ela (Hannah Arendt) mesmo
aponta, porque nos permite perceber que não é simplesmente uma diferenciação
de grau de liberdade que se está tratando, mas, fundamentalmente, na sua
existência ou abolição, o que pode ser visto – e a identificação liberal assim
procede – como uma certa inclinação de práticas totalitárias, ao ver as limitações
de governos de viés autoritários. Entretanto esta ponderação liberal olvida-se em
perceber a diferença entre tirania e autoritarismo15, poder legítimo com violência e
entender que a origem da autoridade é sempre exterior e superior a seu próprio
poder: “é sempre dessa fonte, dessa força externa que transcende a esfera política,
que as autoridades derivam sua “autoridade” – isto é, sua legitimidade – e em
relação à qual seu poder pode ser confirmado” (Arendt, 2002, p. 134). Os
discursos liberal e conservador tendem a medir um processo de refluxo da
liberdade e da autoridade (respectivamente) com vistas a identificar práticas
totalitárias,
entretanto
se
observarmos
“as
afirmações
conflitantes
de
conservadores e liberais com olhos imparciais, podemos ver facilmente que
estamos de fato em confronto com um simultâneo retrocesso tanto da liberdade
como da autoridade no mundo moderno” (Arendt, 2002, p. 138).
Uma segunda distinção que Hannah Arendt faz é entre autoridade e
violência em função da freqüente e indistinta utilização das palavras, pois a idéia
de que a violência cumpre a função da autoridade supre um conceito pelo outro.
Entretanto, diz Hannah Arendt (2002, p. 141) “aqueles que chamam as modernas
ditaduras de ‘autoritárias’, ou confundem o totalitarismo com uma estrutura
autoritária, equacionam implicitamente violência com autoridade, e isso inclui os
conservadores que explicam o ascenso das ditaduras em nosso século pela
necessidade de encontrar um sucedâneo para a autoridade”, ou seja, sob o ponto
15
Conforme Hannah Arendt (2002, p. 134) “a diferença entre tirania e governo autoritário sempre
foi que o tirano governa de acordo com seu próprio arbítrio e interesse, ao passo que mesmo o
mais draconiano governo autoritário é limitado por leis.”
42
de vista funcional admitem a possibilidade de uma sociedade restabelecer a
autoridade somente se for utilizada a violência.
Hannah Arendt (2002, p. 143 e segs.) alavanca seu conceito de
“autoridade” a partir da filosofia política de Platão e Aristóteles, os quais
introduziram algo parecido na vida pública da polis grega, pois eles, até então, não
conheciam qualquer experiência política autoritária. Para a polis o governo
absoluto (tirania) tinha três características: governar por meio de pura violência,
necessidade de proteção do povo por uma guarda pessoal e separação entre esfera
privada (os súditos cuidavam de seus próprios negócios) e pública (reservada ao
tirano). Assim, o exercício da tirania nos moldes apresentados, significava, para
os gregos, que a não participação na vida pública era a privação da participação
política que era sentida como a essência da liberdade, ou seja, a liberdade (para os
gregos) estava diretamente ligada à participação política: o indivíduo era livre a
partir do momento que poderia participar da vida política.
Entretanto, fica bastante evidente, nas pesquisas desenvolvidas por
Hannah Arendt (2002, pp. 160/162), que as diversas tentativas de se dar um
conceito de autoridade não foram encontradas na Filosofia política grega, isto
porque as experiências lá produzidas foram extraídas de conteúdos não políticos,
como por exemplo de modelos do âmbito privado, especialmente no modo de vida
das comunidades domésticas, mas tão somente na política romana, em função de
que aqui encontra-se a convicção do caráter sagrado da fundação, ou seja, a
participação na política significava preservar a fundação da cidade de Roma.
Importante observar a estreita relação que existe entre política e religião romanas,
pois ambas estão ligadas às suas fundações: a religião ligada ao passado e a
política à história de suas origens, uma vez que os romanos estavam intimamente
ligados ao solo e à criação da cidade.
É neste contexto que a auctoritas aparece inicialmente. Vinculando-se
as origens (às fundações), religião e atividade política podem “ser consideradas
como praticamente idênticas”, pois em ambas, o crescimento16 dirige-se no
sentido do passado, significando dizer a preservação e a santificação da tradição.
Assim, a preservação do passado (feita pela manutenção da tradição) fornecia a
16
A palavra autocritas é derivada do verbo augere, que significa, entre outras coisas, aumentar, e
aquilo que a autoridade ou os de posse dela constantemente aumentam é a fundação (Arendt, 2002,
p. 163/164).
43
experiência política necessária a resguardar a força coerciva da autoridade, mesmo
porque esta tem a característica de não possuir poder, mas a ‘força coerciva dessa
autoridade está intimamente ligada à força religiosamente coerciva do auspices’,
que ao contrário do oráculo grego não sugere o curso objetivo dos eventos futuros,
mas revela meramente a aprovação ou desaprovação divina das decisões feitas
pelos homens (Arendt, 2002, p. 163 e segs.).
Conceitualmente, pode-se dizer, segundo Hannah Arendt (1994, p.
36/37), que a essência da autoridade é o reconhecimento inquestionável por
aqueles a quem se pede que obedeçam e nem a coerção ou a persuasão são
necessárias. É preciso notar, contudo, que com o declínio do Império Romano, a
Igreja Católica recebe a herança (praticamente sua fundação) política e espiritual
de Roma e a tríade romana da religião, autoridade e tradição puderam ser
assumidas pela era cristã constituindo-se um importante legado na história do
ocidente, mormente em função de dois aspectos bastante significativos: de um
lado, “repetiu-se mais uma vez o milagre da permanência, pois, dentro do quadro
de nossa história, a durabilidade e continuidade da Igreja como instituição pública
só possui termo de comparação com o milênio de história romana na
Antigüidade” (Arendt, 2002, p. 169) e, de outro lado, quando houve a separação
entre igreja e poder real, isto representou não só a separação entre autoridade
sagrada da igreja e o poder real, mas, além da confirmação da Igreja como
instituição política importante na história do ocidente, fundamentalmente, a perda,
no âmbito da política, da autoridade, havendo, em conseqüência, um certo
atrelamento e dependência entre religião, autoridade e tradição.
A partir desse momento e “na medida em que Igreja Católica
incorporou a Filosofia Grega na estrutura de suas doutrinas e crenças dogmáticas,
ela (a Igreja) amalgamou o conceito político romano de autoridade”, que era
baseado à noção grega de medidas e regras transcendentes (Arendt, 2002, 170).
Para Hannah Arendt isto representou, muito mais que a perda da autoridade, pois
a estrutura política da sociedade também perdeu seu aspecto perene, o que lhe
proporcionava um caráter contínuo da autoridade, ou seja, a estabilidade política
de uma sociedade estava diretamente relacionada com a “estabilidade do
amálgama, que sempre que um dos elementos da trindade romana fosse posto em
dúvida ou eliminado, os dois restantes não teriam mais segurança” (Arendt, 2002,
p. 171).
44
É exatamente a partir do século V, em função do esfacelamento do
Império Romano, provocado pelos constantes confrontos com os bárbaros e, em
grande parte pelos povos germânicos, que se inicia a decadência da civilização
romana, desenvolvendo-se uma nova estrutura social, política e econômica (que se
convencionou chamar de período medieval), permitindo-se, contudo, a
consolidação da igreja católica como instituição, difundindo-se o cristianismo
entre os bárbaros e, essencialmente, exercendo um importante papel na política do
medievo.
Assim é que Hannah Arendt, (2002, p. 170) ao vincular a perda da
autoridade do Estado com o conseqüente domínio exercido pela Igreja, conclui
que isto “implicou na realidade ter o político agora, pela primeira vez desde os
romanos, perdido sua autoridade e, com ela, aquele elemento que, pelo menos na
História Ocidental, dotara as estruturas políticas de durabilidade, continuidade e
permanência”. Esta perda que Hannah Arendt fala, pode estar configurada na
existência de uma nova dimensão que, passando pela Lei17, aparece na autoridade
do mercado.
Para o contexto da pesquisa, é fundamental entender a importância da
incorporação dos postulados da filosofia grega à Igreja Católica – especialmente
em suas doutrinas e crenças dogmáticas – o conceito político romano de
autoridade, pois foi importante legitimar para a Igreja as interpretações das
“noções um tanto vagas e conflitantes do Cristianismo primitivo acerca da vida
futura à luz dos mitos políticos platônicos, elevando assim ao nível de certezas
dogmáticas um elaborado sistema de recompensas e castigos para ações e erros
que não encontrassem justa retribuição na terra” (Arendt, 2002, p. 171). Hannah
Arendt atribui a Platão as primeiras concepções do juízo final, das recompensas
ou castigos e as descrições geográficas do inferno, do purgatório e do paraíso.
Para ela, Platão foi o primeiro a tomar consciência da potencialidade política das
crenças, pois estas são necessárias à persuasão, única maneira de trabalhar com a
multidão. Para Platão, a teologia não era o estudo e a interpretação da palavra de
Deus, mas uma ferramenta da Política, ou seja, a arte de poucos governarem sobre
muitos (Arendt, 2002, p. 176/178).
17
Sob a ótica da psicanálise, importante entender a idéia da autoridade da lei, para além do mito
do assassinato do pai primevo mas, prioritariamente, entender o referencial moderno da
retransmissão da norma aos sujeitos a ela destinados, como fator preponderante para o
atendimento e chamado da autoridade – o outro imaginário.
45
Importante entender que a introdução da teoria do inferno nas crenças
dogmáticas cristãs fortaleceu a autoridade religiosa, contribuindo, entretanto, com
a diluição do conceito romano de autoridade, diretamente vinculado a
legitimidade, permitindo-se, com isto, a poderosa influência da persuasão sobre a
consciência, permitindo uma intensa e vigorosa vinculação do poder da igreja na
vida pública e a utilização do elemento “violência”. Entretanto, sem dúvida, há
grande diferenciação entre o atual pensamento político e este momento, de séculos
passados, em que o medo do inferno sujeitava as ações das massas, qual seja, a
contemporânea perda das crenças uma vez que estas serviram, ao seu tempo,
como autoridade ante a sanção religiosa transcendente. Desse modo, a religião
perde seu elemento político e a vida política a sanção religiosa (Arendt, 2002, p.
180).
Esta é, sem dúvida, a grande contribuição – para a presente pesquisa –
do estudo sobre autoridade que fez Hannah Arendt ou seja, é o sentido
contundente que ela concebe o poder político da autoridade e as expectativas
atuais diante das formas que se pretende alcançar a autoridade: violência e medo.
Não será mais o medo do inferno o motivo pelo qual uma multidão poderia ser
persuadida ou ser-lhe imposta alguma regra de comportamento, mas sem dúvida,
a autoridade, na contemporaneidade, está vinculada a alienação da verdade
(mesmo porque esta não é objeto de persuasão), ou seja, a autoridade passa a ser
muito mais instrumental, muito mais mecanismo de consecução do que estrutura
política social. É dizer: é necessário, para a realização dos pressupostos do
capitalismo globalizado, um poder político dotado de autoridade suficiente para
persuadir e imprimir o ritmo desejado na conduta da administração das políticas
públicas necessárias à acumulação do capital utilizando-se, entretanto, a profusão
do medo e da violência – tanto a violência institucional (pela atuação repressiva
do Estado e do parlamento) quanto estrutural (impondo a produção e reprodução
da desigualdade social).
A pergunta que Hannah Arendt lança em “Crises da República” é
bastante conveniente aos propósitos da presente pesquisa, pois corresponde, até
certo ponto, a uma das hipóteses de resposta prevista em nosso projeto inicial.
Para ela, diante do apocalíptico jogo de xadrez entre as superpotências, no qual
todos serão derrotados (não haverá vencedores), o objetivo é a intimidação e não a
vitória, pois “quanto mais intimidação houver maior é a garantia de paz” (Arendt,
46
1999, p. 94). Esta equação, para Hannah Arendt, sugere um nó que dificilmente
será desatado, entretanto é importante lembrar as ponderadas distinções que ela
faz em relação aos fenômenos do “poder”, do “vigor”, da “força”, da “autoridade”
e da “violência”18.
A importante crítica de Hannah Arendt está, principalmente nos textos
publicados de “Crises da República” e “Sobre a Violência”, na utilização da
violência no campo da política pois, para ela, tanto o vigor, a força, como a
violência são fenômenos individuais e não plurais, como o poder e a autoridade e,
diante das diversas crises de legitimidade do Estado contemporâneo, estes últimos
(poder e autoridade) perdem espaços à utilização da violência e esta, por sua
natureza instrumental, necessita de justificação, diferentemente do poder que,
como se viu, necessita de legitimidade. Como lembra Hannah Arendt (1994, p.
42-43) a violência não depende de números ou opiniões mas de implementos e
estes, como todos os meios, amplificam e multiplicam o vigor humano, os quais
podem destruir o poder, mas jamais criá-lo ou substituí-lo, pois o resultado da
utilização da violência não será a conquista do poder, mas a obediência.
Ao examinar todos estes fenômenos, Hannah Arendt alicerça a
conclusão de que é necessário o uso do terror para manter a dominação e isto se
dá com a vitória da violência sobre o poder (1994, p. 43). Como bem enfatiza
(Arendt, 1994, p. 41), o poder está diretamente relacionado com a legitimidade
ou, dito de outra forma, o poder sempre depende dos números pois ele, como se
viu, corresponde à habilidade humana para agir em consenso, por isso que ela diz
que o poder não necessita de justificação mas de legitimidade, que está
diretamente relacionada à autoridade.
18
Conforme Hannah Arendt (1994, pp. 36 e 37) “O poder corresponder à habilidade humana não
apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca é propriedade do indivíduo; pertence
ao grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido”. “O
vigor inequivocamente designa algo no singular, uma entidade individual; é a propriedade inerente
a um objeto ou pessoa e pertence ao seu caráter, podendo provar-se a si mesmo na relação com
outras coisas ou pessoas, mas sendo essencialmente diferente delas”. “A força, que freqüentemente
empregamos no discurso cotidiano como um sinônimo da violência, especialmente se esta serve
como um meio de coerção, deveria ser reservada, na linguagem terminológica, às ‘forças da
natureza’ ou à ‘força das circunstâncias’, isto é, deveria indicar a energia liberada por movimentos
físicos ou sociais”. “A autoridade (...) pode ser investida em pessoas. Sua insignia é o
reconhecimento inquestionável por aqueles a quem se pede que obedeçam; nem a coerção nem a
persuasão são necessárias. Conservar a autoridade requer respeito pela pessoa ou pelo cargo. O
maior inimigo da autoridade é, portanto, o desprezo, e o mais seguro meio para miná-la é a
risada”. “A violência, como disse, distingue-se por seu caráter instrumental.
Fenomenologicamente, ela está próxima do vigor, posto que os implementos da violência, como
47
Cabe aqui, pois, duas situações importantes levantadas por Hannah
Arendt, sobre o uso do terror na política: a primeira é sobre o surgimento de sua
utilização pois, para ela, é possível o uso do terror quando, após a violência ter
derrotado o poder, ela continua sendo utilizada ao controle total; a segunda, é a
dependência do terror ao grau de atomização social, ou seja, a eficácia da
utilização do terror está diretamente relacionada e dependente ao grau de oposição
pois “toda forma de oposição organizada deve desaparecer antes que possa ser
liberada a plena força do terror” (1994, p. 43).
Muito mais que utilizar a violência à dominação, este discurso
(especialmente do poder e da segurança) produz a imagem necessária do terror
social e isto é transferido de forma natural e espontânea ao senso comum19, o qual
exige uma ação estatal cada vez mais disciplinadora e emergencial, típica dos
estados totalitários. Como conseqüência “natural”, há uma ideologização que dá
ao Estado a legitimação necessária à garantia da ordem, possibilitando uma
organização social rígida, hierarquizada e sem oposição (atomizada), na qual as
classes sociais, especialmente as classes subalternas (estratos sociais mais baixos),
estarão submetidas a todos os tipos de violência – estrutural e institucional – do
Estado, as quais, mais que compreender em nível da razão, foram (e seguem
sendo) levadas a ver e a sentir seu lugar na estrutura social” (Neder, 1993, p. 9).
É preciso que todos se sintam muito mais que dominados, mas
pensando que fazem parte do sistema e pensando conforme o sistema. Os
indivíduos devem se manter, não só obedientes, mas devem estar sujeitados,
evitando-se a criação dos desejos, deixando-os aprisionados aos desejos
permitidos,
criando-se
um
imaginário
próprio
conforme
determinadas
circunstâncias já estabelecidas, ou seja, para a existência da dominação total é
necessário não mais (ou não só) a violência física, mas que a produção dos
todas as outras ferramentas, são planejados e usados com o propósito de multiplicar o vigor natural
até que, em seu último estágio de desenvolvimento, possam substituí-lo.
19
O sentido de senso comum aqui referido, diferentemente de conhecimento científico, significa
os saberes cotidianos e do senso comum de nossa sociedade com as seguintes características: a) é
subjetivo, exprimindo sentimentos e opiniões individuais e de grupos; b) é qualitativo; c)
heterogêneo, pois se refere a fatos que julgamos diferentes, porque os percebemos como diversos
entre si; d) é individualizador, por serem qualitativos e heterogêneos; e) é generalizador, pois
tendem a reunir numa só opinião ou numa só idéia coisas e fatos julgados semelhantes; f) tendem a
estabelecer relações de causa e efeito entre as coisas ou entre os fatos; g) procuram projetar nas
coisas ou no mundo sentimentos de angústia e de medo diante do desconhecido; h) cristalizam-se
em preconceitos com os quais passamos a interpretar toda a realidade que nos cerca e todos os
acontecimentos. In: CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 7a ed., São Paulo: Ática, 1996, p.
174/175.
48
desejos esteja controlada e direcionada aos objetivos estruturais da sociedade. Isto
revela outra situação, a saber: se vivemos numa sociedade liberal, de capitalismo
globalizado (de mercado sem intervenção estatal) e uma sociedade disciplinada e
de controle das massas, a produção das subjetividades estará condicionada a estes
tipos de desejos, ou seja, do consumo e das subjetividades isomórficas.
Este é o novo paradigma de dominação, ultrapassando a lógica da
violência institucional e estrutural, mas agora com a utilização do terror social à
produção de novas subjetividades: é a morte do sujeito, esta é a razão que Carlos
Plastino adverte que o sujeito está doente. Vou um pouco mais longe: não há
lugar, no mundo contemporâneo, aos sujeitos desejosos. Não há sujeitos, não há
individualidades em função da não produção (ou não permissão da produção) de
desejos. Conforme escreve Castor Ruiz (2004, p. 73):
A ordem se produz e reproduz no exercício do desejo de cada indivíduo; eis
por que, para a nova ordem, é prioritária não a repressão do desejo, mas seu
controle. Por isso, nas sociedades modernas, o indivíduo entende que a
prática de sua liberdade passa, fundamentalmente, pela realização de seus
desejos. A noção liberal vinculou estreitamente a liberdade ao desejo, de tal
modo que o desenvolvimento dos desejos coincide com a prática da
liberdade.
Esta impossibilidade de realização dos desejos está diretamente
relacionada com o conceito de liberdade apresentado por Hannah Arendt, isto
porque não importa para ela a idéia de “sentir-se livre”20 (neste sentido foi a
tradição cristã que consolidou a identificação entre liberdade e livre-arbítrio) ou,
mais precisamente, a noção liberal (cunhada a partir da modernidade) de liberdade
individual (autonomia do indivíduo), no sentido de ausência de oposição, mas na
real possibilidade de participar da vida política e, consequentemente, pela
capacidade de ser responsável. É esta a razão pela qual Hannah Arendt aponta
para o surgimento do totalitarismo no século XX, ou seja, o surgimento de
regimes políticos que excluíram a liberdade da cena política, fato que para ela
resulta numa contradição à idéia de espaço público como locus privilegiado da
vida pública pois é impensável ação e política destituídas de liberdade21.
20
Para Hannah Arendt (2002, p. 194) “tomamos inicialmente consciência da liberdade ou do seu
contrário em nosso relacionamento com outros, e não no relacionamento com nós mesmos.”
21
Interessante ponderação é feita por Hannah Arendt (2002, p. 195) quando credita à ascensão dos
regimes totalitários “(...) a pretensão de ter subordinado todas as esferas da vida às exigências da
política e seu conseqüente descaso pelos direitos civis, entre os quais, acima de tudo, os direitos à
49
É este o sentido que Hannah Arendt procura, então, desmistificar, qual
seja, “quando a liberdade não era mais vivenciada no agir e na associação com
outros, mas no querer e no relacionamento com o próprio eu” (2002, p. 211),
evidenciando um problema político a ser resolvido pois em função do “desvio
filosófico da ação para a força de vontade, da liberdade como um estado de ser
manifesto na ação para o liberum arbitrium, o ideal de liberdade deixou de ser o
virtuosismo22 no sentido que mencionamos anteriormente, tornando-se a
soberania, o ideal de um livre-arbítrio, independente dos outros e eventualmente
prevalecendo sobre eles”.
O alerta de Hannah Arendt sobre a identificação de liberdade com
soberania é muito importante porque conduz, segundo ela (2002, p. 212), à
negação da liberdade humana ou à compreensão de que a liberdade de um
homem, de um grupo de homens ou de um organismo político somente pode ser
adquirida mediante a liberdade (soberania) dos demais. Para ela (2002, p. 213) a
soberania dos organismos políticos sempre foi uma ilusão, a qual, além do mais,
só pode ser mantida pelos instrumentos de violência, isto é, com meios
essencialmente não-políticos”.
É possível dizer que este foi o estatuto da modernidade e ainda o é na
condição pós-moderna23. A procura de uma organização política fundamentada
intimidade e à isenção da política, fazem-nos duvidar não apenas da coincidência da política com a
liberdade como de sua própria compatibilidade.”
22
Sobre o conceito de virtuosismo, Hannah Arendt (2002, p. 199) afirma que “a melhor ilustração
da liberdade enquanto inerente à ação seja o conceito maquiavélico de virtù, a excelência com que
o homem responde às oportunidades que o mundo abre ante ele à guisa de fortuna. A melhor
versão de seu significado é ‘virtuosidade’, isto é, uma excelência que atribuímos às artes de
realização (à diferença das artes criativas de fabricação), onde a perfeição está no próprio
desempenho e não em um produto final que sobrevive à atividade que a trouxe ao mundo e dela se
torna independente.”
23
A fim de delimitar o termo “pós-moderno” na presente pesquisa, é preciso, em primeiro lugar
estabelecer que o termo trazido será sempre empregado como uma situação diferente apresentada
pela “modernidade”, especialmente em relação aos pressupostos econômicos e políticos, não
sendo levadas em consideração as transições culturais e estéticas que o termo e o período apresenta
(importante ver Harvey (2004), parte I). Somente a título de delimitação, já que a discussão sobre
características e conseqüências da “modernidade” e “pós-modernidade” estará sendo travada nos
capítulos II e III da presente pesquisa, é possível identificar três momentos distintos na sucessão
dos paradigmas econômicos, os quais, de alguma forma, são identificados como um primeiro
período no qual a agricultura e a extração de matérias-primas dominaram a economia; um segundo
período de domínio industrial de fabricação de bens duráveis e, um terceiro momento, de
predomínio do setor de serviços e de manuseio de informações. Este último período, no qual
estamos vivendo, caracterizado pela transição e passagem da modenização (ou industrialização,
correspondente ao segundo período) para o domínio da informação, é denominado (não de forma
consensual) de processo de pós-modernização econômica ou de informatização. Estas mudanças,
ou o processo de pós-modernização, tem sido demonstrado nos países de capitalismo dominante,
50
em princípios racionais, na defesa de princípios baseados na dignidade, igualdade
e, essencialmente, na liberdade, bem como o surgimento de uma sociedade
globalizada – complexa e contraditória – não foram suficientes para evitar as
marcas da perversa legalidade: a barbárie da escravidão, os regimes totalitários, os
campos de concentração, o xenofobismo, o colonialismo exploratório, a
discriminação racial, de gênero e das minorias. O que é pior: a racionalização da
exclusão social, neste universo globalizado de disputa de todos contra todos
(indivíduos ou grupos sociais), é inaugurada pela naturalização da desigualdade –
já que todos são, formalmente, iguais – e fundada no império da lei, uma vez que,
no caminho sedimentado pela racionalização jurídica buscou-se, no princípio da
igualdade (mais tarde igualdade jurídica), a conservação da idéia darwinista da
competição como pressuposto da plena liberdade de todos. Esta liberdade formal
(a qual não passa de uma ilusão)24 contribuiu para justificar, a igualdade material
de todos.
A partir deste pensamento e com a sólida edificação da dimensão
imaginária da racionalização, em que limites são estabelecidos por normas e
adequados, pretensamente, à consecução de uma sociedade justa, eqüitativa e
livre, percebe-se, neste contexto, a idealização mais contundente da tentativa de se
trazer, diante da suposta neutralidade da norma, a apresentação de uma verdade (e
apenas uma) com a conseqüência direta de impedir a criação dos desejos e
facilitar a morte do sujeito.
É preciso, portanto, vincular o sentido de liberdade ao contexto da
estrutura social capitalista, idealizada pelos princípios liberais dos séculos XVII e
XVIII, que permitiu que esse modo de produção tomasse a frente da sociedade,
impondo-se como única alternativa possível, normalizando condutas através de
um intenso processo de subjetivação constante na produção e satisfação dos
desejos pois, como se sabe, o princípio de mercado – característica fundante do
capitalismo global – impõe os padrões de consumo, ditando e otimizando as
desde o começo dos anos 1970 (Harvey, 2004, pp. 117-119; HARDT e NEGRI, 2004, pp. 301306).
24
Apesar do conteúdo “formal” ser concreto, um ponto de partida (muitas vezes) e não uma ilusão,
a forma pela qual a liberdade que se apresenta no modo de produção capitalistas de matiz liberal é
reveladora, vez que a contradição exposta pela liberdade – vista sob o prisma da relação entre
forma e conteúdo – é reveladora. Assim, a ilusão se refere a um determinado conteúdo (não fixo,
mas mutável em função das constantes alterações no modo de vida social e político – material
portanto – e que, consequentemente, contribuem para alterar o conjunto das idéias), no sentido da
essência e não da aparência pois, ao contrário da essência, na aparência todos somos livres.
51
promessas da modernidade, revelando – na pós-modernidade – que os intensos
processos de globalização somente podem ser mantidos se, e somente se,
estiverem também mantidos os pressupostos à violência estatal: os meios nãopolíticos.
2.2.4.
Democracia, capitalismo e coerção estatal: uma crítica no mundo
globalizado
Assim como diversos outros fenômenos afetos à condição humana,
entendo ser absolutamente pertinente a análise materialista das condições sociais
da atividade coercitiva estatal dentre as quais, a violência produzida no seio do
Estado (estrutural e institucional) deve ser avaliada como condição social inerente
ao domínio do atual modo de produção capitalista25.
Para este propósito, entretanto, é pertinente compreender duas grandes
hipóteses (conceitos) trazidas por Karl Marx: a concepção do “materialismo
histórico” e o desvelar da “mais-valia”26. A idéia do “materialismo histórico” é
resultado da concepção de Marx em explicar a história da sociedade baseando-se
em fatos materiais, fundamentalmente econômicos. Para Marx (2003 b, p. 5) “não
é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que,
inversamente, determina a sua consciência”, ou seja, é o ser social (atividade
material produtiva) que determina a consciência social. Marx, a partir de uma
revisão crítica da Filosofia do Direito, de Hegel, elabora seu pensamento que se
torna o “fio condutor” de seus estudos. Para ele, cada modo de produção – no
curso do desenvolvimento dos modos de produção (o das comunidades primitivas,
o da antigüidade, o escravista, o asiático, o feudal, o capitalista ou o socialista) –
gera uma correspondente superestrutura, a qual reflete as relações materiais
25
A pertinência da análise do objeto da presente pesquisa sob a ótica materialista se revela
importante pois é preciso entender – a fim de revelar – qual a contradição que se apresenta diante
de uma sociedade aparentemente livre – de forma – e, ao mesmo tempo, aprisionada diante das
impossibilidades estruturais – conteúdo – impostas concretamente pela sociedade dividida
socialmente. São evidências reveladoras, por exemplo: o acesso à justiça, previdência social,
seletividade criminal, direitos civis plenos (moradia, alimentação, educação, saúde, segurança,
etc.), exploração sexual, trabalho infantil, etc.
26
Tanto o “materialismo histórico” como “mais-valia” são conceitos fundamentais na teoria
marxista. Através deles será possível explicar a exploração capitalista e os mecanismos de
utilização da violência estatal à consecução dos fins pretendidos pelo modo de produção
capitalista. Ambos os conceitos serão analisados de forma específica.
52
dominantes. Sua conclusão geral sobre seus estudos é que:
na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações
determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de
produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das
forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui
a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva
uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas
formas de consciência social. O modo de produção da vida material
condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral.
27
(...). Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais
28
da sociedade que entram em contradição com as relações de produção
existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de
propriedade no seio das quais se tinham movido até então (MARX, 2003 b,
p. 5).
Assim é que, diante do desenvolvimento das forças produtivas
materiais (ferramentas, máquinas, tecnologia, o próprio trabalhador, etc., ou seja,
tudo o que possibilita a produção), surge o dilema, o conflito, com as relações de
produção existentes – compradores de força de trabalho (capitalistas) e
vendedores da força de trabalho (proletários) – o qual será definido em favor das
forças produtivas, surgindo novas relações de produção, ou seja, a transformação
da base econômica altera toda a imensa superestrutura. Com o estabelecimento do
modo de produção capitalista, como em todas as relações, denominadas “relações
sociais de produção” dos homens, há uma divisão de classes, e a base material que
se constitui de maneira específica e própria, altera toda a superestrutura,
especialmente nas esferas política, jurídica e ideológicas (as artes, a religião, a
27
“Força produtiva” são as “forças naturais (inclusive o próprio homem) apropriadas pelo homem
para a produção e reprodução de sua vida social. A parte material das forças produtivas, isto é, os
instrumentos e os objetos de trabalho, constituem a base material e técnica da sociedade. A
principal força de produtiva, no entanto, é o próprio homem, que cria instrumentos de trabalho
cada vez mais poderosos, aperfeiçoa seus objetos de trabalho e combina ambos no sentido de
ampliar constantemente a produção. Isso significa que as forças produtirvas tendem a crescer
constantemente. Essa expansão opera modificações nas relações de produção e no modo de
produção. Assim, a determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas correspondem
determinadas relações de produção. (SANDRONI, 2005, p. 352)
28
“Relações de produção” é um conceito da economia marxista que designa o conjunto de relações
econômicas que se estabelecem entre os homens, independente de sua consciência e de sua
vontade, no processo de produção e reprodução de sua vida social. No capitalismo, a relação de
produção fundamental é a que ocorre entre capitalistas (compradores de força de trabalho) e
proletários (vendedores de força de trabalho). A base das relações de produção está nas relações de
propriedade sobre os meios de produção. O caráter das relações de produção depende de quem
sejam os proprietários dos meios de produção e de como se realiza a união desses meios com os
produtores diretos. As relações de produção se desenvolvem diretamente, vinculadas e em
dependência recíproca das forças produtivas da sociedade. A conjugação das primeiras e das
últimas forma um modo de produção historicamente determinado (SANDRONI, 2005, p. 719).
53
moral) e se materializa através da coerção e da força estatal. Para Marx (2003 b, p.
5):
A transformação da base econômica altera, mais ou menos rapidamente, toda
a imensa superstrutura. Ao considerar tais alterações é necessário sempre
distinguir entre a alteração material – que se pode comprovar de maneira
cientificamente rigorosa – das condições econômicas de produção, e as
formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as
formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito,
levando-o às últimas conseqüências. Assim como não se julga um indivíduo
pela idéia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de
transformação pela mesma consciência de si; é preciso, pelo contrário,
explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito
que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção.
Existe aqui, sem dúvida, de fato, um limite estrutural nesta economia
política em que o modo de produção é o capitalista e o Estado, como o conjunto
de
instituições
(jurídicas,
políticas
e
sociais)
capaz
de,
formal
e
preponderantemente, aplicar os instrumentos de coerção e violência (estrutural e
institucional) a conter os conflitos sociais. Para Ellen Wood (2003, p. 37):
Esses instrumentos de coerção podem ou não, desde o início, ser projetados
como meios para que um segmento da população possa oprimir e explorar os
demais. Em qualquer dos dois casos, o Estado exige o cumprimento de
certas funções sociais comuns que outras instituições menos abrangentes –
lares, clãs, famílias, grupos etc. – não têm condições de executar.
Sendo ou não verdade que o objetivo essencial do Estado seja manter a
exploração, o seu cumprimento das funções sociais implica uma divisão
social do trabalho e a apropriação por alguns grupos sociais de excedentes
produzidos por outros.
Assim é que esta violência estatal – tanto estrutural como institucional
– enquanto maneira de estabelecer e reproduzir a propriedade privada dos meios
de produção, fornece também os meios necessários à contenção da grande massa
de excluídos, a fim de manter a ordem social necessária ao processo de
reprodução do Capital, tornando possível o indivíduo – dentro do modo de
produção capitalista – não possuindo os meios de produção, vender sua
capacidade de trabalho àquele que os possui e desta forma entregar parte do seu
trabalho na forma de mais-valia.
Estas idéias ficam claras ao analisar o Capítulo XXIV (“O segredo da
acumulação primitiva”) uma vez que, conforme ensina Marx (2003 a, p. 828),
54
para ocorrer a acumulação primitiva é necessário a dissociação entre os
trabalhadores e a propriedade dos meios pelos quais se realiza o trabalho, ou seja,
é necessário o encontro de duas espécies de possuidores de mercadorias: de um
lado o proprietário do dinheiro, dos meios de produção e de subsistência,
pretendendo aumentar seus valores já acumulados e comprar a força de trabalho
alheia e, de outro, os trabalhadores livres29, que vendem sua força de trabalho.
A partir de seu rigor metodológico, Marx consegue demonstrar o
longo período de consolidação do modo de produção capitalista, afirmando, ainda,
que este não se limita apenas em manter esta dissociação entre trabalhador e
meios de produção, mas a reproduz em escala cada vez maior, pois o “processo
que cria o sistema capitalista consiste apenas no processo que retira do trabalhador
a propriedade de seus meios de trabalho, um processo que transforma em capital
os meios sociais de subsistência e os de produção e converte em assalariados os
produtores diretos. A chamada acumulação primitiva é apenas o processo
histórico que dissocia o trabalhador dos meios de produção” (Marx, 2003a, p.
828).
Neste mesmo capítulo XXIV, Marx aponta como ocorreram os
mecanismos de expropriação dos camponeses, em especial e mais detidamente
explicando que foi a partir do final do século XIV, quando as relações de servidão
tinham praticamente desaparecido na Inglaterra, proporcionando, enfim, no último
quarto do século XVIII, o desenvolvimento, ascensão e triunfo do capitalismo
europeu, o que possibilitou seu espraiamento, intensificando o desenvolvimento
desigual do mundo. Para Marx (2003 a, p. 847) o “ roubo dos bens da Igreja, a
alienação fraudulenta dos domínios do Estado, a ladroeira das terras comuns e a
transformação da propriedade feudal e do clã em propriedade privada moderna,
levada a cabo com terrorismo implacável, figuram entre os métodos idílicos da
acumulação primitiva. Conquistaram o campo para a agricultura capitalista,
incorporaram as terras ao capital e proporcionaram à indústria das cidades a oferta
necessária de proletários sem direitos”.
Assim, além da demonstração de que a acumulação de capital
representa o aumento do proletariado, ou seja, mais exclusão e distanciamento
29
Para Marx (2003 a, p. 828) os trabalhadores são livres em dois sentidos: “porque não são parte
direta dos meios de produção, como os escravos e servos, e porque não são donos dos meios de
produção, como o camponês autônomo, estando assim livres de desembaraçados deles.”
55
entre as classes sociais, Marx aponta que isso somente foi possível através de uma
“legislação sanguinária” que permitiu a expulsão dos camponeses do campo, sua
criminalização em sua “chegada” às cidades. Com este deslocamento dos
camponeses, surgem, pelo menos, duas conseqüências importantes em função da
alteração das condições habituais de subsistência dos mesmos, vez que eram
grandes as diferenças no campo daquelas exigidas nas cidades: a não adaptação às
duras condições de trabalho exigidas nas fábricas e a impossibilidade de serem
absorvidos pelas manufaturas já existentes e em franco desenvolvimento na
mesma proporção que os camponeses apareciam disponíveis (livres ao trabalho),
ou seja, havia grande quantidade de trabalhadores livres sem que houvesse postos
de trabalho suficientes para tamanha demanda.
Estas duas conseqüências foram o bastante para, dentro do ponto de
vista dos efeitos da “economia política da pena”30, resultar na formação (ou
transformação) de uma “categoria” de pessoas absolutamente destituída de
direitos: os vagabundos, os mendigos, os ladrões, os quais, encontraram no novo
sistema de produção a mais completa e abrangente condição de criminoso pois, se
de um lado, o próprio sistema capitalista criou a circunstância que foram
submetidos os camponeses, ou seja, a imposição de venderem sua força de
trabalho e a impossibilidade de encontrarem postos de trabalho, pois muito
escassos, o mesmo sistema capitalista burguês criou, em conformidade com a
razão iluminista, o crime propriamente dito (com previsão legal da criminalização
da vagabundagem).
A importância da análise de Marx, em “O Capital”, sobre a questão
penal, é rica no momento em que se percebe que a função exercida pela violência
estatal tem como objetivo “garantir o controle da força-trabalho e, portanto, a
extração da mais-valia, a exploração” (Melossi, 2004, p. 130) demonstrando que a
repressão exerce um papel fundamental no processo de contenção dos
“trabalhadores livres”. Dario Melossi (2004, p. 130) elabora importante
contribuição sobre o relacionamento e encontro entre o campesinato e a
30
Esta expressão (economia política da pena) foi, originariamente, formulada por Alessandro De
Giorgi (2002, p. 34) ao investigar a relação entre economia e controle social, utilizando, para tanto,
de uma orientação da criminologia crítica, de derivação principalmente marxista e foucaultiana.
Ao prefaciar a obra de De Giorgi, Dario Melossi (De Giorgi, 2002, p. 8) afirma que o estudo da
sociologia da pena é identificado na “interpretação da história da penalidade na qual o objeto
fundamental consiste em relacionar as categorias de derivação marxista à reconstrução dos
processos de desenvolvimento das principais instituições penais”.
56
manufatura:
Vindos das ruínas do feudalismo, capital e operários “livres” são colocados
frente a frente. E são reunidos materialmente na manufatura. Para esse
proletariado em formação, tal abraço não é voluntário nem de modo algum
prazeroso. Ele deve adaptar-se à clausura, à falta de luz e de espaço, à perda
daquela relativa autonomia permitida pelo trabalho nos campos, para
submeter-se à autoridade incondicional do capitalismo, na mais brutal e
fatigante monotonia e repetitividade. Não é por acaso, como veremos, que
manufatura e cárcere tenham historicamente uma mesma e interdependente
origem.
É a grande contribuição dada pelas obras de George Rusche e Otto
Kirchheimeir, quando explicam a origem materialista da prisão, levando sempre
em conta a função efetivamente cumprida pela instituição. Diante dessa
perspectiva materialista da origem da prisão, é importante fazer a análise,
relacionando o surgimento do capitalismo com o surgimento das penas privativas
de liberdade. No mesmo sentido Dario Melossi e Massimo Pavarini fizeram a
análise também a partir da relação entre capital e trabalho, ou seja, a investigação
apontou que tais transformações ocorreram a partir da mudança do modo de
produção feudal para o modo de produção capitalista, isto é, a origem da
instituição carcerária encontra-se no capitalismo e na conseqüente aparição do
proletariado.
Como dito, a grande massa de camponeses que invadiu as cidades, em
busca de emprego, encontra apenas dificuldades, pois nem todos eram utilizados
como mão-de-obra. Foi assim que, inevitavelmente, a fuga para as cidades
converteu os trabalhadores do campo em desocupados. Na primeira metade do
século XVI, aproximadamente, por influência do clero inglês, o rei da Inglaterra
autorizou a utilização do castelo de Bridewell para serem recolhidos os
vagabundos, desocupados, ladrões e autores de pequenos delitos, com a finalidade
de reformá-los pelo trabalho e disciplina, bem como o de servir para desestimular
a vagabundagem e ociosidade daqueles que assim se encontravam (Melossi e
Pavarini, 1987, p. 30-32).
Assim é que no final do século XVI os métodos punitivos começam a
sofrer profundas alterações, com a possibilidade da utilização da mão-de-obra
daqueles submetidos ao cárcere. Segundo Rusche e Kirchheimer (1984, p. 25),
estas alterações foram causadas, não pelas considerações humanitárias, mas sim
57
pelo incipiente desenvolvimento econômico e um material humano à disposição
do aparato administrativo, pois como afirmam “A força de trabalho dos reclusos
era utilizada em uma das duas formas: ou eram as próprias autoridades que
administravam a instituição, ou os reclusos eram entregues como aluguel a um
empresário privado” (1984, p. 49)31.
Assim, em consonância com o novo pensamento capitalista, havia a
necessidade da redução dos custos de produção, e o olhar se voltou para o
aproveitamento da mão-de-obra disponível para “(...) não só absorvendo-a dentro
da atividade econômica senão, ‘ressocializando-a’ de tal modo que no futuro
estivesse disposta a integrar-se voluntariamente ao mercado de trabalho” (Rusche
e Kirchheimer, 1984, p. 15)32.
Para Marx, “a população rural, expropriada e expulsa de suas terras,
compelida à vagabundagem, foi enquadrada na disciplina exigida pelo sistema de
trabalho assalariado, por meio de um grotesco terrorismo legalizado que
empregava o açoite, o ferro em brasa e a tortura”. Esse é o modo pelo qual é
preciso entender como o sistema capitalista envolve e domina o trabalhador, pois
agora, somente de uma forma excepcional, o sistema utilizará a violência para
garantir as condições à reprodução do capital, pois a “burguesia nascente
precisava e empregava a força do Estado, para “regular” o salário, isto é,
comprimi-lo dentro dos limites convenientes à produção de mais-valia, para
prolongar a jornada de trabalho e para manter o próprio trabalhador num grau
adequado de dependência” (2003 a, p. 850).
Destaca-se, contudo, que todas estas alterações passaram a ocorrer na
Europa, entre a segunda metade do século XVI33 e o final do século XVIII, com o
triunfo do capitalismo, ou seja, as estratégias de poder mudaram, como afirma
Foucault, do regime de poder soberano, de uma função de destruição física dos
criminosos, ao regime de disciplinamento dos corpos, quando se inicia o chamado
período dos “grandes internamentos”. A ordem, agora, é o encarceramento. Uma
31
Tradução livre do autor: “La fuerza de trabajo de los reclusos era utilizada en una de dos formas:
o eran las propias autoridades las que administraban la institución, o los reclusos eran entregados
en alquiler a un empresario privado.”
32
Tradução livre do autor: “(...) no solo absorbiéndola dentro de la actividad económica sino,
además, ‘ressocializándola’ de modo tal que en el futuro estuviera dispuesta a integrarse
voluntariamente en el mercado de trabajo”
33
As Casas de Correção surgiram, provavelmente, a partir de 1555, “com o propósito de limpar as
cidades de vagabundos e mendigos”, com a criação da Bridewell, em Londres (Rusche e
Kirchheimer, 1999, p. 61).
58
forma muito mais sutil de alcançar os objetivos da nova classe social que
ascendia, a acumulação do capital. O objetivo principal do encarceramento era de
constituir uma massa de trabalhadores dóceis e úteis, a fim de transformar sujeitos
camponeses em “força de trabalho livre”. Esta complexa relação permite um
enorme poder e disponibilidade sobre a força produtiva, tornando-a cada vez mais
apta (e domesticada) à expansão do capitalismo.
Cumpre, entretanto, verificar como esse procedimento ocorre hoje e
quais são seus motivos, em função de que os trabalhadores estão levantando os
braços e, de joelhos, imploram para serem explorados, ou seja, quais são as
funções do cárcere hoje? Este assunto será tratado, mais detidamente, nos
capítulos II e III da presente pesquisa. Neste momento, contudo, é importante
observar os reflexos dos estudos da criminologia crítica, de corte marxista
(especialmente no estudo da economia política) para entender sua relação com o
controle social.
Melossi (2004, p. 133) diz que durante os séculos XVII e XVIII,
paralelamente ao surgimento da manufatura, nos países ocidentais desenvolvidos,
surgem as “casas de trabalho” e “casas de correção” em substituição às formas de
punição corporal, baseadas em uma visão ascética e produtivista da vida e é
“precisamente o elemento reeducativo do trabalho, de fato, que acima de qualquer
outro, é ressaltado nesse período e que determina a novidade tanto ideológica
como de organização material dessas novas instituições. O ministério da
disciplina vai se tornando, assim, cada vez menos obscuro; essa disciplina
particular que o subproletariado (ainda em larga medida somente futuro
proletariado) deve aprender é a disciplina que regula o coração mesmo da
sociedade burguesa. Mas o coração dessa sociedade é a acumulação do capital, ou
seja, a extração de mais-valia”.
Esta relação é de compreensão fundamental. É preciso ter a percepção
de que à extração da mais-valia depende do grau de adaptação do trabalhador à
disciplina da fábrica, isto porque os princípios que regem o trabalho nas
manufaturas, para extrair o máximo de produtividade do trabalhador, exige o rigor
e a disciplina que o modo de produção capitalista impõe ao operário, pois “se fora
da produção pode imperar a ideologia jurídica, dentro dela impera a servidão, a
desigualdade. Mas o lugar da produção é a fábrica. Assim, a função institucional
que cumprem a casa de trabalho, primeiro, e a prisão, como se verá depois, é o
59
aprendizado, por parte do proletariado, da disciplina de fábrica” (grifo no
original) (Melossi, 2004, p. 134). Este foi o papel predominante do cárcere, cuja
origem encontra-se no capitalismo e na conseqüente aparição do proletariado:
diante das grandes transformações sociais ocorridas na Europa nos séculos XVI e
XVII, ocorreu o enfrentamento pela imposição do trabalho, “a praga social da
vagabundagem e a praga econômica do aumento dos salários, provocado pela
escassez de força de trabalho” (De Giogi, 2002, p. 45).
O que se vê cada vez mais é uma íntima relação entre as origens do
modo de produção capitalista, especialmente o estudo da origem da acumulação
primitiva do capital, com a história da pena (direito penal) e da prisão
(instituição), observando-se, como dito, privilegiadamente, o objeto com o olhar
crítico da criminologia, pois como afirma Juarez Cirino dos Santos (2005, p. 19),
“a teoria criminológica materialista/dialética mostra a emergência histórica da
retribuição equivalente como fenômeno sócio-estrutural específico das sociedades
capitalistas: a função de retribuição equivalente da pena criminal corresponde aos
fundamentos materiais e ideológicos das sociedades fundadas na relação
capital/trabalho assalariado, porque existe como ‘forma de equivalência’ jurídica
fundada nas relações de produção das sociedades capitalistas contemporâneas”
(grifo no original).
Esta importante contribuição, trazida pela discussão crítica do sistema
penal, inaugurada por Pasukanis – com “A Teoria Geral do Direito e o
Marxismo”, de 1926 – passando pelas historiografias de George Rusche e Otto
Kirchheimer – com “Punição e Estrutura Social” de 1933, Michael Foucault –
com “Vigiar e Punir”, de 1975, Dario Melossi e Massimo Pavarini – com
“Cárcere e Fábrica: as origens do sistema penitenciário”, de 1977 – chegando ao
fundamental trabalho de Alessandro Baratta – com “Criminologia crítica e crítica
do Direito Penal”, de 1986 – possibilita compreender como as relações de
trabalho estabelecidas na fábrica – principal instituição característica do período
capitalista – tem estreita, direta e perfeita relação com a prisão – local apropriado
ao disciplinamento dos corpos e principal instituição representante da imagem do
controle social burguês – fundamentalmente, pela característica da reprodução das
desigualdades sociais e dominação a qual dá idêntico contorno presente nas
fábricas.
É, como diz Foucault (1996, p. 15), o momento em que a “punição
60
vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal, provocando várias
conseqüências: deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência
abstrata; sua eficácia é atribuída à sua fatalidade e não à sua intensidade visível; a
certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o
abominável teatro”, isto porque a pena privativa de liberdade começa a surgir com
a alteração do foco da punição, pois dos castigos corporais passa-se à privação de
tempo do condenado e é neste sentido que Foucault (2002, p. 122) identifica as
instituições de seqüestro34, pois através dos “jogos de poder e do saber”
potencializam a “transformação da força do tempo e da força de trabalho e sua
integração na produção” e que “o tempo da vida se torne tempo de trabalho, que o
tempo de trabalho se torne força de trabalho, que a força de trabalho se torne força
produtiva”.
O propósito da extração da mais-valia à acumulação capitalista, isto é,
da sociedade alicerçada e desenvolvida aos processos de acumulação e reprodução
do capital, moldam uma superestrutura jurídica que corresponde, exatamente, aos
seus propósitos, é dizer, diante de uma sociedade baseada na desigualdade e
subordinação – circunstância típica das sociedades baseadas no modo de produção
capitalista – é preciso, para conter a massa de excluídos, um sistema de controle
do desvio absolutamente repressivo, e nada melhor que o sistema penal para
cumprir este papel, isto porque este procedimento de cariz responsável, encobre
um sistema eivado de contradições e ilusões, encobrindo, na verdade, o mal-estar
provocado pelo modo de produção capitalista de julgamento moral das condutas.
A prisão, também e portanto, é extrema e eficazmente funcional pois,
após extrair o tempo de vida dos homens transformando esse tempo em trabalho e
transformando o corpo em força de trabalho, é exatamente nas instituições de
seqüestro em que se realiza um novo tipo de poder: “um poder polimorto,
polivalente” (Foucault, 2002, pp. 119/120), pois, de certa maneira, estabelece-se
um poder econômico (no caso das fábricas, nas relações de troca entre salário e
tempo de trabalho), um poder político (relações hierárquicas, estabelecimento de
ordens, expulsar indivíduos e aceitar outros, etc.) e, também, um poder judiciário
(pois estabelecem punições, recompensas e instâncias de julgamentos). São estes
34
Para Foucault as instituições de seqüestro (século XIX) surgem em oposição às instituições de
reclusão (século XVIII), pois se estas pretendiam a exclusão dos marginais ou o reforço da
marginalidade, aquelas tinham por finalidade a inclusão e a normalização (2002, p. 114).
61
micro-poderes que se aglutinam e, em conjunto com o novo saber tecnológico
(psicologia, criminologia, etc.), típico das instituições de seqüestro, consolidam a
transformação do tempo em tempo de trabalho.
De certa maneira, há plena justificação da existência da prisão – ela se
torna válida – e, conseqüentemente, das outras instituições também, pois se
privilegiam desta legitimidade, uma vez que todas elas estabelecem e criam
formas de dominação, por serem muito semelhantes, estabelecendo, portanto, o
poder e o saber de forma homogênea, é dizer, há a concretização e efetivação do
poder econômico, político e judiciário em um só lugar, em um só momento, pois
conforme afirma Foucault (2002, p. 124) “a prisão ao mesmo tempo se inocenta
de ser prisão pelo fato de se assemelhar a todo o resto, e inocenta todas as
instituições de serem prisões, já que ela se apresenta como sendo válida
unicamente para aqueles que cometeram uma falta”.
É preciso fazer, entretanto, uma pequena ponderação (de ordem
metodológica e epistemológica), utilizando-se, para tanto, da argumentação de De
Giorgi (2002, p. 41/42) e de Foucault (2002, p. 124/126), antes mesmo de iniciar a
discussão sobre a economia política da pena. Para De Giorgi, por exemplo, a
relação entre estrutura social e penalidade não pode ser considerada “como uma
relação mecânica a qual a superestrutura ideológica da pena possa ser deduzida,
de modo linear, da estrutura material das relações de produção”35, exercendo,
entretanto e sem dúvida, um lugar de destaque na composição dos sistemas
repressivos.
Para Foucault a relação “homem e trabalho” é determinada por uma
série de operações, as quais ligam os homens ao aparelho de produção para o qual
trabalham. Divergindo da proposição marxista de que, sendo o trabalho a essência
do homem, é o capitalismo que transforma esse trabalho em mais-valia, Foucault
afirma que a influência do sistema capitalista é muito mais profunda em nossa
existência, pois o próprio sistema foi obrigado a impor e criar técnicas políticas e
de poder, responsáveis pela vinculação do homem com o trabalho, muito além dos
vínculos materiais explícitos pelo trabalho – como a acumulação, o acréscimo
patrimonial, etc. – criando relações quase de afetividade e dependência, fixando
os homens aos aparelhos de produção transformando-os em trabalhadores. Para
35
“(...) come un rapporto meccanico in forza del quale la sobrastruttura ideologica della pena si
possa ricavere in modo lineare dalla struttura materiale dei rapporti di produzione”.
62
ele, a “ligação do homem ao trabalho é sintética, política; é uma ligação operada
pelo poder. Não há sobre-lucro sem sub-poder” (2002, p. 125).
É conveniente, portanto, como se verá a seguir, analisar a relação
existente entre desemprego e encarceramento com determinados cuidados, isto
porque a hipótese de que a relação entre estrutura social e sistema penal espelha
sempre
uma
relação
de
percepção
da
marginalidade
social
e
seu
contingenciamento ou, em outras palavras, a solução aos problemas sociais
causados pelo capitalismo e, mais especificamente, pela exclusão social resolverse-ia através do encarceramento, é hoje de discutível aferição. É preciso, portanto,
fazer uma leitura (ou uma releitura) do sistema penal – especialmente do cárcere –
uma vez que, além das funções efetivamente produzidas (significativamente:
vigilância e estigmatização), é possível e necessário entendê-lo de maneira
diferente: hoje, o cárcere, não desempenha mais as funções de agenciamento de
mão-de-obra, como local de adestramento dos corpos, ou de construção de um
exército de reserva. Como instituição de controle que é, o cárcere estabelece
novas tecnologias de produção, em especial a produção de uma específica
subjetividade, trazida por sua função simbólica que é, visivelmente, a submissão
ao controle do Estado pela normalização das condutas estabelecidas pela lei.
Diante das novas tecnologias de poder e de controle e da abundância
da mão-de-obra, a função do cárcere passou, de um controle direto das massas –
pelo disciplinamento dos corpos – ao controle da produção de subjetividades das
massas ou seja, no momento contemporâneo, é possível perceber que os
encarcerados perderam (despojaram-se) de todos seus direitos, pois há um
domínio total sobre seus corpos, o que os leva a perderem suas condições de
serem humanos, possibilitando a exuberância da exceção e da anormalidade.
É preciso entender, portanto, o sistema penal de forma instrumental,
não como mero coadjuvante na história ou que hoje tenha perdido suas funções,
mas entendê-lo como instrumento hábil e disponível a exercer determinadas
funções em determinadas épocas, conforme a necessidade, justamente pela
potência exercida.
A tese fundamental é de que o cárcere produz efeitos diversos
daqueles anteriormente delimitados, mas fundamentalmente produz efeitos
controladores, disciplinadores e recrutadores, dentro e fora da instituição,
diretamente subordinados à ela, bem como vinculados à sua função simbólica: é
63
possível, por exemplo, verificar o aumento da população carcerária nos Estados
Unidos36 e a grande quantidade de pessoas selecionadas pelo sistema penal
brasileiro desde a edição da Lei no 9.099/95, as quais estão subordinadas a todos
os seus efeitos. Vemos nesses dois casos, a submissão das massas à criação de
verdadeiros depósitos para seres humanos – destituídos de todas as suas
características, especialmente da cidadania – ou aos vínculos estigmatizantes do
sistema.
Enfim, muito mais do que idealizar esta relação, é preciso significá-la
historicamente entre sistemas repressivos específicos (o sistema penal e a prisão
por excelência) e as estratégias de poder e dominação existentes. Este será o
propósito do capítulo seguinte.
2.3.
As relações entre os processos de globalização e os Direitos
Humanos
Quais são, enfim, as expectativas e as possíveis soluções? A reflexão,
dentro de perspectivas muito precisas, especificamente no núcleo da relação
vinculante entre democracia, direitos humanos e desenvolvimento humano, deve
demonstrar profundos laços existentes ante o compartilhamento de posturas éticas
e políticas comuns. O centro é a idéia de sujeito livre, ou seja, a idéia de
autonomia, estreitamente vinculada à “capacidade de direito”, não somente ser
titular da ação, mas também ser responsável por suas conseqüências.
A idéia de cidadania está vinculada a este sujeito livre (autônomo) que
encontra na democracia seu maior referencial, pois este sujeito (não numa visão
individual, mas inseridos em comunidades – grupos, nações, etc.) que delibera e
participa é, ao mesmo tempo, consciente e responsável das conseqüências de suas
decisões, sobretudo políticas (não de um cidadão passivo, mas um cidadão ativo).
Outro referencial importante é a idéia de Direitos Humanos, já que
estes pretendem responder às necessidades humanas básicas contra a violência e
36
Este assunto será debatido com mais detalhes nos capítulos seguintes, mas é importante já
mencionar os referenciais teóricos que podem ser analisados desde já, especialmente os dados
levantados em: “WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Tradução de André Telles. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001, 174 p.” e “CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime: a
64
às ameaças que não permitem sobrevivência elementar, ou seja, criar capacidades
para que as necessidades básicas sejam um direito possível a qualquer pessoa,
independente de nacionalidade, sexo, raça (de caráter universal), etc. Assim, os
Direitos Humanos compartilham com a idéia de cidadania ativa, que significa
capacidade de direitos para satisfazer necessidades básicas de modo a garantir a
toda e qualquer pessoa sua condição de titular de ação, com capacidade e direitos,
tais como educação, moradia, saúde, etc., com a finalidade precípua de que as
pessoas possam desenvolver-se o máximo possível, em suas potencialidades.
De modo oposto, e ante as constantes demonstrações do
individualismo exacerbado – e seu alcance egoístico – o que se vê é o fruto entre
as perversas e complexas relações intersubjetivas da contemporaneidade com o
universo dos Direitos Humanos. Contudo, o paradoxo é assustador, pois ao
mesmo tempo em que o desenvolvimento econômico das sociedades capitalistas
produziu um mundo capaz de gerar riquezas sem precedentes na história, a
sociedade, estruturada em classes, não conhece os resultados e as promessas de
uma vida melhor, mas, ao contrário, lhe são negadas e sonegadas todas as
possibilidades de participação, provocando, com isto uma estrutura de terrível
desigualdade e polarização social, com o conseqüente empobrecimento e exclusão
de camadas cada vez maiores da população, causando um progressivo e constante
esgarçamento da tecitura social.
Diante desse contexto, o que se verifica são as constantes práticas de
intolerância – conforme Bobbio (1992, p. 204) tanto derivada da concepção de
possuir a verdade, como daquela derivada de um preconceito – vivificada pela
atuação passiva das instituições do Estado, fincadas na separação entre sociedade
civil da sociedade política, hermética condição das políticas liberais, a qual exorta
ações repressivas cada vez maiores, bem como a constante e crescente erosão dos
afetos e das solidariedades sociais, abalando, sobremaneira, a garantia dos direitos
individuais e coletivos, com suas conseqüentes flexibilizações.
Para responder ao questionamento feito sobre o papel da democracia
na atual sociedade capitalista, importante contribuição é feita pela crítica marxista
ao capitalismo. A crítica revela que a separação entre as esferas da sociedade civil
e sociedade política não é tão evidente assim, pois o poder político que está com o
caminho dos GULAGs em estilo ocidental. Tradução de Luis Leiria. Rio de Janeiro: Forense,
1998, 227 p”.
65
Estado não é outra coisa senão a própria expressão mediatizada de poder de
classe, organizada no modo que se produz materialmente na sociedade capitalista.
Este Estado tão monstro e tão parcial nada mais é do que um Estado de classe,
cuja natureza funcional é assegurar o direito de propriedade, implicando em seu
envolvimento nas próprias relações de produção, razão pela qual ele (o Estado) se
utiliza da prerrogativa do monopólio do uso da força para compor e ajustar as
relações sociais.
Assim, o Estado, tão necessário às consecuções e interesses do
capitalismo, principalmente para manter a ordem e garantir o pressuposto da
constante acumulação, assume sua posição de garante, pois com todo o aparato
repressivo, utiliza-se do monopólio do uso da força para manter as desigualdades,
o controle social do desvio e as relações de subordinação, provocadas às camadas
mais vulneráveis da sociedade.
3
GLOBALIZAÇÃO E CONTROLE SOCIAL
3.1 Estado e a relação social da produção. 3.2 A intervenção política do Estado na economia.
3.2.1 As formas de intervenção do Estado. 3.2.2 O uso dos instrumentos ideológicos e
repressivos: o conteúdo político das funções econômicas do Estado. 3.3 A criação de novos
espaços à reprodução do capital. 3.3.1 As transformações no mundo do trabalho. 3.3.2 O
cenário mundial do capital e os ciclos econômicos no último quarto do século XX. 3.3.3
Espaço e tempo à reprodução do capital. 3.3.4 A produção industrial militar e a necessidade
do “consumo destrutivo. 3.4 O mercado da violência
Os processos de globalização que conduziram à atual crise de
identidade da civilização, isto porque os interesses do grande capital – traduzida
na militarização e hierarquização das potências hegemônicas – intensificaram a
perversa e excludente política social e humanitária, produziram uma intensa
deflagração do fenômeno da mercantilização dos direitos sociais, com a
conseqüente e inevitável vulnerabilidade dos direitos humanos.
Esta é a relação que precisa ser feita. É preciso entender esse
imbricado jogo. A par da visível recessão1 que os países mais ricos atravessam,
em especial os Estados Unidos e alguns estados da Europa, os efeitos da economia
liberal estão sendo sentidos em todos os quadrantes, como efeitos deletérios do
capitalismo, os quais desembocam na vertente liberal do capitalismo globalizado
(e suas terríveis conseqüências): desemprego em massa, pobreza, xenofobia e, em
última análise, no encarceramento de determinadas e enormes parcelas da
população. Para manter essa massa de desempregados ou de “sub-empregados” –
conseqüências diretas do capitalismo globalizado – é que o Estado lança mão de
seu braço coercitivo de controle social.
Antes mesmo de tecer comentários a esta hipótese, segundo a qual, o
sistema econômico neoliberal ao priorizar o problema da segurança pública, o faz
em detrimento de outros direitos – especialmente os direitos sociais – fomentando
o aparecimento de novas formas de controle, é preciso entender que, a partir dos
anos 90 do século XX, principalmente com o colapso do socialismo real, a
1
Para Sandroni (2005, p. 711) recessão pode ser entendida como o “conjunto de declínio da
atividade econômica, caracterizada por queda da produção, aumento do desemprego, diminuição
da taxa de lucros e crescimento dos índices de falências e concordatas. Essa situação pode ser
superada num período breve ou pode estender-se de forma prolongada, configurando então uma
67
globalização produziu um sentimento, relativamente homogêneo, no sentido de
terem triunfado os pressupostos liberais, tanto políticos (democracia liberal) como
econômicos (capitalismo globalizado) (Cf. GÓMEZ, 2000, p. 15).
Contudo, como afirma David Harvey (2003, p. 77/78), as contradições
internas, tendentes a gerar crises, da acumulação do capital estão a revelar a
dificuldade da reprodução do capital e a conseqüente necessidade de se achar
espaços próprios a esta finalidade. É preciso, portanto, traçar alguns pontos de
contato a fim de se chegar às relações entre o desenvolvimento das políticas
econômicas, a partir do século XX, especialmente com a crise do estado de bem
estar social e, mais tarde, já nas décadas de 80/90 até o momento atual com a
condição do novo proletariado2, e as dinâmicas das relações de produção que
podem estar influenciando o novo encarceramento, ou seja, ultrapassando a lógica
do internamento e do disciplinamento para a lógica de um controle e
proletarização das classes excluídas.
Na lógica do sistema neoliberal3, a adoção das políticas econômicas,
mesmo nos países capitalistas mais avançados, condiciona o Estado numa
dimensão crescente de envolvimento, direto e indireto, para “salvaguardar a
continuidade do modo de reprodução do metabolismo social do capital.” (Cf.
Mészáros, 2003, p. 29).
Os efeitos dessas políticas são devastadores. De uma maneira bastante
simples, é possível identificar as mazelas institucionais causadas pela
globalização, em especial na política econômica adotada, a qual reverte o papel do
depressão ou crise econômica. O fenômeno da recessão está ligado ao processo de
desenvolvimento dos ciclos econômicos próprios da economia de mercado ou capitalista.”
2
No capítulo III da presente pesquisa o tema será aprofundado. Neste momento, entretanto, é
importante compreender que as análises feitas pelas diversas historiografias utilizadas à
contextualização das classes sociais trabalhadoras, indicadas pela leitura marxista, não me parecem
suficientes à preparação do estudo que nos propusemos, isto porque, de certo modo, a força de
trabalho que está sendo constituída no processo produtivo contemporâneo (ou, até mesmo, está
sendo expulsa da constituição do processo produtivo) não atinge mais as finalidades levantadas,
especialmente o disciplinamento e o controle. Portanto, este novo proletariado, acima referido,
será significado como um termo que alguns autores denominam como “pos-fordismo”, ou seja,
nesse período de indefinição daquilo que “não é mais” e que “ainda não é”, indicará uma transição
e a tendência da produção, marcadamente no limite do modelo fordista e o atual momento de
flexibilização da produção.
3
O termo neoliberal é trazido, a partir de meados dos anos 70 do século XX, como a nova
proposta para os mesmos pressupostos estampados pelo liberalismo econômico de Adam Smith e
David Ricardo, numa tentativa de trazer uma linguagem desideologizada, mas que tem como
finalidade circunscrever e permitir ao Estado uma função mínima, regulatória apenas, permitindo
que as liberdades (especialmente do mercado – livre concorrência) possam diretamente contribuir,
democraticamente, aos ganhos coletivos. Por esta razão é importante que, durante a elaboração da
tese, sejam realizadas dilucidações sobre “liberdade” e “democracia”.
68
Estado em relação à regulação do mercado, bem como na responsabilidade dos
direitos sociais. Cria-se, pois, um verdadeiro paradoxo, entre o discurso da
democracia liberal ante as novas estruturas globalizadas de poder, fundadas em
conseqüência das políticas liberais. Marta Harnecker (2000, pp. 212-213 e 239)
afirma que os efeitos da adoção das políticas neoliberais (tanto do ponto de vista
político como do econômico) são extremamente negativos para a sociedade, e
também aos trabalhadores em geral (estabilidade no trabalho, salários dignos,
segurança social), atingindo suas organizações de classe, para permitir a menor
intervenção do Estado, deixando os conflitos de classe para resolução pelo livre
mercado.
Como dito, para conter essa nova classe – esse novo proletariado – é
que o Estado lança mão de seu braço coercitivo de controle social. Esta é a relação
que precisa ser feita, ou seja, é possível entender as estruturas de poder como uma
explicação de práticas autoritárias que se prolongam no tempo ou são decorrentes
do modo de produção capitalista consolidadas nos modelos democráticos à
disposição da sociedade? Estes são os desafios (questionamentos) a serem
respondidos.
3.1.
Estado e a relação social da produção
Como visto, o liberalismo econômico que se desenvolveu a partir do
século XVIII, produziu uma espécie de não intervenção nas relações econômicas,
especialmente na circulação de mercadorias, deixando a regulação à livre
concorrência. De certa forma a idéia de auto-regulamentação constituiu uma
novidade, em função do modelo até então existente (final do século XVIII – por
volta dos anos 1780) pois, como afirma Hobsbawm (2002 a, p. 50) “pela primeira
vez na história da humanidade, foram retirados os grilhões do poder produtivo das
sociedades humanas, que daí em diante se tornaram capazes da multiplicação
rápida, constante, e até o presente ilimitada, de homens, mercadorias e serviços”.
A partir da Revolução Industrial – seu ponto de partida4 situa-se entre
as décadas de 1780 e 1800 – as idéias dos fisiocratas5 perdem espaço sem,
4
Para Hobsbawm (1977, p. 51) este período de industrialização inicia-se em 1780 e termina com a
construção das ferrovias e das indústrias pesadas em 1840, na Grã-Bretanha.
69
entretanto, causar impacto nas teorias liberais, especialmente aquelas trazidas por
Adam Smith6. Em “A Riqueza das Nações” Smith desenvolve seu pensamento de
modo a explicar que os sentimentos individuais na busca de cada interesse pessoal
resultaria no bem-estar coletivo. Ao exaltar o individualismo e considerando que o
desenvolvimento harmonioso dos indivíduos tomados isoladamente resultaria no
desenvolvimento social, Smith propõe a não interferência do Estado,
especialmente na economia, defendendo a idéia da livre-concorrência como
mecanismo de uma economia eficiente.
Como explica Hobsbawm (2002b, p. 58) “embora o ritmo comercial,
que configura o ritmo básico de uma economia capitalista, tenha, por certo, gerado
algumas depressões agudas no período entre 1873 e meados dos anos 1890, a
produção mundial, longe de estagnar, continuou a aumentar acentuadamente”, ou
seja, embora as taxas de crescimento tenham diminuído, elas continuavam
aumentando, impelidas pela industrialização e pelas políticas econômicas liberais
em curso consideradas as mais aptas ao desenvolvimento econômico. A grande
preocupação dos economistas e empresários era, então, a prolongada depressão
dos preços, dos juros, pois o que estava em questão não era a produtividade e sim
a lucratividade. Esta tendência da queda da taxa de lucro foi minimizada pelos
grandes investimentos realizados no estrangeiro7, especialmente, mas não só pelo
impulso colonialista, mas também pela intervenção (protecionismo) do Estado,
isto porque, conforme Hobsbawm (2002b, p. 68) o mundo não era mais formado,
5
Os fisiocratas foi um grupo de economistas franceses do século XVIII que combateu as idéias
mercantilistas formulando, de maneira sistemática, uma teoria do liberalismo econômico. A idéia
principal é de que toda a riqueza vem da terra e de que a única classe produtiva é a dos
agricultores, tendo, portanto, duas condições básicas: a liberdade e a propriedade privada. Paulo
Sandroni (2005, p. 345) explica que foram os fisiocratas que criaram a noção de produto líquido,
transferindo o centro da análise do âmbito do comércio para o da produção, isto porque
“sustentaram que somente a terra, ou a natureza (physis, em grego), é capaz de realmente produzir
algo novo” enquanto a indústria e o comércio apenas transformam ou transportam os produtos da
terra. Para eles, a sociedade era dividida em três classes: os produtores (agricultores), os
proprietários de terra (a nobreza e o clero) e as “classes estéreis” (demais cidadãos) e que existe
uma circulação da renda entre elas, o que correspondia a uma ordem natural regida por leis
imutáveis, razão pela qual defendiam a liberdade econômica contra as barreiras feudais ainda
existentes à época. Em conseqüência, o Estado somente poderia intervir para garantir esta ordem,
assumindo um papel de guardião da propriedade e da liberdade econômica. O principal
representante dos fisiocratas foi François Quesnay e estes (os fisiocratas) exerceram grande
influência sobre Adam Smith.
6
Adam Smith (1723 – 1790) principal economista da escola clássica teve influência muito grande
dos fisiocratas, especialmente de François Quesnay. Em 1776 publicou sua mais conhecida obra –
e talvez a mais importante – “A Riqueza das Nações”.
7
Na América Latina, por exemplo, os investimentos estrangeiros atingiram níveis muito elevados
nos anos 1880, quando a extensão da rede ferroviária Argentina foi quintuplicada (Cf.
HOBSBAWM, 2002 b. p. 59).
70
apenas, por uma massa de “economias nacionais”, pois a “industrialização e a
Depressão transformaram-nas num grupo de economias rivais, em que os ganhos
de uma pareciam ameaçar a posição de outras”, aumentando a responsabilidade e
o papel do Estado que teve, a partir da Primeira Guerra Mundial, que assumir as
diretrizes das políticas econômicas.
É de notar, entretanto, que o período compreendido entre as duas
grandes guerras mundiais (1918-1945) foi um período que os autores chamam
(consideram) de colapso econômico (ou A Grande Depressão) e que levou o
jovem John Maynard Keynes a escrever uma severa crítica à conferência de
Versalhes de 1920 (The economic consequences of the peace), afirmando que sem
uma restauração da economia alemã, seria impossível a restauração da civilização
e da economia liberais estáveis na Europa. Hobsbawm afirma que as perturbações
e complicações políticas explicam, em parte, o referido colapso econômico no
mencionado período, creditando, entretanto, a outros dois fatores econômicos: o
primeiro é o impressionante e crescente desequilíbrio na economia internacional,
devido à assimetria de desenvolvimento entre os EUA e o resto do mundo e, em
segundo lugar, na não geração na economia mundial, de demanda suficiente para
uma expansão duradoura, pois “com os salários ficando para trás, os lucros
cresceram desproporcionalmente, e os prósperos obtiveram uma fatia maior do
bolo nacional. Mas como a demanda da massa não podia acompanhar a
produtividade em rápido crescimento do sistema industrial nos grandes dias de
Henry Ford, o resultado foi superprodução e especulação. Isso, por sua vez,
provocou o colapso” (Cf. HOBSBAWM, 2003, p. 103-104).
A certeza da necessidade de movimentos bruscos na economia
capitalista foi resultado da eminente estagnação provocada pela crise de 1929,
mesmo sabendo que a década de 1930 é considerada de grandes inovações
tecnológicas. De toda sorte, todos os lados do mundo sofreram com a depressão
dos anos 19308. Conforme Hobsbawm (2003, p. 108-109) no final dos anos 30 do
século XX a economia liberal do livre mercado estava totalmente dominada pela
grandes corporações o que tornava pouco realizável a livre concorrência, fato que
provocou o desgaste da economia mundial, a qual podia ser vista como um
8
Para se ter um panorama globalizado dos impactos políticos da Grande Depressão dos anos 30,
no mundo, ver Eric Hobsbawm, “A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991”, Cia das
Letras, pp. 108-111.
71
sistema composto de um setor de mercado, um setor governamental (no qual,
economias planejadas faziam suas transações) e um setor de autoridades públicas
que regulavam partes da economia, como os acordos internacionais.
Diante da catástrofe produzida pelo liberalismo econômico, tanto no
sentido de destruição da economia como da sociedade, havia três opções à
hegemonia política: o comunismo marxista; um capitalismo ligado à social
democracia de movimentos trabalhistas não comunistas (que, depois da Segunda
Guerra Mundial, foi a proposição mais efetiva); e, a terceira opção era o fascismo
(na Alemanha foi o nacional-socialismo) que, aproveitando-se de toda conjuntura
política e econômica, estava decidido a livrar-se do fantasma do desemprego (Cf.
HOBSBAWM, 2003, p. 111-112).
É importante perceber, então, que as crises estruturais que o
capitalismo atravessou no final do século XIX (entre o fim da Guerra de Secessão
nos Estados Unidos, em 1865, e os anos 1890, denominado da Grande Depressão)
e também no período ‘entreguerras’ do século XX (1920-1939, especificamente
com a crise de 1929), tanto na Europa como nos Estados Unidos, nos permitem
algumas considerações. Gérard Duménil e Dominique Lévy apontam que no final
do século XIX a taxa de lucro desabou e somente a partir da Primeira Guerra
Mundial é que houve uma tendência ao aumento da rentabilidade, mediante a alta
da produtividade do capital e a tendência do crescimento econômico foi
restabelecida em função de uma revolução técnico-organizacional e pela explosão
dos mecanismos monetários e financeiros e das rendas financeiras, e as políticas
correspondentes.
Nos Estados Unidos, a partir dos anos 1890, houve uma transformação
das instituições do capitalismo (empresas e fábricas), provocando uma verdadeira
revolução de gestão – de técnica e de organização – atingindo todos os aspectos
do funcionamento das empresas, o que se chamou de taylorismo9: "além da
organização da produção, afetou a comercialização, a gestão dos estoques, do
financiamento e da tesouraria, a gestão do pessoal etc. O arquétipo disto é a linha
de montagem. A mecanização permitia tradicionalmente economizar trabalho e
9
Frederick Winslow Taylor (1856-1915) é considerado o pai da administração científica. Assim,
dá-se o nome de “taylorismo” ao conjunto deas teorias para aumento da produtividade do trabalho
fabril elaboradas por Taylor, que “abrange um sistema de normas voltadas para o controle dos
movimentos do homem e da máquina no processo de produção incluindo propostas de pagamento
pelo desempenho do operário” (Cf. SANDRONI, 2005, pp. 821-822).
72
aumentar a produtividade do trabalho, mas o custo, em termos de capital, era
grande. A proporção entre capital e trabalho aumentava consideravelmente”
(2003, p. 26-27).
A partir dessa “revolução de gestão” – especialmente pelo taylorismo
e pela linha de montagem – isto é, do capital investido em técnicas, é que houve
um aumento da produtividade e da rentabilidade do capital, invertendo-se, pois, a
tendência da queda da taxa de lucro.
A eficiência foi o tom das primeiras décadas do século XX. De certa
forma estes fatos produzidos nesse período desfaz a idéia levantada por Marx, no
livro III de “O Capital”, da tendência da queda da taxa de lucro. Ocorreu,
entretanto, o que não se poderia imaginar naquele momento: diante das
assimetrias existentes no desenvolvimento econômico entre os Estados Unidos e
os demais países do mundo, a economia não produziu a demanda suficiente à
expansão necessária. Diante da concentração de renda (aliando-se à queda dos
salários) e do aumento dos lucros (aliando-se à incapacidade de demanda de
massa em acompanhar o crescimento industrial), entra em cena o que Duménil e
Lévy descrevem como o “desenvolvimento de um importante setor financeiro,
cuja relação com o sistema produtivo se transformou: a finança10 deixou de ser
uma simples auxiliar da atividade das empresas e do financiamento de suas
transações para tornar-se, então, a encarnação do capital enquanto propriedade,
frente ao capital enquanto função” (2003, p. 31). É o passo decisivo à especulação
financeira e, em 1929, com a queda da bolsa de valores de Nova York, inicia a
segunda grande depressão (1930).
Em 1936, John Maynard Keynes11 escreve “A Teoria Geral do
Emprego, do Juro e da Moeda”12, no qual contestava os dogmas do liberalismo
econômico. Keynes defendeu a idéia, por exemplo, da inexistência do princípio do
equilíbrio automático na economia capitalista, especialmente o princípio liberal
segundo o qual a queda no consumo levaria à queda da taxa de juros, resultando
10
Duménil e Lévy (2003, p. 31) afirmam que “por ‘finança’, entendemos aqui um vasto conjunto
de indivíduos endinheirados e de instituições – indivíduos por trás de instituições – que detêm
importantes capitais monetários e financeiros”.
11
John Maynard Keynes (1883-1946), economista inglês, nascido em 5 de junho de 1883, em
Cambridge, foi o pioneiro da macroeconomia, produzindo estudos sobre o emprego e o ciclo
econômico, os quais contestavam os “conceitos e a ortodoxia marginalista, e as políticas por ele
sugeridas conduziram a um novo relacionamento, de intervenção, entre o Estado e o conjunto das
atividades econômicas de um país” (Cf. SANDRONI, 2005, p. 455).
73
num maior investimento e aquecimento da economia, provocando um novo
equilíbrio em direção ao pleno emprego.
Keynes demonstrou, entretanto, que “o nível de emprego numa
economia capitalista depende da demanda efetiva, ou seja, da proporção da renda
que é gasta em consumo e investimento” (Cf. SANDRONI, 2005, p. 456).
Fundamentalmente, o desemprego é resultado, para Keynes, de uma demanda
insuficiente de bens e serviços e que somente será resolvido por meio de
investimentos, pois “o nível de equilíbrio do emprego, isto é, o nível em que nada
incita os empresários em conjunto a aumentar ou reduzir o emprego, dependerá do
montante do investimento corrente” e este dependerá do “incentivo para investir,
o qual, como se verificará, depende da relação entre a escala da eficiência
marginal do capital e o complexo das taxas de juros que incidem sobre os
empréstimos de prazos e riscos diversos” (1992, p. 40).
Qual a importância da análise keynesiana? Conforme explica Sandroni
(2005, p. 456), os investimentos, como fator dinâmico da economia, são os
responsáveis pela solução do problema do desemprego e capazes de influenciar a
demanda e, mais importante, é que esta análise permite verificar a necessidade da
intervenção do governo para a economia atingir seu nível de equilíbrio, isto
porque pode a economia equilibrar-se e, ao mesmo tempo, estar com uma alta taxa
de desemprego caso não haja intervenção governamental com políticas adequadas
que sustentem a demanda efetiva, mantendo altos níveis de renda e emprego, de
modo que, a cada elevação de renda, o consumo e o investimento também
cresçam.
O que seria necessário, portanto, era alterar as expectativas dos
capitalistas (empresários) em relação à demanda futura e permitir que o capital
iniciasse uma nova fase de expansão, sendo imprescindível a intervenção do
Estado, o que ocorre, mais especificamente, a partir dos anos 1930. É exatamente
neste momento que se dá início ao intervencionismo do Estado e a implementação
das políticas keynesianas as quais conseguem reverter a situação de crise, pelo
menos temporariamente, especialmente nos anos após a Segunda Guerra Mundial,
constituindo-se, portanto, no chamado Welfare State: financiamento público13 da
12
Ver, KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Tradução de
Mário R. da Cruz. São Paulo: Atlas, 1992, 328 p.
13
Oliveira (1998, p. 20) traz alguns exemplos do chamado financiamento público: “a medicina
socializada, a educação universal gratuita e obrigatória, a previdência social, o seguro-desemprego,
74
economia capitalista baseado, originalmente, nas políticas anticíclicas de
teorização keynesiana (Oliveira, 1998, p. 19).
Este financiamento público passou a ser o pressuposto dos processos
de acumulação de capital e da reprodução da força de trabalho a fim de que a
reprodução do capital se realizasse por meio da circulação de mercadorias,
financiada através da redistribuição da massa de mais-valia e salários arrecadados
via tributos pelo Estado, ou seja, em função do crescimento do salário indireto
(seguro-desemprego,
salário-família,
previdência
social,
entre
outros),
transformou-se em liberação do salário direto ou da renda da família para
alimentar o consumo de massa, induzindo à produção e a um novo ciclo de
expansão, impedindo o surgimento de uma crise (CF. OLIVEIRA, 1998, p. 22).
Para Francisco Oliveira (1998, p. 20-23), a formação do sistema
capitalista é impensável sem a utilização do padrão de financiamento público do
chamado Estado-providência (com o conseqüente aumento do déficit público dos
países industrializados), funcionando quase como uma acumulação primitiva,
criando-se uma esfera pública institucionalmente regulada, revelando que a
presença dos fundos públicos na reprodução da força de trabalho e dos gastos
sociais públicos gerais é estrutural ao capitalismo e, até certo ponto, insubstituível.
Meszáros (2003, p.29) chega a afirmar que “apesar de todos os protestos em
contrário, combinados com fantasias neoliberais relativas ao ‘recuo das fronteiras
do Estado’, o sistema do capital não sobreviveria uma única semana sem o forte
apoio que recebe do Estado”, lembrando que o século XX foi pródigo no
reaparecimento daquilo que Marx chamou de “ajuda externa”, desde políticas
agrícolas comuns e de garantias de exportação até os imensos fundos de pesquisa
e do complexo industrial-militar.
os subsídios para transporte, os benefícios familiares (quotas para auxílio-habitação, saláriofamília) e, no extremo desse espectro, subsídios para o lazer, favorecendo desde as classes médias
até o assalariado de nível mais baixo, são seus exemplos”. Oliveira ainda aduz que a descrição das
diversas formas de financiamento à acumulação inclui “desde os recursos para ciência e
tecnologia, passa pelos diversos subsídios para a produção, sustentando a competitividade das
exportações, vai através dos juros subsidiados para setores de ponta, toma em muitos países a
forma de vastos e poderosos setores estatais produtivos, cristaliza-se numa ampla militarização (as
industrias e os gastos em armamentos), sustenta a agricultura (o financiamento dos excedentes
agrícolas dos Estados Unidos e a chamada “Europa Verde” da CEE), e o mercado financeiro e de
capitais através de bancos e/ou fundos estatais, pela utilização de ações de empresas estatais como
blue chips, intervém na circulação monetária de excedentes pelo open market, mantém a
valorização dos capitais pela via da dívida pública, etc.”.
75
Esta “ajuda externa” tem, então, a finalidade de evitar o aparecimento
de crises, em especial aquelas clássicas que surgiram no final do século XIX, num
contexto do modo de produção capitalista muito competitivo, de empresas
relativamente menores, sem intervenção estatal – o que levaria a uma espécie de
capitalismo muito concorrencial ou anárquico. No século XX, especialmente
nesses pós-guerras, aumenta-se a intervenção estatal, sob várias formas, não só
quantitativa mas, qualitativamente, pois ela vai adquirir novas funções (o que nos
remete também à formação de uma nova classe burocrática profissional) mais
complexas – educação, saúde, previdência pública, segurança, etc. – levando à
frente empreendimentos industriais cuja magnitude de capitais envolve tamanhos
riscos e uma quantidade de capital tão grande que os capitalistas individuais não
conseguem levar à frente (no Brasil, nos anos 1940, foi a situação da telefonia,
energia elétrica, petróleo e no século XIX isso aparece nas ferrovias, etc.) a
atividade industrial, necessitando da intervenção econômica direta (hidrelétricas,
extração de petróleo, etc.) do estado ou, por vezes, intervenção indireta
(organização das relações entre trabalhadores e capitalistas, previdência, saúde,
educação universal, etc.), distanciando-se, cada vez mais daquelas funções
clássicas do Estado do século XIX (garantia dos direitos individuais, etc.).
Para Gérard Duménil e Dominique Lévy (2003, p. 15-32), é
importante considerarmos, na análise do desenvolvimento do modo de produção
capitalista, os dois períodos que antecederam e sucederam as crises estruturais14
dos finais dos séculos XIX e XX (a primeira desencadeada entre o fim da Guerra
da Secessão – 1865 – e os anos 1890 e a segunda no final do século XX – iniciada
nos anos 1970. Os autores lembram ainda a crise de 1929 que, apesar de
circunstâncias diferentes, também legitimou enormes transformações). Apesar de
serem considerados períodos diferentes do capitalismo (o primeiro período
chamado anárquico ou desorganizado e no segundo período chamado de
capitalismo organizado) a saída das duas crises estruturais ocorridas foram
marcados por circunstâncias favoráveis ao restabelecimento da hegemonia das
finanças.
14
As crises estruturais são marcadas por diversos fatores, mas especialmente pelo baixo
investimento e desenvolvimento da economia, desemprego, inflação, redução do progresso
técnico, diminuição da rentabilidade do salário, lentidão do progresso do salário.
76
A primeira hegemonia findou-se com a crise de 1929 e iniciou um
novo ciclo de desenvolvimento (ou uma nova “longa onda”, como chamam os
economistas15) que esgotou-se com a crise dos anos 1970. Neste período que vai
de 1930 até o início dos anos 1970, o papel do desenvolvimento do Estadoprovidência, foi fundamental à concretização do chamado “compromisso
keynesiano”. Destacam Gérard Duménil e Dominique Lévy (2003, p. 32),
contudo, que o fracasso das políticas keynesianas, depois de três décadas de sua
implementação,
criou,
novamente,
as
circunstâncias
favoráveis
ao
restabelecimento da hegemonia da finança por meio do monetarismo, seguido
pelo neoliberalismo.
No contexto brasileiro, a Revolução de 1930 marca o início de um
novo ciclo na economia, especialmente com o fim da hegemonia agrárioexportadora e o início da predominância da estrutura industrial. Mesmo que
somente a partir de 1956 o setor industrial ultrapasse o da agricultura, o
movimento de hegemonização é fundamental, notadamente pela “nova correlação
de forças sociais, a reformulação do aparelho e da ação estatal, a regulamentação
dos fatores, entre os quais o trabalho ou o preço do trabalho, têm significado, de
um lado, de destruição das regras do jogo segundo as quais a economia se
15
Nicoali Dmitrievich Kondratieff (1892-1930) foi economista e estatístico russo. Conforme
Sandroni (2005, p. 460) “seu nome está associado ao estudo dos ciclos econômicos longos, ou
ciclos seculares, de quarenta a sessenta anos”. Alguns economistas admitem a existência de 3
(três) ciclos econômicos longos (Ciclos Econômicos de Kondratieff): o primeiro até 1850 –
compreendendo 24 anos de alta e 36 anos de baixa; o segundo que vai de 1850 a 1896 e o terceiro
de 1896 a 1940. Muito embora estes ciclos de Kondratieff sejam de conceituação um pouco
imprecisa, é importante verificar que os períodos de contração econômica ocorrem entre 24-30
anos após um período de expansão. O principal trabalho de Kondratieff é considerado “Los ciclos
largos de la coyuntura económica” de 1926, publicado nos Cuardenos de Economía – Cidade do
México. Talvez a característica marcante de seus estudos sobre o desenvolvimento do capitalismo
histórico seja a divisão destes ciclos longos em duas fases: a primeira fase de crescimento ou de
expansão econômica e uma segunda fase de recessão econômica. “Considerando-se os anos 1930
como um período de contração, pode-se admitir que o período que vai de 1945 até os dias de hoje
é um típico Ciclo Econômico de Kondratieff, onde a fase de ascensão vai de 1945 até 1967-73 e a
fase de contração de 1967-73 até os dias de hoje (BRAUDEL, Fernand. O tempo no mundo. São
Paulo, Editora Martins Fontes, 3 vol., 1996; WALLERSTEIN, Immanuel. Globalization or the age
of transition? A long term view of the trajectory of the world system. International Sociology, vol.
15 (2), pp. 249-265, june, 2000). De forma semelhante, o debate sobre o nível de intervenção do
Estado na economia após os anos 1930 parece seguir os ciclos de expansão e de contração da
atividade econômica de tal forma que, se em alguns momentos a presença do Estado na economia
é desejável, em outros é indesejável, o que se pode apreender através das abordagens teóricas.
Assim foi o liberalismo no período anterior à crise dos anos 1930, o keynesianismo dos anos 1930
até meados dos anos 1970 e o neoliberalismo a partir dos anos 1980, que justificavam diferentes
formas de relações entre o Estado e a sociedade” (Projeto de pesquisa apresentado à UNESC pelo
NUPED – Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito), sob a coordenação do Professor
Reginaldo de Souza Vieira. Haverá pequenos apontamentos sobre a importância e as
conseqüências do estudo dos ciclos econômicos no item 2.4.2 desta pesquisa.
77
inclinava para as atividades agrário-exportadoras e, de outro, de criação das
condições institucionais para a expansão das atividades ligadas ao mercado
interno”. Este novo modo de acumulação dependerá, sobretudo, da realização de
determinadas posturas, penalizando, por exemplo, os custos e a rentabilidade dos
fatores alocados à atividade agrícola destinado ao comércio externo – confiscando
os lucros parciais (como o caso do café) ou aumentando o custo relativo do
dinheiro emprestado à agricultura – o que poderia ser feito diminuindo o custo do
dinheiro emprestado à indústria (CF. OLIVEIRA, 2003, p. 35-36).
Analisando alguns aspectos que desempenharam essa missão na
concretização desse novo modo de acumulação, Francisco de Oliveira aponta16,
principalmente, a intervenção do Estado na produção econômica, agindo não só
no fator trabalho mas também na fixação de preços, na distribuição de ganhos e
perdas entre os diversos estratos ou grupos das classes capitalistas, no gasto fiscal
com fins reprodutivos, nos subsídios, etc., criando mecanismos aptos à reprodução
da acumulação industrial, pois “o seu papel é o de criar as bases para que a
acumulação capitalista industrial, no nível das empresas, possa se reproduzir”
(CF. OLIVEIRA, 2003, p. 40). Voltando ao contexto brasileiro, Francisco de
Oliveira mostra que a intervenção estatal teve como finalidade destruir (mas não
na totalidade) o modo de acumulação para o “qual a economia se inclinava
naturalmente” (o modo agrário-exportador), criando as condições do novo modo
de acumulação (o modo urbano-industrial)17.
Como visto, a partir de meados dos anos 1970, ocorreu o fracasso das
políticas keynesianas, mas é preciso lembrar que seu fracasso foi devido,
principalmente, “à internacionalização produtiva e financeira da economia
capitalista” em função de que a reprodução do capital, os aumentos da
16
Francisco de Oliveira aponta três aspectos: o primeiro (2003, p. 36) faz parte das
regulamentações dos fatores, ou seja, da oferta e demanda dos fatores no conjunto da economia, no
qual a regulamentação das leis de relação entre o trabalho e o capital é o mais importante; o
segundo aspecto (2003, p. 40) refere-se à intervenção do Estado na economia; e o terceiro aspecto
levantado (2003, p. 42) é o papel da agricultura.
17
Neste ponto merece destaque o fato de que o capitalismo destrói e constrói os mecanismos aptos
à sua reprodução sem, entretanto, o fazer de forma absoluta. Veja que um dos aspectos da missão
de concretização do novo modo de acumulação (urbano-industrial) é o papel desenvolvido pela
agricultura. Francisco de Oliveira (2003, p. 42) afirma que a agricultura exerce um papel
qualitativamente diferente neste momento, pois, de um lado “por seu subsetor dos produtos de
exportação, ela deve suprir as necessidade de bens de capital e intermediários de produção externa,
antes de simplesmente servir para o pagamento dos bens de consumo” e, de outro lado, “por seu
subsetor de produtos destinados ao consumo interno, a agricultura deve suprir as necessidades das
78
produtividade e a elevação do salário real se circunscreveram aos limites
territoriais nacionais dos processos de interação daqueles componentes da renda e
do produto, dissolvendo, portanto, a circularidade nacional dos processos de retroalimentação que pressupunha ganhos fiscais correspondentes ao investimento e à
renda que o fundo público articulava e financiava, razão pela qual o fundo público
é estrutural e insubstituível no processo de acumulação à necessidade de expansão
do capital (Cf. OLIVEIRA, 1998, p. 26-31).
Para Francisco de Oliveira (1998, p. 35) o fundo público é o antivalor
no sentido de que os pressupostos da reprodução do valor contêm os elementos de
sua negação, afinal “o que se vislumbra com a emergência do antivalor é a
capacidade de passar-se a outra fase, em que a produção do valor, ou de seu
substituto, a produção de excedente social, toma novas formas” as quais aparecem
não como desvios do sistema, mas como necessidade da lógica de expansão do
capital.
A interessante hipótese apresentada por Francisco de Oliveira reside
no fato de que a “força de trabalho está se desvestindo das determinações da
mercadoria”, ou seja, a anulação do “fetiche da mercadoria” isto porque os
componentes à remuneração da força de trabalho são, não só conhecidos, mas
determinados politicamente, mesmo imaginando-se que vivemos numa sociedade
de massa, absolutamente “fetichizada”. No lugar do “fetiche da mercadoria”
Oliveira propõe o “fetiche do Estado”, local em que se operará a exploração da
força de trabalho e sua “desfetichização”, determinando, portanto, que agora o
capital é social.
Nesta nova relação social de produção será importante não só a
presença do salário e da propriedade privada, mas também todas as outras esferas
à reprodução do capital: a circulação, a distribuição, o consumo, além da esfera da
produção, produzido pela presença do fundo público na reprodução, tanto do
capital como da força de trabalho. Para Oliveira (1998, p. 37) “o desenvolvimento
do Welfare State é justamente a revolução nas condições de distribuição e
consumo, do lado da força de trabalho, e das condições de circulação, do lado do
capital”.
massas urbanas, para não elevar o custo da alimentação, principalmente e secundariamente o custo
das matérias-primas, e não obstaculizar, portanto, o processo de acumulação urbano-industrial.”
79
3.2.
A intervenção política do Estado na economia
Como visto, convencionalmente se atribui as intervenções estatais
àquelas hipóteses já levantadas, especificamente de intervenção direta (quando o
capital privado não consegue realizar – por exemplo os altos investimentos ou de
grande risco) e indireta (regulamentação do mercado de trabalho, formação de
uma classe burocrática, etc.), ou seja, diretamente relacionadas com a atividade
econômica, isto porque, de uma forma geral, estas intervenções estabelecem
(objetivam) a reprodução do conjunto do capital social. Entretanto, há também
algumas determinações políticas da intervenção estatal que não se circunscrevem
aos aspectos econômicos propriamente ditos e é exatamente neste sentido que
Nico Poulantzas questiona: “por que o Estado toma a cargo setores perfeitamente
rentáveis para o capital?” (2000, p. 185).
Antes, porém, é preciso fazer uma breve discussão sobre o Estado e a
maneira pela qual ele é visto na obra “O Capital” de Karl Marx. É necessário,
primeiramente, utilizando-se a obra de Ruy Fausto, (Marx: lógica & política.
Investigações para uma reconstituição do sentido da dialética, especificamente o
Capítulo 4. “Sobre o Estado”) analisar o Estado a partir do conteúdo representado
pelas oposições de classes concebidas como oposições de interesses, ou seja,
como o próprio autor adverte, não se pretende abranger o conjunto da teoria do
Estado mas analisá-lo na medida e a partir de “O Capital”, tendo como objeto as
formas de Estado. A idéia inicial é estabelecer o ponto de partida exato da
derivação da forma Estado a partir da sociedade. Para tanto, Ruy Fausto
desenvolve categorias da sociedade civil em categorias do Estado, ou seja, a partir
do pensamento e categorias marxistas, segundo ele, há três momentos em que é
possível apreender o Estado: a primeira é a relação entre forma e conteúdo; a
segunda no contexto do aumento da composição orgânica e da queda tendencial
da taxa de lucro; e, a terceira, diante dessa queda tendencial da taxa de lucro, a
necessidade de intervenção direta do Estado.
O primeiro desenvolvimento inicia do estudo da primeira parte do
livro I de “O Capital”, isto porque ela traz a análise da “circulação simples”, ou
seja, a forma de circulação de mercadoria e seu equivalente, demonstrando a
80
“aparência” do sistema e, consequentemente, a ocultação da essência. Para Ruy
Fausto (1987, p. 291-292) no nível da circulação simples, os indivíduos
proprietários das mercadorias – que a obtiveram, direta ou indiretamente, através
de seu trabalho – as trocam observando-se o princípio da equivalência e que, o
princípio da apropriação no nível da circulação simples, segundo Marx, é o da
apropriação pelo trabalho próprio.
O segundo momento, que ele chama de “primeira negação”, o “capital
é posto mas com uma pressuposição externa, a da existência ou da presença do
capitalista e do trabalhador”. Esta pressuposição da apropriação pelo trabalho
torna a situação inicial uma relação de igualdade (também pressuposta). Contudo,
entra em cena o terceiro momento: a continuidade do processo de produção faz
com que a troca de equivalentes se torne uma simples aparência, bem como a
igualdade dos contratantes e a apropriação pelo trabalho. Esta relação – entre
capitalista e trabalhador – mostra-se, então, uma relação não equivalente entre
desiguais e uma “apropriação da riqueza não pelo trabalho próprio mas pelo
trabalho alheio”. Como visto, estas partes estão ligadas entre si por uma relação de
contradição a qual deve ser o ponto de partida do Estado capitalista, ou seja, o
desenvolvimento do Estado ocorre na contradição entre aparência e essência do
modo de produção capitalista, isto porque, na aparência não há contradição de
classes (mesmo porque elas não existem) mas, ao contrário, há identidade entre
indivíduos (igualdade). Somente no momento em que há uma relação de
exploração que as classes (oposição) nascem, ou seja, considerado a partir das
formas, o Estado deriva da contradição entre a identidade e a contradição (Cf.
FAUSTO, 1987, p. 292-294).
Neste sentido e a partir da idéia da equivalência entre indivíduos
iguais, ou seja, na aparência do sistema (no momento da circulação simples), há
algo mais que uma relação econômica, há uma juridicização do econômico através
(meio) do contrato estabelecido entre os indivíduos livres. Assim, estas relações
jurídicas se realizam por meio das relações econômicas, permitindo, portanto, um
relacionamento muito estreito entre esta e a superestrutura jurídica. Veja-se,
portanto, que a sociedade civil é formada pelo relacionamento entre as estruturas
de produção (econômica) e sua expressão jurídica (garantida pelo Estado), ou seja,
no contexto da circulação simples, as relações econômicas tornam-se relações
legalizadas pelo Estado através do Direito. Assim, chegando nesse ponto é preciso
81
responder dois questionamentos: qual a necessidade da relação jurídica ser posta
como lei e o segundo é porque há esta posição (no sentido de direito posto pelo
Estado).
Para Ruy Fausto (1987, p. 299), à primeira pergunta se obtém a
resposta comparando a relação jurídica enquanto lei com a ideologia. Partindo da
idéia de que ideologia é o “boqueio das significações”, esta torna positivo aquilo
que é, em si mesmo, negativo, ou seja, a função da ideologia é, num primeiro
momento, ocultar a contradição para, num segundo momento, operar a própria
contradição. Assim é que “o Estado guarda apenas o momento da igualdade dos
contratantes negando a desigualdade das classes, para que, contraditoriamente, a
igualdade dos contratantes seja negada e a desigualdade das classes seja posta”
(1987, pp. 299/300).
A segunda pergunta (por que é preciso que haja posição) – que é
decorrência da primeira – Ruy Fausto (1987, p. 300) responde que a posição da lei
se impõe em função do seu próprio conteúdo, ou seja, ela se impõe porque a
“identidade dos contratantes se interverte no seu contrário, porque a lei (o
primeiro momento) contém em si o princípio do seu contrário” isto porque “se a
relação jurídica obedecesse a lógica da identidade, se ela fosse (somente) idêntica
a si mesma, ela não precisaria ser posta enquanto lei”. Assim, ela não precisaria
ser posta enquanto lei pois “a sua transgressão poderia ocorrer ou não, e portanto
toda garantia contra a transgressão, a da ideologia como a do Estado, não teria a
mesma necessidade”.
Para Fausto (1987, p. 301) uma lei que se realiza pelo seu contrário
contém a transgressão no seu interior, ou seja, está contido no interior (como
forma de realização) da própria lei a transgressão, a qual visa garantir sua
identidade. Desta forma é necessário perceber que a lei somente é transgredida
quando se lhe obedece plenamente, restando claro que não obedecer significa não
transgredir.
Se a transgride – isto é, se questiona o primeiro momento, a lei dos
equivalentes enquanto lei dos equivalentes, o contrato livre, ou seja, se quer
alterar o contrato “livre”, em favor de uma das partes – para que ela não seja
transgredida, para que o contrato não se torne o que ele se torna por si
mesmo, o contrário do contrato livre e da relação entre iguais (Cf. FAUSTO,
1987, p. 301).
82
É preciso, pois, para salvar a aparência do sistema, a ideologia (como
“bloqueio das significações”) e o Estado funcionando como guardiães da
identidade dos contratantes (do sistema). Esta função é realizada pelo Estado (no
processo de expropriação), em parte como a ideologia o faz e, em parte,
utilizando-se da força e da violência (como detentor do monopólio do uso da força
coercitiva). Desta forma é possível enxergar que a violência está na essência do
Estado (não na aparência), ou seja, é a violência do capital que reside no interior
da sociedade capitalista. Em síntese, o Estado – como guardião da identidade –
garante o funcionamento das relações de produção capitalista – cristalizando a
aparência do sistema – utilizando-se da violência portanto. Assim é que, na função
de guardião da identidade, o Estado deveria se colocar como uma força de
equilíbrio ou, se preferir, assumindo um papel de intervenção regulando as
relações no interior do sistema. Entretanto, como isso acontece e qual o motivo
que leva o Estado intervir nas relações sociais, especialmente econômica? Sobre
isso trataremos no ponto seguinte.
3.2.1.
As formas de intervenção do Estado
O estudo desenvolvido por Nicos Poulantzas sobre a intervenção do
Estado na economia – em “O Estado, o poder, o socialismo”18 – é bastante
interessante pois o momento histórico era muito rico em função de que, a partir do
final dos anos 1970, a economia entra num momento de transição: falência do
modelo keynesiano e retomada dos pressupostos liberais (o que se convencionou
chamar de ‘neoliberalismo’), o que resultou em diferentes formas de
relacionamento entre o modo de produção capitalista e o Estado.
A análise do Estado capitalista, para Poulantzas (2000, p. 165), não
deve circunscrever-se, “em suas relações de constituição, à economia, ao seu
18
A análise foi desenvolvida por Nicos Poulantzas em 1978, ou seja, pode-se dizer que ainda
dentro do contexto do Estado de bem-estar e, fundamentalmente, incapaz de dar conta de outros
fenômenos do capitalismo contemporâneo, especialmente em função da internacionalização das
relações sociais capitalistas. Por esta razão, capital e Estado passam por um processo de
reestruturação em que a acumulação do capital tenta encontrar novas formas de reprodução.
Entretanto a discussão apresentada por Poulantzas coloca no centro da análise o debate da
democracia e do socialismo, deixando claro, para tanto, a necessidade de estabelecer uma
discussão teórica suficiente a fim de estabelecer o papel do Estado no contexto contemporâneo,
sem o qual não poderemos entender os motivos que hoje é vivenciado.
83
relacionamento com as relações de produção e com a divisão social capitalista do
trabalho no sentido geral. Elas se traduzem, conforme as fases e estágios do
capitalismo, como funções econômicas desse Estado”, tratem elas da “violência
repressiva, da inculcação ideológica, da normalização disciplinar, da organização
dos espaços e do tempo ou da criação do consentimento”, ou seja, é preciso
entender, exatamente, a articulação entre o espaço político (do Estado) e da
reprodução do capital (da economia). Para ele, à medida em que modificações nas
relações de produção, na divisão do trabalho, na reprodução da força de trabalho,
na extração de mais-valia, etc., passam a integrar diretamente o espaço-processo
de reprodução e valorização do capital (econômico), modificando os pontos de
impacto no Estado, é que nesses domínios o papel do Estado ganha novos
contornos, ocupando, pois, as funções econômicas, posição central.
Recorrendo à análise de Ruy Fausto, é possível distinguir três formas
de intervenção do Estado:
a) regulamentando a concorrência. Nesta situação, o Estado assume a
regulação das relações econômicas intervindo nos contratos e, através disso, no
jogo da concorrência, na qual se efetivam as leis do sistema – por exemplo, a
tendência no sentido de extrair mais-valia relativa se efetiva pelo esforço de cada
capitalista individual, com vistas a obter um lucro excedente, através do aumento
da produtividade – ao mesmo tempo em que se irrompem as contradições do
modo de produção, as quais são corrigidas por mecanismos internos do próprio
sistema que se manifestam por ele próprio. Assim, o Estado tende a substituir a
concorrência na realização das leis do sistema e na correção dos desequilíbrios
“anormais”, devendo, portanto, a intervenção do Estado ser preventiva. Tentando
entender esta função do Estado, Ruy Fausto utiliza-se da idéia de Engels do
Estado como uma máquina essencialmente capitalista (Cf. FAUSTO, 1987, p.
315-316);
b) nas relações entre capitalistas e trabalhadores assalariados. Diante
da relação existente entre forma-aparência e conteúdo-essência, ou seja, entre
igualdade das partes no contrato e a troca de equivalentes se intervertendo em
desigualdades e extração de uma classe sobre outra, regulamentada pelo direito
posto, o Estado ultrapassa essa lógica e reconhece a natureza particular dessas
relações intervindo, reconhecendo que uma das partes é mais fraca do que a outra,
dando vida ao chamado direito social, reconhecendo, por exemplo, os contratos
84
coletivos de trabalho. Muda, portanto, a forma de aparência do sistema, ou seja,
enquanto no capitalismo clássico a identidade das partes ocultava a desigualdade
das classes, no capitalismo contemporâneo a diferença oculta a contradição. Neste
sentido o Estado aparece não mais como um árbitro a intervir entre iguais –
comunidade política – mas a corrigir as diferenças comunitárias, não mais
políticas mas econômicas19, zelando não só pelas garantias individuais
(provocadas pelo contrato entre iguais, em sentido genérico e abstrato) mas agora
pela garantia do bem estar de cada um. Cabe aqui, entretanto, uma pequena
ponderação, pois o Estado, por estar inserido em um específico modo de produção
– no caso o modo capitalista de produção – e representar os interesses coletivos na
consecução e realização de certas tarefas, de certa forma entra numa contradição
interna do próprio sistema, em função de que, ao mesmo tempo que representa o
interesse coletivo, o faz no interior do modo de produção que, na essência, serve à
dominação e exploração das classes (Cf. FAUSTO, 1987, p. 317-321);
c) e a terceira, a presença do Estado enquanto agente econômico,
sobretudo enquanto proprietário de empresas. É possível fazer uma pequena – mas
importante – distinção: nos dois primeiros casos o Estado intervém, diretamente,
na relação entre as partes, enquanto que no último caso ele é parte, ou seja, a
intervenção do Estado surge de outras formas e por outras razões, não mais na
contradição do sistema mas por sua incompletude, isto porque a economia, por si,
não é capaz de realizar o conjunto das necessidades do sistema, razão pela qual o
próprio Estado se torna o próprio capitalista. Neste contexto (e aqui merece,
novamente, uma nova ponderação), a propriedade dos elementos do capital sobre
19
Para Ruy Fausto (1987, p. 321-322) “dizer que o Estado pressupõe uma comunidade significa
que o Estado assume a realização de certas tarefas coletivas, mas que ele as realiza no interior das
exigências formais do sistema, sistema que se baseia na exploração e na dominação de classe.
Quando o Estado corrige diferenças, se pode dizer que ele põe no interior do sistema certas
possibilidades inscritas na comunidade que ele pressupõe, comunidade que não significa mais aqui
somente a exigência da realização de tarefas de interesse coletivo, mas também a garantia para
cada membro da satisfação de certas necessidades. Mas assim como as tarefas de interesse geral
são postas no interior do sistema (o que significa que há uma ruptura entre elas mesmas fora e
dentro do sistema), também as tarefas de proteção e de correção das diferenças são a posição no
interior do sistema do que elas são, como possibilidades pelo menos, fora ou ‘no fundo’ dele. Isto
não significa que essas medidas já estivessem inscritas numa essência qualquer do Estado (embora
elas existissem como possibilidades, dadas as das pressuposições comunitárias do Estado). isto não
significa também que o Estado se alterou essencialmente, que ela passa a ter agora uma essência
comunitária. O que se passa é algo assim como se o Estado ao assumir essas funções instituísse
novas pressuposições (se se quiser, pusesse novas pressuposições enquanto pressuposições),
precisamente a pressuposição de uma espécie de comunidade econômica, que entretanto se deve
distinguir do que é efetivamente posto e que representa só um mínimo de garantias a todos os
membros da ‘comunidade’.”
85
uma sensível mutação, uma vez que é o próprio Estado que detém, agora, mais do
que nunca, a oportunidade de realizar os pressupostos da produção social, pois
além de ser o proprietário dos meios de produção, organizará (nos termos da
acumulação e reprodução capitalista, especialmente na extração da mais-valia) a
expropriação antes executada pelos capitalistas privados (individuais) e, o mais
importante, isto tudo realizado no interior do sistema (efetivado pelo próprio
Estado) (Cf. FAUSTO, 1987, p. 324-327).
Para efeito da presente pesquisa, importante compreender que no
período que medeia o final da segunda Guerra Mundial e início dos anos 1970, é
considerado um período de grandes intervenções estatais. Não significa,
entretanto, o único momento, pois no desenvolvimento capitalista, considerado
historicamente, é possível observar uma grande intervenção do Estado “na préhistória
imediata
do
capitalismo
e
nos
seus
começos,
diminuindo
consideravelmente na primeira metade do século XIX, para reaparecer no final do
século” (Cf. FAUSTO, 1987, p. 314).
Como dito, no período compreendido entre 1945 e 1970, havia ainda
um grande espaço à expansão do capital (ante a destruição da Europa e a
necessidade de sua reconstrução), o Estado viu-se “obrigado” a fazer
investimentos, até então, inéditos pois ele vai ser o interventor direto (Estado
empreendedor, Estado capitalista – criando empresas, investimentos diretos, etc.)
e, ao mesmo tempo, é o capital de apoio que vai financiar o desenvolvimento
através, por exemplo, da pesquisa, da educação e na formação de uma burocracia
estatal (planejamento econômico, trabalhadores diretos incorporados à estatais,
professores
universitários,
cargos
técnicos,
engenheiros,
advogados,
funcionalismo público em geral, etc.)20.
De certo modo, os encargos dessas funções ao capital individual
comportam grandes riscos e uma magnitude de capital muito grande, razão pela
qual essas funções podem ser deslocadas para o Estado, de maneira selvagem,
para o benefício de uma determinada fração do capital, em detrimento de outras
frações do capital ou capitalistas individuais, aumentando as contradições internas
20
No Brasil, em situação muito semelhante (senão análoga), foi feito o chamado Plano de Metas.
Este plano previa o desenvolvimento econômico e social e foi adotado durante o governo de
Jucelino Kubitschek (1956-1960), caracterizado por investimentos estatais em infra-estrutura
(transportes, principalmente) e na produção e distribuição de energia elétrica. Durante esse período
86
no bloco do poder, demonstrando, portanto, que o cumprimento dessas funções
está diretamente relacionado a uma necessidade política (Cf. POULANTZAS,
2000, p.184-185).
Assim, tanto para Poulantzas como, de forma muito semelhante, para
Ruy Fausto, as intervenções do Estado, em cumprimento a determinadas funções,
são realizadas, sem dúvida, ainda que sob a lógica do interesse geral, em benefício
da fração hegemônica do capital, o que demonstra a importante manifestação
política do Estado na economia, no interior mesmo do sistema, em atendimento ao
bloco de poder constituído pelas classes dominantes. Assim, o Estado se obriga,
justamente em função das diversas contradições que são criadas, a adotar medidas
políticas com proveito predominante do capital monopolista. Para Poulantzas
(2000, p. 186) “esse caráter político diante das classes e frações dominantes
atinge, em diversos graus, o conjunto dessas funções. Isso está muito claro na
reprodução e gestão ampliada da força de trabalho, coordenada geral da
reprodução coletiva do capital, mas também nas disposições do Estado que visam
à desvalorização de determinadas frações do capital constante21”.
Esta desvalorização ocorre, segundo Poulantzas (2000, p. 186),
constantemente no processo econômico, ora pela ação direta de certos capitais –
normalmente decorrente da ação do capital monopolista – contra outros capitais –
tanto em decorrência do capital não-monopolista como também do capital
monopolista – através, por exemplo, de falências, absorções e concentrações. A
intervenção do Estado na economia possibilita, por vezes, que parcelas inteiras do
capital devam morrer a fim de que outras possam sobreviver. É a essência do
capital. As formas selvagens de apropriação dos meios de produção – narrados
com detalhes por Marx (especialmente a expropriação de terras pela força física
o PIB brasileiro cresceu 7% ao ano e a indústria se expandiu num ritmo de cerca de 13% ao ano
(Cf. SANDRONI, 2005, p. 653).
21
A composição do capital, do ponto de vista do valor, é determinada pela proporção em que o
capital se divide em constante (o valor dos meios de produção que apenas transfere às mercadorias
produzidas sem criar mais-valia) e variável (o valor da força de trabalho que sai valorizada do
processo de produção, criando mais-valia). Em termos materiais, o capital constante é composto
pelos meios de produção, tais como máquinas, edifícios, matéria-prima, etc., e o capital variável é
a parcela do capital destinada à compra da força de trabalho, para o pagamento de salário. Ver
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. O processo de produção do capital. Livro 1,
volume 2, capítulo XXIII (A lei geral da acumulação capitalista), p. 715 e segs. Muito embora não
exista, empiricamente, resultados que comprovem a concepção marxista segundo a qual haveria
uma tendência decrescente da taxa de lucro com o desenvolvimento do capitalismo, é possível
dizer que esta desvalorização de frações do capital constante ocorre justamente em razão desta
87
ou pela força das leis) – típicas da acumulação primitiva, são encobertas pelas
ações do Estado na contemporaneidade, ajudando o capital monopolista de forma
direta através de incentivos fiscais, por exemplo, demonstrando a abrangência da
atuação do Estado e sua vinculação com as frações dominantes do capital à
hegemonia política.
2.2.2.
O uso dos instrumentos ideológicos e repressivos: o conteúdo político das
funções econômicas do Estado
Diante desta caracterização política da intervenção estatal, cabe, ainda,
entender o conteúdo político dessas funções econômicas do Estado, ainda mais
que as intervenções estão diretamente relacionadas com as massas populares, isto
porque, diante dessas funções (a intervenção direta do Estado na economia,
favorecendo determinada classe social) e, efetivamente, diante da sua atuação com
medidas protetivas do capital que visam, essencialmente, sua reprodução, o
Estado utiliza-se de mecanismos ideológicos e repressivos, uma vez que “é ao
materializar a ideologia que o apresenta como representante do interesse geral e
do bem-estar comum acima das classes, que o Estado se incumbe diretamente das
funções econômicas ocultando das classes populares seu real conteúdo de classe”
(CF. POULANTZAS, 2000, p. 187).
Para Poulantzas (2000, p. 188) não se pode entender o Estado,
especialmente o Estado-Providência, tomando posturas de caráter meramente
social, isto porque “toda uma série de medidas econômicas do Estado, muito
particularmente as que se referem à reprodução ampliada da força de trabalho, lhe
foram impostas pela luta de classes dominadas (grifo no original) em torno do
que se pode designar sob a noção, social e historicamente determinada, de
‘necessidades’ populares”, ou seja, essas funções sociais do Estado dependem,
sobretudo, do grau de mobilização popular e, por vezes, da tentativa do Estado em
dissuadir, antecipadamente, o movimento de lutas populares (de classes). Diante
disso, Poulantzas afirma que, independente de como foram conseguidas as
reivindicações sociais, a longo prazo a concessão de determinados benefícios
tendência, isto porque a composição orgânica do capital tenderia a aumentar com o
desenvolvimento do capitalismo e do avanço tecnológico, levando a uma queda na taxa de lucro.
88
estão inseridas em mecanismos que favorecem o capital e sua reprodução
ampliada.
Assim é que o Estado, ao intervir diretamente na economia, o faz de
forma a cumprir sua agenda política, ou seja, elaborando políticas sociais o Estado
garante a acumulação do capital e perpetua a hegemonia de classe sobre as massas
populares, resultando na possibilidade em afirmar que não existem funções
puramente sociais do Estado às populações mais necessitadas, criando-se, na
verdade, através da intervenção social – via Estado-Providência – além dos
mecanismos aptos à reprodução da força de trabalho (e produção de mais-valia e
sua apropriação por determinada classes social) e facilitação e desenvolvimento
do consumo de massa, novas intervenções de caráter político no controle das
populações22.
De fato, após décadas de “sucesso” de implantação das políticas
keynesianas, em especial o Estado de bem-estar nos países centrais e o Estado
desenvolvimentista nos países periféricos, é possível afirmar que no período
situado entre a metade dos anos 1970 e início da década de 1980, caracterizou-se
por um novo período de crise estrutural no capitalismo e, juntamente com a
revolução tecnológica (informação e comunicação, principalmente, projetando
novas técnicas e redução de preços) que tomou conta do cenário mundial,
proporcionaram diversas alterações e redefinições com sérias implicações no
processo de acumulação do capital, o qual necessitava encontrar novas formas de
garantir sua reprodução. Os reflexos dessa crise foram, dentre outros, de um lado,
um aumento considerável no desemprego e, de outro, conforme acentua Lévy e
Duménil (2003, pp. 23-24) “desde meados dos anos 1980, a rentabilidade do
capital aumentou e o controle sempre estrito dos salários e do custo do trabalho
em geral fez com que esta drenagem de renda para as camadas mais favorecidas
assumisse proporções consideráveis. As desigualdades patrimoniais foram
restabelecidas e mesmo acentuadas, de modo que o capitalismo contemporâneo
readquiriu algumas de suas características do passado.”
A conseqüência mais marcante (ou, uma primeira conseqüência
observável) que se pode ter desse período é o fato de que, em função do Estado de
22
Neste momento não será realizado um estudo mais denso sobre os diversos processos
característicos da modernidade de disciplina e controle das massas. Este estudo será feito no
capítulo seguinte, quando a discussão estará ultrapassando a lógica da disciplina e do controle,
preponderando, pois, os processos de subjetivação que marcam a contemporaneidade.
89
bem-estar não ter ainda entrado num processo de implosão (que ocorre mais tarde
a partir da queda dos regimes socialistas na Europa nos anos 1990), foi a
necessidade de cada vez mais pessoas estarem sujeitas e reféns desse modo de
produção social, uma vez que foram beneficiadas pelos programas estatais,
tornando-as, de certa forma, sujeitas às conotações do processo punitivo da
estigmatização.
Este período, sem dúvida, é marcado pelo enorme contingente de
mão-de-obra desempregada, bem como, pelos primeiros traços da nova
seletividade punitiva, qual seja, a criminalização de uma enorme massa popular de
excluídos do mercado de trabalho (estratos sociais determinados e pessoas
determinadas: pobres, imigrantes e jovens) que passam a ser considerados pessoas
perigosas ao sistema. De certa forma começa a segmentar (fragmentar) este novo
grupo de pessoas: aqueles que estão, ao menos temporariamente, incluídos no
sistema e vinculados politicamente ao Estado, através do Estado-Providência ou
ao Estado-Penitência (necessidade política do Estado na intervenção econômica).
Lembrando Ruy Fausto, é criado um processo de regulamentação entre as classes
sociais, principalmente pelo Direito do Trabalho que, ao lado das medidas
caritativas do Estado de bem-estar, condicionam uma grande massa de
desempregados a estarem plenamente vinculados ao Estado, principalmente pelos
referenciais legais de equivalência, é dizer, àqueles que se comportam como o
sistema pretende lhe é concedido o Estado social e, ao revés, àqueles que
representam um contingente perigoso às relações sociais e aos aparelhos de poder
lhe é concedido o Estado policial-penal.
É preciso, agora, entender o comportamento da economia e sua
transformação global na década de 1990, trazendo o colapso e esgotamento dos
modelos industriais taylorista e fordista de produção e a necessidade da criação de
novos espaços à reprodução do capital.
3.3.
A criação de novos espaços à reprodução do capital
É possível caracterizar os vinte anos que se seguiram a década de
1970 como um período de profundas mudanças e crises, caracterizando, na década
de 1980, uma grande recessão, comparável (e até mesmo pior) à crise de 1930. O
90
que se viu, na verdade, foram os modelos de processo de trabalho que predominou
durante o século XX – basicamente os modelos taylorista e fordista de produção –
sendo substituídos por modelos de produção flexíveis e desregulamentados,
especialmente no sentido da substituição e (ou) eliminação da produção de
direitos e conquistas trabalhistas. Assim, de que forma o Estado pôde intervir –
direta ou indiretamente – para manter o modo de produção social do capital e
quais suas conseqüências no mundo contemporâneo?
3.3.1.
As transformações no mundo do trabalho
Após o término da chamada “Era do Ouro” em 1973-1975, ocorreram
diversas alterações nos anos 1980, em razão do grande avanço tecnológico, da
automação e dos grandes investimentos na robotização das indústrias, cujas
conseqüências foram sentidas nas relações de trabalho e produção. Independente
das divergências teóricas em relação a esta nova fase do capitalismo23, de fato, o
que se vê é, segundo Hobsbawn (2003, p. 394), uma grande transformação no
modo de produção, especialmente pelo avanço tecnológico e melhoria nas
comunicações e meios de transporte que solucionou o inconveniente da
necessidade de estoques, característica da produção em massa (fordista) da década
de 1970, quando as ‘novas’ indústrias podiam produzir em grande quantidade.
Na verdade houve uma mescla de procedimentos, pois a produção em
massa alcançada através da linha de montagem e de produtos mais homogêneos,
resultado do controle do tempo e dos movimentos pelo cronômetro taylorista e da
produção em série fordista vai resultar na flexibilização da produção através da
baixa quantidade de estoques e pela produção do necessário e suficiente para
abastecer os vendedores, obtendo-se uma grande capacidade de variação na
produção a fim de enfrentar as exigências de mudanças.
23
Sobre esses novos processos produtivos, é importante compreender que não há unanimidade,
entre os autores, em relação às suas características. Ricardo Antunes (2005, pp. 24 e segs.) explica
que os novos processos do trabalho emergem quando os modelos tradicionais – especialmente o
taylorista e fordista – são “substituídos” pela flexibilização da produção, utilizando-se, para tanto e
principalmente, da tese de David Harvey. Por oportuno, Ricardo Antunes traz algumas
considerações sobre o assunto, fazendo referências teóricas sobre diversos autores que divergem
em relação aos novos padrões de busca de produtividade. Segundo ele, alguns autores, como Sabel
e Piore, pioneiros da tese da “especialização flexível”, entendem que estes novos processos
91
O resultado disso, como observa Hobsbawn (2003, p. 395) é que no
final do século XX, por um lado, os países capitalistas desenvolvidos estavam
mais ricos e com uma enorme capacidade de produção, maior que no início do
anos 1970 e a economia global estava imensamente mais dinâmica, e de outro, a
situação de regiões como a África, a Ásia ocidental e a América Latina, tinha
estagnado pela paralisação do crescimento do PIB per capita24, resultando num
sensível empobrecimento dessa população na década de 1980.
Para David Harvey (2004, p. 140) até 1973 – quando iniciou uma
profunda recessão nos países capitalistas – tinha-se no modelo fordista de
produção (em massa) e na aplicação das medidas keynesianas, os mecanismos de
estabilidade política e financeira da população trabalhadora. A partir de então,
teve início uma série de modificações no interior do processo de acumulação que
caracterizou a década seguinte (1980) como um período de incertezas, oscilações
e de reestruturação econômica e reajustamento político e social: o regime de
acumulação flexível. Para ele, este novo regime de acumulação é marcado pela
ausência de rigidez do “fordismo” e se apóia na flexibilidade dos processos de
trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Este
regime caracteriza-se:
(...) pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas
maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e,
sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica
e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos
padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões
geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no
chamado “setor de serviços”, bem como conjuntos industriais
completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas (tais como a
“Terceira Itália”, Flandres, os vários vales e gargantas do silício, para não
falar da vasta profusão de atividades dos países recém-industrializados) (Cf.
Harvey, 2004, p. 140).
produtivos são inteiramente distintos das bases fordistas, enquanto que, para outros, como Anna
Pollert, não há significativa transformação no interior do processo de produção de capital.
24
Para entender o cenário internacional diante desse fatos, Hobsbawn (2003, p. 295) afirma que:
“Quanto às economias da área antes entendida como de ‘socialismo real’ acidental, que haviam
continuado um modesto crescimento na década de 1980, desabaram completamente após 1989.
Nessa região, a comparação das crises após 1989 com a Grande Depressão era perfeitamente
adequada, embora subestimasse a devastação do início da década de 1990”. (...) “O mesmo não se
dava no oriente. Nada era mais impressionante do que o contraste entre a desintegração das
economias na região soviética e o espetacular crescimento da economia chinesa no mesmo
período. Naquele país, e na verdade na maioria do sul e sudeste da Ásia, que saíram da década de
92
O novo regime de acumulação flexível, segundo Harvey (2004, p.
141), impõe o aumento dos níveis de desemprego ‘estrutural’ (em oposição a
‘friccional25’), uma rápida destruição e reconstrução de habilidades, pequenos
ganhos reais (salários) e o retrocesso do poder sindical, isto porque, na verdade
como a acumulação flexível é uma forma de capitalismo, algumas proposições
desse modo de produção se mantêm, especialmente a exploração do trabalho vivo
na produção como mecanismo hábil de crescimento de valores reais, ou seja, na
diferença entre o que o trabalho obtém e aquilo que cria. Para Harvey (2004, p.
166) “o controle do trabalho, na produção e no mercado, é vital para a
perpetuação do capitalismo. O capitalismo está fundado, em suma, numa relação
de classe entre capital e trabalho. Como o controle do trabalho é essencial para o
lucro capitalista, a dinâmica da luta de classe pelo controle do trabalho e pelo
salário de mercado é fundamental para a trajetória do desenvolvimento
capitalista”.
Ricardo Antunes (2005, p. 30-31), ao analisar as propostas de David
Harvey, citando-o, mostra que o desenvolvimento das novas tecnologias de
acumulação flexível garantem a geração de excedentes de força de trabalho, o que
possibilitou a extração da mais-valia, o desenvolvimento de práticas de trabalho
informal, mesmo nos países de capitalismo avançado, tendo como conseqüências
negativas, dentre outras: o trabalho organizado foi solapado, altos níveis de
desemprego estrutural, retrocesso da ação sindical e o individualismo exacerbado
encontrou condições sociais favoráveis.
3.3.2.
O cenário mundial do capital e os ciclos econômicos no último
quarto do século XX
1970 como a região econômica mais dinâmica da economia mundial, o termo ‘Depressão’ não
tinha sentido – exceto, muito curiosamente, no Japão do início da década de 1990”.
25
Conforme Sandroni (2005, p. 241) “O desemprego friccional ou normal ocorre por desajuste ou
falta de mobilidade entre a oferta e a procura, quando empregadores com vagas desconhecem a
existência de mão-de-obra disponível, enquanto trabalhadores desempregados desconhecem as
ofertas reais de trabalho”. “O desemprego tecnológico ou estrutural origina-se em mudanças na
tecnologia de produção (aumento da mecanização e automação) ou nos padrões de demanda dos
consumidores (tornando-se obsoletas certas indústrias e profissões e fazendo surgir outras novas)
em ambos os casos, grande número de trabalhadores fica desempregado a curto prazo, enquanto
uma minoria especializada é beneficiada pela valorização de sua mão-de-obra”.
93
Antes mesmo de entrar na tese central de David Harvey sobre os
‘rearranjos espaciotemporais’ e ‘acumulação mediante despossessão’ (que será
objeto de estudo no item 2.4.4.), é preciso trazer alguns elementos teóricos que
esclareçam a necessidade e a importância do estudo do tema. Para tanto é preciso
fazer uma pequena descrição analítica do cenário da produção capitalista, entender
as características dos ciclos econômicos e perceber as contradições endêmicas do
capital, especialmente entre excedente de trabalho e excedente de capital.
Conforme Valério Arcary (2004, p. 148-150), não seria possível
pensar em estratégias de lutas com o intuito político de conquista revolucionária
do poder, especialmente aquelas revoluções mais importantes ocorridas no século
XX26, sem o fomento de crises econômicas, as quais resultassem em crises sociais.
O que se viu, entretanto, é que, muito embora as enormes turbulências causadas
pelas crises econômicas nestas localidades e por grandes períodos (temporais –
anos e até décadas de crises), o capitalismo não desapareceu como modo de
produção, pois para o capital “não há recessão, ou mesmo depressão, sem saída.
Sempre há um saída econômica para o capital; se a sua dominação não estiver
politicamente ameaçada, descarregará, de uma ou outra forma, os custos da
recuperação da taxa média de lucro sobre outras classes”. O próprio autor admite
(mais adiante) que, de certo modo, a herança marxista histórico-política
construída em relação à natureza destrutiva do capitalismo não se confirmou,
entretanto, é pertinente entender a importância da construção destes cenários em
função das tendências e dos movimentos das forças existentes.
Como se viu, ao contrário das previsões ‘otimistas’ (ou pessimistas)
da ‘crise final’ do capitalismo, depois da Segunda Guerra Mundial (pelo menos
até meados dos anos 1970), especialmente com a implementação das políticas
keynesianas, o capitalismo nos países centrais experimentou um novo e vigoroso
ciclo de expansão, não sendo suficientes as crises e as guerras para destruí-lo mas,
ao contrário, revitalizou-o na chamada década de ouro do capitalismo, o que
demonstrou que as crises recorrentes do capital – alternando períodos de expansão
e contração – são características sistêmicas no desenvolvimento histórico do
26
Arcary cita as lutas de Petrogrado em 1917, Berlim em 1921 e 1923, Madri e Barcelona entre
1930 e 1937, a França e a Itália entre 1945 e 1948, as lutas pelas independência na Índia e na
China, a revolução cubana e o processo latino-americano ocorrido entre o final dos anos 1950 e
início de 1960.
94
capitalismo, resultado da relação deste com as conjunturas sociais, políticas,
econômicas e ideológicas.
Os ciclos sistêmicos estão ligados à ascensão e crise de um Estado
hegemônico27 no sistema mundial, especialmente no domínio do capitalismo.
Como lembra Carlos Eduardo Martins, (2005, p. 70), “os ciclos representam
padrões de repetição em torno de tendências seculares e evolutivas que são
irreversíveis no desenvolvimento do moderno sistema mundial. Essas tendências
são: no plano material, a acumulação ilimitada e, sua resultante contraditória, o
descenso da taxa de lucro; e no plano superestrutural, o aumento das bases
demográficas, territoriais e de legitimidade para o exercício do poder
hegemônico”.
É preciso, portanto, ao estudar os ciclos econômicos ter como pano de
fundo o desenvolvimento e as contradições do capital, ou seja, se, por um lado o
“capital impulsiona o desenvolvimento das forças produtivas, com vistas à
produção de uma massa crescente de valores de uso, como nunca antes ocorrido
na história da humanidade; por outro, limita este desenvolvimento à necessidade
de valorização do valor. Esta contradição não pode ser abolida no interior da
produção capitalista, a menos que seja exigida a criação de formas sociais dentro
das quais essa contradição se mova e se realize” (Cf. TEIXEIRA, 2000, p. 207).
A literatura sobre os ciclos volta a se desenvolver a partir do
esgotamento da fase de ouro (até início dos anos 1970), principalmente com
autores marxistas (especialmente Ernest Mandel). Conforme lembra Carlos
Eduardo Martins (2005, p. 89) Mandel traz para a discussão dos ciclos – como
elemento central – a taxa de lucro como indicador, o que exigirá uma revisão
metodológica de suas causas e dinâmicas, isto porque “tanto em Kondratieff como
em Schumpeter, o elemento central na geração dos ciclos longos era a apropriação
27
Os ciclos sistêmicos foram teorizados a partir de estudos de alguns autores, especialmente
Giovanni Arrighi, Beverly Silver e Immanuel Wallerstein. Entre estes autores há algumas
divergências e, dentre elas, cabe aqui mencionar uma: a definição de hegemonia. Wallerstein
impõe limites à definição de hegemonia, não ultrapassando sua dimensão econômica. No entanto,
para Giovanni Arrighi (1996, p. 27-29), o conceito de hegemonia “refere-se especificamente à
capacidade de um Estado exercer funções de liderança e governo sobre um sistema de nações
soberanas”, aduzindo, ainda, que esse tipo de poder sempre implicou em algum tipo de ação
transformadora que alterou o modo de funcionamento do sistema, isto porque ele está associado à
dominação, ampliada pelo exercício da liderança intelectual e moral. Por fim, Arrighi afirma ainda
que “um Estado dominante exerce uma função hegemônica quando lidera o sistema de Estados
numa direção desejada e, como isso, é percebido como buscando um interesse geral. É esse tipo de
liderança que torna hegemônico o Estado dominante”. Este é um conceito mais amplo, o qual será
utilizado nas considerações seguintes.
95
de riquezas por meio da competição intercapitalista. A inovação dava ao lucro
extraordinário ou a uma renda diferencial que eram ameaçados pela difusão das
inovações. (...) O lucro extraordinário não dará lugar a uma onda longa expansiva
se não estiver associado à elevação da taxa média de lucro”.
Carlos Eduardo Martins (2005, p. 89-90), aponta que Mandel situou a
taxa de lucro como elemento central da análise das ondas longas e com isso,
afirma ele, “a fase de ascensão da onda longa é determinada por inovações
radicais que: desvalorizam substancialmente o capital fixo e o capital circulante
(matérias-primas e insumos produtivos de baixo valor agregado); aumentam a
taxa de mais-valia e, conseqüentemente, a massa de mais-valia, ao reorganizar o
processo do trabalho; intensificar a rotação do capital; e derrubam as taxas de
juros ao centralizar o capital e disponibilizar o crédito abundante”.
Entretanto, afirma ele (2005, p. 90),
a partir de meados do desenvolvimento da fase expansiva da onda longa, a
taxa de lucro entra em declínio. Isso ocorre em razão da elevação da
composição orgânica do capital, do emprego e da demanda por matériasprimas. A pressão sobre os custos aumenta a demanda por créditos e
impulsiona taxas de juros e inflação. O resultado é uma intensificação das
lutas de classes e da competição intercapitalista que, em aproximadamente
dez anos, derruba a taxa de lucro para níveis de recessão. A fase recessiva da
onda longa se caracteriza por uma primeira parte, em que as taxas de juros
permanecem elevadas e as lutas de classes intensificadas. Isso se deve à
demanda de crédito para pagamento de dívidas e às resistências dos
trabalhadores à racionalização e reorganização do processo do trabalho sob o
comando do capital. Na segunda fase da recessão, o capital centraliza as
finanças, derruba as taxas de juros e vence as resistências dos trabalhadores
para introduzir inovações tecnológicas e racionalizar o processo de trabalho
com inovações organizacionais. A fase recessiva geraria um subinvestimento
crônico que permite disponibilizar os recursos necessários para desenvolver
outra onda longa expansiva.
Carlos Eduardo Martins (2005, p. 90-92) desenvolve também uma
importante consideração sobre a relação entre os aspectos tecnológicos e
organizacionais, dentro da análise do desenvolvimento das ondas longas. Utilizase, para tanto, o suporte teórico dos neo-schumpeterianos, os quais afirmam que o
paradigma tecnológico que entrelaça e impulsiona as inovações de uma onda
expansiva será estabelecido na fase final da onda expansiva anterior, citando
como exemplos que a introdução da ferrovia, do aço barato, da linha de montagem
e do chip microeletrônico, ocorram no final da onda longa expansiva ou, no mais
96
tardar, nos primeiros anos da recessiva. Este desenho do desenvolvimento é
importante pois é a partir de então que se verificará que o atraso das inovações
tecnológicas em se transformar em um novo paradigma tecno-econômico ocorrerá
em função da falta organizacional e gerencial em níveis empresariais, políticos,
sociais e ideológicos, o que deverá reduzir custos de produção e elevar a
produtividade e os lucros, bem como pode ser associada à concepção marxista da
inclusão da taxa de lucro na análise das ondas longas.
Outra importante análise dos ciclos de Kondratieff, lembrada por
Carlos Eduardo Martins (2005, p. 91) foi realizada por Theotônio dos Santos em
“La crisis norte americana y América Latina”. Para este autor (Theotônio dos
Santos), “os ciclos longos são observados a partir de inovações tecnológicas
radicais que provoquem mudanças significativas na composição orgânica do
capital, no exército industrial de reserva, nos níveis salariais, nas formas
institucionais
–
concentração
empresarial,
centralização
financeira,
internacionalização do capital e intervenção estatal – e, em conseqüência disso, na
taxa de lucro”.
Theotônio dos Santos em “Os elos perdidos de uma teoria elegante”,
novamente referido por Carlos Eduardo Martins (2005, p. 92-93), afirma que a
crise de longo prazo do ciclo de Kondratieff representa, na verdade, uma
conjunção de diversas crises: a) a crise de acumulação, que está ligada ao auge
econômico, no qual a difusão de tecnologias atinge seu limite máximo, resultando
numa forte pressão competitiva sobre o consumo da força de trabalho, matériasprimas, maquinarias e crédito, no aumento de preço e taxa de juros e queda do
lucro; b) a crise da tendência decrescente da taxa de lucro está ligada ao aumento
da composição orgânica do capital para aumentar as inovações, necessitando,
pois, elevar a produtividade do trabalho, acumular e centralizar capitais, surgindo
a necessidade de se construir novos padrões de gestão empresarial, intervenção
estatal e internacionalização do capital; c) a crise de realização está ligada ao fato
de que a produção de mercadorias ultrapassa a demanda para consumi-las; d) a
crise de desproporção está ligada aos desequilíbrios entre volume de produção e
demanda de insumos dos setores de produção de bens de capital e de produção de
bens de consumo. As crises, ou fases recessivas dos ciclos, significam, então, a
convergência das diversas crises e sua superação exige uma nova interpretação
institucional e organizacional.
97
É importante, portanto, perceber que a baixa demanda faz aumentar a
cumulação em favor dos segmentos da produção de maquinarias, que se desvia do
dinamismo dos bens de consumo, exigindo do Estado maior intervenção e,
conseqüentemente articula-se um desenvolvimento da dívida pública. O que
surge, novamente, de forma bastante clara, é o debate sobre a intervenção do
Estado na economia, na tentativa de evitar a eclosão de crises sistêmicas, isto
porque os ciclos de expansão e contração da atividade econômica parecem seguir,
coincidentemente, aos períodos de intervenção do Estado, bastando lembrar as
políticas liberais do final do século XIX e início dos século XX, as políticas
anticíclicas de teorização keynesiana, implementadas no período compreendido
entre meados dos 1930 e início dos anos 1970 e as políticas neoliberais
implementadas a partir dos anos 1980, estando, pois, diretamente vinculadas à
sobrevivência do capitalismo, a intervenção do Estado.
Toda esta análise foi possível em função, preponderantemente, da
teorização dos ciclos de Kondratieff, a qual fornece um excelente instrumental
analítico às considerações da conjuntura, isto porque está ligada a uma mudança
de paradigma tecnológico de um determinado modo de produção, resultando,
consequentemente, em uma enorme alteração dos modos de vida institucional,
político, ideológico e econômico pois, como afirma Carlos Eduardo Martins
(2005, p. 93), “os ciclos de Kondratieff são oscilações em torno das tendências
seculares do capitalismo histórico, marcadas pela acumulação ilimitada”, ou seja,
estes ciclos – marcados, como se viu, por expansões e recessões e medidos pelas
oscilações do PIB per capita e da taxa de lucro – caracterizam-se por uma
primeira fase expansiva de inovações tecnológicas e uma fase seguinte recessiva,
marcada pela convergência das crises de acumulação, desproporção, realização e
da tendência da baixa da taxa de lucro.
Cabe verificar contudo, o enorme poder de recuperação da economia
capitalista que, mesmo diante das recessões provocadas, consegue reverter a
situação. Como afirma István Mészáros (2002, p. 696-697), o capitalismo sempre
se comportou conforme seus mecanismos de auto-regulação os quais são
inseparáveis de sua formação socioeconômica e “constitui uma de suas
características definidoras mais importantes como forma específica de controle
social”. Esta capacidade do capital pode ser sentida na alteração do padrão
tradicional de consumo para outro onde predominam os interesses do complexo
98
militar-industrial, o qual é fundado pela subutilização institucionalizada tanto das
forças produtivas como de produtos e também pela crescente e constante
dissipação ou destruição dos resultados da superprodução por meio da redefinição
prática
da
relação
oferta/demanda
no
próprio
processo
produtivo
convenientemente reestruturado.
Ainda conforme István Mészáros (2002, p. 697) é a partir dessa
alteração da relação entre produção e consumo que será possível ao capital livrarse dos colapsos do passado, isto porque enquanto a relação atual entre os
interesses dominantes e o Estado capitalista prevalecer e impuser com sucesso
suas demandas à sociedade não haverá grandes tempestades, mas pequenas e
crescentes crises em todos os lugares, possibilitando que os longos períodos de
desenvolvimento produtivos fulminados (de forma anormal) por estrondosas
crises (a exemplo do que ocorreu em 1929) sejam, gradativamente, alternados pela
normalidade de pequenos mas lineares movimentos de crises.
3.3.3.
Espaço e tempo à reprodução do capital
Diante desse cenário ocorrido a partir dos anos 1970, mais
especificamente a partir do início dos anos 1980, quando a dinâmica do capital
encontrou sérios problemas na continuidade da acumulação por meio da
reprodução expandida28, é que é possível fazer uma análise estrutural melhor do
capitalismo organizado, indicando, sobretudo, que a nova redefinição espaçotemporal proporcionou, de maneira que o processo de acumulação do capital teve
que encontrar novos mecanismos à sua reprodução.
Fazendo-se, então, uma pequena retrospectiva, são preciosos os
elementos trazidos por Arcary (2004, p. 153-155) em um subtítulo bastante
sugestivo – “O prognóstico da ‘crise final’ não passou na prova da história” –
quando aponta que os limites do capital revelaram-se extremamente elásticos,
principalmente pela aplicação das políticas de inspiração keynesiana que alargou
o acesso ao crédito e, conseqüentemente, ao consumo de massa e garantiram o
crescimento econômico com baixas pressões inflacionárias. Entretanto, a ordem
28
A reprodução expandida ocorre mediante a apropriação de mais-valia e sua valorização na
circulação
99
econômica construída, após Bretton Woods29, com mecanismos de regulação
estatal preventivos não foram suficientes a impedir que a sociedade mergulhasse
em crises regulares. Entretanto, estas crises tinham uma nova fisionomia,
principalmente após o início da depressão do final do século XX, porque a fase de
crescimento tinha se esgotado. Com crises menos graves, todavia, mais
constantes, o cenário econômico era bastante instável, especialmente em função
do endividamento público e privado e a volta das pressões inflacionárias. Para
Arcary (2004, p. 156),
Destruição menos abrupta, recuperações menos vigorosas, uma longa e
quase ininterrupta depressão, mas sem formas catastróficas ou seqüelas
explosivas. E uma introdução mais acelerada de novas tecnologias,
diminuindo o tempo de vida útil das máquinas, pela substituição dos
equipamentos obsoletos, reduzindo a média decenal dos ciclos. Parecia que o
capital tinha encontrado um movimento de rotação mais rápido. Mas o seu
sociometabolismo perdia vitalidade e era menos intenso. Um estágio de crise
crônica. Uma valorização de capitais sem nenhuma correspondência com a
capacidade de realização de lucros no mundo material de venda de bens e
serviços. Uma especulação febril com expectativa de ampliação dos
mercados que não poderá se verificar. Em suma, uma sobreacumulação30 de
capitais de tal dimensão que seria inevitável a queda da taxa média de lucro.
Portanto o que se verifica, novamente, é a grande importância da
posição em que se encontra o Estado, ou seja, é fundamental ao capital que o
Estado esteja preparado, com os instrumentos capazes de minimizar os riscos de
grandes e explosivas depressões. De certa maneira, como se percebe, o problema é
gerado não tanto pela força de trabalho excedente (crescente desemprego), mas
sim, e especialmente pelo capital excedente, ou seja, uma sobreacumulação,
gerada por uma grande quantidade de mercadorias que não são absorvidas pelo
mercado, em função de uma capacidade produtiva ociosa e a impossibilidade de
que os excedentes de capital estejam investidos produtiva e lucrativamente. Neste
sentido é que David Harvey (2003) aponta que este final do último século pode
29
A Conferência de Bretton Woods é “o nome pelo qual ficou conhecida a Conferência Monetária
e Financeira das Nações Unidas, realizada em julho de 1944, em Bretton Woods (New Hampshire,
Estados Unidos), com representantes de 44 países, para planejar a estabilização da economia
internacional e das moedas nacionais prejudicadas pela Segunda Guerra Mundial. Os acordos
assinados em Bretton Woods tiveram validade para o conjunto das nações capitalistas lideradas
pelos Estados Unidos, resultando na criação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco
Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD)” (Cf. SANDRONI, 2005, p. 176).
30
A sobreacumulação ocorre, por exemplo, quando há, num determinado território, um crescente
desemprego e excedente de capital
100
ser comparado aos anos 1930, quando os excedentes de mercadorias não podiam
ser vendidos e o desemprego atingia níveis muito elevados.
Para István Mészáros (2002, p. 675), a expansão do consumo no modo
de produção capitalista é um dos aspectos mais significativos e uma conquista real
da vitória civilizadora da propriedade mobiliária, uma vez que é o próprio capital
que impulsiona o trabalhador ao consumo, criando e instigando-os a novas
necessidades, demonstrando todo seu poder. Com isto e a partir da idéia de que o
capital é, endêmica e permanentemente destrutivo, István Mészáros desenvolve a
tese da “taxa de utilização decrescente no capitalismo”31 do valor de uso32 das
coisas. Para ele, “no curso da história, avanços na produtividade inevitavelmente
alteram o padrão de consumo, bem como a maneira pela qual serão utilizados
tanto os bens a serem consumidos como os instrumentos com os quais serão
produzidos”, ou seja, estes avanços “afetam a própria natureza produtiva,
determinando, ao mesmo tempo, a proporção segundo a qual o tempo disponível
total de uma dada sociedade será distribuído entre a atividade necessária para o
seu intercâmbio metabólico básico com a natureza e todas as outras funções e
atividades nas quais se engajam os indivíduos da sociedade em questão” (2002, p.
639).
Esta taxa de utilização decrescente, como Mészáros explica, está
implícita nos avanços realizados pela própria produtividade, manifestando-se na
proporção variável segundo a qual uma sociedade tem que alocar quantidades
determinadas de seu tempo disponível total para a produção de bens de consumo
rápido (por exemplo, produtos alimentícios), em contraponto aos que continuam
31
Esta tese está desenvolvida no Capítulo 15 da obra “Para além do Capital” (2002, p. 634).
Sandroni (2005, p. 874) afirma que, para Marx, diferentemente de Adam Smith que via no valor
de uso como a utilidade de um objeto, “o valor de uso não é concebido como uma categoria
natural, mas como uma categoria específica da economia política. No âmbito da produção
capitalista o valor de uso assume determinações sociais específicas, que configuram sua função no
interior da produção e da circulação do próprio valor de troca. A relação entre o valor de uso e o
valor de troca é uma relação de subordinação. O valor de uso constitui o ‘suporte material’ do
valor de troca. O valor criado no processo produtivo deve transformar-se em valor de troca
mediante sua realização no mercado. Isso, no entanto, só é possível se o valor produzido estiver
incorporado num conjunto de valores de uso que correspondam à necessidade social. No caso da
produção capitalista, necessidade social quer dizer necessidade do capital, que é o conjunto dos
valores de uso que servem para reconstituir os elementos materiais do capital constante (meios de
produção) e do capital variável (meios de subsistência) que foram consumidos na produção. Além
disso, deve permitir o alargamento da própria produção, mediante a transformação de uma parte da
mais-valia em capital constante acrescentado e capital variável acrescentado. Isso demonstra que,
no modo de produção capitalista, o produto social não se destina às necessidade do homem, mas
corresponde às necessidades do capital”.
32
101
utilizáveis (isto é, reutilizáveis) por um período de tempo maior: uma proporção
que obviamente tende a se alterar em favor dos últimos (2002, p. 639-640).
Contudo, a tese de Mészáros sobre a taxa de utilização decrescente é
desenvolvida, como ele mesmo aponta (2002, p. 640), no sentido de que este
processo, típico do avanço produtivo, seja revertido na forma “em que a
‘sociedade dos descartáveis’ encontre equilíbrio entre produção e consumo,
necessário para a sua contínua reprodução, somente se ela puder ‘consumir’
artificialmente e em grande velocidade (isto é, descartar prematuramente) imensas
quantidades de mercadorias que anteriormente pertenciam à categoria de bens
relativamente duráveis”.
Desse modo, a sociedade se mantém como um sistema produtivo
manipulando até mesmo a aquisição dos chamados ‘bens de consumo
duráveis’ que necessariamente são lançados ao lixo (ou enviados a
gigantescos ferros-velhos, como os ‘cemitérios de automóveis’ etc.) muito
antes de esgotada sua vida útil. (Cf. MÉSZÁROS, 2002, p. 640)
É neste sentido que esta tendência da taxa de utilização decrescente foi
incorporada ao sistema produtivo do “capitalismo avançado” através, sobretudo,
do chamado consumo destrutivo, especialmente, pelo complexo industrial-militar,
em função do limitado tempo de vida útil das mercadorias as quais, para tanto,
necessitam da criação de guerras para serem consumidas e isto expõe uma das
faces mais impressionantes do capital pois se, de um lado, há uma enorme
produção, de outro, se não houver consumo (demanda suficiente) o próprio capital
põe em movimento forças produtivas33 e destrutivas capazes de superar crises em
função da criação de locais de expansão à superação dos impedimentos que
surgem.
A visão que devemos ter (ou que somos levados a ter) é sempre no
sentido de que este crescimento da produção e do consumo poderia significar
desenvolvimento, entretanto, seguindo a orientação de Marx, a retirada de mais33
Sandroni (2005, p. 352) explica que forças produtivas são “forças naturais (inclusive o próprio
homem) apropriadas pelo homem para a produção e reprodução de sua vida social. A parte
material das forças produtivas, isto é, os instrumentos e os objetos de trabalho, constituem a base
material e técnica da sociedade. A principal força produtiva, no entanto, é o próprio homem, que
cria instrumentos de trabalho cada vez mais poderosos, aperfeiçoa seus objetos de trabalho e
combina ambos no sentido de ampliar constantemente a produção. Isso significa que as forças
produtivas tendem a crescer constantemente. Essa expansão opera modificações nas relações de
produção e no modo de produção. Assim, a determinado nível de desenvolvimento das forças
produtivas correspondem determinadas relações de produção”.
102
valia está ancorada no desenvolvimento das forças produtivas e exige uma
correspondente ampliação no círculo de consumo, ampliando a quantidade de
consumo, criando e produzindo novas necessidades e criando novos valores de
uso, entretanto, como diz Mészáros (2002, p. 677) “o resultado positivo dessa
interação dialética entre produção e consumo está muito longe de estar
assegurado, já que o impulso capitalista para a expansão da produção não está de
modo algum necessariamente ligado à necessidade humana como tal, mas
somente ao imperativo abstrato da ‘realização’ do capital” (grifo no original).
Logo em seguida, Mészáros 2002, p. 677-678) faz um longa citação
de Marx explicando seu modo de ver a “realização” do capital, ou o modo pelo
qual o capital se auto-realiza, especificamente pela interação dinâmica entre
produção e consumo. Ao interpretar a citação de Marx, Mészáros entende que do
ponto de vista do valor de troca em auto-expansão, a alternativa seria abortá-la
antes que debilite de forma irremediável o poder de controle global do capital,
implicando na necessidade do capital encontrar estratégias de realização que não
só superem as limitações imediatas da demanda flutuante do mercado, mas
também tenham êxito em se desembaraçar radicalmente dos constrangimentos
estruturais do valor de uso como algo subordinado à necessidade humana e ao
consumo real.
Alcançado este objetivo, ou seja, assegurado o desenvolvimento às
custas das grandes contradições internas do capital, “este tipo de mudança
estrutural no ciclo de reprodução capitalista, não prevista por Marx, é realizado
pelo deslocamento radical da produção genuinamente orientada para o consumo
destrutivo”. Fica nítida a posição de Mészáros quando afirma que, no nível do
sistema produtivo capitalista, consumo e destruição são equivalentes funcionais
no processo de ‘realização’ capitalista (Cf. Mészáros, 2002, pp. 678-679).
Neste sentido, portanto, o modo de produção capitalista dá mostras de
ser um sistema ilimitado e incontrolável à sua expansão, isto porque o capital ao
encontrar um equivalente funcional que melhor lhe assegure sua expansão, deverá
optar por aquela que melhor se adeqüe à sua configuração estrutural34.
34
Mészáros (2002, p. 679) diz que o capital sempre segue a linha de menor resistência, ou seja, ao
encontrar uma linha de ação que lhe seja mais favorável à sua expansão, “o capital deve optar por
aquela que esteja mais obviamente de acordo com sua configuração estrutural global, mantendo o
controle que já exerce, em vez de perseguir alguma estratégia alternativa que necessitaria o
abandono de práticas bem estabelecidas”, assim, é que o caminho do capital à sua expansão e
103
3.3.4.
A produção industrial militar e a necessidade do “consumo
destrutivo.
Diante de todas estas circunstâncias, surgem questionamentos sobre as
possibilidades de realização do capital, é dizer, da necessidade da discussão
transitar sobre o modelo capitalista de produção e duas conseqüentes frentes de
atuação: de um lado, com criação de novos espaços à reprodução do capital e, de
outro, nos mecanismos estruturais (políticas públicas na busca de melhores
condições de trabalho, alimentação, saúde, habitação, educação, etc.) e
institucionais (polícia e parlamento) do Estado no controle social.
Com isto, objetiva-se compreender como as novas diretrizes globais
de política econômica podem compor um cenário de acumulação e expansão do
capital, controle, exclusão e barbárie social, isto porque, como se viu, o Estado,
tão necessário às consecuções e interesses do capital, principalmente para manter
a ordem e garantir o pressuposto da constante acumulação, assume sua posição de
garante com todo o aparato repressivo, utilizando-se do monopólio do uso da
força e violências (institucional e estrutural) para manter as desigualdades, o
controle social do desvio e as relações de subordinação, provocadas às camadas
mais vulneráveis da sociedade.
Alguns questionamentos já puderam ser respondidos, entretanto outros
ainda não, especialmente como e por que o capital se utiliza das crises de
sobreacumulação a fim de realizar seus propósitos, ou seja, diante das diversas
crises provocadas pelas próprias contradições internas do modo capitalista de
produção, qual (ou quais) a(s) verdadeira(s) necessidade(s) de se ter um aparato
policial-militar cada vez maior e quais são as formas de interferência no sistema
político ao aumento, ou ao crescimento do complexo militar-industrial, sabendose, entretanto, da característica fundamental do capital, qual seja, sua ilimitada e
incontrolável tendência de expansão em função do que Mészáros denomina de
“linha de menor resistência”.
necessidade de constante acumulação, sempre procurará um caminho onde ele encontre menos
resistência.
104
Rosa Luxemburgo, antes mesmo de eclodir a Primeira Guerra
Mundial, em 1913, percebeu o significado e a tendência preponderante do
consumo pela destruição através da produção militarista35, isto porque, à
realização capitalista importa a forma como são implementados os procedimentos,
ou seja, não em função de qualquer alteração do modo de produção mas porque,
como afirma Mészáros (2002, p. 679), se torna economicamente mais flexível e
dinâmica a produção, “assim como ideologicamente menos transparente” e ao
mesmo tempo, “politicamente menos vulnerável”. Esta “produção destrutiva”
permite uma maior agilidade na circulação do capital e, conseqüentemente, uma
continuidade na acumulação, especialmente pela redução do limite na utilização
(ou vida útil) das mercadorias, ou seja, no seu valor de uso.
(...) em princípio, enquanto for verdade que o desenvolvimento da produção
capitalista “exige que o círculo de consumo, no interior da circulação se
expanda como o fez previamente o círculo produtivo”, um equivalente
funcional preferível estará à disposição do capital na forma de aceleração da
velocidade de circulação dentro do próprio círculo de consumo (aumentando
o número de transações no círculo já existente), em vez de embarcar na
aventura mais complicada e arriscada de alargar o próprio círculo. (Cf.
MÉSZÁROS, 2002, p. 680)
Assim é que, diante do aumento da velocidade da circulação do capital
através desse tipo de consumo (destrutivo) e diante da formulação de Karl Marx
sobre a composição orgânica do capital (relação entre o valor do capital constante
e do capital variável, ou seja, quanto maior a composição orgânica do capital
menor será a taxa de lucro), pode-se dizer que a taxa de lucro varia na razão direta
da taxa de mais valia e da rotação do capital. Percebe-se, pois, que há uma
ampliação das possibilidades de acumulação e expansão do capital em função,
inexoravelmente, das redefinições temporais do capital.
Foi o complexo militar-industrial o instrumento que conseguiu romper
com a suposta impossibilidade de combinar a máxima expansão possível com a
taxa de utilização mínima. As estratégias adotadas pelas políticas anticíclicas de
teorização keynesiana figuram apenas como complementares ao dinamismo
expansionista. Mészáros (2002, p. 686) nos prodigaliza que não há qualquer
uniformização no desenvolvimento do complexo militar-industrial dos países de
capitalismo avançado, por duas razões: a primeira porque persiste a chamada lei
35
Ver: LUXEMBURGO, Rosa. A acumulação do capital. Volume II, São Paulo: Abril, 1984.
105
de desenvolvimento desigual e, a segunda, porque algumas condições extraeconômicas foram impostas pelos países vitoriosos da Segunda Guerra Mundial,
ao Japão e à Alemanha, pelo menos por algum tempo, ficando (estes países)
limitados pelos tratados de paz por eles firmados, em suas possibilidades de
rearmamento36. Contudo, afirma Mészáros (2002, p. 687), estas considerações
também servem a todos os países capitalistas, pois há uma grande dependência
dos países capitalistas no desenvolvimento e na contínua expansão do complexo
militar-industrial estadunidense.
David Harvey (2003) analisa este fato a partir da idéia de capital
excedente e a necessária destinação (consumo ou destruição) desse capital, ou
seja, tudo isso decorre de uma grande necessidade do capital buscar espaços à sua
expansão, tendo o Estado como um parceiro da acumulação capitalista
(especialmente na acumulação originária). Explica ele que, desde dos anos 1970,
o capitalismo globalizado produziu o problema da sobreacumulação e, a partir daí
seguiu na tentativa de absorver esses excedentes, evitando as já referidas
desvalorizações (ou destruições) de capital, bem como o excesso de trabalhadores
(força de trabalho), necessitando do que ele chamou de ordenação espaçotemporal37, ou seja, a expansão geográfica e a organização temporal, uma vez que
os investimentos (infra-estrutura física, redes de transporte, comunicação,
educação, pesquisa, etc.) são de retorno de longo prazo, isto porque levam muito
tempo para voltarem à circulação inicial.
De uma forma geral esta idéia de Harvey significa que o capitalismo
tenta encontrar mecanismos de absorção dos excedentes através de grandes
36
Istvnán Mészáros (2002, p. 686) afirma que, na verdade, após o domínio norte-americano na
posição hegemônica do complexo militar-industrial, o qual foi seguido pela Grã-Bretanha, França
e Itália, o desenvolvimento econômico de Japão e Alemanha no pós-guerra dependeu do
desenvolvimento da atividade industrial bélica. Ele menciona três fatores que favoreceram esta
expansão: a) pelas novas alianças militares, Japão e Alemanha puderam expandir sua indústria
bélica em quase todos os setores, exceto em relação às armas nucleares; b) Japão e Alemanha
participaram direta e indiretamente do desenvolvimento da indústria bélica norte americana através
das pesquisas científicas e desenvolvimento tecnológico, fundamentalmente pela modernização da
indústria e encomendas militares diretas (especialmente para utilização durante a Guerra da
Coréia); e c) diante da interligação entre as economia capitalistas ocidentais e os Estados Unidos e
em função da enorme dependência que foi criada pela complexo militar-industrial, várias
economias dependem do orçamento norte-americano e de sua capacidade de sustentar um grande
nível de produção de armamentos.
37
Harvey (2003, p. 98/99) utiliza a expressão “ordenação” em dois sentidos: primeiro, num
sentido material no qual “certa parcela do capital total fica literalmente ordenada/fixada em termos
de terra e na terra em alguma forma física por um período de tempo relativamente longo” e,
segundo, num sentido metafórico, ou seja, “um tipo particular de solução de crises capitalistas por
meio do adiamento do tempo e da expansão geográfica”.
106
investimentos em projetos de capital de longo prazo ou pelo deslocamento
espacial com a abertura de novos mercados. Entretanto, explica Harvey (2003, p.
99), esta ordenação espaço-temporal gera uma incontornável e constante
contradição em função de que esta produção de espaço, esta nova organização de
divisões territoriais do trabalho, a criação de recursos novos e mais baratos, de
novas regiões como espaços dinâmicos de acumulação do capital e a penetração
de formações sociais preexistentes por relações sociais e arranjos institucionais
capitalistas, apesar de proporcionarem importantes maneiras de absorção de
excedentes de capital e de trabalho, ameaçam os valores já fixados no lugar que
ainda não foram realizados. Assim é que a chamada ordenação espaço-temporal
serve exatamente para que os excedentes (de capital) de um determinado local,
que não possam ser absorvidos internamente – através de ajustes geográficos ou
gastos sociais – sejam remetidos a lugares que possam ser realizados.
Há, entretanto, uma nova série de contradições com a adoção destas
transformações espaço-temporais, como explica Harvey (2003, p. 100), pois com
o intuito de evitar a desvalorização, determinado território envia seus excedentes
(de capital e de trabalho), que não puderam ser absorvidos internamente, a outros
mercados, os quais deverão possuir meios de pagamento (como ouro, reserva de
moeda ou mercadorias negociáveis) e o problema da sobreacumulação está
solucionado apenas a curto prazo, pois o que houve foi apenas substituição de
mercadoria por dinheiro38. Cabe aqui, por longo que possa parecer, uma
diagnóstica consideração de David Harvey (2003, p. 112-113):
O quadro geral que surge, por conseguinte, é de um mundo espaço-temporal
entrelaçado de fluxos financeiros de capital excedente com conglomerados
de poder político e econômico em pontos nodais chave (Nova York,
Londres, Tóquio) que buscam seja desembolsar e absorver os excedentes de
maneiras produtivas, o mais das vezes em projetos de longo prazo numa
variedade de espaços (de Bangladesh ao Brasil ou à China), seja usar o poder
especulativo para livrar o sistema da sobreacumulação mediante a promoção
38
David Harvey (2003) explica, no Capítulo 3 “A opressão via capital” – como ocorre esta
ordenação espaço-temporal e suas contradições, ou seja, suas conseqüências destrutivas (típicas do
modo de produção capitalista), trazendo, inclusive, exemplos de ordenação espaço-temporais
ocorridas nos séculos XIX envolvendo países como a Inglaterra, a Índia e a China, ou ainda nas
transações entre a Inglaterra e a Argentina, também no século XIX, e os excedentes do comércio
japonês que, durante os anos 1990 foram absorvidos por meio de empréstimos aos Estados Unidos
para apoiar o consumismo de bens japoneses. Entretanto, para os fins de nossa pesquisa é
importante fixarmo-nos nas saídas da situação de sobreacumulação dada pelo capital, razão pela
qual utilizaremos a exposição de Harvey no Capítulo 4 da mesma obra. Ver, portanto, Harvey
(2003, pp. 98-105) e (2003, pp. 115-149).
107
de crises de desvalorização em territórios vulneráveis. São sem dúvida as
populações desses territórios vulneráveis que têm de pagar o preço inevitável
em termos de perda de ativos, perda de empregos e perda de segurança
econômica, para não mencionar perda de dignidade e de esperança. E por
meio da mesma lógica que requer que os territórios vulneráveis sejam os
primeiros a ser atingidos, assim também são tipicamente as populações mais
vulneráveis desses territórios que suportam o principal ônus que sobre eles
recair. Foram os pobres das regiões rurais do México, da Tailândia e do
Brasil que mais sofreram com as depreciações causadas pelas crises
financeiras dos anos 1980 e 1990. Conclui-se, pois, que o capitalismo
sobrevive não apenas por meio de uma série de ordenações espaço-temporais
que absorvem os excedentes de capital de maneiras produtivas e
construtivas, mas também por meio da desvalorização e da destruição
administradas como remédio corretivo daquilo que é em geral descrito como
o descontrole fiscal dos países que contraem empréstimos.
(...) Mas, como Joseph Chamberlain descobriu, é politicamente muito mais
fácil pilhar e degradar populações distantes (em particular as que são
diferentes em termos raciais, étnicos ou culturais) do que enfrentar no plano
doméstico o avassalador poder da classe capitalista. O lado sinistro e
destrutivo da ordenação espaço-temporal como remédio para o problema da
sobreacumulação torna-se um elemento tão crucial na geografia histórica do
capitalismo quanto sua contraparte criativa de construção de uma nova
paisagem para acomodar tanto a acumulação interminável do capital como a
acumulação interminável do poder político.
Para superar tudo isso Harvey lembra, primeiramente, como Marx
descreveu os processos de acumulação primitiva (ou originária) através, é claro,
do amplo apoio do Estado, em função do seu monopólio do uso da força
(violência institucional) e de suas definições da legalidade (violência estrutural) e,
depois, aponta suas conseqüências de homogeneidade (similaridade) de como está
acontecendo hoje. Afirma ele (2003, p. 121):
Todas as características da acumulação primitiva que Marx menciona
permanecem fortemente presentes na geografia histórica do capitalismo até
os nossos dias. A expulsão de populações camponesas e a formação de um
proletariado sem terra tem se acelerado em países como o México e a Índia
nas três últimas décadas; muitos recursos antes partilhados, como a água,
têm sido privatizados (com freqüência por insistência do Banco Mundial) e
inseridos na lógica capitalista da acumulação; formas alternativas
(autóctones e mesmo, no caso dos Estados Unidos, mercadorias de
fabricação caseira) de produção e consumo têm sido suprimidas. Indústrias
nacionalizadas têm sido privatizadas. O agronegócio substituiu a
agropecuária familiar. E a escravidão não desapareceu (particularmente no
comércio sexual).
Vê-se, com isso, as conseqüências desse processo de proletarização,
caracterizado pela “necessária” imposição de compatibilidade entre trabalho e
capital, ou seja, os mecanismos à reprodução do capital permanecem como antes
108
(a mais importante foi a privatização das terras e a expulsão violenta dos
camponeses, com a conseqüente formação do proletariado sem terra), muito
embora tenham sido criados alguns mecanismos de acumulação inovadores,
especialmente o domínio pelo capital financeiro ou no que François Chesnais
(2003) vai denominar de “regime de acumulação com dominância financeira”, no
qual vai predominar a acumulação significativa de capital fictício.
Os efeitos deste novo regime de acumulação39 continuam muito
semelhantes àqueles preconizados por Marx, sobretudo porque o sistema de
crédito e o capital financeiro se tornaram grandes trampolins de predação, fraude e
roubo. Para Harvey (2003, p. 122) “a forte onda de financialização, domínio do
capital financeiro, que se estabeleceu a partir de 1973 foi em tudo espetacular por
seu estilo especulativo e predatório”. Muito embora a existência das crises que
ocorreram a partir dos anos 1970, que se prolongaram nas décadas subseqüentes,
tenham sacudido muito mais a periferia mundial e poupado o centro do
capitalismo (especialmente Estados Unidos e os países ocidentais da Europa),
verifica-se uma aparente nova fase desse capitalismo a partir do desenvolvimento
e evolução tecnológica daquilo que se convencionou chamar de nova economia,
marcando também a retomada e o desenvolvimento das instituições financeiras
(Gérard Duménil e Dominique Lévy (2003, p. 15).
Os objetivos da nova economia foram alcançados através de diversas
medidas econômicas nada convencionais: “valorizações fraudulentas de ações,
falsos esquemas de enriquecimento imediato, a destruição estruturada de ativos
por meio da inflação, a dilapidação de ativos mediante fusões e aquisições e a
promoção de níveis de encargos de dívida que reduzem populações inteiras,
mesmo nos países capitalistas avançados, prisioneiros da dívida, para não dizer
nada a respeito da fraude corporativa e do desvio de fundos (a dilapidação de
recursos de fundos de pensão e sua dizimação por colapsos de ações e
corporações) decorrente de manipulações de crédito e das ações” (CF. HARVEY,
2003, p. 123).
Harvey
(2003,
p.
123)
cita
ainda
diversos
mecanismos
contemporâneos de “acumulação por espoliação” que, como no passado, se
utilizam do Estado para impor esses processos, como: o patenteamento e
39
Para David Harvey, como o processo de acumulação “primitivo” ou “originário” está em
andamento, ele prefere chamá-lo de “acumulação por espoliação”.
109
licenciamento de material genético, do plasma de sementes e de outros materiais
que foram utilizados por populações inteiras no desenvolvimento desses materiais;
a biopirataria e a pilhagem de estoques de recursos genéticos em benefício das
grandes indústrias farmacêuticas; a destruição de recursos ambientais globais e a
degradação de vários hábitats, resultando na mercadificação da natureza; a
transformação em mercadoria de formas culturais, históricas e da criatividade
intelectual; a corporativização e privatização de bens públicos como as
universidades ou as águas (como novas formas de privatização das “terras
comuns”); a flexibilização dos direitos trabalhistas, etc.
É de se pensar, portanto, como a chamada crise de sobreacumulação
se relaciona com a acumulação por espoliação. Ocorre que este tipo de
acumulação faz liberar um conjunto de ativos (incluindo força de trabalho) a custo
baixo, favorecendo aos excedentes de capital (característicos da sobreacumulação)
apossar-se desses ativos. Uma dessas formas de apossamento é a privatização40.
Foi a partir de 1979, com a chegada ao poder na Inglaterra da Primeira Ministra
Margaret Thatcher e, logo depois, com a eleição de Ronald Reagan nos Estados
Unidos, que a versão político-econômica neoliberal iniciou sua orientação estatal
no sentido de abandonar o estado de bem-estar social e ingressar, definitivamente,
na lógica do mercado e da acumulação de capital, especialmente com os dois
ícones mandamentais neoliberais: as privatizações e a liberalização do mercado.
Fazendo uma relação entre as posições neoliberais e a chamada
“acumulação por espoliação”, percebe-se que a expropriação das terras comuns se
deu, agora, através da apropriação dos ativos pelo capital sobreacumulado, ou
seja, conforme orienta Harvey (2003, pp. 130-131) os “ativos de propriedade do
Estado ou destinados ao uso partilhado da população em geral foram entregues ao
mercado para que o capital sobreacumulado pudesse investir neles, valorizá-los e
especular com eles. Novos campos de atividade lucrativa foram abertos e isso
ajudou a sanar o problema da sobreacumulação, ao menos por algum tempo.”
A partir dessas apropriações de ativos de propriedade do Estado pela
iniciativa privada, foi desencadeado um grande movimento de descobertas de
40
Harvey (2003, p. 124) cita várias formas, além das privatizações, dentre elas: o colapso da
União Soviética e a abertura da China; injetar matérias-primas baratas (como o petróleo) no
sistema a fim de que os custos dos insumos sejam reduzidos e os lucros aumentados; a
desvalorização dos ativos de capital e da força de trabalho, os quais podem ser vendidos a preço
baixo e reciclado com lucro no circuito de circulação do capital pelo capital sobreacumulado.
110
lugares próprios à acumulação via espoliação no mundo inteiro (inclusive no
Brasil), desde a liquidação de empresas públicas, passando pela reprogramação de
instituições, como as universidades, chegando à privatização de serviços
essenciais como da água, energia elétrica, telecomunicações, transporte, etc., bem
como na transformação em ativos dos próprios recursos naturais, como as
florestas, matas, as águas, as terras, que, simbolicamente, parecem utilizar-se dos
mesmos mecanismos mais predatórios das origens do capitalismo.
Partindo-se, portanto, da produção industrial militar e da necessidade
do “consumo destrutivo”, passando pelas estratégias de realização do capital
(especialmente na busca de arenas próprias à sua expansão) especificamente pela
interação dinâmica entre produção e consumo, surge uma das mais
impressionantes facetas do movimento neoliberal: a privatização do controle da
violência. Os nichos desse mercado são os mais variados possíveis: desde a
privatização dos presídios, passando pelo comércio de utensílios de controle de
pessoas (há, em vários locais e em anúncios de jornais, instrumentos como
algemas com rastreadores, chips identificadores, etc.), de ambiente (celas móveis
– “conteiners”), de monitoramento, etc. que, pelo avanço tecnológico e pela
corrida contra o denominado crime organizado, foram necessários o
aparelhamento das polícias (computadores, veículos, armamentos, treinamento de
pessoal, câmeras de vigilância, etc.), chegando à venda dos órgãos daqueles
condenados à morte.
Mesmo sendo o Estado, supostamente, o detentor do monopólio do
uso da força como capacidade punitiva, o que se vê, em realidade, é um aumento
(expansão) das formas de controle privado na gestão da violência e a necessidade
de se ter matéria-prima (e o cárcere cumpre fielmente esta função) para este
mercado do controle. De certo modo, há uma camada de excluídos que servem,
primordialmente a esta finalidade. É a nova descoberta: os presos, ou aqueles que
estão submetidos ao “olho vivo” do Estado, por meio de medidas de
acompanhamento judicial penal41, tornam-se verdadeiros ativos de propriedade do
Estado que podem ser (e estão sendo) submetidos à apropriação por espoliação,
através do capital sobreacumulado.
41
No Brasil, por exemplo, há alguns sistemas como o chamado “período de prova” no caso dos
crimes de menor potencial ofensivo, em que o indivíduo fica sujeito a uma fiscalização do Estado.
Ver artigo 89, parágrafos 10, 20 e 30 da Lei no 9.099/95, que tratam, exatamente, das condições à
suspensão do processo ante a fiscalização do Estado.
111
3.4
O mercado da violência
O que se viu, até aqui, foram as conseqüências dos processos de
globalização do capital42 em especial aquelas resultantes dos mecanismos das
políticas macro-econômicas dos Estados, as quais proporcionaram (e continuam
proporcionando), cada vez mais, a exclusão social de grandes camadas da
população, ou seja, isto foi possível em função da deflagração do fenômeno da
mercantilização dos direitos sociais e que tem reflexos diretos na estrutura da
Segurança Pública das sociedades.
Como fazer e qual relação é possível ser feita entre os efeitos das
políticas econômicas neoliberais (a sobreacumulação de capital e a criação de
novos espaços à acumulação de capital, etc.) como o desemprego em massa, a
pobreza,
as
privatizações
com
o
encarceramento
de
grandes
massas
populacionais? As conseqüências desses processos estarão alinhadas nos
próximos capítulos, entretanto é possível perceber que diante das contradições
internas do modo de produção capitalista (tendente a gerar crises com resultados
predatórios) o próprio sistema, a partir dos anos 1990, conseguiu impor um
sentimento, relativamente homogêneo, que tomou conta do mundo ocidental, no
sentido de terem triunfados os pressupostos políticos e econômicos liberais.
A busca do capital por espaços próprios à sua reprodução – diante da
crise de sobreacumulação – foi encontrado, além de outros, nas privatizações dos
ativos públicos, isto porque a acumulação por espoliação possibilitou o
surgimento de um conjunto de ativos a custo muito baixo, favorecendo, assim,
que os excedentes do capital (sobreacumulação) de um lugar pudessem se apossar
desses ativos e encontrar emprego lucrativo onde estas possibilidades ainda não
tinham se exaurido.
É exatamente desta forma – privatizações e liberalização do mercado
– que o sistema penal, sob a proteção do Estado43, ingressa na lógica do mercado e
42
No dizer de François Chesnais (1996), pela “mundialização do capital”, que usa esta
terminologia para evitar a idéia de homogeneidade dos processos de reprodução ampliada.
43
É bom lembrar aqui que apesar da propositura neoliberal em diminuir as fronteiras do Estado
moderno, “o sistema do capital não sobreviveria uma única semana sem o forte apoio do Estado
112
da acumulação do capital, num ciclo interminável de violência estrutural (pelo
capitalismo globalizado), institucional (pela violência policial e legal) e a
conseqüente violência social (pela exclusão social, pela exclusão ao mercado de
trabalho, pela impossibilidade de aderir ao mercado de consumo, etc.). Assim,
quando o Estado entrelaça suas ações com interesses privados favorece ao
surgimento da acumulação por ele subsidiada, pois:
a) de um lado, o Estado capitalista, principalmente a partir dos anos
1973, inicia uma longa caminhada às crises de sobreacumulação e a solução foi, a
partir do final da década de 1980, permitir o surgimento da privatização dos ativos
públicos e a descoberta de novos nichos (locais) de aplicação dos excedentes de
capital, submetendo os interesses públicos às perversidades da acumulação
capitalista.
b) de outro, as estruturas econômicas impostas pelo capital, induzem e
remetem grandes massas da população à proletarização, “obrigando” o Estado,
enquanto produtor de violência (tanto estrutural – pela reprodução da
desigualdade social – como institucional – pela atuação do aparato repressivo
estatal), lançar mão de seu mecanismo de controle social mais violento: o sistema
penal.
A contrapartida oferecida pelo Estado ao mercado é o oferecimento da
matéria-prima essencial à exploração da indústria da violência: o ser humano
excluído. Fomentada por duas vertentes, uma pública, outra privada, a indústria da
violência possibilita, através dos mais diversos e modernos mecanismos de
controle (como as câmeras de vídeo, privatização dos presídios, informatização do
controle prisional, aquisição de veículos – motos, carros, caminhões, helicópteros,
aviões – armamentos, suprimentos, investimento tecnológico, treinamento e
contratação de pessoal, etc.) um enorme investimento público no setor,
significando que realmente há uma grande tendência de que a taxa de utilização
das mercadorias seja decrescente sobretudo do chamado capital destrutivo,
oportunizado pelo complexo industrial-militar.
Os investimentos em Segurança Pública44, especificamente aqueles
destinados a conter a violência (neste caso a violência é aquela produzida pelas
(Cf. MÉSZÁROS, 2003, p. 29), comprovando a necessidade da chamada “ajuda externa” para a
reprodução do capital.
44
É bom ressaltar, neste instante, que o Brasil, apesar de não ter qualquer tradição em participar de
guerras internacionais, promove, na relação interna, algumas guerras como, por exemplo, contra o
113
classes sociais não desejadas e não a violência estrutural ou institucional do
Estado), gera um maior aparato instrumental do sistema penal de controle,
proporcionando a captação de um enorme contingente de pessoas submetidas ao
sistema, o qual servirá como matéria-prima à produção.
Sob o signo da iniciativa privada, o controle da violência mostra-se
extremamente sedutor e lucrativo como novo espaço à expansão do capital,
especialmente pela possibilidade do surgimento de empresas que prestam serviços
de segurança. Não se pode afirmar que exista uma relação direta entre o aumento
da exclusão social com o crescimento da população carcerária, entretanto, é
perfeitamente possível relacionar as dinâmicas das relações de produção
influenciando a produção normativa de combate a violência, ou seja,
ultrapassando a lógica do internamento e do disciplinamento para a lógica de um
controle e proletarização das classes excluídas, o sistema penal dá mostras de que
o controle da violência torna-se, a passos largos, um grande negócio, desde o
ponto de vista da acumulação por espoliação (pela utilização do capital excedente
através do consumo destrutivo), como também do ponto de vista da violência
estatal em produzir matéria-prima ao sistema.
Por fim, o sistema de controle da violência atinge um outro objetivo,
qual seja, a criminalização das condutas, possibilitando o controle e a exclusão
dos excedentes, dos consumidores falhos, daqueles que não fazem diferença à
produção econômica, isto porque, a partir do momento que estes estão excluídos
do sistema econômico (social) estarão possivelmente incluídos no sistema de
controle de violência global e poderão se tornar humanos úteis sob o ponto de
vista do capital: podem gerar lucros e expandir o capital.
tráfico ilícito de entorpecentes, contra os movimentos sociais (especialmente os MST), contra a
violência urbana, especialmente aquela produzida por ações típicas da chamada criminalidade
juvenil (crimes patrimoniais contra residências, automóveis, “arrastões nas praias do Rio de
Janeiro”, etc., ou seja, as guerras contra os chamados inimigos comuns internos) e utiliza-se destes
fatos e movimentos para, com isso, terem o discurso próprio para equipar a polícia e as estruturas
de poder responsáveis ao combate ao crime (normalmente dito “crime organizado), gerando um
enorme contingente de pessoas presas. É a partir desse mercado (o da violência) que o Estado
distribui recursos públicos e cria novas condições (locais) à apropriação dos ativos públicos pelo
capital privado, especialmente à aplicação dos excedentes de capital, tais como: treinamento de
pessoal, compra de equipamentos (viaturas, armamentos, etc.), privatizando presídios (hoje a
privatização do sistema prisional ocorre de diversas formas, das quais pode-se destacar duas: uma
com a privatização de toda a estrutura carcerária e outra possibilitando que empresas privadas
exerçam funções públicas dentro dos presídios – vigias, revistadores, administrativos, etc.).
4
CONSTITUIÇÃO DA SOCIEDADE DE CONTROLE
4.1 O mundo do trabalho: do “grande internamento” à normalização do proletariado no
regime de acumulação flexível. 4.1.1 O proletariado no período fordista e sua relação com o
cárcere. 4.1.2 O proletariado no regime de acumulação flexível e sua relação com sistema
punitivo. 4.2 A economia política da pena: a relação entre sistema prisional, fábrica e
controle social. 4.3 A sociedade contemporânea como sociedade de controle. 4.3.1. A
legitimação da dominação pelo controle. 4.3.2. As tecnologias de poder e as formas de
controle. 4.4 A cultura do medo como legitimadora do controle social: a divulgação da
violência e a banalização dos direitos e garantias fundamentais. 4.4.1 O discurso do medo e
as práticas de segurança. 4.5 O controle total da vida dos corpos (ou dos corpos vivos)
Observou-se no primeiro e segundo capítulos, principalmente, os
mecanismos pelos quais a sociedade contemporânea se utiliza da coerção estatal
para empreender seus objetivos estruturais de produção e acumulação de capital
demonstrando, em conseqüência, como se dá a banalização do cidadão (direitos),
do indivíduo (social) e do sujeito (desejo). Importante, também, foi analisar a
formação do pensamento político-econômico contemporâneo em relação ao
desenvolvimento da democracia e da globalização, especialmente a partir da
lógica da preservação dos direitos individuais e seu funcionamento sob a lógica
capitalista globalizada.
Neste capítulo, entretanto, pretende-se estudar o contexto da sociedade
analisado sob o ponto de vista das estratégias e tecnologias de poder da
contemporaneidade, identificadas por Gilles Deleuze como sociedades de controle
diante de um mundo flexibilizado. É preciso, portanto, entender a transição do
regime de poder soberano (definido por Foucault) para a sociedade disciplinar e,
agora, designada sociedade de controle.
Historicamente, as grandes mudanças sociais ocorridas nos séculos
XVIII e XIX, mudam as estratégias de poder, passando de sua função destrutiva e
de eliminação física do desvio (e do desviante) para uma função de recuperação e
disciplinamento dos “excedentes”, quando se inicia, então, a era das grandes
internações através das prisões e manicômios.
No momento atual, encontramo-nos num estágio intermediário,
novamente, num estágio de transição, ou seja, no momento de ultrapassar a lógica
das tecnologias disciplinares, nas quais podiam transformar sujeitos indóceis em
115
sujeitos úteis, forjando a mão-de-obra necessária à acumulação e reprodução do
capital, estabelecendo uma nova lógica: a inscrição da vida numa sociedade de
controle, isto porque, a partir das idéias, principalmente, de Hannah Arendt,
Michel Foucault e Giorgio Agamben, o que está em jogo é a nova relação de
biopolítica entre os indivíduos e o Estado, pois o que se pretendia nas sociedades
disciplinares, através do total encarceramento, era a tentativa e necessidade de
“induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que
assegura o funcionamento automático do poder” (Cf. Foucault, 1996, p. 177),
entretanto, na contemporaneidade, o novo controle é aberto, exercido da mesma
forma permanente e, no mais das vezes, através de mecanismos extremamente
sofisticados e de alta tecnologia (câmeras de vigilância, rastreadores de pessoas,
etc.), mas delimitando a configuração entre incluídos e excluídos os quais serão
tematizados a partir de sua vinculação ou não ao consumo.
Esta é a análise que será feita agora. Partindo dos pressupostos
apresentados nos capítulos anteriores (especialmente o segundo), quando foi
estabelecida a íntima relação entre a estrutura política econômica e os vínculos
muito próximos entre as situações produzidas pela globalização do capital e pelo
cárcere, tais como a polarização social (ricos e pobres, criminosos e não
criminosos), a intolerância social, a estigmatização de classes e pessoas
encarceradas, a exclusão social produzida pela impossibilidade do consumo,
seletividade criminal, etc., e passando pela economia política da pena (onde será
visto como a estrutura social, ao impor penas, estabelece situações análogas
àquelas vistas na política econômica), pretende-se chegar, enfim, nas
conseqüências da adoção de políticas de segurança pública de cariz autoritário
cuja determinação foi herdada de um sistema de reprodução de valores impostos
por segmentos da sociedade burguesa que exerce influência na determinação das
políticas penais, sugerindo, sem dúvida, a necessidade da construção de mais
presídios destinados àqueles destituídos das características de consumidor e
indumentarizados com o estigma do marginal, aumentando, pois, as taxas de
encarceramento.
A discussão estará transitando, necessariamente, entre os mecanismos
estruturais (políticas públicas que buscam melhores condições de trabalho,
alimentação, saúde, habitação, educação, etc.) e institucionais (polícia e
parlamento) do Estado, objetivando-se, com isso, compreender como as novas
116
diretrizes do mercado1 podem compor um cenário de controle, exclusão e barbárie
social. Será preciso, portanto, discutir as políticas públicas (sociais e econômicas)
vinculadas ao Estado, especialmente as políticas de segurança, as quais estão
diretamente vinculadas aos pressupostos de violência institucional (pela atuação
repressiva do Estado e do parlamento) e estrutural (impondo a produção e
reprodução da desigualdade social) desse mesmo Estado.
Analisando a articulação dos antagonismos existentes entre as atuais
políticas de segurança pública e as políticas públicas de segurança (Direitos
Humanos), é possível vislumbrar, a partir de uma abordagem interdisciplinar
(através da sociologia e da filosofia política), que os reflexos proporcionados
pelas políticas neoliberais (capitalismo globalizado ou de mercado) na efetivação
das políticas sociais tencionam a mais um modelo que, apresentado como solução
aos graves problemas da contemporaneidade, perpassa, obrigatoriamente, pela
exclusão e hierarquização da sociedade.
As referidas políticas públicas, que deveriam ter como destinatários
todas as classes sociais, inclusive as menos favorecidas, possuindo, portanto, um
caráter universalizante e de perfil progressista, protagoniza, ao revés, uma
constante exclusão social a partir de dois mecanismos de controle: através do
sistema penal (eficientismo penal), como um controle fechado, exercido pelas
diversas instâncias de poder (Estado, família, igreja, polícias, etc.) e através do
controle social do mercado consumidor, como um controle aberto, exercido por
outras instâncias de controle, outros poderes, outros mecanismos, contribuindo à
lógica maniqueísta entre bons e maus.
Neste ponto é fundamental perceber que o fortalecimento dos direitos
do homem, que nasceu de uma concepção histórica, a partir de lutas que
buscavam novas liberdades, marca os limites desse antagonismo. Através da
utilização do referencial dos Direitos Humanos, procurar-se-á entender como o
direito à segurança é, nos moldes das primeiras reivindicações dos setecentos, em
1
Para Paulo Sandroni (2005, pp. 528 e 529), concretamente, o mercado “é formado pelo conjunto
de instituições em que são realizadas transações comerciais. Ele se expressa, entretanto, sobretudo
na maneira como se organizam as trocas realizadas em determinados universos por indivíduos,
empresas e governo”. Dentro deste aspecto econômico, especialmente nas atuais sociedades
capitalistas, diz-se haver três tipos de mercados: ‘mercado de trabalho’, ‘mercado de capitais’ e
mercado de bens de consumo’ (Cf. Reich, 1985, p. 276-277). No contexto da pesquisa, a expressão
‘mercado’ (utilizada isoladamente) será mencionada em sentido mais restrito, ou seja, delimitado
como órgão de decisão política e centro de produção normativa. Muito embora isto deva ficar
117
especial pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 (como
também o foram o Bill of Rights das colônias norte-americanas, de 1776, e do Bill
of Rights inglês, de 1689), um direito fundamental justaposto a outros direitos
como a liberdade, a propriedade e a resistência à opressão.
O que se busca é, portanto, através de uma intensa conceitualização,
delimitar e demonstrar diferenças entre as necessárias políticas públicas de
segurança (alimentar, moradia, educacional, institucional, estrutural, etc.), as quais
estão diretamente relacionadas a diversos direitos – individuais e coletivos – e
objetivam a inclusão social, e as políticas de segurança pública, relacionadas à
proteção do indivíduo pelo Estado por meio de ações repressivas – preventivas e
punitivas – através dos “instrumentos destinados ao combate da violência criminal
e à manutenção da ordem pública, centrando a sua ação, principalmente, no
aparato policial” (DORNELLES, 2003, p. 6, nota de rodapé no 7).
O Estado, tão necessário às consecuções e interesses do capitalismo,
principalmente para manter a ordem e garantir o pressuposto da constante
acumulação, assume esta posição com todo o aparato repressivo, utilizando-se do
monopólio do uso da força para manter as desigualdades, o controle social do
desvio, as relações de subordinação às camadas mais vulneráveis da sociedade e,
agora, como será visto, utilizando-se da laboriosa mão-de-obra humana (matériaprima) permite cumprir outros grandes objetivos fundamentais à economia
política: o surgimento do mercado prisional, ou seja, desde o ponto de vista do
inconsciente (através da análise da economia política da pena) à acumulação do
capital, através da destinação do capital sobreacumulado às privatizações, tanto do
sistema carcerário como também proporcionando a privatização da segurança
pública, o Estado contribui para o surgimento e à manutenção de um mercado
prisional o qual está sendo configurado a partir da mesma lógica da acumulação.
Portanto, neste espaço, o objetivo é estabelecer uma relação (atoconseqüência) entre a maximização da divulgação do crescimento da violência –
atos terroristas internacionais, guerras internacionais, violência urbana, tráfico de
drogas, lavagem de dinheiro, etc. – e a criação do sentimento social de
necessidade de combatê-la através de políticas de segurança pública
conservadoras, em especial através da inscrição da vida numa sociedade de
claro no contexto, importante fazer referência à metáfora “mercado” que se notabilizou como
signo de referência à legitimidade de utilização de mecanismos de controle social.
118
controle, a fim de compreender as implicações das economias de mercado na
conjuntura contemporânea, absolutamente polarizada e marcada pela exclusão
social, isto porque as conseqüências da adoção de políticas públicas neoliberais,
especificamente em relação à segurança pública, aos moldes dos modelos
denominados como “políticas de tolerância zero”, “movimentos de lei e ordem”,
etc., tem como resultado a “alienação social”2 causada pela criação de inimigos
comuns (especialmente o tráfico ilícito de drogas, armas e o terrorismo) e
divulgação da multiplicação de atos violentos, possibilitando a inserção de novos
mecanismos de exploração (econômica) e de controle.
4.1.
O mundo do trabalho: do “grande internamento” à normalização do
proletariado no regime de acumulação flexível
Na perspectiva (e obra) de Foucault é possível mostrar como foi o
processo, principalmente no contexto Europeu, de como as diferentes formas de
discursos e saberes (medicina, psiquiatria, etc.) contribuíram e foram capazes de,
na constituição do sujeito (pelo discurso, pelas práticas divisoras e pelos processos
de subjetivação), perceber como foram sendo constituídos e transformados os
locais em mecanismos específicos ao disciplinamento dos corpos e suas
conseqüências.
Em “História da Loucura” (2004, pp. 45-78), Foucault percebeu como
foram acontecendo as transformações das instituições e, ao mesmo tempo, a
relação dessa transformação com as alterações nos mecanismos de punição,
especialmente a partir do final do século XVIII e início do século XIX, quando os
suplícios, praticamente, são eliminados e o espetáculo punitivo dá lugar à parte
mais velada do processo penal.
A partir da metade do século XVII, na Europa, foi criada uma grande
quantidade de casas de internamento como resultado das importantes
2
O termo é empregado aqui para representar “a alienação social, na qual os humanos não se
reconhecem como produtores das instituições sociopolíticas e oscilam entre duas atitudes: ou
aceitam passivamente tudo o que existe, por ser tido como natural, divino ou racional, ou se
rebelam individualmente, julgando que, por sua própria vontade e inteligência, podem mais do que
a realidade que os condiciona. Nos dois casos, a sociedade é o outro (alienus), algo externo a nós,
separado de nós e com poder total ou nenhum poder sobre nós”. In: Chauí, Marilena. Convite à
filosofia. 7a ed., São Paulo: Ática, 1996, p.172.
119
transformações ocorridas, especialmente pela substituição do poder soberano pelo
poder disciplinar, ou seja, a sociedade monárquica se transformando em sociedade
disciplinar, na qual é possível perceber, que é através do poder/saber que Foucault
identifica em diversas instituições disciplinares (fábricas, escolas, prisões,
manicômios, etc.) a nova forma de controle da sociedade.
São os Hospitais Gerais na França (a partir de 1656), as casas de
correção nos países de língua alemã, as Zuchhäusern (por volta de 1620), na
Inglaterra são também chamadas de “casas de correção” (por volta de 1575) e
mais tarde as workhouses, na Holanda as Zuchtaus e Spinhaus, como também
aparecem as casas de correção na Itália, na Espanha, etc., enfim, em vários locais
da Europa o internamento se espalha e, aos poucos, o propósito inicial de
segregação (internamento) dos doentes (loucos e leprosos, em sua maioria) como
lugar natural à sua existência, vai se transformando: não mais em um
estabelecimento médico mas uma estrutura de poder construída e constituída para
colocar e impor a ordem e ‘em seu devido lugar’ à crescente pobreza.
A criação do Hospital Geral de Paris (criado pelo Édito real de 27 de
abril de 1656) retrata bem essa realidade. A ‘reforma’ ocorrida serviu para agrupar
– sob única administração – diversos estabelecimentos já existentes com a
finalidade expressa3 de correção e punição de todos os pobres de Paris. A
proibição da mendicância era para todos, independente do sexo, lugares, idades,
de toda qualidade de nascimento, válidos e inválidos, doentes ou convalescentes,
curáveis ou incuráveis4. O que se vê, portanto, é uma atitude de troca, pois o
Estado traz para si a responsabilidade de cuidar dos miseráveis (basicamente
alimentá-los) em troca do internado aceitar a coação moral e física.
Foucault descreve, ainda, a participação e influência da Igreja na
maneira de encarar a miséria na consolidação da pobreza como predestinação
individual e como castigo, mas é importante perceber como o Estado substituiu a
Igreja nessa tarefa caritativa, pois “colocando sob seus cuidados toda essa
população de pobres e incapazes, o Estado ou a cidade preparam uma forma nova
de sensibilidade à miséria: iria nascer uma experiência do patético, que não falaria
3
Diz o artigo XIII do Édito de 1656, decreto de fundação do Hospital Geral de Paris: Têm todos
os poderes de autoridade, direção, administração, comércio, polícia, jurisdição, correção e punição
sobre todos os pobres de Paris, tanto no interior quanto no exterior do Hospital Geral” (Cf.
FOUCAULT, 2004, p. 49).
120
mais da glorificação da dor, nem de uma salvação comum à Pobreza e à Caridade,
mas que faz com que o homem se ocupe de seus deveres para com a sociedade e
mostra no miserável, ao mesmo tempo, um efeito da desordem e um obstáculo à
ordem” (2004, p. 58). É o primeiro passo à constituição da miséria como causa da
desordem.
Em sua minuciosa pesquisa, Foucault (2004, pp. 60-61) revela, nas
análises de correspondências de São Vicente de Paula (de 1657), que a igreja
católica aprovava o grande internamento dos pobres, como forma de deixá-los em
um mesmo lugar a fim de dar-lhes manutenção, instrução e ocupação, quando
então os miseráveis são vistos não mais como pretexto enviado por Deus à
exaltação e demonstração da caridade do bom cristão, mas uma verdadeira divisão
de mundos: haverá, desde então, o mundo dos bons pobres – daqueles submissos à
ordem que lhe foi imposta – e o mundo dos maus pobres – aqueles que não se
submetem à necessária ordem. Àqueles, do primeiro mundo, o internamento é o
descanso, aos do segundo, o internamento é o que merece, ou seja, o internamento
se justifica, tanto no sentido do benefício como no da punição.
Foucault (1996, p. 207), de forma bastante clara mostra que a prisão
veio, no tempo, com finalidade não judicial, pois se constituiu fora do aparelho
judiciário, ou seja, passou a existir no momento em que foram elaborados os
processos para repartir os indivíduos (e o grande internamento cumpriu
exatamente esta função), fixá-los e distribuí-los espacialmente, classificá-los,
tirar-lhes o máximo de tempo e forças, treinar seus corpos, codificar seu
comportamento contínuo, mantê-los numa visibilidade sem lacuna, formar em
torno deles um aparelho completo de observação, registro e notações, constituir
sobre eles um saber que se acumula e se centraliza. A forma geral de uma
aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis e úteis, através de um trabalho
preciso sobre seu corpo, criou a instituição-prisão, antes que a lei a definisse como
a pena por excelência.
Isto aparece de maneira muito explícita em diversos Estados europeus
e, mais precisamente, a utilização desta estratégia de disciplinamento e controle
das grandes massas (pobres, miseráveis, prostitutas, vagabundos) encontra
fundamento e utilidade, justamente, na atuação do controle dos corpos
4
Conforme aponta Foucault (2004, p. 65), transcrevendo o parágrafo 9 do citado Édito real de
1656.
121
‘condenados’, por estes representarem, no modo de produção que se anuncia, o
maior potencial produtivo, ou seja, é nesta passagem de súdito (baseado nos laços
de servidão) a cidadão (baseado nas relações de direito) que caracteriza o
indivíduo moderno, que se inicia a proletarização através dos processos de
organização e divisão do trabalho.
Desaparece, portanto, a caracterização do poder do soberano, dando
lugar ao poder da disciplina e seus efeitos: diante da impossibilidade da
apropriação dos bens e riquezas dos súditos pelos mecanismos até então
realizados, do nascente modo de produção econômico e da legitimação da
apropriação dos meios de produção5, esse poder disciplinar consegue realizar
diversos objetivos, dentre eles a criação de uma classe de trabalhadores (que
venderão sua força de trabalho) que serão sujeitados à total exploração e
dominação. Nasce, daí, a necessidade de transformar os grandes internamentos em
punições (nasce, deste pensamento, a necessária crítica materialista às concepções
das instituições prisionais).
O nascimento da prisão remonta, então, exatamente neste momento
histórico, ou seja, a instituição carcerária aparece no momento em que a punição,
que partia do poder do soberano e atuava diretamente nos suplícios impostos aos
corpos dos condenados, passa a atuar na medida da produtividade,
proporcionando uma nova leitura e efeitos da sentença penal. É, neste sentido, e
ante as limitações propostas pela correntes interacionistas6 à criminologia
tradicional, que foi muito importante a entrada do marxismo – especificamente
pela abordagem dialética do seu objeto – no estudo da criminologia crítica, isto
5
Faz-se necessidade, aqui, uma preciosa lembrança da análise da acumulação originária realizada
por Marx em “O Capital”, especialmente pela forma com que os camponeses foram expulsos de
suas terras (por imposição legal, muitas vezes), dirigindo-se às cidades, transformando-os em
indesejáveis “miseráveis e vagabundos”, potencializando a criminalização da miséria. Tornam-se,
fundamentalmente, uma força de trabalho excedente, uma força produtiva que deveria ser
disciplinadas: as fábricas e as prisões cumpriram, exemplarmente esta função.
6
Do ponto de vista da epistemologia, é de se salientar que a matriz da criminologia crítica é
designada na literatura alternativa e sinonimamente por enfoque, perspectiva ou teoria do
interacionismo simbólico, labelling approach, etiquetamento, rotulação ou ainda por paradigma da
“reação social”, do controle, ou da definição. Assim, é importante saber que o labelling explica a
conduta humana a partir do interacionismo simbólico e da etnometodologia, duas correntes
fenomenológicas da sociologia americana, as quais orientam no sentido de que a sociedade não é
uma realidade que pode ser conhecida como algo em si, mas a partir de uma construção social.
Aniyar de Castro (1983, p. 6) identifica que para o construtivismo social as observações estão
baseadas em construções mentais, ou seja, a realidade só existe na medida em que é interpretada e
em conseqüência apreendida. Outro aspecto importante é que o processo cognoscitivo é construído
a partir da subjetividade do observador, sendo, portanto, uma realidade variável. O construtivismo
122
porque foi possível, assim, investigar historicamente as relações de punição no
modo de produção capitalista com as transformações ocorridas nos mecanismos e
formas de repressão e controle social baseados na disciplina da fábrica. É esta
configuração que será feita a seguir.
4.1.1.
O proletariado no período fordista e sua relação com o cárcere
Antes mesmo de proceder a análise da relação existente entre o
“grande internamento” e disciplinamento dos corpos com a formação do
proletariado no período fordista, é preciso, em primeiro lugar, estabelecer uma
premissa metodológica e, em segundo lugar, a partir dessa premissa, estabelecer a
terminologia que corresponderá a análise posterior, especificamente termos como
“fordismo” e “regime de acumulação flexível”, este também chamado, como
aponta De Giorgi (2002), “pós-fordismo”7.
A premissa metodológica cinge-se à necessidade de identificar dois
grandes períodos de transformações econômicas ocorridas, que serão marcantes
na configuração de seus respectivos modelos socio-políticos no período que vai,
aproximadamente, da metade do século XVIII até a metade do século XX e
caracterizado tanto pelos conflitos sociais (os grandes conflitos sociais ocorridos
que resultaram nas lutas e conquistas historicamente determinadas) como também
marcados pelas alterações nos modos de produção que, de forma bastante clara,
afetaram os mecanismos de controle social. É preciso identificar, também, o
período compreendido entre 1945 e 1973, caracterizado pela grande expansão do
modelo capitalista de produção com marcante utilização das políticas keynesianas.
Como base e sinais das grandes transformações ocorridas, podem ser vistos, não
só no conjunto de práticas de controle e relações de trabalho, mas também nos
hábitos de consumo, nas configurações políticas internacionais (geográfica e
geopolítica), enfim, em diversas práticas que marcam a sociedade (tanto do ponto
de vista social como político) da metade do século XX em diante (especialmente
no pós-segunda grande guerra).
opõe-se ao positivismo, ao ver o mundo como uma realidade em si, cognoscível
independentemente da pessoa que o observa, ou seja, uma realidade estática.
7
A expressão “regime de acumulação flexível” será examinada, por questões didáticas, no
próximo item (3.2.2).
123
A segunda premissa pretende limitar a significação terminológica da
expressão “fordismo” no contexto da presente pesquisa. Assim, a expressão
“fordismo” origina-se das concepções administrativas inovadoras implantadas
pelo empresário norte-americano Henry Ford no início do século XX (1914) em
sua fábrica de automóveis em Michigan (Estados Unidos da América). Pode-se
dizer, resumidamente, que o fordismo corresponde ao conjunto de técnicas de
racionalização administrativa da produção, as quais visavam uma maior
lucratividade8. O que passou a atuar a partir das formulações de Henry Ford9 foi o
“reconhecimento explícito, de que produção de massa significava consumo de
massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova política de
controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia, em
suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, modernista e
populista” (Cf. HARVEY, 2004, p. 121), ou seja, o fordismo proporcionou uma
nova consciência coletiva no modo de produzir, pensar e agir.
Aliás, este foi um dos grandes desafios e uma grande dificuldade
enfrentados pelo modo de produção capitalista, qual seja, a capacidade de explorar
e fazer com que o explorado não se sinta, de modo algum, nesta condição, isto
porque o controle sobre o trabalho deve ser exercido de tal forma que se imprima
tanto a coerção como a associação ao disciplinamento da força de trabalho à
acumulação e isto deve ser realizado não só no ambiente de trabalho, mas também
adotado pela própria sociedade como o modo correto de atuação nos campos
estético, ético, político e econômico.
Assim, foi necessário um conjunto de profundas alterações
(individuais, coletivas, institucionais, etc.) que suscitaram a materialização do
modo de produção capitalista em todos os movimentos diários das pessoas (tanto
das capacidades físicas como mentais), garantindo o pleno desenvolvimento dos
pressupostos da acumulação. Neste sentido, o lapso temporal compreendido entre
o segundo pós-guerra até os anos 1973, é entendido, e denominado, de período
8
Dentre as técnicas de racionalização implantadas por Henry Ford estava o conhecimento
verticalizado da produção, a redução dos custos com a produção em massa, aumento da tecnologia
da produção com a finalidade de extrair de cada trabalhador o máximo de sua produtividade,
trabalho especializado (cada trabalhador realizaria apenas uma atividade), a jornada de 8 horas
diárias, boa remuneração e, fundamentalmente, horário livre para o laser e consumo.
9
Henry Ford desenvolveu, em seu livro My life and work, três princípios básicos da administração
científica: da intensificação (agilidade na produção com o intuito de venda no mercado); da
economicidade (redução dos estoques de matéria-prima em transformação e vendas rápidas, com a
124
fordista-keynesiano, porque não só ficou marcado por um período socialmente
regido pelas inovações administrativas implementadas por Henry Ford, mas
também pela adoção das políticas econômicas keynesianas as quais, unidas,
permitiram que o capitalismo tivesse o grande período de expansão, especialmente
pela ascensão das indústrias com alto poder tecnológico (desenvolvidas no
período compreendido entre as duas grandes guerras mundiais) e o Estado tendo
que assumir novos papéis.
Para David Harvey (2004, p. 129) “na medida em que a produção de
massa, que envolvia pesados investimentos em capital fixo, requeria condições de
demanda relativamente estáveis para ser lucrativa, o Estado se esforçava por
controlar ciclos econômicos com uma combinação apropriada de políticas fiscais
e monetárias no período pós-guerra” dirigidas aos investimentos públicos com a
finalidade do crescimento da produção e do consumo de massa, garantindo,
relativamente, o pleno emprego.
Sem dúvida, ultrapassando a historiografia apresentada por Karl Marx
sobre a acumulação primitiva, está no centro da análise da constituição do
proletariado fordista exatamente este conjunto de transformações que teve na
prisão o ideal de controle social, isto porque ela se manteve como o local
apropriado, não só à produção de uma subjetividade, diretamente vinculada à
disciplina, mas também a determinar que os indivíduos “insurgentes” tivessem
destino pouco digno, ou seja, àqueles não dispostos a ver a exploração
(despojamento total de seus meios de produção e obrigados a vender sua força de
trabalho) como algo natural, nada mais justo do que sua naturalização coercitiva
empregada pelo cárcere, a qual deveria resultar na normalização capitalista do
indivíduo: a necessidade de internalizar a relação existente entre os detentores dos
meios de produção e o nascente proletariado.
Assim, deveria estar normalizado que o novo modo de produção
conseguira extinguir as relações servis de produção, mas, em troca, haveria a
necessidade deste novo sujeito estar subordinado pelas novas relações sociais de
produção, a um contrato de trabalho que lhe permita um correspondente
(equivalente) pagamento (salário), ou seja, são processos de subjetivações que
permitem e admitem a normalidade da troca de equivalência, como situações
finalidade de pagamento de matéria-prima e salários); e da produtividade (aumento da
produtividade individual do trabalhador através da especificidade laboral e da linha de montagem).
125
análogas do crime, com o tempo de permanência na prisão: a pena é – no sistema
de controle punitivo capitalista – a representação da mais-valia10.
É importante, pois, estar presente em nosso pensamento, que todas as
transformações históricas das penas e dos sistemas punitivos surgidos a partir do
iluminismo – especialmente a idéia de humanização das penas – representaram
(por isso a importância desse estudo sob o enfoque da criminologia de viés
marxista, como crítica materialista das instituições penais) novas estratégias para
“melhor punir” e com o objetivo principal de disciplinar os corpos como adequada
estratégia repressiva da classe dominante àqueles que, primeiro, estiverem
excluídos no sistema e, segundo, àqueles que não concordarem com o sistema.
Significa dizer, como condição evidente, que numa economia capitalista o ideal de
recuperação do indivíduo no sistema prisional fica reservado, apenas, ao discurso
oficial, uma vez que este (sistema) somente será utilizado – com toda força e vigor
– quando a classe social menos favorecida (os excluídos por excelência) não se
adequar ao modelo de exploração imposto pelo modo de produção. Como afirma
De Giorgi (2002, p. 48):
Do ponto de vista da economia política da pena, a contribuição das
instituições e das tecnologias da pena foi, nesse sentido, fundamental: a
penitenciária nasce e se consolida como instituição subalterna à fábrica, e
como mecanismo pronto a atender as exigências do nascente sistema de
produção industrial. A estrutura da penitenciária, tanto sob o perfil
organizativo quanto sob o ideológico, não pode ser compreendida se,
paralelamente, não for observada a estrutura dos locais de produção; é o
conceito de disciplina do trabalho que deve ser proposto aqui como termo
que faz a mediação entre cárcere e fábrica. Todas as instituições de reclusão
que tomam forma no final do século XVIII co-dividem uma idêntica lógica
disciplinar que as torna complementares à fábrica.11
Ademais, além da consolidação da prisão como mecanismo adequado
ao surgimento e efetivação subjetiva análogo à produção fabril, em função da
relação servil e desigual existente em ambas instituições, De Giorgi (2002, p. 50)
10
No item 3.3. deste capítulo será tratado o tema da economia política da pena.
Il punto di vista dell’economia politica della pena è che l’apporto delle istituzioni e delle
tecnologie della pena sai stato in questo senso fondamentale: il penitenziario nasce e si consolida
come instituzione ancillare alla fabrica, como meccanismo posto a presidio delle esigenze del
nascente sistema di produzione industriale. La struttura del penitenziario, tanto sotto il profilo
organizzativo che ideologico, non può essere compresa se non si osserva parallelamente la
struttura dei luoghi di produzione, ed è il concetto di disciplina del lavoro a proporsi Qui como
termine medio fra carcere e fabbrica. Tutte le instituzioni di reclusione che prendono forma alla
11
126
refere-se também aos efeitos do cárcere como dispositivo de controle
desenvolvido na reprodução da força de trabalho assalariada, isto porque, segundo
ele, é preciso considerar as dimensões instrumental e simbólica da instituição
carcerária. A dimensão instrumental permite relacionar cárcere e função
econômica, encontrando na produção de uma força de trabalho disciplinada e
disponível à valorização capitalista sua principal função. A dimensão simbólica
permite entender o aparente “sucesso histórico” da prisão, especialmente como
modelo ideal da sociedade capitalista industrial que se consolida através do
processo de “desconstrução” e “reconstrução” contínua dos indivíduos: “o pobre
se torna criminoso, o criminoso se torna prisioneiro e, enfim, o prisioneiro se
transforma em proletário”.
É preciso que todos se sintam muito mais que dominados, pois diante
de uma instituição tecnologicamente repressiva que impõe ao indivíduo a total
privação dos desejos, os indivíduos devem manter-se não só obedientes e
disciplinados mas também sujeitados, evitando-se a criação de desejos, deixandoos aprisionados aos desejos permitidos, criando-se um imaginário próprio
conforme determinadas circunstâncias já estabelecidas, ou seja, para a existência
da dominação total é necessário não mais (ou não só) a violência física, mas que a
produção dos desejos esteja controlada e direcionada aos objetivos estruturais das
sociedades. Para De Giorgi (2002, p. 51) “a prisão cria o status de detento e, ao
mesmo tempo, impõe ao indivíduo trabalho, obediência e disciplina (elementos
constitutivos desse status) como condições que devem ser satisfeitas, a fim de que
possa, no futuro, livrar-se delas”12.
Sustenta, ainda, De Giorgi (2002, p. 52) existir uma contradição
estrutural na sociedade capitalista, ou seja, a contradição entre uma igualdade
formal e uma desigualdade fundamental que repousa tanto no universo econômico
– que se verifica tanto na lógica da circulação (igualdade) quanto na produção
(desigualdade) – como também no universo do cárcere – que se verifica no
conflito entre princípio da retribuição e as práticas disciplinares. Para ele, “a
ideologia retributiva-legalista oculta a realidade de disciplina e violência que se
fine del XVIII secolo condividono una identica logica disciplinare che le rende complementari alla
fabbrica.
12
La prigione crea lo status di carcerato e allo stesso tempo impone all’individuo lavoro,
obbedienza e disciplina (elementi in realtà costitutivi di questo status) como condizioni da
soddisfare affinché questi possa infuturo sottarvisi.
127
produz no interior da instituição penitenciária, assim como a ideologia contratualigualitária esconde a realidade de exploração e subordinação que se produz na
fábrica. O objetivo, coerentemente, é de reproduzir um proletariado que considere
“o salário como justa retribuição do próprio trabalho e a pena como justa
medida dos seus próprios crimes”13.
Entretanto, De Giorgi percebe que os conceitos e análises
efetivamente utilizados no final da década de 1930, prodigalizados especialmente
pela obra de George Rusche e Otto Kirchheimer14 são revisitados, isto porque a
partir do final dos anos 60 (mais precisamente em 1969 com a reedição de “Pena e
estrutura social”), houve uma retomada das análises do cárcere à luz das
categorias da economia política (o que De Giorgi vai denominar de “economia
política da pena”). Ele aponta que a obra de Rusche e Kirchheimer foi concebida,
historicamente, analisando o processo de transição ocorrido no período situado
entre o feudalismo e o capitalismo, o que poderia significar insuficiência
conceitual, prejudicando a análise pretendida das estratégias repressivas
contemporâneas. Portanto, as interrogações lançadas por De Giorgi são no sentido
de encontrar matrizes que sejam suficientes a descrever a relação entre a situação
econômica atual e as estratégias repressivas contemporâneas.
O que se viu, de fato, foram duas situações importantes: a primeira é
que na tentativa de reconstrução do modo de produção capitalista (e que está em
curso até hoje) o resultado foi, especialmente, o crescente índice do desemprego15
e, a segunda é que, contrariando as tendências, das décadas de 1930 a 1960, de
redução das taxas de encarceramento, principalmente nos Estados Unidos, a partir
13
L’ideologia retributiva-legalistica cculta cioè la realtà di disciplina e sopraffazione che si
produce dentro l’istituzione penitenziaria, così di sfruttamento e subordinazione che si produce
nella fabbrica. L’obiettivo, coerentemente, è di riprodurre un proletariato che consideri il salario
come giusta retribuzione del proprio lavoro e la pena come giusta misura dei propri crimini.
14
A obra, aqui referida, é “Punishment and Social Structure” (Edição brasileira: Pena e estrutura
social. Tradução e apresentação de Gislene Neder. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999), editada
pela primeira vez em 1939. Os autores, originários da Escola de Frankfurt, fizeram uma
abordagem materialista do sistema penal, analisando, sobretudo, as origens do sistema carcerário e
a relação entre desemprego e encarceramento. A obra foi reeditada em 1968 nos Estados Unidos,
justamente no período em que surge também os primeiros estudos sobre a criminologia crítica,
especialmente com a introdução do marxismo na sociologia criminal e de diversas teorias da
sociologia como a do etiquetamento, e construtivistas (interacionismo simbólico e o
construtivismo), ocorrida entre o final da década de 1960 e o início dos anos 1970. “Pena e
estrutura social”, juntamente com “Vigiar e Punir”, de Michel Foucault (1977) e “Cárcere e
Fábrica: As origens do sistema penitenciário” de Dario Melossi e Massimo Pavarini (1977), sem
dúvida contribuíram à formação do pensamento crítico, de viés marxista, à análise da relação
existente entre sistema produtivo e cárcere.
128
do início da década de 1970, houve um significativo aumento dos índices de
encarceramento, o que será interpretado de forma bastante interessante por alguns
teóricos como Ivan Jankovic, T. Sellin e L. T. Stern16, dentre outros.
Jankovic (citado por De Giorgi), por exemplo, um dos primeiros
teóricos a relacionar o modelo apresentado por George Rusche e Otto
Kirchheimer da década de 1930 à condição norte-americana da década de 1970,
parte de duas hipóteses: a primeira diz respeito a “severidade” das penas17, ou
seja, o agravamento da situação econômica (desemprego) corresponderia a um
aumento nos índices de encarceramento; a segunda hipótese é no sentido da
“utilidade” da pena, ou seja, a função da pena seria uma espécie de regulação do
excedente de mão-de-obra e o objetivo implícito seria o de consolidar o “exército
industrial de reserva” a fim de que o aumento do encarceramento servisse à
redução do desemprego. Ambas as hipóteses objetivavam estabelecer o
relacionamento com o princípio de less eligibility, ou seja, legitimar os efeitos
dissuasórios da punição, isto porque ainda que fossem péssimas as condições
oferecidas ao trabalhador, estas seriam melhores do que aquelas impostas no
cárcere ao indivíduo, o qual daria maior preferência a determinada situação fora
do cárcere.
A análise da situação norte-americana possibilitou a Jankovic (sua
obra é de 1977) concluir, entretanto, que se por um lado encarceramento e
desemprego seguem a mesma direção (ainda que não influenciada pelas taxas de
criminalidade), a hipótese de “utilidade” da pena em relação ao mercado de
trabalho é desmentida. De Giorgi aponta, também, que outras pesquisas realizadas
15
Os efeitos e características contemporâneos do capitalismo, chamado “regime de acumulação
flexível” serão analisados, mais detidamente, no próximo item.
16
Todas estas contribuições estão descritas na obra de De Giorgi (2002, pp. 54-60), inclusive em
notas de rodapé.
17
A hipótese da “severidade da pena” está consubstanciada no princípio less eligibility, proposto
na obra “Pena e estrutura social”, de George Rusche e Otto Kirchheimer, os quais analisam o
surgimento da instituição “prisão” através de uma vasta pesquisa bibliográfica “percorrendo vários
países europeus, de fins da Idade Média até o século XIX”. A análise que fizeram das prisões ficou
situada na transição do modo de produção feudal ao capitalismo, vinculando as condições de vida
do mercado de trabalho e a vida no interior do cárcere, ou seja, relacionando ambas situações
(mercado de trabalho e cárcere) no interior do princípio de less eligibility, segundo o qual o
indivíduo será constrangido ao trabalho em função “de que o nível de existência garantido dentro
do cárcere e aquelas oferecidas pelas instituições assistenciais deve ser mais baixo do que o das
categorias mais baixas dos trabalhadores livres, salvaguardando os efeitos dissuasivos da pena”
(destaques retirados da nota introdutória à edição brasileira, da Prof. Dra. Gizlene Neder, da
referida obra, pp. 14 e 15).
129
foram sistematicamente confirmando a hipótese de “severidade” das penas, porém
a da “utilidade” não.
De Giorgi (2002, p. 56) sugere, entretanto, o significado disso, no
sentido de que o “Estado social e medidas repressivas concorrem, nessa fase, para
a gestão do excesso de força de trabalho, dividindo, em certa medida, as
tarefas”18, ou seja, na “administração” dessa grande massa de trabalhadores
desempregados foi preciso estar presente, de um lado, o chamado Estado
Providência (welfare state) para alguns – especialmente àqueles naturalmente
submetidos à exclusão social (pela exclusão do trabalho) e que não ofereciam
perigo à ordem – e de outro, o sistema repressivo, representado pela chamado
Estado Penitência – especialmente àqueles “perturbadores e perigosos à ordem”,
causadores de distúrbios, que não estavam dispostos a atender a moral oficial de
ser um trabalhador. Na verdade o que se pretendia era uma indução de práticas à
determinada conduta, na tentativa de consolidar, através de processos de
subjetivação, a sujeição do indivíduo aos objetivos estruturais do modo de
produção vigente: a disciplina ao trabalho.
Assim é que o Estado social dá lugar a uma total desregulamentação
da economia (o que será abordado no item seguinte, sob o título de economia
flexível) e, em contra partida, alcança um alto índice de quantidade de leis
criminalizantes possibilitando, em certa medida, o controle social através desses
dispositivos legais, e o sistema penal surge então como seu principal instrumento.
Os dispositivos aqui referidos surgem de forma difusa no seio da sociedade e
aparecem com um discurso elaborado nos moldes a sustentar e fundamentar as
políticas econômicas neoliberais de contenção das massas problemáticas,
especialmente as minorias étnicas, os negros, os pobres, os imigrantes, os
desempregados, enfim, todos aqueles que, de uma forma ou de outra, se
encontram nos estratos mais baixos da sociedade.
Entretanto, da mesma forma como apresenta De Giorgi, é possível
avançar no argumento, a fim de entender que diante das perspectivas e das
transformações ocorridas a partir dos anos 1973 em diante, especificamente do
modo como se constituíram as novas relações sociais, suas formas de organização
e produção, o encarceramento (prisão) não consegue mais responder (ou, pelo
18
Questo significa che stato sociale e misure repressive in questa fase concorrono alla gestione
della forza lavoro in eccesso, dividendosi in certa misura i compiti.
130
menos, nem tanto) pelas novas estratégias contemporâneas de controle social, isto
porque, diante do processo de transição fordista, ao modo de produção flexível,
delineado pelo que se convencionou denominar de “pós-fordismo”, o controle e
disciplinamento das massas foram deslocados, e a prisão, gradativamente,
perdendo sua função original (disciplinamento dos corpos) passando a ter novas e
estratégicas funções.
Ainda que seja pouco provável conseguir relacionar diretamente
índices de desemprego com encarceramento, há sim, uma íntima relação entre os
processos de mudança da economia em seu conjunto e seus efeitos, às estratégias
de controle das massas, isto porque durante os chamados ciclos recessivos da
economia o discurso político de uma nova moralidade contra o desvio (e o
desviante) constitui o tema preponderante e fértil às campanhas de discussões
públicas do fenômeno criminal como a necessidade de discursos de
ressocialização e integração do indivíduo criminoso, de políticas públicas
tematizadas à revitalização da lei e da ordem, de práticas de ausência de tolerância
ao desvio, enfim, um conjunto de ações necessárias a estabelecer as condições
mínimas à manutenção e imposição das excludentes relações sociais.
O desafio, agora, é entender as novas relações e formas de produção
econômicas contemporâneas a fim de poder, à luz da economia política da pena,
analisar suas conseqüências e mecanismos de controle das camadas excluídas do
processo produtivo (os excluídos).
4.1.2.
O proletariado no regime de acumulação flexível e sua relação com
sistema punitivo
É preciso, preliminarmente, por razões didáticas limitar a significação
terminológica da expressão “regime de acumulação flexível” no contexto da
presente pesquisa. Assim, e diante dos fatos até aqui apresentados, faz-se
necessário, portanto, uma análise das profundas transformações ocorridas tanto no
mundo do trabalho como suas conseqüências na estrutura produtiva (significou
um esgotamento do modelo fordista de produção), para depois relacionar as
dimensões e significados destas manifestações, na tentativa de responder a alguns
131
interrogantes importantes, especialmente aqueles relacionados com a exclusão
social, o controle dos excluídos e o novos mecanismos de acumulação.
Antes mesmo de prosseguir no tema, é preciso ponderar que conceitos
como fordismo e pós-fordismo, desenvolvidos em linhas originais por teóricos da
Escola Regulacionista Européia, como Michel Aglieta, Alan Lipietz e Benko,
devem ser observados de forma reservada na literatura econômica e social, isto
porque não é pacífica, por exemplo, esta transição do fordismo ao pós-fordismo
no debate social. Somente para se ter idéia, a expressão “fordismo” utilizada
inicialmente para designar este processo mais racionalizado de capitalismo
corporativo, principalmente no ocidente, depois da primeira guerra mundial, mais
precisamente no final da década de 1970, é novamente utilizada pela referida
escola da regulação.
Harvey (2004, p. 117) utiliza-se dos argumentos básicos dos
representantes europeus da Escola da Regulação para estabelecer e representar
esse período de transi ção, isto porque para ele “um regime de acumulação
descreve a estabilização, por um longo período, da alocação do produto líquido
entre consumo e acumulação; ele implica alguma correspondência entre a
transformação tanto das condições de produção como das condições de
reprodução de assalariados”. Este debate conduzido por esta escola de
pensamento, portanto, merece maior atenção uma vez que segundo seus teóricos,
cada período histórico estabelece a transição de um regime de acumulação e de
um modo de regulamentação social e político a ele associado.
Harvey (2004, p. 117) aponta ainda que um sistema de acumulação
pode existir a partir do momento em que seu “esquema seja coerente”, entretanto
o problema, afirma ele, é fazer com que os comportamentos dos indivíduos
assumam esta postura e permitam que o sistema, como um todo, continue a
funcionar em razão da idéia de sintonia necessária entre o regime de acumulação e
o modo de regulação de um sistema econômico, ou seja, enquanto há
correspondência, o sistema econômico apresenta estabilidade, caso contrário, o
mesmo entra em crise. O sentido desta crise e, por sua vez, as supostas soluções
que o sistema oferece, é objeto de diversas divergências teóricas. É preciso,
portanto, conforme os teóricos da “Escola da Regulamentação”, uma
materialização do regime de acumulação através de normas, instituições, hábitos,
redes de regulamentação que permitam, ao comportamento individual, condições
132
favoráveis à acumulação e reprodução do capital. Este conjunto de regras e
processos sociais interiorizados é denominado “modo de regulamentação”.
As contradições internas do capitalismo nunca permitiram longos
períodos de estabilidade e crescimento, ao contrário, demonstrou, principalmente
em duas grandes áreas, dificuldades para seu sucesso e viabilidade, como aponta
Harvey (2004, p. 117-118): a primeira advém da fixação de preços e, a segunda,
deriva da necessidade de exercer controle sobre o emprego da força de trabalho
para garantir a agregação de valor na produção e, conseqüentemente, lucros
positivos para o maior número de capitalistas.
Sobre o primeiro problema (fixação de preços) é necessária uma
pequena digressão para melhor entender o pensamento da “Escola da
Regulamentação”. Segundo Harvey (2004, p. 118), os mercados de fixação de
preços fornecem inúmeros sinais de que são os produtores que coordenam as
decisões de produção com as necessidades, vontades e desejos dos consumidores,
entretanto, em vários momentos é necessário algum grau de ação coletiva através
da regulamentação e intervenção do Estado, para compensar, por exemplo, falhas
de mercado, evitar excessivas concentrações de poder de mercado ou combater o
abuso do privilégio do monopólio, quando este não pode ser evitado, fornecer
bens coletivos (defesa, educação, infra-estrutura sociais e físicas), etc. Na prática,
as pressões direta (como a imposição de controles de preços e salários) e indireta
(como a propaganda subliminar que persuade os indivíduos a incorporar novas
necessidades e desejos de consumo) exercidas pelo Estado ou por instituições
religiosas, políticas, sociais, etc., aliadas ao exercício do poder de domínio do
mercado pelas grandes corporações, afetam a dinâmica do capitalismo, moldando
sua trajetória e forma de desenvolvimento.
Para Harvey (2004, p. 118) é importante visualizar este pensamento da
“Escola da Regulamentação” pelo fato de que ela leva em “conta o conjunto das
relações e arranjos que contribuem para a estabilização do crescimento do produto
e da distribuição agregada de renda e de consumo num período histórico e num
lugar particulares”. É a partir dessa visão regulacionista que se torna possível
identificar, no aumento dos custos de produção e salários e no declínio da
produtividade, os fatores que proporcionaram o chamado fim do fordismo e o
surgimento do pós-fordismo, regime caracterizado pela flexibilização de que
falaremos mais adiante.
133
Neste sentido é possível, portanto, caracterizar o período entre 1945 e
1973, demarcado por um conjunto de práticas de controle do trabalho,
tecnologias, hábitos de consumo e configurações de poder político-econômico, de
fordismo-keynesiano. Harvey (2004, p. 119) pondera, entretanto, que não está
claro “se os novos sistemas de produção e de marketing, caracterizados por
processos de trabalho e mercados mais flexíveis, de mobilidade geográfica e de
rápidas mudanças práticas de consumo” podem ser caracterizados como um novo
regime de acumulação, mas é certo que há significativos contrastes entre as
práticas atuais e aquelas realizadas no período de expansão do pós-guerra o que
justifica a hipótese de uma passagem do fordismo a um regime de acumulação
flexível.
Assim, do ponto de vista histórico, o esgotamento do modelo fordistakeynesiano já dava mostras de problemas em meados dos anos 60 e em 1973
consolida sua insuficiência para conter as contradições do capitalismo. Pode-se
afirmar que um dos vértices dos problemas enfrentados pelo capitalismo foi a
organização sindical da classe trabalhadora, isto porque, como afirma David
Harvey (2004, p. 135), a rigidez dos investimentos de capital fixo em larga escala
e a longo prazo, em sistemas de produção em massa, impediam a flexibilidade de
planejamento e presumiam crescimento estável em mercados de consumo
invariantes, havendo, portanto, problemas com a rigidez nos mercados, na
alocação e nos contratos de trabalho em função, exatamente, das organizações
trabalhistas de classe.
David Harvey (2004, p. 137-141) aponta ainda, dentre outras razões
da instabilidade econômica desse período, que as corporações possuíam grandes
excedentes inutilizáveis, principalmente fábricas e equipamentos, obrigando-as a
entrar em um período de racionalização, reestruturação e intensificação do
controle do trabalho, a fim de que pudessem ultrapassar o período de crise. Como
conseqüência da destruição do compromisso fordista, as décadas de 70 e 80
representaram um período de reestruturação econômica e reajustamento social e
político, o que sugeriu o aparecimento de um novo regime de acumulação (que
convencionou-se chamar, por alguns autores, de acumulação flexível). Este novo
regime de acumulação associado a novas regulamentações políticas e sociais,
implicou, aparentemente, no aumento das taxas de inflação e desemprego
134
estrutural19 (em oposição à “friccional”), tanto na Europa como nos Estados
Unidos, e uma rápida destruição e reconstrução de habilidades, ganhos modestos
de salários reais e o retrocesso do poder sindical (um dos maiores óbices ao
regime de acumulação capitalista do regime fordista).
O que caracteriza a acumulação flexível, para David Harvey (2004, p.
140) é a:
(...) flexiblidade dos processo de trabalho, dos mercados de trabalho, dos
produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores
de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de
serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente
intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A
acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do
desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões
geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no
chamado “setor de serviços”, bem como conjuntos industriais
completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas20.
A constituição do novo proletariado está intimamente associada à
radical reestruturação do regime de trabalho, isto porque além da volatilidade do
mercado, do aumento da competição, do avanço tecnológico (robótica,
microeletrônica, etc.), da diminuição dos lucros e os trabalhadores perdendo seu
poder de força em função da enorme desmobilização político-sindical e pelo
excedente de mão-de-obra, há uma profunda alteração no padrão de
comportamento dos empregos, passando de empregos regulares e estáveis às
subcontratações temporárias e em tempo parcial.
A década de 1980 marca, portanto, nos países de capitalismo
avançado, uma radical alteração no mundo do trabalho, na qual, especialmente, a
produção em série (marca fordista) é substituída pela flexibilização da produção e
19
De um modo geral, “desemprego” refere-se a uma situação na qual uma pessoa se encontra
ociosa involuntariamente. Para Marx esta massa de trabalhadores (população execedente relativa)
estaria sempre desempregada em função das inovações tecnológicas, ocorrendo, também, ante a
disputa pelo emprego e em função do próprio processo de acumulação, uma tendência à baixa dos
salários, o que permite pensar que a idéia keynesiana do pleno emprego não seria viável à
acumulação capitalista em função de que este (pleno emprego) elevaria os salários provocando a
alta nas taxas de inflação. O desemprego é classificado de várias maneiras conforme sua causa:
dentre outras classificações há o desemprego friccional ou normal, que ocorre em detrimento da
transição entre oferta e procura (ou o desempregado não sabe da existência de vagas no mercado
ou os empregadores não sabem da existência de desempregados). Há também o desemprego
estrutural, originado pelo avanço tecnológico ou ainda pelas alterações da demanda de
determinada profissão (obsolescência da indústria ou da profissão).
20
David Harvey se refere a chamada “Terceira Itália”, Flandres, o chamado “Vale do silício”, e
países recém industrializados.
135
por novos padrões de busca de produtividade nas formas de inserção na estrutura
produtiva, política e sindical, permitindo, com isto, o surgimento de
conseqüências do ponto de vista material das relações trabalhistas – tais como os
direitos trabalhistas strictu sensu, o nível dos salários, segurança no emprego,
seguridade social (previdência – aposentadoria e seguro por acidentes, por
exemplo), seguro-desemprego, etc. – como também do ponto de vista da produção
de subjetividades – tais como, a procura por mais de um emprego, métodos
simbólicos de participação ativa nas empresas, sem entretanto representar divisão
de lucros (qualidade total, eliminação do desperdício, gerência participativa, etc.)
e, especialmente, adequação às necessidades da produção de subjetividades de
consumo (indução de necessidades e transformação cultural) – pois de certa
forma, como aponta Ricardo Antunes (2005, p. 24) vivem-se formas transitórias
de produção, com significativas repercussões no direito do trabalho uma vez que
há uma desregulamentação e flexibilização de modo a dotar e permitir ao capital
adequar-se a sua nova fase.
É preciso, pois, fazer uma pequena revisão teórica (histórica) para
entender a produção das novas subjetividades alcançadas pela indução de práticas
dos indivíduos e criação de necessidades, isto porque as formas contemporâneas
de poder utilizam-se de novas tecnologias a fim de produzir desejos coincidentes
com o modelo estrutural de produção, ou seja, à produção no modo capitalista são
utilizadas necessidades indispensáveis à sua manutenção, as quais são atingidas
pela flexibilização das subjetividades.
Para compreender, portanto, as condições atuais impostas pela
produção capitalista e suas diversas mutabilidades é preciso, então, apontar os
elementos materiais que resultaram da transição de uma ordem econômica e social
orientada à produção para uma economia da informação, bem como de uma força
de trabalho global e flexível, enfim, entender “como”, “porque” e as
“conseqüências” entre estas dinâmicas e as formas de controle, isto porque não só
há uma redução brutal da quantidade de postos de trabalho (resultando em um
aumento do desemprego estrutural e não mais conjuntural), mas também porque
as características da força de trabalho estão alteradas em função das
flexibilizações impostas pelo capital nessa nova fase.
136
É importante, pois, destacar e identificar uma relação que chama
atenção: nesse interessante período de transição, entre imperialismo21 e império22,
que tem como característica marcante a ausência de fronteiras, (tanto aquelas
típicas do período das soberanias dos Estados-Nação, das fronteiras territoriais,
como também pela ausência de limites do poder), passa-se a ter, como
pressuposto à produção, uma nova conjuntura econômica e social (econômica e
das subjetividades), conforme Hardt e Negri (2004, pp. 266-268), intensos
processos de descolonização, que gradualmente recompôs o mercado mundial em
linhas hierárquicas a partir dos Estados Unidos, de descentralização gradual dos
locais e dos fluxos de produção e, também, a construção de uma estrutura de
relações internacionais que espalhou pelo globo o regime produtivo disciplinar e a
sociedade disciplinar em suas sucessivas evoluções.
Estes três processos (descolonização, descentralização da produção e
disciplinamento) permitiram identificar o rompimento de práticas imperialistas
tradicionais (fundamentalmente de dominação) e o surgimento de um novo
modelo de política econômica e social, cujo principal objetivo era, sob o manto do
desenvolvimento e modernização, criar novas modalidades de dominação. Para
Hardt e Negri (2004, p. 272-274) foi o mercado mundial, como estrutura de
hierarquia e comando, que apareceu como um importante aparelho a regular redes
globais de circulação, entretanto, ainda que esta unificação tendencial do mercado
mundial não tenha ocorrido de forma compatível ou tranqüila ante os conflitos e
lutas de libertação (descolonização) e circulação capitalista, este processo
21
Conforme aponta Castor Ruiz (2004, p. 97) “o imperialismo é um modo de dominação entre
Estados ou de um Estado sobre um território específico; ele se impõe pela guerra e se sustenta pela
força. O imperialismo é o modelo político vigente durante o século XIX e até metade do XX, e que
em parte continua vigente em atuações “imperialistas” como as guerras de invasão dos EUA
contra o Iraque, Afeganistão e outros países. Mas o modelo imperialista remete ao conceito
hobbesiano de submissão pela guerra; ele é instável, gera muitas resistências, tem pouca
legitimação social e só se sustenta enquanto houver uma força superior que submeta o medo dos
oprimidos”.
22
Michael Hardt e Antonio Negri (2004, p. 14-15) apontam, basicamente, quatro características do
conceito de Império: primeiro ele é marcado pela ausência de fronteiras, pois o poder é exercido
sem fronteiras, postulando um regime que abranja a totalidade do espaço; segundo, apresenta-se
não como um regime histórico nascido da conquista, mas como uma ordem que suspende a
história e determina o estado de coisas existente, ou seja, o Império se apresenta, em seu modo de
governo, não como um momento transitório, mas como um regime sem fronteiras temporais e,
neste sentido, fora da História ou no fim da História; terceiro, o poder de mando do Império
funciona em todos os registros da ordem social, não só administrando o território com sua
população mas também criando esse mesmo mundo regendo diretamente a vida humana; quarto, o
conceito é sempre dedicado à paz, ainda que a prática assim não demonstre.
137
resultou, em diversas partes do globo, de maneira desigual e em diferentes
velocidades, surgindo diversos efeitos:
a) “a ampla difusão do modelo disciplinar da organização de trabalho
e da sociedade para fora das regiões dominantes produziu no resto do mundo um
estranho efeito de proximidade, simultaneamente tornando-o mais próximo e
isolando-o num gueto” (2004, p. 273);
b) enormes populações passaram pela emancipação salarial, ou seja,
“a entrada de grandes massas de trabalhadores no regime disciplinar da moderna
produção
capitalista”,
as
quais
após
“libertadas”
da
semi-escravidão,
determinando, entretanto, novas necessidades, novos desejos e demandas,
sujeitando os novos trabalhadores à disciplina da nova organização do trabalho,
criando, contudo, novas formas de “aprisionamento” (2004, p. 273);
c) o novo regime disciplinar, ao criar a tendência ao mercado de
trabalho global, constrói, também, a possibilidade do “desejo de escapar desse
regime e, tendencialmente, uma multidão indisciplinada de operários que querem
ser livres” (2004, p. 273-274);
d) cresce a mobilidade transversal da força de trabalho disciplinada,
indicando a “busca real da liberdade” e a “formação de desejos novos e nômades,
que não podem ser contidos e controlados dentro do regime disciplinar”, gerando,
na maioria das vezes, uma diminuição do custo da força de trabalho, fazendo
crescer a competição entre os trabalhadores (2004, p. 274);
e) há efeitos macroeconômicos dessa mobilidade, como a dificuldade
em “administrar mercados nacionais, individualmente”, como ocorre na fuga de
trabalhadores do terceiro mundo em direção ao primeiro mundo, estabelecendo-se
este terceiro mundo, no primeiro, como guetos, comunidades de favelas, barracos,
etc. De forma inversa, há uma penetração do primeiro mundo no terceiro, através
de bolsas de valores, bancos, corporações transnacionais, etc. (2004, p. 274);
f) As geografias econômica e política são desestabilizadas
proporcionando fronteiras fluidas e móveis, fazendo com que o mercado mundial,
principal e mais claramente a partir da década de 1980, passe a ser um órgão de
decisão política e um centro de produção normativa (2004, p. 275).
É preciso, aqui, novamente fazer uma pequena digressão a fim de
entender este momento de transição. Primeiro é bom lembrar que a passagem de
138
uma produção artesanal23 para uma produção manufatureira é marcada pela
valorização do capital, isto porque a mercadoria produzida no modo artesanal não
é produzida para o uso do artesão, mas sim com características sociais, pois está
servindo como mercadoria de troca que possui seu valor de uso, caracterizando,
de certa forma, uma espécie de divisão do trabalho (cada artesão produzindo e
trocando suas mercadorias, com o desenvolvimento do comércio e das cidades,
especialmente a partir do século XII). A partir do século XVIII (especificamente
em 1776 – com o advento da Revolução Industrial), entra em cena a manufatura e
o artesão torna-se apenas um operário que realiza uma etapa no processo
produtivo, ou seja, a manufatura representa um processo de trabalho que
decompõe o trabalho artesanal e é, segundo Marx, neste momento que há a
subordinação formal do trabalho ao capital, isto porque o capital ainda depende
das habilidades que estavam presas ao homem artesanal, pois o capital ainda não
havia encontrado seu modo de produção mais adequado à valorização das
riquezas, dependendo, ainda, do artesanato.
A subordinação real do trabalho ao capital ocorre, no entanto, com a
introdução da maquinaria e do avanço tecnológico no processo de produção que,
até então, ainda estava limitado às condições físico-biológicas do trabalhador
(habilidades individuais de cada trabalhador), ou seja, houve uma revolução no
modo de produzir pela emancipação da produção da riqueza da natureza físicobiológica dos homens, fazendo com que as referidas habilidades, destreza e força
fossem transferidas a um objeto externo, proporcionando (ou possibilitando) um
aumento da produção com o aumento da intensidade (quantidade, velocidade) do
trabalho produzido em função de que é o objeto externo, que define o ritmo da
produção (não depende mais do trabalhador individual, mas sim do objeto
externo) estendendo a massa trabalhadora explorada e, conseqüentemente, o
aumento da jornada de trabalho (mais-valia absoluta).
Ocorre, em verdade, que no modo de produção capitalista,
característico daquele período do nascimento da instituição carcerária, bem como
no momento posterior caracterizado e denominado de fordismo, utilizava-se de
23
Artesanato é atividade realizada pelo artesão – homem livre (do senhor feudal), independente
(pois não está vinculado aos outros artesãos) e autônomo (proprietário privado de seu próprio
trabalho) – ou de pequenas sociedades de pessoas livres, tendo como característica principal a
propriedade dos meios de produção, não havendo (ou havendo de forma muito precária) divisão do
trabalho, isto porque o artesão executa todas (ou quase todas) as fases da produção.
139
toda mão-de-obra disponível (homens, mulheres, crianças) aos fins propostos pelo
modo de produção (aumento da jornada de trabalho – mais-valia absoluta – ou
diminuindo o tempo que a sociedade gasta para manter viva a capacidade de
trabalho – mais-valia relativa), entretanto era a própria sociedade que estava
disciplinada a este modo de produção, ou seja, a prisão ocupou um espaço
“privilegiado”: o disciplinamento dos excedentes necessários, ou seja, uma mãode-obra abundante que precisava ser adestrada. Portanto, é o que se poderia
chamar de uma sociedade capitalista cujo critério de produção determinante24 é
organizado pelo tempo excedente, proporcionando uma maior fragmentação do
indivíduo, isto é, a transformação do trabalho em capital produtivo excedente.
Cumpre entender, então, que se o modo de produção capitalista tem,
em seu processo produtivo (D-M {força de trabalho e modo de produção} -P-M´D´) a saída de mercadoria (já diferenciada e, por isso vivemos num mundo de
aparência de produção de mercadoria) tem também a produção de relações
capitalistas burguesas (isto porque há uma expansão da classe assalariada, mas
também um alargamento da classe burguesa) e com isso é possível perceber uma
constante reconfiguração das fronteiras dentro e fora do capital e, por fim, sai
também a negação das próprias relações burguesas, ou seja, o mais importante
aqui é notar a impossibilidade de viver dentro das relações produtivas capitalistas,
tanto como assalariado, quanto capitalista, isto porque há um aumento da
composição orgânica do capital (relação Máquina X Homem) impedindo ao
indivíduo de viver como assalariado25, uma vez que a mecanização produz o
desemprego, impossibilitando ao indivíduo viver dentro das relações capitalistas
provocando uma formação degenerativa da própria sociedade, ou seja, com a
subordinação real do trabalho ao capital, a própria sociedade produz mais negação
(exclusão) do que afirmação (inclusão) produzindo cada vez mais a exclusão
social.
24
Apesar das análises de Michael Foucault com a “disciplina” estarem relacionadas com a
arquitetura institucional e a localização do seu poder (para ele não há uma fonte central mas
formações capilares em seu ponto de exercício e as subjetividades são produzidas internalizando-a
e realizando-a em suas práticas), elas tem íntimo vínculo com as preocupação de Michael Hardt e
Antonio Negri (2004, p. 476), isto porque para eles é importante saber como as práticas e relações
de disciplinaridade que se originam no regime fabril chegaram a cobrir todo o terreno social como
mecanismo de produção e de governo, ou seja, como regime de produção social.
25
Analisando os clássicos da economia política, Adam Smith dizia que a pessoa somente poderia
viver a partir do salário, lucro ou renda da terra. David Ricardo dizia que o indivíduo somente
poderia viver a partir do salário ou do lucro e Marx confirma essa hipótese, aditando, entretanto,
que estas condições vão causando a impossibilidade de viver.
140
É exatamente neste processo (contraditório) de expansão que o capital
buscará ultrapassar novas fronteiras, constituindo a tendência de que fala Marx do
mercado mundial. Para Hardt e Negri (2004, p. 276) “a realização do mercado
mundial e da equiparação real, ou pelo menos da administração de margens de
lucro em escala mundial, não pode, simplesmente, resultar de fatores financeiros
ou monetários, mas precisa ser conseguida pela transformação das relações sociais
e de produção. A disciplina é o mecanismo central dessa transformação”, ou seja,
para se diminuir o tempo que a sociedade gasta para manter viva a capacidade de
trabalho de um indivíduo trabalhador assalariado (mais-valia relativa) é necessário
um intenso processo de subjetivação que é encontrado, fortemente, na disciplina
dos modelos fordista e taylorista de produção.
Ademais, no processo de desenvolvimento do capital, da expansão e
busca de mercados globais (mundiais), o que se encontra são resultados da
fragmentação de diversas etapas do processo do trabalho (etapas do processo de
produção) separadas geograficamente. São processos de trabalho fundamentais
para produzir riquezas que articulam diversas atividades geograficamente
distintas, conforme as características locais e que determinam um mesmo produto,
ou seja, a localidade passa a ser uma singularidade de uma universalidade imposta
pelo capital (na China e em países do terceiro mundo, por exemplo, busca-se a
alta exploração do trabalho, enquanto na Alemanha e outros países de capitalismo
avançado, a alta tecnologia) gerando nessas localidades uma necessidade de um
tipo de trabalho e de controle diferenciados. Quais são, portanto, as conseqüências
da adoção dos novos processos de produção do trabalho e dos novos mecanismos
de controle?
Ricardo Antunes aponta sete importantes conseqüências dessas
transformações nos processos de produção e de trabalho:
- primeiro, “há uma crescente redução do proletariado fabril, que se
desenvolveu na vigência do binômio taylorismo/fordismo e que permanece
diminuindo com a reestruturação, flexibilização e desconcentração do espaço
físico produtivo” (2005, p. 169)
- segundo, “há um incremento do subproletariado fabril e de serviços”
(trabalho precarizado, como os terceirizados, subcontratados, part-time) em
diversas partes do mundo. Inicialmente estes trabalhadores eram imigrantes, mas
141
hoje atinge também aqueles especializados e remanescentes da era tayloristafordista (2005, p. 169);
-
terceiro,
aumento
do
trabalho
feminino,
absorvido,
preferencialmente, pelo trabalho precarizado e desregulamentado (2005, p. 169);
- quarto, “incremento dos assalariados médios e de serviços” e, em
conseqüência, “um aumento no sindicalismo desses setores” (2005, p. 169);
- quinto, exclusão de jovens e daqueles com idade a partir de 40 anos:
os jovens aderindo aos movimentos neonazistas e os “velhos”, uma vez excluídos
do trabalho, dificilmente conseguem requalificar-se e reingressar-se (2005, p.
169/170);
- sexto, “inclusão precoce e criminosa de crianças no mercado de
trabalho” (2005, p. 170);
- sétimo, expansão, do que Marx denominou de trabalho social
combinado, no qual “os trabalhadores de diversas partes do mundo participam do
processo de produção e de serviços”, contribuindo à intensa utilização do trabalho
precarizado (2005, p. 170).
Por outro lado, os novos métodos de controle e a prisão por
excelência26 – que teve sua função plenamente delimitada, principalmente pelas
historiografias de autores como Michael Foucault (Vigiar e Punir), Dario Melossi
e Massimo Pavarini (Cárcere e Fábrica), George Rusche e Otto Kirchheimer
(Pena e estrutura social), fundamentalmente pela imposição do disciplinamento
como critério de subjetivação à produção e reprodução do capital, tornando-se
funcionalmente aptos no momento em que havia corpos a serem ‘docilizados’ –
perdem, de certa forma, sua missão originária na contemporaneidade flexível a
partir do momento da subordinação real do trabalho ao capital.
A dimensão política dos sistemas de controle podem ser
caracterizadas em dois momentos distintos:
a) aquele do disciplinamento (adestramento) dos corpos na fábrica, no
momento de reprodução ampliada (do incipiente modo de produção capitalista),
26
É bom lembrar que a prisão (não só, mas principalmente), como tecnologia de repressão e
dispositivo ideológico, à semelhança da fábrica – esta como mecanismo mais adequado à
realização do capital, tanto em razão de sua capacidade de subordinar realmente o trabalho ao
capital, como também porque pressupõe intensos processos de subjetivação e imposição de desejos
– foi capaz de exercer e se apresentar historicamente como principal instrumento à finalidade de
controle social.
142
que eram necessários ao trabalho, produzindo, portanto, o proletariado (uma
classe de assalariados) e;
b) este, da contemporaneidade, pois recordando a linha de pesquisa
utilizada por George Rusche e Otto Kirchheimer em 1929, em que demonstraram
a relação entre cárcere e fábrica e propuseram a tese (do ponto de vista
criminológico crítico) de que cada sistema de produção descobre o sistema de
punição que corresponde às suas relações produtivas (1999, p. 18), é preciso
analisar os processos de transformação da produção, especialmente com o
aparecimento do novo proletariado e os processos de subjetivação para entender
seus relacionamentos com o funcionamento seletivo do sistema punitivo e sua
afetação nas estratégias de controle social, presentes ao período da acumulação
flexível, bem como os mecanismos pelos quais se busca o controle total da vida
dos corpos.
Os sistemas repressivos, a partir das estratégias de controle da vida
dos corpos, passam a determinar, através da constituição do medo e da indução de
práticas, a necessidade de um sistema penal cada vez mais efetivo (leia-se
autoritário), de mecanismos produtivos específicos, como as privatizações dos
presídios, a venda de equipamentos policiais (armamentos – armas, munições,
treinamento, coletes – veículos, etc.), informatização, tecnologia de busca e
identificação de pessoas (banco de DNA, por exemplo)27, blindagem de carros,
câmeras de segurança, e os lucros a partir da venda de instrumentos de segurança
(empresas de segurança privada, equipamentos de vigilância e controle tais como
pulseiras, chips de controle, rastreadores, etc.), configurando-se um dos
fenômenos mais impressionantes à expansão do capital.
É exatamente este o sentido em que o cárcere permanece vivo, pois
ainda que as características da força de trabalho tenham mudado tão radicalmente
(não havendo mais a grande necessidade do adestramento dos corpos), as
condições econômico-sociais sofreram profundas metamorfoses, chegando-se ao
ponto da imposição de um controle mais intenso e efetivo da vida, alterando
27
A identificação via DNA das pessoas também pode ser objeto de outra análise bem interessante,
como aquelas que apontam como um dos mais notáveis mecanismos de controle social,
especialmente aqueles dotados de interesses financeiros como, por exemplo, a identificação de
pessoas com deficiências genéticas que possam representar prejuízos aos empregadores (as
empresas negam um posto de trabalho àqueles que possuem defeitos genéticos) ou de empresas de
seguro (as quais negam seguro àqueles que possuem doenças geneticamente identificáveis), etc.,
143
também a função das estratégias de controle, isto porque agora o capital além de
utilizar os instrumentos proporcionados pela nova soberania28 (em função das
alterações do modo de produção capitalista), se relaciona perfeitamente à nova
realidade do mercado de trabalho, utilizando-se dos dispositivos e tecnologias de
controle para, não mais (ou, não somente) disciplinar corpos, mas, principalmente
em função da produção de uma enorme massa de excluídos, revitalizar-se em
razão das condições de exploração da mão-de-obra, da precariedade e insegurança
impostas à força de trabalho na nova economia flexível, possibilitando assim, o
direcionamento de políticas penais cada vez mais de caráter excepcional,
estabelecendo íntima relação entre sistema penal e o modo de produção
capitalista.
4.2
A economia política da pena: a relação entre sistema prisional,
fábrica e controle social
Com o desenvolvimento das teorias críticas da sociologia,
principalmente norte-americanas, a partir dos anos 60 do século XX –
especialmente a “Teoria do Etiquetamento”29, fundada a partir de duas correntes
fenomenológicas, o interacionismo simbólico e da etnometodologia30 –
representando as novas formas de eugenia, potencializando o surgimento de classes (ou
subclasses) discriminadas.
28
Avaliando as transformações e a transição da modernidade ao pós-modernismo, Hardt e Negri
(2004, p. 12-15) partem da constatação de que a globalização, por ter proporcionado uma
diminuição gradual da soberania dos Estados-Nação, faz com que estes tenham também perdido
sua capacidade de regular os fluxos de produção e troca (econômicas e culturais) e sua autoridade
sobre a economia. Entretanto, dizem que (como hipótese básica), na verdade, “a soberania tomou
nova forma, composta de uma série de organismos nacionais e supranacionais, unidos por uma
lógica ou regra única” que chamaram de Império, ou seja, para eles não há um lugar definido como
centro do poder mas, ao contrário, a característica fundamental que é a ausência de fronteiras
determina, também, a inexistência de limites ao exercício do poder. Assim, o objeto do governo do
Império “é a própria vida social como um todo” e assim ele “se apresenta como forma
paradigmática de biopoder”.
29
É de se salientar que esta matriz criminológica é designada na literatura alternativa e
sinonimamente por enfoque, perspectiva ou teoria do interacionismo simbólico, labelling
approach, etiquetamento, rotulação ou ainda por paradigma da “reação social”, do controle, ou da
definição.
30
ANIYAR DE CASTRO (1983, p. 6) identifica que para o construtivismo social as observações
estão baseadas em construções mentais, ou seja, a realidade só existe na medida em que é
interpretada e em conseqüência apreendida. Outro aspecto importante é que o processo
cognoscitivo é construído a partir da subjetividade do observador, sendo, portanto, uma realidade
variável. O construtivismo opõe-se ao positivismo, ao ver o mundo como uma realidade em si,
cognoscível independentemente da pessoa que o observa, ou seja, uma realidade estática.
144
desenvolvem-se novas formas de conhecimento criminológico com a finalidade de
explicar os problemas sociais de maneira diferente daquelas apresentadas pelo
paradigma etiológico-determinista, promovendo a negação da ideologia da defesa
social31, o que produz uma ruptura metodológica e epistemológica com a
criminologia tradicional, essencialmente em função da incapacidade desta em
explicar o fenômeno criminal, o que dificultou “por longo tempo a elaboração de
uma teoria do controle social, ou seja, a formação de paradigmas de análises
capazes de interrogar criticamente a dinâmica da reação social e institucional no
confronto em relação ao desvio” (Cf. DE GIORGI, 2002, p. 38)32
A criminologia crítica inicia, então, a partir desse momento – com a
recepção do labelling approach e das teorias do conflito, no âmbito da sociologia
criminal – o desenvolvimento da dimensão do poder, numa perspectiva
materialista da análise dos processos institucionais de controle do desvio, isto é,
de “uma análise capaz de examinar criticamente os labellers (as instituições e as
estratégias do poder punitivo) e também os labelled (aqueles que são os
destinatários imediatos dos labellers)33 (Cf. DE GIORGI, 2002, p. 38).
Partindo do pressuposto materialista é que, a partir do final da década
de 60 e início dos 70, a análise teórica da criminologia crítica (de cunho
materialista) pretendeu examinar, sim, a origem do sistema de controle, sua
estrutura, seus mecanismos de seleção ou, em outras palavras, suas reais funções,
seus mecanismos de criminalização, os quais negam o mito do direito penal
igualitário,
pretendendo
construir
uma
teoria
econômico-social
dos
comportamentos socialmente negativos e da criminalização.
Para De Giorgi (2002, p. 39) a investigação da criminologia crítica
segue em duas direções:
a primeira é constituída por um estudos históricos que descrevem o papel
exercido pelos sistemas produtivos na afirmação histórica das relações de
produção capitalistas. Uma história da pena, que até aquele momento era
representada como um progresso contínuo da civilização jurídica em direção
31
As teorias fundadas no paradigma da reação social promovem a reconstrução dos diversos
princípios da ideologia da defesa social, como o ‘princípio da legitimidade’, ‘princípio do bem e
do mal’, etc. Para entender os argumentos, importante observar Andrade (1997, pp. 200 – 202).
32
“(...) per lungo tempo lélaborazione di reorie del controllo sociale, ossia la formazione di
paradigmi di analisi capaci di interrogare criticamente le dinamiche di reazione sociale e
instituzionale nei confronti della devianza.”
33
“(...)di un’analisi capace cioè de isaminare criticamente i labellers( le instituzioni e le strategie
del potere punitivo) oltre che i labelled (coloro che ne sono i destinatari immediati)."
145
à racionalidade e à humanização da punição, agora é descrita como uma
concatenação de estratégias com as quais a ordem capitalista impôs, no
tempo, suas formas peculiares de subordinação e repressão de classe. Já a
segunda direção de investigação se orienta para as práticas contemporâneas
dos sistemas de controle e, sobretudo, do dispositivo carcerário. A análise se
concentra, aqui, no papel desempenhado pelos aparelhos repressivos em
relação às dinâmicas econômicas atuais e, em particular, em relação ao
funcionamento do mercado de trabalho nas sociedades industrializadas.34
Sob este novo enfoque, toda caracterização trazida pela criminologia
clássica fica à deriva, pois seu objeto, caracteristicamente baseado num modelo
estático e descontínuo de abordagem do comportamento desviante, é substituído
por um modelo dinâmico e contínuo que busca, através da análise das
transformações econômicas, entender os mecanismos de controle social. Para De
Giorgi (2202, p. 40) “a penalidade se inscreve num conjunto de instituições
jurídicas, políticas e sociais (o direito, o Estado, a família), que se consolidam
historicamente em função da manutenção das relações de classe dominantes”35, ou
seja, seria preciso, para preservação das bases materiais à dominação, a
cientifização do conhecimento do controle do desvio. O Direito Penal, como
poder de classe e instituição de controle, contribui para ocultar as contradições
internas ao sistema de produção capitalista.
Esta leitura da “economia política da pena” tem importância
fundamental para entender o motivo “jurídico” da proporcionalidade entre dano
ao bem tutelado e pena (punição medida em tempo) aplicada. Esta orientação,
inaugurada pelo pensamento de E. B. Pasukanis, sobre a identidade da pena com o
mercado de trabalho, é trazida com a análise do entendimento sobre o direito,
mais especificamente sobre o direito como forma necessária à consecução dos
objetivos da sociedade capitalista, especialmente pelo desenvolvimento das forças
produtivas e as relações dali originadas. Assim é que, para Pasukanis, o direito
34
“La prima à constituita da un insieme di studi storici che descrivono il ruolo esercitato daí
sistemi punitivi dell`affermazione storica dei rapporti di produzione capitalistici. Una storia della
pena che sino a quel momento veniva rappresentata come un progresso continuo della civiltà
giuridica verso la razionalità e l’umanizzazione della punizione, ora viene descritta come una
concatenazione di strategie com le quali ‘ordine capitalistico há imposto nel tempo le proprie
peculiari forme di subordinazione e repressine di classe. La secontda direzione di indagine si
orienta invece verso le pratriche contemporanee dei sistemi di controlle e soprattutto del
dispositivo carcerario: ‘analise si concentra Qui sul ruolo esecitato dagli apparati repressivi
rispetto alle dinamiche economiche attuali e in particolare rispetto al funzionamento del mercato
del lavoro nelle società industrializzate.”
35
“La penalità si inscrive cioè in un complesso di istituzioni giuridiche, politiche e sociali (il
diritto, lo stato, la famiglia) che si consolidano stocicamente in funzione della conservazione dei
rapporti di classe dominanti”.
146
penal (e a pena) deve ser, primeiramente, visto sobre o pano de fundo da
equivalência, ou seja, a idéia puramente jurídica, é dizer, suas fontes são
encontradas na forma mercantil das relações sociais. Para ele, o delito pode ser
considerado como um contrato mercantil, ou “uma variedade particular de
circulação, na qual a relação de troca, a relação contratual, é fixada pela ação
arbitrária de uma das partes. A proporção entre delito e separação igualmente se
reduz a uma proporção de troca” (1989, p. 146).
Pasukanis (1989, p. 146 e segs.) parte da elaboração teórica de
Aristóteles sobre a “igualitarização na troca” para chegar ao princípio de
retribuição de equivalentes. É necessário fazer, então, uma distinção inicial entre
igualitarizações voluntárias e involuntárias: enquanto as primeiras envolvem as
relações de compra, venda, etc., as segundas abrangem “as diferentes modalidades
de delito, que acarretam sanções a título de equivalentes específicos”.
A contribuição de maior relevância trazida neste texto de Pasukanis é
sua percepção e análise que faz da relação entre equivalente e valor, precisamente
no momento em que relaciona a idéia jurídica de equivalência, como a
possibilidade de realizar a troca, sem que esta (troca) esteja absolutamente
suplantada pela reparação. Isto é possível ser visto no sistema penal quando o
elemento de troca equivalente do dano produzido à vítima é a vingança, ou seja,
“de fenômeno puramente biológico, a vingança se transforma em instituição
jurídica desde que se liga à forma de troca equivalente, da troca mensurada por
valores” (Cf. PASUKANIS, 1989, p. 147). Não é preciso, portanto, o exato
equivalente ao dano produzido, ou melhor, basta à consecução da vingança, à
satisfação do desejo para que a vítima (direta, familiares ou mesmo a sociedade)
sinta-se correspondida. Esta é a medida imposta pelo sistema penal à sociedade, o
qual servirá como autêntico mecanismo de repressão e contenção das massas
excluídas e revoltosas.
Esta representação fixa, portanto, os limites do sistema penal, isto
porque se é verdade que este sistema nada mais é do que um aparelho reprodutor
das desigualdades sociais, conseqüência direta das políticas penais impostas à
garantia do modo de produção, de controle e de exclusão social, sem dúvida isso é
resultado do tipo de sociedade produzida pelo modo de produção capitalista, ou
seja, uma sociedade de classes que, em sua essência, produz desigualdades e
exploração ou, como diz Menegat (2003, p. 219) “a barbárie não é inevitável, mas
147
é a conseqüência lógico-histórica do livre desenvolvimento do capital”. É
exatamente neste sentido que Pasukanis diz que “somente o desaparecimento
completo das classes permitirá criar um sistema penal do qual será excluído
qualquer elemento de antagonismo de classe” (1989, p. 153).
Pasukanis mostra que a luta pela sobrevivência (ele traz o exemplo da
legítima defesa) assume a condição jurídica quando se introduz o princípio da
equivalência, isto porque esta troca está encoberta sob o pano de fundo dos
contratos, ganhando, pois, a conformação jurídica. Fazendo parte da
superestrutura jurídica, o Direito Penal submete à sociedade a esta forma de troca
de equivalentes, resultando na idéia de responsabilidade penal como meio de
reparação ao dano provocado. Neste sentido é que Pasukanis afirma (1989, p.
158):
A pena proporcional à culpa representa fundamentalmente o mesmo que a
reparação proporcional ao dano. (...) A privação da liberdade, ditada pela
sentença do tribunal, por um certo período de tempo é a forma específica
pela qual o direito penal moderno, burguês-capitalista, realiza o princípio da
reparação equivalente. Esta forma está inconscientemente, embora
profundamente, ligada à representação do homem abstrato e do trabalho
humano abstrato avaliados em tempo.
Assim é que a relação entre reparação do dano e tempo do indivíduo
pode influenciar, diretamente, as relações sociais existentes sendo, portanto
“necessário que todas as formas concretas de riqueza social estivessem reduzidas
à forma mais abstrata e mais simples – o trabalho humano medido em tempo” (Cf.
PASUKANIS, 1989, p. 159).
Importante contribuição é dada por Dario Melossi e Juarez Cirino dos
Santos ao interpretarem a análise feita por Pasukanis sobre a identidade da pena
com o mercado de trabalho. Para Cirino dos Santos (2005, p. 22), “a importância
da teoria de PASUKANIS está em situar a retribuição equivalente no fecho da
transição histórica do ‘sujeito zoológico’ da vingança de sangue para o ‘sujeito
jurídico’ da pena proporcional: a troca igual exclui a vingança posterior, primeiro
pelo talião, mais tarde pela composição e, finalmente, se consolida como
retribuição equivalente medida pelo tempo de liberdade suprimida – conforme o
critério de valor da sociedade capitalista” (grifos no original).
148
Aqui reside outro ponto fundamental na discussão da “economia
política da pena”, qual seja, a relação entre punição e mercadoria como
fenômenos de troca de equivalências. É muito interessante perceber, sob o ponto
de vista da dialética marxista, a correspondência entre, de um lado, a análise
econômica da extração da mais-valia, como fundamento do modo de produção
capitalista, representando a valoração da força de trabalho, medido pelo tempo, e
recomposta (como equivalente) pelo salário recebido pelo trabalhador e, de outro,
a análise jurídica da pena como correspondência entre o dano praticado e o tempo
de permanência na prisão.
A conseqüência dessa análise é, conforme Juarez Cirino dos Santos
(2005, p. 22) a percepção da “pena como retribuição equivalente da sociedade
capitalista, no sentido de valor de troca que realiza o princípio da igualdade do
Direito, corresponde à troca de força de trabalho pelo equivalente salarial no
mercado, que reduz toda riqueza social ao trabalho abstrato medido pelo tempo, o
critério geral do valor na economia e no Direito”. Assim é que o sistema penal
(em especial a instituição da prisão) revela seu viés ideológico ao demonstrar seu
objetivo, na maioria das vezes oculto, de produzir uma massa de excluídos e
marginalizados do sistema, permitindo, contudo, configurar a imagem necessária
da exata equivalência da pena – medida pelo tempo de liberdade suprimido do
indivíduo – com o dano produzido ao “bem jurídico tutelado”, deixando-se
velada, portanto, tanto a noção de prisão como instituição total, apta a produzir
“corpos dóceis e úteis” – para utilizar a linguagem de Michael Foucault – como
também o sistema de produção capitalista (no qual a fábrica é a referência mais
contundente) e a idéia de salário como compensação exata e equivalente do
trabalho realizado, ocultando (mais uma vez) o caráter instrumental da prisão e o
falso pressuposto da existência de sujeitos livres, deixando velada a expropriação
da mais-valia e a subordinação e dependência do trabalhador ao sistema
produtivo, resultando, na verdade, no aprisionamento do trabalhador à fábrica, aos
moldes do condenado aos estigmas da prisão.
Neste momento histórico, a função desempenhada pela prisão foi, sem
dúvida, ao produzir as desigualdades, fomentar a constituição e manutenção
estrutural da escala vertical da sociedade, criando os sujeitos desta relação, isto
porque as relações existentes no modo de produção capitalista evidenciam esta
desigualdade porque está, de um lado, “ligada estruturalmente à separação entre
149
propriedade da força de trabalho e dos meios de produção e, de outro lado, à
disciplina, ao controle total do indivíduo requerido pelo regime de trabalho na
fábrica e, ademais, pela estrutura de poder que assumiu o modelo da fábrica” (Cf.
BARATTA, 1993 a, p. 741)36.
4.3.
A sociedade contemporânea como sociedade de controle
É perfeitamente possível, em uma brevíssima referência histórica,
identificar, dentro dos propósitos da pesquisa, as estratégias de poder da
contemporaneidade como sociedades de controle, relacionando-as ao modo de
produção vigente e à idéia de disciplina. Esta relação é possível, ao conectar os
processos de produção fabril e a finalidade de coisificar o indivíduo, através da
docilização e adestramento dos corpos, tendo como um de seus marcos mais
importantes, como visto, a relação entre cárcere e fábrica.
Através de diversas pesquisas realizadas com este objetivo (relação
entre cárcere e fábrica), foi possível dar uma explicação materialista da origem da
prisão, relacionando o surgimento do capitalismo com as penas privativas de
liberdade, pois a partir do nascimento da burguesia do Estado monárquico
absolutista – e o surgimento, em toda a Europa, durante os séculos XV e XVI, de
uma legislação extremamente cruel, que proporcionou o aparecimento da
‘vagabundagem’ – constatou-se que a pena serviu, no mais das vezes, ao
disciplinamento à nova condição que se apresentava aos proletários emergentes
(aqueles camponeses expulsos de suas terras, que nada mais tinham a não ser sua
força de trabalho).
Rusche e Kirchheimeir (1984, p. 46) afirmam que a adoção de um
método mais humano de repressão e a instituição das casas de correção
constituíram o resultado de uma mudança das condições econômicas e, com a
ajuda da máquina legislativa e administrativa, o Estado utilizou os contingentes de
força de trabalho, que encontrou à sua disposição, para a realização de seus
objetivos. No mesmo sentido Dario Melossi e Massimo Pavarini (1987, p. 19)
36
Tradução livre do autor da presente pesquisa: “(...) ligada estructuralmente a la separación de la
propiedad de la fuerza de trabajo de la de los medios de producción, y de otra parte, a la disciplina,
al control total del individuo requerido por el régimen de trabajo en la fábrica y más de la
estructura de poder, en una sociedad que ha asumido el modelo de la fábrica.”
150
fizeram a análise também a partir da relação capital/trabalho, ou seja, a
investigação apontou que tais transformações ocorreram a partir da mudança do
modo de produção feudal para o modo de produção capitalista. A análise é muito
mais funcional do que física/estrutural, ou seja, eles buscaram não a primeira
construção física de privação de liberdade, mas a origem da instituição carcerária,
encontrando-a no capitalismo e na conseqüente aparição do proletariado.
Como visto, a prisão surgiu no tempo com finalidade não judicial,
contribuindo, sobremaneira, aos postulados já levantados nas obras de Rusche e
Kirchheimer, e de Melossi e Pavarini e de Michael Foucault, segundo o qual a
prisão se constituiu fora do aparelho judiciário, ou seja, passou a existir no
momento em que foram elaborados os processos para repartir os indivíduos, fixálos e distribuí-los espacialmente, classificá-los, tirar-lhes o máximo de tempo e
forças, treinar seus corpos, codificar seu comportamento contínuo, mantê-los
numa visibilidade sem lacuna, formar em torno deles um aparelho completo de
observação, registro e anotações, constituir sobre eles um saber que se acumula e
se centraliza. A forma geral de uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis
e úteis, através de um trabalho preciso sobre seu corpo, criou a instituição-prisão,
antes que a lei a definisse como pena, por excelência.
Assim é que, em Vigiar e Punir, Foucault enaltece o valor da pesquisa
de Rusche e Kircheimer, uma vez que a mesma é lídima para exortar a tradicional
ilusão de que a penalidade seria uma modalidade de reprimir os delitos, pois os
autores conseguiram estabelecer “a relação entre os vários regimes punitivos e os
sistemas de produção em que se efetuam: assim, numa economia servil, os
mecanismos punitivos teriam como papel trazer mão-de-obra suplementar – e
constituir uma escravidão ‘civil’ ao lado da que é fornecida pelas guerras ou pelo
comércio” (Cf. Foucault, 1987, p. 27).
É diante do modo de produção capitalista e da “fabricação” de
indivíduos desiguais que resulta, no recrutamento de indivíduos marginalizados
(excluídos e diferenciados) pelo sistema penal tem propósitos determinados,
dentro e fora da lógica do mercado de trabalho, pois, de certa forma, como afirma
Alessandro Baratta (1983 a, p. 743; 1987, p. 626), o cárcere representa a
consagração definitiva de uma carreira criminal e, muito mais do que isso,
supostamente, a resposta de uma sociedade honesta a uma minoria criminosa, é
dizer, a criação de situações de fato que disciplina e obriga os incluídos no sistema
151
penal a se programar, viver, e, mais importante, sentirem-se pertencerem à
situação de desigualdade que lhes é apresentada, isto porque é o próprio sistema
punitivo que se apresenta como violência útil do ponto de vista da reprodução do
sistema social existente e, portanto, do interesse dos detentores do poder, com a
finalidade de manutenção das relações de produção e distribuição desigual de
recursos.
O funcionar do sistema penal tem sua lógica social invertida a partir
do momento em que não cumpre as suas determinações prometidas (pois sua
estrutura e modo de funcionamento são inadequados para desenvolver as funções
declaradas pela ideologia da defesa social e utilitárias da pena), mas cumpre,
exemplarmente, o disciplinamento das subjetividades, uma vez que o indivíduo,
ao ingressar na prisão, torna-se mais vulnerável aos efeitos da estigmatização,
contribuindo, sensivelmente, à fabricação de novos sujeitos mais flexíveis, menos
desejosos e muito mais que disciplinados.
O questionamento, que deve nos nortear de agora em diante, está
muito além da lógica da disciplina: o que se pode esperar, na contemporaneidade,
da relação entre modo de produção e sistema penal (Políticas de Segurança
Pública, sistema carcerário, opressão e dominação via capital, etc.), em função das
características pretensamente universais das globalizações (econômicas, políticas,
culturais, etc.) e suas conseqüências, ou seja, da ocorrência de todos os tipos de
violência, tanto material quanto simbólica, que atravessam nossa sociedade?
É possível, portanto, através de Foucault, analisar e circunscrever as
sociedades disciplinares dos séculos XVIII e XIX e verificar sua origem dos
meios de confinamento (hospitais, prisões, fábricas, asilos, escolas, família), e
perceber também que este modelo de sociedade (disciplinar) teria sido sucessora
de uma sociedade de soberania e que, em função de encontrarmo-nos numa “crise
generalizada de todos os meios de confinamento”, como descreve Deleuze (1992,
pp. 220), estaríamos em um momento de instalação de novas forças denominadas
sociedades de controle, as quais “substituiriam” aquelas.
Para Deleuze (1990, p. 222), as sociedades disciplinares são
caracterizadas por dois pólos: a “assinatura que indica o indivíduo, e o número de
matrícula que indica sua posição numa massa”, permitindo ao poder ser, ao
mesmo tempo, massificante e individuante, enquanto nas sociedades de controle o
essencial é a cifra, que marca o acesso ou a rejeição à informação. As
152
conseqüências são marcantes, isto porque deixa de existir o indivíduo para realizar
o dado. O indivíduo é apenas um (indivisível) na estatística, e a massa passa a ser
uma amostra. Em sua análise, Deleuze mostra que a transição capitalista do século
XIX à contemporaneidade também corresponde (como não poderia deixar de ser)
ao modelo de sociedade vigente, não porque as máquinas sejam determinantes,
mas sim em função de que é a própria forma social que faz refletir o modo pelo
qual ela será desenvolvida.
Diferentemente das antigas sociedades (com maquinaria mais
simples), as sociedades disciplinares dispunham de “equipamentos máquinas
energéticas” enquanto nas sociedade de controle os computadores estão em
evidência. Isto reflete que “não é uma evolução tecnológica sem ser, mais
profundamente, uma mutação do capitalismo” (Cf. DELEUZE, 1990, p. 223), ou
seja, uma verdadeira adequação do modo de produção às novas necessidades.
Continua Deleuze dizendo que, enquanto o capitalismo do século XIX era de
concentração, voltado à produção e de propriedade, a fábrica erigida como o
instrumento adequado à realização do capital, tinha o capitalista como proprietário
dos meios de produção e o mercado conquistado por especialização, colonização
ou por redução dos custos de produção; no capitalismo contemporâneo a produção
é relegada ao Terceiro Mundo, ou seja, é um capitalismo de sobre-produção (não
há compra de matéria-prima para vender o produto acabado, mas a compra é do
próprio produto acabado ou de forma fragmentada para montá-lo), no qual o que
se pretende é vender serviços e o que se quer comprar são ações.
Para Deleuze (1990, p. 224-225), diante da lógica da sociedade
contemporânea de controle, o capitalismo conseguiu produzir e “manter como
constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a
dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que
enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e
favelas”. A crise da sociedade disciplinar permitiu antever (e hoje isto é uma
realidade) a substituição dos mecanismos disciplinares – especialmente o
confinamento – pela implantação dos instrumentos controladores: no regime do
sistema penal e nas prisões (mais ainda), por exemplo, as penas são substituídas
pela utilização de chips e coleiras de localização, pelo monitoramento das cidades
com câmeras de grande amplitude (o mesmo ocorrendo nos regimes das escolas,
dos hospitais, de empresas, etc.), o que nos permite compreender e perceber a
153
razão da “necessidade” de se ter crises nas instituições: “implantação progressiva
e dispersa de um novo paradigma de dominação”.
4.3.1.
A legitimação da dominação pelo controle
Assim, antes mesmo de proceder a análise da legitimação da
dominação pelo controle e investigar sua conseqüências (no próximo ponto), é
preciso fazer uma pequena ponderação de ordem metodológica em relação ao uso
do termo “legitimação”, isto porque é preciso definir seu conceito a fim de
introduzir o tema da dominação.
Deixaremos de lado o conceito de “legitimação” em seu sentido
jurídico e nos fixaremos, como apresenta Castor Ruiz (2004 b, p. 44), numa
linguagem própria das ciências sociais, “no sentido de uma aceitação social de
uma determinada ordem vigente que gera um alto grau de consenso e
consentimento”, assegurando a obediência dos indivíduos sem a utilização da
força, uma vez que o “sinuoso do poder manifesta-se na potencialidade que ele
tem de imbricar-se com a dominação e desenvolver-se como dominação legítima”
e este poder de controle, hoje, se dá, não mais pela força, autoritarismo ou pela
violência, mas sim pela indução das práticas individuais.
Como visto, não é possível compreender o tema da legitimidade sem
levar em consideração o fundamento do poder e ultrapassar as concepções
tradicionais sobre a origem do poder: o pensamento naturalista grego (poder de
origem natural), a concepção teológica medieval (o poder emana de Deus) e a
concepção moderna contratual (principalmente em Hobbes e Rousseau), isto
porque “as múltiplas faces do poder lhe permitem inserir-se coativamente nas
práticas de dominação sem ser percebido como coação” demonstrando a
capacidade de transmutação que o poder tem e que lhe confere um roupagem de
legitimidade (Cf. RUIZ, 2004 b, p. 44). O controle, como dominação legítima,
deve ser melhor analisado.
Diante da fluidez proporcionada pela fragmentação dos indivíduos e
flexibilização do sistema produtivo na contemporaneidade, torna-se muito difícil o
controle das massas, tornando-o cada vez mais difuso e intenso (ao contrário de
extenso) ou seja, as pessoas sentem-se controlados pela possibilidade de estarem
154
sendo vigiadas continua e permanentemente, uma vez que este controle não
projeta sombras definidas pois seu espectro está muito disseminado nos diversos
dispositivos de controle e poder.
Assim, o que se percebe é a alteração que ocorre na sociedade
contemporânea, especialmente em relação às tecnologias de poder, uma vez que
estamos presenciando uma nova revolução copernicana, permitindo que estes
dispositivos produzam necessidades as quais equivalem aos objetivos estruturais
do modo de produção da sociedade, ou seja, os pressupostos de produção e
reprodução do capital (que levam à busca do mercado mundial global) é o
responsável pela busca incessante, e a criação dos modos, pelos quais os
indivíduos realizam suas necessidades.
É exatamente esta busca que determina os parâmetros legais (de
legitimação) das proibições e das permissões, do reconhecimento da existência
(ou não) de outra cultura, de outro lugar e outras pessoas. É esta instância – o
domínio do mercado – que terá o monopólio da produção normativa e o centro das
decisões políticas que determinará a existência ou não, a necessidade ou não, a
possibilidade ou não, do certo e do errado, de se reconhecer ou não a exclusão, a
pobreza, a indiferença, a violência, a injustiça, o dano ambiental, a exploração do
trabalho, exploração sexual, exploração infantil, etc. Afinal, qual é o limite desse
controle? Serve a quem este controle? Tentemos responder estas perguntas.
Definitivamente, estamos vivendo um paradigma cuja dominação é
exercida, no mais das vezes, não pelo autoritarismo, pela força ou violência física,
mas se implementa pela tentativa de indução da produção dos desejos, pela
produção de subjetividades, pela destruição da divulgação dos conflitos. É preciso
que todos se sintam muito mais que dominados, mas pensando que fazem parte do
sistema e pensando conforme o sistema.
4.3.2.
As tecnologias de poder e as formas de controle
Para Foucault (1999, pp. 297/299) são duas tecnologias de poder –
tecnologia disciplinar do corpo e tecnologia regulamentadora da vida – que,
apesar da defasagem cronológica (século XVIII e XIX respectivamente), são
categorias sobrepostas, pois como não estão no mesmo nível (são dois conjuntos
155
de mecanismos, um disciplinar e outro regulamentador), não se excluem e podem
ser articuladas uma a outra, ou seja, num primeiro momento (final do século XVII
e início do XVIII) uma tecnologia disciplinar que cumpre a função de assegurar a
distribuição espacial dos corpos individuais e a organização, em torno desses
corpos individuais, de todo um campo de visibilidade e, num segundo momento (a
partir da segunda metade do século XVIII), sem excluir a tecnologia disciplinar,
essa técnica de poder passa, cada vez mais, a incluir a vida dos homens aos
cálculos de poder e a política se transforma em biopolítica e biopoder37.
A utilização das novas técnicas de poder, acentuadamente analisada
por Giogio Agamben, está diretamente relacionada com as novas formas de
controle e indiferenciação do sujeito, ou seja, está relacionada com os mecanismos
estatais de violência (estrutural e institucional), os quais desempenham
fundamental papel nos objetivos de controle e dominação.
Este estratagema interfere, substancialmente, na condição de vida da
população, em especial à vida política. Giorgio Agamben (2004, p. 12/13) afirma,
tomando-se como exemplo o caso do Estado nazista, que “Hitler promulgou, no
dia 28 de fevereiro, o Decreto para a proteção do povo e do Estado, que
suspendia os artigos da Constituição de Weimar relativos às liberdades
individuais”, demonstrando que este modelo de interferência Estatal tende, cada
vez mais, a se tornar como modelo de governo. Para Agamben isto pode ser
definido como a instauração, por meio do “estado de exceção” de uma “guerra
civil legal”, podendo ser caracterizado como o totalitarismo38 moderno. Agamben
aponta como característica principal dessa guerra civil legal, a possibilidade de
37
No item 4.2.1 do Capítulo IV da presente pesquisa (Os novos espaços e as novas estratégias de
poder: o biopoder), o tema “biopoder” terá um maior detalhamento e um cuidadoso
relacionamento com uma genealogia dos poderes na sociedade contemporânea.
38
Cabe aqui uma breve reflexão sobre a categoria “totalitarismo”, isto porque é possível dar a ela
diversas definições como o faz Domenico Losurdo em uma importante crítica, aduzindo ser uma
categoria polissêmica, razão pela qual propõe sua redefinição, tendo em vista que seu defeito
fundamental seria o de “transformar uma descrição empírica, relativa a certas categorias
determinadas, numa redução lógica de caráter geral” (2003, p. 76). Por isso, sua crítica reside na
forma que se pretende disseminar o conceito de “totalitarismo”, questionando se a “teoria
costumeira do totalitarismo não terá se transformado ela própria numa ideologia de guerra, e da
guerra total, contribuindo a alimentar ulteriormente os horrores que pretende, no entanto,
denunciar e caindo assim numa trágica contradição performativa” (2003, p. 79). Assim,
pretendendo dar significado mais preciso ao termo, especialmente quando a referência estiver
sendo tratada do “domínio totalitário”, este significará, aos propósitos da presente pesquisa, o
poder pelo qual a legitimada instância terá condições de decidir sobre direitos fundamentais do
indivíduo, especificamente o direito sobre a vida e a liberdade, utilizando-se da violência, da força
e do medo, mas sempre através dos processos de subjetivação na tentativa da indução das práticas
156
eliminar, não só, os inimigos políticos mas também categorias inteiras de cidadãos
que não estejam integrados (ou não sejam integráveis) no sistema. O significado
biopolítico do estado de exceção é a anulação radical do status jurídico do
indivíduo, “produzindo, dessa forma, um ser juridicamente inominável e
inclassificável” (AGAMBEN, 2004, p. 14).
A situação ocorrida na Alemanha nazista durante 12 anos – vigência
do Decreto para a proteção do povo e do Estado, o qual suspendia por tempo
indeterminado os artigos da constituição de Weimar relativos às liberdades
individuais (pessoal, de expressão e de reunião), baseado implicitamente no artigo
48 da Constituição Alemã – é exemplificativa, pois “o estado de exceção cessa,
assim, de ser referido a uma situação externa e provisória de perigo factício e
tende a confundir-se com a própria norma” o que levou alguns juristas a dizer que
era uma situação desejada, pois seria necessário, através da suspensão dos direitos
fundamentais, a existência do estado de exceção, com vistas à instauração do
Estado nacional-socialista (AGAMBEN, 2002, p. 175).
Na medida que o estado de exceção é, de fato, “desejado”, ele inaugura um
novo paradigma jurídico-político no qual a norma torna-se indiscernível da
exceção. O campo é, digamos, a estrutura em que o estado de exceção, em
cuja possível decisão se baseia o poder soberano, é realizado normalmente.
O soberano não se limita mais a decidir sobre a exceção, como estava no
espírito da constituição de Weimar, com base no reconhecimento de uma
dada situação factícia (o perigo para a segurança pública) (Cf. Agamben
(2002, p. 177)
Hannah Arendt, ao observar os campos de concentração, reconheceu
que lá vige o princípio que rege o domínio totalitário, isto “somente porque os
campos constituem, no sentido que se viu, um espaço de exceção, no qual não
apenas a lei é integralmente suspensa, mas, além disso, fato e direito se
confundem sem resíduos, neles tudo é verdadeiramente possível” (AGAMBEN,
2002, p. 177). O campo é o local da materialização e realização do estado de
exceção de forma normalizada, isto é, se lá tudo é possível, não há lugar para
distinções: certo do errado, lícito do ilícito, exceção e regra, etc. Portanto, no dizer
de Agamben (2002, p. 178), “na medida que os seus habitantes foram despojados
de todo estatuto político e reduzidos integralmente a vida nua, o campo é também
sociais. Na contemporaneidade é possível dizer que o “mercado” é a instância legítima de decisão
política da vida dos indivíduos, ou seja, é a instância que possui o “domínio totalitário”.
157
o mais absoluto espaço biopolíco que jamais tenha sido realizado, no qual o poder
não tem diante de si senão a pura vida sem qualquer mediação”. Da mesma forma
que os judeus em Auschwitz, os prisioneiros de Guantánamo39 perderam
totalmente sua condição humana. Esta é a importância de estudar as condições
biopolíticas em Auschwitz, a fim de analisar o que e como vivemos atualmente.
Este domínio totalitário revela-se assustador. Isto porque o discurso à
imposição de práticas totalitárias repetem-se. Para enfrentar e superar crises
econômicas e políticas, nada melhor que suprimir direitos e garantias: o resultado
pode ser a necessidade do controle da vida. Este controle revela-se em diferentes
estágios e meios. O discurso “em defesa do povo e do Estado” pode,
tranqüilamente, impor condições de controle que escapam da noção de
anormalidade, tais como os novos chips que são inoculados nos selecionados pelo
sistema penal, marcas como as pulseiras eletrônicas de hoje ou as tatuagens dos
39
A Baía de Guantánamo é um território cubano (localizado ao sul da ilha), mas desde 1903 é
alugada pelo governo dos Estados Unidos. Desde janeiro de 2002 o Centro de Detenção recebe
pessoas acusadas (na sua maioria, não formalmente) de estarem envolvidas com práticas
terroristas. Já passaram, nesse período, aproximadamente 770 pessoas. Hoje o Centro de Detenção
de Guantánamo tem, pelo menos, 395 pessoas presas indefinidamente, sendo que destas, entre 60 a
80 estão sendo processadas por um Tribunal Militar, 85 serão, provavelmente, enviados aos seus
países de origem e outros 200 estão numa situação ainda mais delicada, uma vez que não sabem,
sequer, por exemplo, qual acusação que lhes é imputada, qual a corte que os julgará, qual lei lhes
será aplicada e norteará o julgamento (se houver), nem mesmo qual o tratamento que lhes será
dado (inimigo, criminoso inimigo, combatente inimigo, prisioneiro de guerra, ou ainda de
“combatentes inimigos ilegais”, termo pelo qual impede o acesso a qualquer tribunal e aos
preceitos da Convenção de Genebra), situando-os, verdadeiramente, num “limbo existencial”, à
imagem e semelhança do que Giorgio Agamben fala: verdadeiros homo sacer, absolutamente
indefinidos e indeterminados. No dia 02 de abril de 2007 a Suprema Corte americana rejeitou
recurso de prisioneiros de Guantánamo que requeriam o direito de apresentar seu caso ante um
Tribunal Federal para apelar de sua detenção sem acusação judicial formal. Mesmo não sendo uma
decisão definitiva, a decisão foi considerada uma vitória do governo norte americano. Toda
celeuma está centrada na possibilidade, ou não, desses seres humanos lá detidos (pessoas,
cidadãos, sujeitos, homo sacer, etc.) serem julgados por uma Corte Federal antes do julgamento de
uma Corte Militar de exceção. A classificação dada pelo governo norte americano de
“combatentes inimigos” impede que eles sejam julgados pelas corte federais. Frise-se, por
oportuno, que o julgamento dos presos ocorrerão conforme um novo “Manual para Comissões
Militares” que prevê liberdade à valoração de provas, ainda que colhidas por meio de coação ou
especulação. Na luta do governo norte americano para restringir aos prisioneiros de Guantánamo o
acesso à Justiça, em outubro o Presidente George Bush assinou uma lei que suspende o direito dos
prisioneiros de pedir o Habeas Corpus, para que o governo tenha que apresentar provas que
justifiquem sua prisão. Estas informações foram capturadas a partir de leituras em diversos jornais
de circulação nacional, bem como jornais virtuais, especialmente as seguintes reportagens: Prisão
de Guantánamo completa cinco anos em meio a protestos. Caderno Mundo de 11 jan. 2007.
Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u103691.shtml. Acessado em 04
de abril de 2007; Pentágono aceitará depoimentos obtidos sob coação em Guantánamo.
Caderno
Mundo
de
18
de
janeiro
de
2007.
Disponível
em
http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u103906.shtml. Acessado em 04 de abril de 2007
e EUA impedem presos de Guantánamo de apelar em tribunais federais. Caderno Mundo de
04
de
abril
de
2007.
Disponível
em
http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u106105.shtml. Acessado em 04 de abril de 2007.
158
campos de concentração, etc., controle de identificação da retina, banco de DNA,
câmeras de vigilância, etc., ainda que estas práticas privem o sujeito de seus
direitos. É o controle total dos corpos.
Houve alguma coisa além da margem do rio que devemos observar
cuidadosamente. Algo está muito próximo, mas também, muito bem camuflado. O
discurso mais recente sobre a eficácia das medidas punitivas, efetivadas pelo
sistema penal, em especial aquelas com finalidade de prevenir a transgressão da
norma, transitam pela necessidade de dar maior eficácia ao cumprimento das
penas privativas de liberdade, ainda que para isso haja supressão de direitos e
garantias individuais.
Será que a análise materialista da prisão – formulada especialmente
por Foucault, George Rusch e Otto Kirchherimer, Dario Melossi e Maximo
Pavarini – demonstrando a estreita vinculação do surgimento da prisão à alteração
do modo de produção (do modo de produção feudal para o modo de produção
capitalista) teria hoje perdido sua finalidade, mesmo porque a classe operária
(trabalhadores braçais) está cada vez mais levantando os braços e implorando para
que sejam explorados? Perdeu a prisão, em tempos de globalização, de políticas
de tolerância zero, sua função?
Verdade e mentira (ou engano). Ora! Da mesma forma que o cárcere
cumpriu, exemplarmente, sua função, hoje, também, permanece a serviço do
poder:
agora
não
mais
adestrando
os
corpos,
disciplinando-os
mas,
simbolicamente, a prisão realiza a necessária transformação do preso em fera
indomável, que habita as ruas, não sendo estas (as ruas) local seguro para o
trânsito de pessoas de bem. O ideal (tipo de sociedade) é ficar em casa, diante das
telas do computador, vivendo a vida virtual, especialmente consumindo. É a nova
relação biopolítica do indivíduo com o Estado. O cidadão ideal é aquele que
consome.
Para Bauman (1998, p. 22/25) da mesma forma que o sonho da pureza
circulou os ares do nazismo e do comunismo pois “primaram por impelir a
tendência totalitária a seu extremo radical – o primeiro, condensando a
complexidade do problema da “pureza”, em sua forma moderna, no da pureza da
raça, o segundo no da pureza de classe”, no mundo atual há outra prova de pureza,
qual seja, a capacidade de ser seduzido pelo mercado consumidor. Aqueles que
não conseguem entrar no jogo devem ser eliminados e a melhor forma de resolver
159
os problemas socialmente produzidos é criminalizá-los. A busca de pureza social
é alcançada com eficientes métodos totalitários, especialmente tentando controlar
determinadas classes sociais, denominadas perigosas.
A reflexão, dentro de perspectivas muito precisas, especificamente no
núcleo
da
relação
vinculante
entre
democracia,
direitos
humanos
e
desenvolvimento humano, deve demonstrar profundos laços existentes ante o
compartilhamento de posturas éticas e políticas comuns. O centro é a idéia de
sujeito livre, ou seja, a idéia de autonomia, estreitamente vinculada à “capacidade
de direito”, não somente ser titular da ação, mas também ser responsável por suas
conseqüências.
A idéia de cidadania está vinculada a este sujeito livre (autônomo) que
encontra na democracia seu maior referencial, pois este sujeito (não em uma visão
individual, mas inseridos em comunidades – grupos, nações, etc.) que delibera e
participa é, ao mesmo tempo, consciente e responsável pelas conseqüências de
suas decisões, sobretudo políticas (não de um cidadão passivo, mas um cidadão
ativo).
As constantes demonstrações do individualismo exacerbado – e seu
alcance egoístico – o que se vê é o fruto entre as perversas e complexas relações
intersubjetivas da contemporaneidade com o universo dos direitos humanos.
Contudo, o paradoxo é assustador, pois ao mesmo tempo em que o
desenvolvimento econômico das sociedades capitalistas produziu um mundo
capaz de gerar riquezas sem precedentes na história, a sociedade, estruturada em
classes, não conhece os resultados e as promessas de uma vida melhor, mas, ao
contrário, lhe é negada e sonegada todas as possibilidades de participação,
provocando uma estrutura de terrível desigualdade e polarização social, com o
conseqüente empobrecimento e exclusão de camadas cada vez maiores da
população, causando um progressivo e constante esgarçamento da tecitura social.
As constantes práticas de intolerância – tanto derivada da concepção
de possuir a verdade, como daquela derivada de um preconceito (BOBBIO, 1992.
p. 204) – vivificada pela atuação passiva das instituições do Estado, fincadas na
separação entre sociedade civil e sociedade política, hermética condição das
políticas liberais, a qual exorta ações repressivas cada vez maiores, bem como a
constante e crescente erosão dos afetos e das solidariedades sociais, abalam a
160
garantia dos direitos individuais e coletivos, com suas conseqüentes
flexibilizações.
O discurso do medo40 – importante e eficiente tecnologia de controle e
de indução de práticas individuais e coletivas – serve para controlar as pessoas e, a
partir de então, torna-se possível o acesso à vida das pessoas. São as pessoas que
fazem parte desse poder (mesmo que não saibam). Seria melhor dizer: é a
politização do poder da vida, ou ainda, politização do poder de controlar a vida.
Para Bauman (1999, p. 73) “a ‘globalização’ nada mais é que a extensão totalitária
de sua lógica a todos os aspectos da vida” uma vez que os atuais Estados não
possuem liberdade suficiente (entenda-se, neste caso, economia forte, soberania,
etc.) para impor suas condições.
Este sentimento de insegurança e seus consectários, como o pânico,
tem suas raízes cravadas no excesso de individualismo provocado pelo novo
sujeito – ou pelas novas relações intersubjetivas – pois favorece o distanciamento
cada vez maior entre os indivíduos causando-lhes um profundo sentimento de
vazio e solidão. A exacerbada divulgação da violência e, conseqüentemente, do
medo, realiza papel importante nos atuais mecanismos de intervenção estatal, com
a finalidade clara de controle e dominação.
Como se vê, com a utilização dos mecanismos políticos totalitários de
dominação é possível perceber a interferência estatal das práticas políticas em
busca da sociedade ideal, ou seja, limpa de toda sujeira: a partir do controle total
dos corpos é possível eliminar os “consumidores falhos”, restando, tão só, aqueles
aptos a permanecer no jogo. Este é o campo moderno, onde tudo é possível, onde
não há limites: basta ser consumidor. Esta é a sociedade desejada, a sociedade de
consumo.
A violência estatal consubstancia-se, neste momento, com este novo
“contrato social”, não aos moldes de Rousseau nem de Hegel (como tradução da
vontade divina), mas em termos marxianos sobrepondo-se à vontade dos
indivíduos, ancorado na utilização dos instrumentos violentos de dominação, em
detrimento da vontade de uma classe social. O domínio totalitário contemporâneo
pertence ao mercado, que reconhece apenas a linguagem do consumo, não mais a
multifacetada democracia mas o unívoco sentido da mercadoria, não mais a
pluralidade de desejos mas apenas consumidores e não consumidores.
161
4.4.
A cultura do medo como legitimadora do controle social: a
divulgação da violência e a banalização dos direitos e garantias
fundamentais
A partir da filosofia política de Thomas Hobbes (1588-1679), é
possível entender como o discurso do medo pode ser identificado e legitimado à
utilização racional do poder repressivo do Estado para conseguir atingir suas
diversas finalidades. A utilização de Hobbes se justifica, pois é com sua obra mais
conhecida – Leviatã, a qual representa a metáfora do grande monstro bíblico que
sufoca o mal com sua cauda – que, na maioria da vezes se fundamenta o discurso
opressivo e autoritário do Estado.
O pensamento de Hobbes, caracterizado pela idéia de ordem na
política, fundado a partir do contrato, é resultado, segundo seus intérpretes, do
destino que foi reservado em sua própria vida. É de notar, em Thomas Hobbes,
que o problema da unidade do Estado é o que mais o incomoda. Partindo desse
ponto (a unidade do Estado), em especial pelo fato da ameaça que as discórdias
religiosas representa e pela disputa pelo controle do poder existente entre a Coroa
e o parlamento, percebe-se, no Leviatã, o constante interesse em mostrar que a
tendência geral de todos os homens é um perpétuo e irrequieto desejo de poder
que cessa apenas com a morte.
Segundo Bobbio (1991, p. 26), Hobbes está aliado a corrente do
pensamento político dominado pela antítese anarquia-liberdade, ou seja, defende a
idéia da unidade contra a anarquia, já que tem receio da dissolução da autoridade,
da desordem que resulta da liberdade de discordar, etc. Bobbio esclarece, sobre T.
Hobbes, que:
O mal que mais teme – e contra o qual se sente chamado a erigir o supremo e
inseparável dique de seu sistema filosófico – não é a opressão que deriva do
excesso de poder, mas a insegurança que resulta, ao contrário, da escassez de
poder. Insegurança, antes de mais nada, da vida, que é o primum bonum,
depois dos bens materiais e, finalmente, também daquela pouca ou muita
liberdade que a um homem vivendo em sociedade é consentido desfrutar
(1991, p. 26).
40
O discurso do medo será analisado, mais detidamente, no próximo ponto deste capítulo.
162
Neste sentido, Hobbes (2003, p. 86) sustenta que “o desejo de
conforto e deleite sensual predispõe os homens para a obediência ao poder
comum” e que o “medo da morte e dos ferimentos produz a mesma tendência, e
pela mesma razão”. Assim, com o nascimento dessa racionalidade, é que se dá
através do medo. Para Hobbes (1998, p. 28) se a vaidade faz dos homens
eternamente competirem por precedência, glória e amor próprio, nenhum tipo de
associação pode prosperar e se fosse removido todo o medo a natureza humana
voltar-se-ia muito mais ávida para a dominação do que para a construção de uma
sociedade. Segundo ele, ao receber algum benefício de alguém, de quem
consideramos nosso igual, faz tender para o amor fingido, e na realidade para o
ódio secreto, pois nos coloca em situação de devedor e esta nos obriga, e a
obrigação é servidão. Para ele, a obrigação que não se pode compensar é servidão
perpétua; e perante um igual é odiosa. Entretanto, “ter recebido benefícios de
alguém a quem se considera superior faz tender para o amor, porque a obrigação
não é uma nova degradação, e alegre aceitação, a que se dá o nome de gratidão”
(2003, p. 87). Assim é que o medo da opressão predispõe os homens para
antecipar-se, procurando ajuda na associação, pois não há outra maneira de
assegurar a vida e a liberdade.
Entretanto o que vai, mais tarde, fundamentar a necessidade de
confiança no outro é a ignorância, a qual será observada na existência de alguém
que detenha o poder: o soberano para Hobbes. Para tanto, Hobbes (2003, p. 89)
afirma que a falta de ciência (conhecimento válido), isto é, a ignorância das
causas, obriga os homens a confiar na opinião e autoridade alheia, mesmo porque
todos os homens preocupados com a verdade, se não confiarem em sua própria
opinião deverão confiar na de alguma outra pessoa, a quem considerem mais sábia
que eles próprios, e não considerem provável que queira enganá-los.
Renato Janine Ribeiro (1978, p. 54) afirma que a seqüência teórica de
Hobbes se rompe quando entra em cena a religião, pois apesar de carecer de
ciência, ela é a principal obsessão de Hobbes. Segundo Ribeiro, o Estado dispõe
de duas ordens de explicação diferentes que repousam sobre o medo:
Medo de Deus: os mandamentos obrigam os homens à busca da paz durável
e, portanto, à submissão ao Leviatã, sob pena de castigo eterno. Medo dos
163
homens, medo do outro: desta vez os mesmos mandamentos se encadeiam
como teoremas, que apelam aos interesses mediatos dos homens, e a
permanente expectativa da agressão força o homem a submeter-se ao Estado.
Quando a razão concatena os seus teoremas, o axioma é sempre o medo
(1978, p. 54).
Hobbes (2003, p. 92/93) diz que é só no homem que se encontra
sinais, ou frutos da religião, a qual consiste em alguma qualidade peculiar, ou pelo
menos em algum grau eminente dessa qualidade, que não se encontra nas outras
criaturas vivas. Hobbes traz três motivos. O primeiro: é peculiar à natureza do
homem investigar as causas dos eventos a que assiste, o que ele chama de
curiosidade de procurar as causas de sua própria boa ou má fortuna; o segundo: é
peculiar ao homem, perante toda e qualquer coisa que tenha tido um começo,
pensar que ela teve também uma causa, que determinou esse começo no momento
em que o fez; o terceiro: diferente dos animais, pois a única felicidade é o gozo de
seus alimentos, repouso e prazeres cotidianos, o homem observa como um evento
foi produzido por outro, e recorda seus antecedentes e conseqüências.
Conforme Hobbes (2003, p. 94), o que faz o homem temer é o
desconhecido, pois este medo perpétuo que acompanha os homens ignorantes das
causas, como se estivessem no escuro, deve necessariamente ter um objeto. A
ignorância leva, portanto, o homem a calar quando portanto não há nada que possa
ser visto, nada acusam, quer da boa quer da má sorte, a não ser algum poder ou
agente invisível.
É de notar, portanto, que o objetivo era apenas manter o povo em
obediência e paz, atentando para incutir nas mentes a crença de que os preceitos
que ditavam a respeito da religião não deviam ser considerados como
provenientes de sua própria invenção, mas como os ditames de algum deus, ou
outro espírito, ou então de que eles próprios eram de natureza superior à dos
simples mortais, a fim de que suas leis fossem mais facilmente aceitas, bem como
de fazer acreditar que aos deuses desagradavam as mesmas coisas que eram
proibidas pelas leis e, por último, o de prescrever cerimônias, suplicações,
sacrifícios e festivais, os quais se devia acreditar capazes de aplacar a ira dos
deuses, razões pelas quais deveriam (os Deuses) ser venerados (Hobbes, 2003, pp.
100-101).
Hobbes aduz, ainda, que de todas as paixões, a que menos faz os
homens tenderem a violar as leis é o medo e, mesmo assim, esse medo pode levar
164
a cometer um crime. Neste sentido é que Ribeiro (1978, p. 14) afirma que “o
discurso científico de Hobbes, centrado na função referencial da linguagem, abre
caminho – para ceder-lhe o seu lugar – à fala conativa do soberano-pedagogo. A
ciência é o anticorpo criado pela organização da humanidade contra a guerra
civil”.
Conforme Santos (2000, p. 70), “o sujeito hobbesiano universalizado
estará pronto para receber todo benefício possível para a segurança e comodidade
de sua vida, a partir da compreensão e internalização dos princípios científicos da
política”. A idéia de Hobbes é mostrar que para impedir a insegurança nas
conturbadas relações de poder, é necessário o Estado. Parece evidente que o
sentimento de insegurança da sociedade esteja umbilicalmente ligado à divulgação
do aumento da criminalidade, a qual fornece os subsídios necessários – políticos,
sociais e psíquicos – para o enaltecimento do medo.
4.4.1.
O discurso do medo e as práticas de segurança
É preciso entender que este discurso do medo – com o qual é definido
a “cultura do medo”41 – produz a imagem necessária do terror social e como isto é
transferido de uma forma tão natural e espontânea ao senso comum42, exigindo
uma ação estatal cada vez mais disciplinadora e emergencial, típica dos estados
totalitários. Como conseqüência “natural”, há uma ideologização que garante uma
organização social rígida e hierarquizada, na qual “as classes subalternas, mais
que compreender em nível da razão, foram (e seguem sendo) levadas a ver e a
sentir seu lugar na estrutura social” (NEDER, 1993, p. 9.).
41
O termo “cultura do medo” é aqui empregado não a partir de uma conceitualização de “medo
individual”, ou seja, o medo resultante de uma perturbação de um perigo real, aparente ou algo
estranho ou desconhecido, mas o medo socialmente partilhado o qual corrompe (ou fabrica) o
senso comum, tornando propícia a dominação mediante a manipulação do imaginário.
42
O sentido de senso comum aqui referido, diferentemente de conhecimento científico, significa
os saberes cotidianos e do senso comum de nossa sociedade com as seguintes características: a) é
subjetivo, exprimindo sentimentos e opiniões individuais e de grupos; b) é qualitativo; c)
heterogêneo, pois se refere a fatos que julgamos diferentes, porque os percebemos como diversos
entre si; d) é individualizador, por serem qualitativos e heterogêneos; e) é generalizador, pois
tendem a reunir numa só opinião ou numa só idéia coisas e fatos julgados semelhantes; f) tendem a
estabelecer relações de causa e efeito entre as coisas ou entre os fatos; g) procuram projetar nas
coisas ou no mundo sentimentos de angústia e de medo diante do desconhecido; h) cristalizam-se
em preconceitos com os quais passamos a interpretar toda a realidade que nos cerca e todos os
165
Assim é que a referida retomada do chamado “Estado punitivo”
acontece no instante e diante do novo “mal-estar na cultura”, entendido agora não
só como Freud explicou, mas no predomínio do vazio e da indiferença em relação
ao “outro”. A cultura do medo, enfaticamente enraizada em nossa civilização,
reflete exatamente a produção do imaginário social ideologicamente43 efetivado e
amplamente divulgado, especialmente, mas não só, pela mídia, mas também pela
família e religião. A certeza (ainda que ilusória) de que estamos vivendo no caos,
aumenta a sensação de insegurança, entretanto é de se perceber que o dito
aumento da criminalidade não é um produto (resultado) do péssimo
funcionamento da sociedade, nem circunstâncias externas a ela, mas a
demonstração, irremediável, de que a “nossa sociedade está doente” (PLASTINO,
2001, p. 10).
Qual é o motivo dessa doença? Como, sob o ponto de vista sóciopolítico, a violência e a cultura do medo podem ser caracterizados como forma de
dominação?; Como, sob o ponto de vista da psicologia profunda, podemos
entender a interferência do medo na vida social da contemporaneidade?
Sob o primeiro ponto de vista, a violência e a cultura do medo
exercem papel fundamental em nossa sociedade. Fundada a partir da lógica da
dominação44, a sociedade interpreta determinados fatos, conforme a ideologia
vigente naquele momento histórico, ou seja, a lógica hegemônica do grupo
dominante deve prevalecer, difundindo a idéia principal através de pequenas
justificações, as quais permitirão, ante a presença do fato indesejado, mas real,
acontecimentos. In: CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. 7a ed., São Paulo: Ática, 1996, p.
174/175.
43
Para alcançar determinados objetivos, a ideologia pode trabalhar conforme três procedimentos, a
saber: a) pela inversão, quando coloca os efeitos no lugar das causas e transforma estas últimas em
efeitos, operando como o inconsciente, o qual fabrica imagens e sintomas, enquanto a ideologia
fabrica idéias e falsas causalidades; b) pela produção do imaginário social, através da imaginação
reprodutora. Recolhendo as imagens diretas e imediatas da experiência social, a ideologia as
reproduz, mas transformando-as num conjunto coerente, lógico e sistemático de idéias que
funcionam como representações da realidade e como normas e regras de conduta e
comportamento, formando um tecido de imagens que explicam toda a realidade e prescrevem para
toda a sociedade o que ela deve e como deve pensar, falar, sentir e agir; c) pelo silêncio, a
coerência e a unidade do imaginário social ou ideologia vêm do que é silenciado, operando
exatamente como o inconsciente descrito pela psicanálise. In: CHAUI, op. cit. pp. 174/175.
44
“Platão, no Político, ao dividir o reino animal em bestas mansas e selvagens – ou seja, entre
aqueles que, em função de sua natureza, se deixam dominar e os que resistem ao comando –
esclarece que o campo de atuação da ciência destinado a estabelecer os parâmetros para a
condução da polis possui, desde sempre, como referência, os animais mansos, e por isso deve ser
compreendida a partir do paradigma oferecido pela arte dos cuidados dos seres que vivem em
hordas ou grupos”, in: PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A lei: uma abordagem a partir da leitura
cruzada entre direito e psicanálise. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p 139.
166
que parcelas de sua liberdade sejam reprimidas a fim de manter (ou restaurar) a
ordem, ainda que em troca de arbitrariedade ou opressão. Diante disso, é notável o
tratamento político a ser evidenciado nesta co-relação de forças, visto que o medo
é traduzido como mecanismo de dominação política e social, tolhendo a liberdade
do indivíduo e reduzindo direitos dos cidadãos.
As razões de instalar o medo nas camadas mais baixas da população é
justificável ante a necessidade de implementação do Estado autoritário, ou seja,
quanto maior for o medo social maior será a carga de legitimação do Estado para
ter uma postura autoritária, surgindo, semelhante à ótica maquiaveliana, o
paradoxo no qual o medo social é necessário para que o Estado seja realmente
uma estrutura de poder.
Ao desenhar esse fenômeno, Baratta (1999, pp. 206/207) adverte que
sendo a sociedade capitalista baseada na desigualdade e subordinação, é
necessário um sistema de controle social do desvio altamente repressivo, através
de um sistema penal forte, típico do direito burguês, vez que o direito penal é um
instrumento precípuo de produção e reprodução das relações de desigualdade, de
conservação da escala social vertical e das relações de subordinação e exploração
do homem pelo homem.
Sob o segundo ponto de vista – o da psicologia profunda – conforme Freud,
o “mal-estar na cultura”, resultado da ambivalência afetiva originária, seria o
resultado da confluência do movimento de expansão de Eros (pulsão da
vida), acompanhado do movimento agressivo de Tânatos (pulsão de morte).
Entretanto este movimento ambivalente não ocorreu como anunciava Freud,
mas ante os pressupostos da modernidade, em especial a exacerbação e
glorificação do indivíduo – enquanto ser egoísta, dominador e onipotente,
caracterizando a condição narcísica da sociedade contemporânea –
significou uma grande perda ao sujeito, em especial a negação da existência
do outro. Esta dificuldade de lidar com as fantasia em relação ao gozo do
outro é que Slavo Zizek identifica como a matriz da intolerância social. Para
este autor esloveno aquilo que é desconhecido é fantasticamente aprisionado
pelo imaginário (CERQUEIRA FILHO, 1996, p. 90).
Débora Regina Pastana diz que “É desta forma que posturas
autoritárias se consolidam em nossa sociedade e a cultura do medo nos mostra
como o autoritarismo é interpretado e reproduzido” e, citando Marilena Chauí,
afirma que “a permanência das explicações antigas, apesar de seus enganos agora
percebidos, não resulta da obstinação, mas indica a emergência de uma figura que,
prometendo a paz e a segurança, tangerá o rebanho amedrontado: a autoridade
167
nascida da ambição e das cisões do corpo social [...] Transformando a explicação
imaginativa em doutrina e esta em ortodoxia, punindo com morte e exclusão toda
tentativa para substitui-la ou modificá-la, os que são movidos por ambição
dominam os que são movidos pelo medo” (PASTANA, 2003, p. 95).
Esta função é exercida, de forma invulgar, pela ideologia, ou seja,
opera dissuadindo e impedindo a visão do mais importante e prendendo ao
supérfluo. Sua função é assegurar igualdade de interpretação, ou seja, “modos de
entender a realidade e de se comportar nela ou diante dela, eliminando dúvidas,
ansiedades, angústias, admirações, ocultando as contradições da vida social, bem
como as contradições entre esta e as idéias que supostamente a explicam e
controlam” (CHAUÍ, 1996, p. 175).
Conforme Marilena Chauí (1996, p. 176), “ideologia e inconsciente
operam através do imaginário (as representações e regras saídas da experiência
imediata) e do silêncio, realizando-se indiretamente perante a consciência”. Se,
por um lado, o inconsciente necessita de imagens, substitutos, sonhos, lapsos, atos
falhos, sintomas, sublimação para manifestar-se, por outro, a ideologia necessita
de idéias-imagens, da inversão das causas e efeitos, do silêncio para manifestar os
interesses da classe dominante e escondê-los como interesse de uma única classe
social, sendo, portanto, o efeito necessário da existência social da exploração e
dominação, é a interpretação imaginária da sociedade do ponto de vista de uma
única classe social (CHAUÍ, 1996, p. 176).
Em termos psicanalíticos, o indivíduo está cada vez mais sozinho e
45
isolado
(conseqüentemente, vazio), enaltecendo cada vez mais o conteúdo
narcísico da sociedade. A cultura do medo, provocada pela moderna sociedade
globalizada (de consumo, de mercado, da competição, da atomização, etc.) está
causando o novo “mal-estar na sociedade”, ou seja, está minando as subjetivações
(as quais caminham em sentido contrário), não permitindo a conjunta expansão
das pulsões de vida e de morte.
45
Este isolamento é causado por diversas razões, mas, especialmente, pode-se dizer que o
argumento principal é o da segurança e comodidade ou, no mais das vezes, inversamente, é dizer,
o isolamento é a forma pela qual o indivíduo procura comodidade e segurança fazendo, por
exemplo suas atividades diárias, tais como ginástica, compras, estudos, etc., sem sair de casa. Isto
é possível verificar a partir das opções de vida das pessoas. Veja-se, por exemplo, os grandes
muros que são construídos para proteção das casas, as pessoas cada vez mais fazendo suas
atividades loborativas (trabalhos escritos, consultorias, vendas, etc.) e domésticas (lazer, compras,
estudos, passeios virtuais, etc.) de dentro de casa, as inovações tecnológicas a serviço da
comodidade e isolamento, etc.
168
A partir da conjuntura contemporânea do pânico, o medo não deve ser
entendido como uma conseqüência dos tempos difíceis, mas como uma opção
ideológica e estética, uma maneira de interpretar a realidade, o qual é retomado a
cada ameaça de tomada de espaço pelas forças populares. A difusão do medo do
caos e da desordem tem servido para justificar estratégias de exclusão e
disciplinamento planejado das massas empobrecidas (BATISTA, 2002, p 205.).
O medo invade, por não se saber medo de que, o imaginário do
indivíduo de forma tão voraz que não se percebe, verdadeiramente, suas profundas
razões. Este sentimento de insegurança e de medo é que justifica ao Estado tomar
medidas simbólicas cada vez mais autoritárias, fortalecendo o imaginário da
ordem, causando uma diminuição dos espaços sociais, o isolamento gradativo e
voluntário das vítimas (qualquer um pode ser vítima, ou seja, medo de tudo e de
todos – nisso reside a impossibilidade de ver o outro e, mais especificamente,
como um inimigo que devemos excluir ou, na maioria das vezes, destruir),
exacerbando o individualismo, característicos da sociedade contemporânea.
É grande o interesse na exploração da violência, e o medo exerce uma
função exemplar a estes propósitos, permitindo a indução de práticas necessárias
ao cumprimento da função velada do cárcere: a formação do proletariado
industrial e desenvolvido no controle da reprodução da força de trabalho
assalariada.
Como visto, considerando-se as origens do sistema prisional e suas
funções econômicas que ele assume, em especial pelas idéias protagonizadas por
diversos autores de matiz marxista, o cárcere exerce esse perverso fascínio de
poder, pois ao mesmo tempo que possibilita o caráter repressivo através de suas
técnicas de poder (de disciplinamento dos corpos e controle), é possível
vislumbrar que o sistema penal (especialmente a prisão) exerça outros importantes
papéis na sociedade contemporânea por exemplo, atuando como um poderoso
regulador do valor do capital variável (valor da força de trabalho – salário), isto
porque estes trabalhadores, expulsos do mercado de trabalho pela sua abundância,
tornam-se fatores determinantes à desvalorização da mão-de-obra.
169
Em função dessa população excedente – explorada e criminalizada46 –
mantém-se uma estreita relação entre a precarização do estado social, o
agravamento da situação econômica (desemprego) com crescimento da população
marginalizada – excluída – e o recrudescimento das políticas penais de
encarceramento (principalmente sobre a população pobre, tóxico-dependentes e
imigrantes), estabelecendo-se um relacionamento com o princípio de less
eligibility, ou seja, ainda que fossem péssimas as condições oferecidas ao
trabalhador estas seriam melhores do que aquelas impostas no cárcere ao
indivíduo, o qual daria maior preferência a determinada situação fora do cárcere,
sujeitando-o àquelas condições determinadas pelo sistema produtivo.
Os dados levantados por Loïc Wacquant (2001, p. 28), indicando a
vulgarização dos direitos sociais são estarrecedores. Só para se ter idéia, Nova
York, cidade símbolo mundial da segurança pública, fruto da divulgação das
políticas de “tolerância zero”, registra uma extraordinária expansão dos recursos
destinados à manutenção da ordem, aumentando seu orçamento para a polícia em
40%, ou seja, quatro vezes mais que as verbas destinadas aos serviços públicos de
saúde. No mesmo sentido, houve um corte de 30% nos gastos com os serviços
sociais da cidade, resultando em uma perda de 8.000 postos de trabalho.
Ao ser questionado sobre o desaparecimento do Estado Econômico,
diminuição do Estado social, reforço e glorificação do Estado penal, Wacquant
(2001a, p. 135), afirma que “esta fórmula tem por fim indicar que hoje não se
pode compreender as políticas policiais e penitenciárias nas sociedades avançadas
sem recolocá-las no quadro de transformação mais ampla do Estado,
transformação que é, ela mesma, ligada às mutações do emprego e à oscilação da
relação de forças entre as classes e grupos que lutam por seu controle”, o que
caracteriza o conteúdo da violência estrutural e institucional do Estado,
possibilitando estabelecer a conexão entre o modelo econômico neoliberal, a
desregulamentação dos direitos sociais e trabalhistas e a retomada do Estado
punitivo.
46
Há estudos recentes que procuram relacionar índices de desemprego com taxas de
encarceramento. Entre os autores, destacam-se, Stevem Box e Chis Hale que analisam a realidade
européia da década de 1970 e 1980, Bruce Western e Katherine Beckett, que analisam a relação de
funcionalidade das políticas penais e desemprego, nos Estados Unidos, nas décadas de 1980 e
1990 e, mais recentemente, Loïc Wacquant, que analisa a ação do neoliberalismo no Estado de
bem-estar social e sua profundas conseqüências, em especial a substituição do Estado social pelo
Estado penal.
170
4.5.
O controle total da vida dos corpos (ou dos corpos vivos)
Do que foi visto até agora, é possível identificar uma certa tendência
na sociedade contemporânea em apresentar conseqüências devastadoras, do ponto
de vista do pleno desenvolvimento das condições humanas, em função das novas
tecnologias e da imposição e implementação das políticas econômicas neoliberais,
isto porque, do que se tem mostrado até então, as gritantes desigualdades e a
polarização social são marcantes. A governabilidade é o tema central do
pensamento político conservador e o que se vê é o reforço dos poderes autoritários
dos estados na utilização dos avanços tecnológicos para o controle social das
massas e das mentes dos indivíduos.
É importante, portanto, começar a perceber que a elaboração de um
saber que busca a verdade através de técnicas específicas de dominação
alcançadas por diversos meios como as técnicas de produção de objetos
(mercadorias) e pelos dispositivos racionais de práticas governamentais próprios
de uma população (saúde, natalidade, etc.) e destinados a dirigir suas condutas
(seu querer e seus desejos) estabelece a possibilidade do entendimento da relação
da violência perpetrada pelos órgãos de governo em detrimento da população, seja
ela estrutural, institucional ou social, permitindo-se o controle social através das
políticas públicas (políticas econômicas, políticas sociais, políticas penais
encarceradoras e criminalizadoras, etc).
É possível, por exemplo, testemunhar diversos acontecimentos no
último quarto de século XX e início do século XXI que demonstram toda
dramatização e conseqüências da implementação das políticas de que falamos
acima, especialmente o aumento da miséria e exclusão social, o aumento das taxas
de encarceramento e da criminalização e os danos ambientais – que sugere, por
exemplo, o progresso pelo progresso numa alegoria infundada de que os recursos
naturais são inesgotáveis. Quero, entretanto, chamar atenção para o consenso
ideológico neoliberal do qual nos alerta Mészáros (2004, p. 14), isto porque de
certo modo, com a implosão do sistema soviético os fatos foram relegados ao
esquecimento para se criar a “aparência de um consenso ideológico racional
dominante”. Chegou-se a falar em “fim da história”. Há diversos consensos que
171
ressaltam essa lógica, por exemplo, a necessidade de privilegiar a segurança
pública em detrimento de outros direitos como a saúde, educação, moradia, etc.
Cumpre lembrar, também, como exemplo desse consenso ideológico
racional dominante – e pano de fundo da relação entre a aparência e essência do
capital –, o resultado histórico social da adoção do avanço tecnológico e da
produção automatizada (que significa economia da força de trabalho) como
necessidade de se dar maior eficiência ao processo produtivo em detrimento das
contradições orientadas dentro do paradigma neoconservador, de viés liberal,
fazendo com que não se perceba que o aumento do tempo livre do trabalhador não
significará, simultânea e conjuntamente, seu pleno desenvolvimento, isto porque é
dentro do próprio sistema que reside a impossibilidade de se usufruir esse tempo
plenamente e, igualmente, sobreviver.
Não é possível, portanto, o desenvolvimento conjunto do capital e do
indivíduo, em função de que a violência é estrutural aos propósitos do capitalismo
uma vez que no processo “capitalista civilizatório”, baseado no valor de troca e
tendo como meta a acumulação e expansão do capital, está implícito um intenso
processo de expropriação, isto é, a violência é tanto maximizada pela divulgação
e, portanto manipulada pelas redes de poder da “subjetividade” dos indivíduos,
como ela está, propriamente, nas relações sociais, na sociedade civil – para usar
uma expressão hegeliana.
É preciso identificar esta pequena e importante diferença e perceber a
relação que há entre elas, pois se por um lado há violência nas relações de
trabalho e suas mutações, bem como em diversas relações com o Estado, por outro
há a manipulação dos desejos como mecanismos pelos quais se busca o controle
total da vida dos corpos.
As estratégias para tudo isso são muito importantes e na maioria das
vezes passam despercebidas: são os discursos e as práticas que viabilizam todo
esse processo de subjetivação. O conteúdo da violência, entretanto, independente
de sua origem (institucional ou estrutural), produz a necessidade do indivíduo em
se proteger, é dizer, estas situações desembocam na constituição do medo e na
indução de práticas, requerendo a efetividade dos sistemas de proteção estatal.
Esta idéia está clara na introdução da tese de doutorado da Professora Vera
Malaguti Batista (2003, p. 23) quando ela abre a hipótese central de seu trabalho
afirmando que “a hegemonia conservadora na nossa formação social trabalha a
172
difusão do medo como mecanismo indutor e justificador de políticas autoritárias
de controle social”, permitindo, com isso, legitimar a tomada de posição nos
diversos campos de atuação estatal: econômico, social e político.
Em sua pesquisa, Malaguti Batista (2003, p. 28) observa que no Brasil
imperial, mesmo diante da perspectiva de uma grande rebelião escrava, não houve
qualquer manifestação no sentido de se debater mudanças na própria sociedade
violentamente hierarquizada, especialmente em função da instituição da
escravidão. A interessante observação (pesquisa) de Vera Malaguti revela ainda
que havia denúncias de uma articulação internacional envolvendo malês, haitianos
e abolicionistas ingleses, ou seja, havia a tentativa de se colocar os problemas dos
conflitos sociais para fora da própria sociedade imperial (não se poderia
questionar a escravidão), jogando a responsabilidade ao inimigo de fora, ao outro,
àquele desconhecido, a fim de estabelecer (e de fato foram estabelecidas) severas
estratégias de controle social. Este interessante exemplo do século XIX pode ser
fielmente equiparado com a situação contemporânea (veja-se, por exemplo, “a
guerra contra o terrorismo” ou o discurso do “aumento da criminalidade”).
Esta pesquisa histórica mostrou que na sociedade do Brasil colônia e
imperial a “evangelização era o suporte superestrutural da conquista, através da
pedagogia do pecado, da morte e da culpabilização; era o universo penitencial que
tratava de ser interiorizado individualmente através da experiência subjetiva”, pois
era preciso “um medo desproporcional à realidade para manter violentas políticas
de controle sobre aqueles setores que estavam potencialmente a ponto de rebelarse e implantar a ‘desordem e o caos’” (Cf. Malaguti Batista, 2003, p. 30).
Assim, numa sociedade forjada a partir de um referencial econômico,
de viés neoliberal, travestida pela metáfora do mercado, induzida a determinados
desejos, diretamente vinculados aos pressupostos de realização e expansão do
capital, buscará implantar, igualmente aos moldes históricos, estratégias de
políticas de segurança pública estatal que contam com um novo modelo de
dominação, não mais exercido pelo autoritarismo, mas pela tentativa de indução
das práticas dos indivíduos (produção dos desejos) e produções de subjetividades,
o que corresponde hoje à busca incontrolada pelo consumo. É exatamente nestes
processos de subjetivação que se pretende o controle social das massas, porque a
procura do consumidor é incessante e, especialmente deve-se mantê-los
“permanetemente insatisfeitos”. Para Vera Malaguti (2003, p. 79) os
173
consumidores falhos – os que não conseguem ser consumidores – são os novos
impuros, portanto, como o novo critério de pureza, ou de reordenamento, é a
aptidão e a capacidade de consumo, àqueles que não se inscrevem nesta nova
ordem estarão submetidos às estratégias de privatização, desregulamentação e
controle da vida, isto porque “o ideal de pureza da pós-modernidade passa pela
criminalização dos problemas sociais”.
É aqui que reside a grande importância de se entender essa passagem,
pois se de um lado havia a disposição sobre a vida, agora é a vida “dos
condenados” – impuros e os não consumidores – que se pretende controlar com a
adoção
das
políticas
econômicas
e
penais
cada
vez
mais
severas.
Significativamente em relação as políticas de segurança pública e, em função do
exacerbado sentimento de medo instalado, na sociedade contemporânea,
umbilicalmente vinculado com um sentimento de insegurança, em detrimento da
implementação de políticas públicas de segurança (moradia, saúde, educação,
etc.), é possível verificar seus efeitos devastadores – a progressiva pauperização
da população, às devastações ambientais, a destruição das instâncias coletivas e,
em conseqüência, a destruição do indivíduo e dos processos de subjetivações, etc.
– em relação aos indivíduos que ficam “sujeitados” a um violento e funcional
processo de anulação do seu status jurídico, o que proporciona o espaço próprio
da biopolítica (seu significado é o estado de exceção), fomentando, cada vez mais,
novas formas de controle e de reprodução do capital.
Estes temas serão debatidos no próximo capítulo.
5
MERCADO E PRODUÇÃO NORMATIVA DA DECISÃO
POLÍTICA
5.1. A biopolítica e os Direitos Humanos. 5.1.1 Os novos espaços e as novas estratégias de poder:
o biopoder. 5.1.1.1 Um primeiro significado: economia e biopolítica como estratégia de poder.
5.1.1.2 Um segundo significado: o biopoder, Direitos Humanos e a guerra perpétua. 5.1.1.3 Um
terceiro significado: exclusão social, excesso de biopoder e violação dos Direitos Humanos. 5.2 O
mercado como centro de produção normativa e de decisão política. 5.2.1 A exacerbação da
divulgação de atos de violência como mecanismos de controle. 5.3 O estado de exceção. 5.4
Controle social e reprodução do capital: a face oculta da mesma “moeda”. 5.4.1. O controle social
na ordem capitalista globalizada. 5.4.2 A gestão política de Segurança Pública conservadora:
“eficientismo penal”, “tolerância zero” e “teoria das janelas quebradas” como controle social de
classe. 5.4.3 A privatização das prisões: retirada da “sujeira” pelo controle social. 5.4.4 O controle
social privatizado: a exploração econômica do medo
Chegamos neste último capítulo com o propósito delineado:
estabelecer a relação entre a maximização da divulgação do crescimento da
violência – atos terroristas internacionais, guerras internacionais, violência urbana,
tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, etc. – e a criação do sentimento social de
necessidade de combatê-la através de políticas de segurança pública
conservadoras, em especial através da inscrição da vida numa sociedade de
controle, a fim de compreender as implicações das economias de mercado na
conjuntura contemporânea, especialmente a brasileira, absolutamente polarizada e
marcada pela exclusão social.
Muito embora seja um caminho muito longo – pois deverá,
necessariamente, transitar e aprofundar determinados conceitos importantes como
“biopoder”, biopolítica”, “Direitos Humanos”, “produção de subjetividade”,
dentre outros – por certo, o objetivo não é “dizer a verdade” mas estabelecer
pontos de partida para o entendimento da relação entre políticas públicas, controle
social e conflitos sociais.
Considerando os objetivos da pesquisa e os três primeiros capítulos
apresentados foi possível entender, de certa forma e a partir de alguns autores de
viés crítico, o funcionamento do sistema econômico neoliberal – as chamadas
economias de mercado – mas sobretudo questionar: o problema da segurança
pública é prioritário em detrimento aos direitos sociais? O incremento às relações
típicas desse modelo econômico globalizado favorece ao aparecimento de novas
175
formas de controle? Quais os interesses na exploração e divulgação da violência
(por exemplo, as guerras internacionais, combate ao tráfico ilícito de
entorpecentes e armas, guerra contra o terrorismo, etc.), à consecução das
finalidades resultantes da lógica de mercado em detrimento aos direitos e
garantias fundamentais? Os modos de subjetivação, a sobreposição das novas
tecnologias de poder, disciplinar e de controle, têm efeitos sobre os Direitos
Humanos? Quais conseqüências resultam com a adoção de políticas públicas
neoliberais, especificamente em relação à segurança pública, a partir dos modelos
denominados como “políticas de tolerância zero”, “movimentos de lei e ordem”?
Os resultados causados pela criação de inimigos comuns (especialmente o tráfico
ilícito de drogas, armas e o terrorismo) e divulgação da multiplicação de atos
violentos, possibilita a inserção de novos mecanismos de exploração (econômica)
e de controle?
Estas são as questões que pretendo discutir a partir de agora.
5.1.
A biopolítica e os Direitos Humanos
5.1.1.
Os novos espaços e as novas estratégias de poder: o biopoder
Michel Foucault1 quando inicia suas análises colocando no centro da
discussão o problema da “verdade”2, faz também um descortinamento dos
dispositivos de poder. Para ele (Foucault, 2002b, p. 28-29) nas sociedades
1
Michel Foucault nasceu em Poitiers, em 15 de outubro de 1926 e faleceu em Paris em 26 de
junho de 1984. Foi professor da cátedra “História dos Sistemas de Pensamento” no Collège de
France de 1970 a 1984. Apesar não ser aqui a primeira vez que cito o nome de Michel Foucault,
entendo ser importante esclarecer, agora, alguns pontos da vida do autor, especialmente o fato de
que ele estudou, dentro da filosofia do conhecimento, temas importantes como o “saber”, o
“poder” e o “sujeito”. Esta relação permitiu que Foucault, ao estudar o tema do “poder”, rompesse
algumas concepções, especialmente indicando que ele (o poder) não estava situado no Estado ou
instituição, mas perpassava diversas instâncias e estratégias produzindo diversos saberes e
verdades.
2
Castor Ruiz (2004 b, p. 20) afirma que a verdade passa por uma construção histórica e situa-se
em relação a um discurso, ou seja, ela sempre se encontra atravessada pelos interesses de quem a
formula, isto porque “nela interferem o conjunto de saberes que, de modo integrado, a produzem
como a sustentação e a legitimação do ser e do fazer de uma determinada prática”. Ainda
conforme Ruiz é a partir da constituição da verdade que se estrutura a dicotomia dos
conhecimentos verdadeiros e falsos e ela se “auto-institui como ponto arquimédico em torno do
qual se articulam as redes dos saberes e das práticas. É deste modo que ela se torna o eixo do
poder”.
176
contemporâneas ocidentais as relações de poder constituem o corpo social e elas
não podem dissociar-se, nem estabelecer-se, nem funcionar sem uma produção,
uma acumulação, uma circulação, um funcionamento do discurso verdadeiro,
possibilitando uma particular relação entre poder, direito e verdade, isto porque
para ele temos que produzir verdades para produzir riquezas.
É preciso, neste momento, portanto, estabelecer a razão (fio condutor)
entre as análises de Foucault em relação ao poder e suas pesquisas iniciais sobre a
história das penalidades, porque a investigação empreendida por ele estabelecerá
as conexões entre este tipo específico de poder (que ele chamou de poder
disciplinar) e os cálculos e mecanismos de poder nas relações com a vida dos
homens (biopolítica). A realização dessa genealogia do poder (não histórica, mas
um estudo das multiplicidades de lutas) tem lugar a partir do momento que ele
interpreta o poder não como uma concessão individual ao soberano em função do
contrato social estabelecido, mas como relação de forças que sempre permeiam a
atividade social.
Quando
sua
pesquisa
penetra
nas
relações
institucionais,
especificamente nos hospitais psiquiátricos e nas prisões, Foucault (1987, p.
27/29) pondera que “os sistemas punitivos devem ser recolocados em uma certa
‘economia política’ do corpo, ou seja, sua investigação já pretendia estudar a
relação da tomada do poder sobre os corpos, pois entendia que este (o corpo)
estava “mergulhado num campo político” e que “as relações de poder têm alcance
imediato sobre ele”. Foucault chama de “tecnologia política do corpo” a este
‘saber’ do corpo e ao controle de suas forças de forma estratégica, com a
finalidade de dominação através de manobras, técnicas e táticas.
É a partir desse momento que Foucault analisa as técnicas de poder
centradas no corpo, com o propósito de demonstrar que essa nova tecnologia seria
utilizada para discipliná-lo, adestrando-o ao modo de produção econômico e
político que estava sendo estabelecido a partir do início do século XVIII.
As pesquisas realizadas por Foucault mostram, então, que nos séculos
XVII e XVIII aparece esta nova mecânica do poder que incide diretamente sobre
os corpos e sobre o que eles fazem. Para Foucault (2002b, p. 42-43) este tipo de
poder se opõe à mecânica que a teoria da soberania estabelecia, pois esta é
vinculada a uma forma de poder que se exerce sobre a terra e seus produtos muito
mais que nos corpos.
177
Este poder não soberano, que Foucault denomina “poder disciplinar”,
possui uma enorme eficácia produtiva, sendo, portanto um dos elementos
fundamentais à implantação do capitalismo industrial e da sua correspondente
sociedade, isto porque “é um mecanismo de poder que permite extrair dos corpos
tempo e trabalho, mais do que bens e riqueza. É um tipo de poder que se exerce
continuamente por vigilância e não de forma descontínua por sistemas de tributos
e obrigações crônicas. É um tipo de poder que pressupõe muito mais uma trama
cerrada de coerções materiais do que a existência física de um soberano, e define
uma nova economia de poder cujo princípio é o de que se deve ao mesmo tempo
fazer que cresçam as forças sujeitadas e a força e eficácia daquilo que as sujeita”
(Cf. Foucault, 2002b, p. 42). Ao desenvolvimento do capitalismo foi essencial o
controle dos corpos, não só com o fim de treiná-los e docilizá-los, mas permitir
uma adequada relação corpo-produção, ou seja, foram necessários mecanismos e
processos que se desenvolveram através dos aparelhos de Estado e instituições de
poder que garantiram as relações de produção, mas também estratégias
biopolíticas foram fundamentais. Conforme Foucault (2005, pp. 132-133),
(...) os rudimentos de anátomo e de bio-política, inventados no século XVIII
como técnicas de poder presentes em todos os níveis do corpo social e
utilizadas por instituições bem diversas (a família, o Exército, a escola, a
polícia, a medicina individual ou administração das coletividades), agiram
no nível dos processos econômicos, do seu desenrolar, das forças que estão
em ação em tais processos e os sustentam; operaram também, como fatores
de segregação e de hierarquização social, agindo sobre as forças respectivas
tanto de uns como de outros, garantindo relações de dominação e efeitos de
hegemonia; o ajustamento da acumulação dos homens à do capital, a
articulação do crescimento dos grupos humanos à expansão das forças
produtivas e a repartição diferencial do lucro, foram, em parte, tornados
possíveis pelo exercício do bio-poder com suas formas e procedimentos
múltiplos. O investimento sobre o corpo vivo, sua valorização e a gestão
distributiva de suas forças foram indispensáveis naquele momento.
Com estas estratégias de poder incidindo diretamente sobre os corpos
(podendo ser chamada de dispositivo ou mecanismo de poder) foi possível atingir
dois grandes objetivos utilitários: um econômico e outro político. Do ponto de
vista econômico foi possível extrair o máximo de força de trabalho e, do ponto de
vista político, a diminuição da capacidade de organizar uma força política apta a
enfrentar as ordens do poder. Efetivamente, é o domínio econômico e político dos
corpos.
178
Nos estudos sobre a história da repressão (que se inicia com “História
da Loucura” e em “Vigiar e Punir”) Foucault consegue relacionar a passagem da
punição à vigilância, justamente no momento que corresponde à formação de um
novo tipo de exercício do poder, isto porque se percebe ser mais eficaz vigiar do
que punir. Neste momento, entretanto, esta mecânica do poder aliada ao
disciplinamento dos corpos foi extremamente necessária ao funcionamento do
modelo de sociedade (capitalista e industrial) que surgia por dois motivos:
primeiro porque a disciplina é o mecanismo por excelência de controle do corpo
pelo tempo (máxima produtividade, máxima exploração, no menor tempo
possível) e, segundo, porque a vigilância exercida de forma contínua permite o
melhor controle.
Assim, importante assinalar uma das principais análises que as
pesquisas de Foucault proporciona entender: a importância da disciplina na
constituição do indivíduo, uma vez que foi a partir das separações, divisões,
hierarquizações e classificações, que surgiu a possibilidade de identificar o
indivíduo como louco, delinqüente, excluído, etc., permitindo com isso um efetivo
controle social dos sujeitos agora individualizados, separados, classificados.
A prisão e o trabalho realizado dentro dos estabelecimentos penais
cumprem,
fielmente,
esta
função
de
controle
social
pela
disciplina
individualizante e classificatória, pois como analisa Foucault (2002b, p. 131-133),
o trabalho realizado nos estabelecimentos penais jamais teve o fim ressocializador
ou de permitir o aprendizado de um ofício, mas sim o aprendizado da própria
“virtude do trabalho”, ou seja, a realização de um trabalho qualquer, “de trabalhar
por trabalhar, deveria dar aos indivíduos a forma ideal do trabalhador”.
De forma semelhante, conforme relata Foucault, desde 1820 se
percebeu que a prisão serviu para criar ou incrementar a quantidade de criminosos
(ou aumentar a quantidade de crimes praticados), sendo “que houve, como sempre
acontece nos mecanismos de poder, uma utilização estratégica daquilo que era um
inconveniente. A prisão fabrica delinqüentes, mas os delinqüentes são úteis tanto
no domínio econômico como no político” (2002b, p. 132). Foi a partir do
momento que se necessitou da proteção da riqueza que iniciou uma grande
campanha de moralização sobre a população do século XIX permitindo-se, no
sentimento popular, a necessidade da separação entre um sujeito honesto e o
delinqüente e, conforme Foucault (2002b, p. 133) “separando nitidamente o grupo
179
de delinqüentes, mostrando-os como perigosos não apenas para os ricos, mas
também para os pobres, mostrando-os carregados de todos os vícios e
responsáveis pelos maiores perigos. Donde o nascimento da literatura policial e da
importância, nos jornais, das páginas, das horríveis narrativas de crimes”.
Para este fim – controle social – surge o que Foucault denominou
como sendo a biopolitização ou a estatização do biológico, “um dos fenômenos
fundamentais do século XIX” que foi “o que se poderia denominar a assunção da
vida pelo poder” (Foucault, 2002b, p. 286), ou seja, “uma tomada de poder sobre
o homem enquanto ser vivo”, o que ele denominou de estatização do biológico e,
a partir de então, tornou-se possível o acesso à vida das pessoas. São as pessoas
que fazem parte desse poder (mesmo que não saibam). Seria melhor dizer: é a
politização do poder da vida, ou ainda, politização do poder de controlar a vida.
Diferentemente da disciplina que era dirigida ao corpo, na tentativa de
treiná-los, vigiá-los e puni-los, Foucault (2002b, pp. 289) afirma que:
a nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não
na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela
forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto
que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a
produção, a doença, etc. Logo, depois de uma primeira tomada de poder
sobre o corpo que se fez consoante o modo da individualização, temos uma
segunda tomada de poder que, por sua vez, não é individualizante mas que é
massificante, se vocês quiserem, que se faz em direção não do homemcorpo, mas do homem-espécie. Depois da anátomo-política do corpo
humano, instaurada no decorrer do século XVIII, vemos aparecer, no fim do
mesmo século, algo que já não é uma anátomo-política do corpo humano,
mas que eu chamaria de uma “biopolítica” da espécie humana”.
Foucault aplica a noção de biopolítica sempre à população, é dizer, o
modo pelo qual o poder passa a gerir os agrupamentos humanos de modo a extrair
deles a maior força produtiva e evitar inconvenientes políticos, chegando-se ao
indivíduo pela população. As tecnologias de poder – disciplinar do corpo e
regulamentadora da vida – por serem, como visto, categorias sobrepostas e não se
excluírem, podem ser articuladas uma a outra e passam, cada vez mais, a incluir a
vida dos homens nos cálculos de poder, transformando a política em biopolítica.
É possível, então, a partir de Foucault, perceber um relativo
desenvolvimento nas estratégias de poder, porque desde a Idade Média,
principalmente nas sociedades ocidentais, a elaboração do pensamento jurídico
180
estará a serviço do poder real. Assim, é exatamente quando o poder real se esvazia
que serão discutidos, do ponto de vista jurídico, seus limites, direitos e poderes
para afirmar a exata adequação do seu poder ao direito fundamental ou, ao
contrário, para mostrar a necessidade da limitação ao poder do soberano, as regras
a que ele deveria submeter-se e os limites do exercício do poder para que este
conservasse sua legitimidade. A teoria do direito, da Idade Média em diante, tem
o papel essencial de estabelecer a legitimidade do poder, ou seja, retirar o
elemento de dominação do poder fazendo aparecer os direitos legítimos da
soberania e obrigação legal da obediência. (Cf. Foucault, 2002a, pp. 180-181).
Entretanto o que se verifica é que o direito (aqui entendido em sentido
amplo, como as normas, instituições, regulamentos, etc.) se constituiu como um
importante mecanismo de dominação – realizada através dos múltiplos e
microscópicos poderes – e técnica de sujeição, o que possibilitará, em função da
íntima relação estabelecida entre discurso da verdade, direito e poder, controlar
tanto a ordem disciplinar do corpo quanto a regulamentação de uma população.
A partir do século XVII desenvolvem-se as estratégias políticas do
corpo – primeiro anatômicas – como as disciplinares, de adestramento, de
aumento de suas aptidões na retirada de suas forças, sempre levando-se em conta
o binômio docilidade e utilidade e, depois, a partir da metade do século XVIII,
desenvolvem-se as estratégias em função do corpo-espécie – como as técnicas
regulamentadoras e os processos biológicos da população como as intervenções
nas condições de vida de todos e estratégias individualizantes e especificantes –
voltadas ao desempenho do corpo, que se inicia, então, o desenvolvimento da
organização dos poderes sobre a vida, os quais permitem caracterizar a função de
gerir a vida e não mais de causar a morte, ou seja, não mais o direito do soberano
de causar a morte mas, agora, um poder de causar a vida.
Este novo mecanismo de poder, centrado no corpo (biopoder) e não na
terra (soberania), permite extrair a força de trabalho necessária à produção e a
constituição do capitalismo industrial. O controle, portanto, não precisa ser
exercido diretamente pelo soberano, mas por inúmeros mecanismos de poder
responsáveis pela normalização disciplinar e regulamentadora.
181
5.1.1.1.
Um primeiro significado: economia e biopolítica como estratégia de
poder
Hannah Arendt (1994, p. 20) destaca a impossibilidade do diálogo
entre passado e futuro nas experiências políticas e progressos tecnológicos da
ciência, vez que o século XX foi pródigo ao encontrar na violência e nas diversas
possibilidades de destruição em massa formas de controle, significando a
intromissão massiva da violência criminosa na política, indicando, ainda, que as
novas gerações cresceram sob a cumplicidade dos massacres como os campos de
concentração, o terrorismo, o genocídio, guerras civis, etc.
Em contrapartida, ou seja, ante a complexa relação do indivíduosujeito e o mundo dos direitos humanos, entre situações de conflito social e
agressão aos direitos individuais e coletivos, percebe-se que o discurso da
igualdade, da paz e da solidariedade, está de mãos dadas com o egoísmo, a
opressão, o xenofobismo, o acúmulo de capitais, em resumo, as “democracias de
mercado”.
Surge, então, o paradoxo entre racionalidades: se, por um lado,
pretende-se um mundo melhor e mais digno, por outro encontramos a barbárie das
guerras, da exploração do trabalho infantil, da exploração sexual, a precarização à
relação e aos direitos trabalhistas, o “falecimento” do estado de bem estar social, a
exploração
dos
países
de
primeiro
mundo
em
relação
aos
países
subdesenvolvidos, etc., surgindo com mais intensidade um estado policial e não
mais social.
Importante assinalar e trazer as informações da pesquisa realizada por
Agamben, na qual ele aponta que o referido artigo 483 da Constituição de Weimar
fora utilizado em diversas oportunidades, declarando o estado de exceção e
promulgando decretos de urgência em mais de 250 ocasiões4. Os governos da
República de Weimar, de 1919 a 1924 e especialmente depois de 1929,
3
Dizia o art. 48 da Constituição Alemã: “O presidente do Reich pode, caso a segurança pública e a
ordem sejam gravemente perturbadas ou ameaçadas, tomar as decisões necessárias para o
restabelecimento da segurança pública, se necessário com o auxílio das forças armadas. Com este
fim pode provisoriamente suspender os direitos fundamentais contidos nos artigos 114, 115, 117,
118, 123, 124 e 153”.
4
Em algumas ocasiões o decreto que determinava o estado de exceção se prolongou por 5 meses,
como foi o caso do decreto de setembro de 1923 que vigeu até fevereiro de 1924 (Cf. Agamben,
2002, p. 174-175).
182
utilizaram-se do artigo 48 para “prender militantes comunistas e para instruir
tribunais especiais habilitados e decretar condenações à pena de morte. Em várias
oportunidades, especialmente em outubro de 1923, o governo usou o art. 48 para
enfrentar a queda do marco, confirmando a tendência moderna de fazer
coincidirem emergência político-militar e crise econômica” (Agamben, 2004, p.
29).
Importante assinalar a análise realizada por Michael Hardt e Antônio
Negri (2005) sobre o estado de guerra global que estamos envolvidos, isto porque,
partindo-se da fórmula de Clausewitz (a guerra é uma extensão da política por
outros meios), de certa forma, hoje é difícil fazer uma leitura correta e distinguir
entre guerra e política, significando, pois, que a guerra tornou-se o princípio da
organização da sociedade, transformando-se “na matriz geral de todas as relações
de poder e técnicas de dominação, esteja ou não envolvido o derramamento de
sangue”, transformando-se também num regime de biopoder destinado a controlar
a população, mas também a produzir e reproduzir todos os aspectos da vida social
(2005, p. 34).
Assim é que a “metáfora” da guerra é utilizada para combater diversos
inimigos, tanto do ponto de vista das políticas sociais como também das guerras
propriamente ditas, isto porque a alteração no conceito e na forma como as
guerras são combatidas possibilita um perpétuo estado de beligerância. Veja-se,
por exemplo, os discursos de combate à pobreza, à fome, à erradicação de
determinadas doenças (dengue, AIDS, pólio, etc.) que envolve intensas políticas
sociais, bem como aquelas ações que pretendem combater as drogas e o
terrorismo, que envolvem, também, discursos e políticas públicas aptas a
realizarem a guerra.
Para Hardt e Negri (2005, p. 35-37) estes novos tipos de guerras
(guerras contra as drogas e contra o terrorismo) têm conseqüências importantes no
contexto da vida social: primeiro, por serem inimigos indefinidos e imateriais, não
há limites em termos espaciais e temporais, ou seja, como há um necessário e
ininterrupto exercício do poder e da violência, ela deve ser combatida diariamente,
tornando-se difícil a distinção entre a guerra e atividade policial; segundo, como
conseqüência da dificuldade de distinção entre guerra e atividade policial, as
relações internacionais e a política interna tornam-se cada vez mais parecidas, ou
seja, atividade militar (inimigo externo) e policial (classes perigosas como inimigo
183
interno) se confundem e; terceiro, é a reorientação da concepção de aliança, isto
porque na medida em que o inimigo é abstrato e ilimitado, as alianças se tornam,
potencialmente, universais.
Em relação a esta última conseqüência, importante ressaltar a
necessidade de hoje estar ganhando espaço (principalmente pela mídia) o conceito
de “guerra justa”, no sentido de legitimar ações militares (internacionais ou
nacionais, na guerra contra o terrorismo ou contra as drogas, contra o “crime
organizado”, etc.) a fim de proporcionar um interesse universal de determinadas
ações (interesse humanitário) e, no mais das vezes, em nome da proteção dos
Direitos Humanos. Muito mais do que ignorar séculos de lutas pela emancipação
humana, esta nova concepção de poder (biopoder) proporciona reflexos
contundentes sobre os Direitos Humanos. Importante, portanto, estabelecer as
conexões entre biopoder, Direitos Humanos e a atual tendência de permitir o
constante (e perpétuo) estado de guerras.
5.1.1.2
Um segundo significado: o biopoder, Direitos Humanos e a guerra
perpétua
Apesar, e ao mesmo tempo, das ponderações feitas aos trabalhos de
Foucault e Hannah Arendt5 sobre biopolítica, Giorgio Agamben reconhece que
ambos os pensadores foram importantes na trajetória do entendimento entre o
modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico de poder, isto porque a pesar
de não ter havido um desenvolvimento conceitual de biopolítica, foi suficiente
para perceber que “o ingresso da zoé na esfera da pólis, a politização da vida nua
como tal constitui o evento decisivo da modernidade, que assinala uma
transformação radical das categorias político-filosóficas do pensamento clássico”
(Agamben, 2002, p. 11).
Esta falta de desenvolvimento conceitual da biopolítica fez com que
Hannah Arendt não percebesse que foi a radical transformação da política em
5
Para Agamben (2002, pp. 125/126), tanto Hannah Arendt quanto Foucault, não conseguiram
perceber que a “radical transformação da política em espaço da vida nua (ou seja, em campo)
legitimou e tornou necessário o domínio total. Somente porque em nosso tempo a política se
tornou integralmente biopolítica, ela pôde constituir-se em uma proporção antes desconhecida
como política totalitária”. Para Agamben, Hannah Arendt dedicou-se, no segundo pós-guerra, à
estrutura dos Estados totalitários limitada, entretanto, pela falta de uma perspectiva biopolítica.
184
espaço da vida (ingresso da zóe na vida pública) que possibilitou o domínio
através dos Estados totalitários e não o contrário, como ela havia percebido em
suas pesquisas.
A partir do pensamento de Karl Löwith, Agamben (2002, p. 126/127)
consegue explicar o fenômeno da “politização da vida” como o caráter
fundamental da política dos Estados totalitários, relacionando democracia e
totalitarismo, isto porque a cada movimento político das massas (conquistas de
direitos, liberdades, espaços, etc.) resultaria numa “crescente inscrição de suas
vidas na ordem estatal, oferecendo assim uma nova e mais temível instância ao
poder soberano do qual desejariam liberar-se”.
Para Agamben (2002, p. 127)
O fato é que uma mesma reivindicação da vida nua conduz, nas democracias
burguesas, a uma primazia do privado sobre o público e das liberdades
individuais sobre os deveres coletivos, e torna-se, ao contrário, nos Estados
totalitários, o critério político decisivo e o local por excelência das decisões
soberanas. E apenas porque a vida biológica, com as suas necessidades,
tornara-se por toda parte o fato politicamente decisivo, é possível
compreender a rapidez, de outra forma inexplicável, com a qual no nosso
século (século XX) as democracias parlamentares puderam virar Estados
totalitários, e os Estados totalitários converter-se quase sem solução de
continuidade em democracias parlamentares.
Isto ocorreu pois a política já estava transformada em biopolítica,
sendo agora necessário determinar qual a melhor forma de organização do Estado
para tornar mais eficaz o controle sobre a vida. Esta é a razão, conforme
Agamben, da indeterminação dos tradicionais conceitos políticos (público e
privado, liberalismo e totalitarismo, direita e esquerda), ou seja, o novo referencial
político.
A constatação mais contudente de Agamben (2002, p. 128) é que “no
mesmo passo em que se afirma a biopolítica, assiste-se, de fato, a um
deslocamento e a um progressivo alargamento, para além dos limites do estado de
exceção, da decisão sobre a vida nua na qual consistia a soberania”.
Este é o sinal. O cidadão se torna, assim, o suspeito por definição. O
significado jurídico dessa enigmática situação é a inclusão de todos os indivíduos
no limiar entre os não suspeitos e os indiferentes. Vale dizer: todos pertencem a
uma mesma ordem, absolutamente indeterminada e profundamente desigual, a
qual ignora todo e qualquer estatuto jurídico, pois o cidadão pode, a qualquer
185
momento, estar totalmente desprovido de seus direitos, permitindo, com isto, uma
total indefinição do conceito de cidadão ou, em outros termos, sua significação
estar na dependência de uma ação política.
É nesta exata configuração que Giorgio Agamben trabalha o tema do
estado de exceção e a perda dos direitos sagrados e inalienáveis do homem,
mostrando que em determinados momentos o indivíduo pode estar totalmente
desprovido de qualquer tutela ao tempo em que perde seus direitos de cidadão de
um Estado, isto porque “o estado de exceção não é um direito especial (como
direito da guerra), mas, enquanto suspensão da própria ordem jurídica, define seu
patamar ou seu conceito limite” (Cf. Agamben, 2004, p. 15).
Estas violações de direitos (sagrados e inalienáveis) de que fala
Agamben estão nesta condição de vulnerabilidade em função do permanente
estado de guerra produzido por diversos fatores, especialmente aqueles
relacionados com a produção de biopoder e sua conseqüência nos campos
econômicos e políticos, possibilitando, contudo, que esta situação de aparente
anormalidade torne-se, com o passar do tempo, a regra.
As guerras, de que é exemplo não só aquelas ditas convencionais –
comumente protagonizadas pelos Estados Unidos – como aquelas realizadas
contra inimigos abstratos (drogas, terrorismo, degradação ambiental, etc.), os
regimes totalitários, os atuais campos de concentração, como as mais diversas
modalidades de segregação que se disseminam em escala nunca vista, expõem as
marcas desse novo poder. Ocorre que, com esta situação de indeterminação e
indiferenciação entre regra e exceção e, mais especificamente, diante da
possibilidade da exceção se tornar a regra é que ocorrem as maiores violações de
direitos, especialmente quando se proclama, continuamente, um estado de guerra,
seja ela no plano externo quanto no plano interno.
Entretanto, pergunta Domenico Losurdo (2003, p. 79): “a teoria
costumeira do totalitarismo não terá se transformado ela própria numa ideologia
da guerra, e da guerra total, contribuindo a alimentar ulteriormente os horrores
que pretende, no entanto, denunciar e caindo assim numa trágica contradição
performativa?”
Sem dúvida o que ocorre hoje é uma alteração do foco de atuação dos
discursos legitimadores de ações militares e “a luta contra o totalitarismo serve
para legitimar e transfigurar a guerra total contra os “bárbaros” estrangeiros ao
186
Ocidente” (CF. Losurdo, 2003, p. 79), pois como se pode perceber especialmente
com as constantes denúncias do chamado “totalitarismo religioso” do Islã ou
mesmo do terrorismo (principalmente depois de 11 de setembro de 2001), bem
como, no caso brasileiro, com o “bombardeio” de informações sobre a
maximização do aumento da violência e sua conseqüente necessidade de combatêla.
Estas denúncias continuam a funcionar como ideologias da guerra
contra os inimigos do Ocidente e, em nome desta ideologia, são justificadas as
violações da Convenção de Genebra e o tratamento desumano reservado aos
detentos na baía de Guantánamo, o embargo e a punição coletiva impostos ao
povo iraquiano (e mais recentemente ao povo iraniano) e a outros povos. No
Brasil, o exemplo claro desse tratamento são as constantes alterações das leis
penais – processuais, penais e de execução penal – no sentido de recrudescimento
da norma, das penas e dos regimes de cumprimento6. A lógica do poder
disciplinar em estabelecer a ordem através da generalização, classificação e
separação de categorias, existe de forma diferenciada: a necessidade agora é outra,
não mais corpos dóceis e treinados, mas o total controle da vida.
Este controle da vida passa a ser alcançado quando o estado de guerra
se torna um elemento natural da vida social, ou seja, se torna perpétuo. O domínio
total da vida passa a ser a produção de morte. Para Hardt e Negri (2005, p. 41) “a
guerra só se torna efetivamente absoluta com o desenvolvimento tecnológico de
armas que pela primeira vez tornaram possível a destruição em massa e mesmo a
destruição global”, ou seja, a produção de morte que, simbolicamente, pode ser
representada por Hiroshima e Auschwitz, é uma forma de biopoder. Importante
aqui perceber que as guerras tomam o perfil de ação policial bem como de
6
Faço aqui, especificamente, alusão ao Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). O chamado RDD
foi regulamentado pela Lei Federal no 10.792, de 10 de dezembro de 2003, que alterou o artigo 52
da Lei de Execuções Penais. Cabe aqui destacar, para os propósitos da presente pesquisa, que no
final de 2005 a aplicação do novo dispositivo legal, que autorizava a inclusão, permanência ou
exclusão do preso no sistema do RDD tornou-se ato exclusivo do Poder Judiciário, entretanto, por
conta disso, a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo publicou a
Resolução 59 estabelecendo o Regime Disciplinar Especial (RDE), o qual passava a competência
administrativa da execução penal àquela secretaria, violando princípios penais constitucionais (em
especial a impossibilidade do estado-membro legislar em matéria penal). Registre-se, por
oportuno, que as ilegalidades perpetradas pelas diversas instâncias do Poder Executivo foram
diluídas pelo discurso da eventualidade e da primazia da realidade fática, típica dos estados de
exceção. Conforme aponta e orienta Rogério Dultra dos Santos (2006, p. 3), “a excepcionalidade
da situação, isto é, a recorrência discursiva à necessidade do momento (por conta de rebeliões,
fugas e/ou assassinatos de autoridades), estabeleceu a supressão consciente dos limites jurídicos
pela autoridade administrativa”.
187
destruição global, ou seja, esse biopoder realiza tanto a destruição em massa como
a ação individual.
Além desse caráter destrutivo, Hardt e Negri (2005, p. 42-43) apontam
para um novo caráter “ativo e constituinte” da guerra, que é uma grande alteração
do discurso: da política de defesa para a de segurança, o que fundamenta a guerra
preventiva, ou seja, uma “atitude de guerra reativa, ante ataques externos, para
uma atitude ativa destinada a prevenir um ataque”. Ainda que o direito
internacional sempre tenha repudiado a guerra preventiva, em função da agressão
à soberania dos Estados, o discurso da segurança pressupõe e permite a
manutenção da ordem através do condicionamento do ambiente com constantes
ações militares e policiais – um ambiente de vida social constantemente vigiado e
controlado tem a tendência, pelo menos na retórica, de ser mais seguro.
Destaque-se, contudo, que a esse perpétuo estado de guerra impõe-se
um reforço constante da necessidade de segurança global, ou seja, imperiosa
vinculação entre os resultados causados pela criação dos inimigos comuns –
especialmente do tráfico ilícito de drogas, armas e do terrorismo – e a divulgação
da multiplicação de atos violentos, possibilitando a inserção de novos mecanismos
de exploração (econômica e política) e de controle e a necessidade do
estabelecimento e manutenção da ordem global, sem o que se tornariam difíceis à
perpetuação da necessidade de segurança e, em conseqüência, a disciplina e o
controle.
Portanto, a “guerra deixou de ser o elemento final das seqüências de
poder – a força letal como último recurso – para se tornar o primeiro e
fundamental elemento, constituindo-se a base da própria política” (Cf. Hartd e
Negri, 2005, p. 44) deixando de ser regulada por estruturas jurídicas para
desempenhar uma função constituinte e tornar-se uma instância reguladora,
potencializando a constituição de uma estrutura produtora e intimamente
relacional entre biopoder e guerra7. Para tanto é fundamental a permanente
existência do inimigo e da ameaça da desordem para justificar e legitimar a
7
Hartd e Negri (2005, p. 46) apontam o programa político de reconstrução de países devastados
como o Iraque como exemplo desse projeto. Para os efeitos dessa pesquisa é imprescindível
relacionar essa condição de produção com a necessidade de procura de outros espaços geográficos
à reprodução do capital especialmente, no caso do Brasil, da guerra interna proporcionada pelo
combate ao “crime organizado”, ao “tráfico de drogas”, à proteção do meio ambiente, etc.
188
violência estatal, mesmo porque é necessário que os resultados da violência
praticada tenham efeitos suficientes a legitimá-los.
Para Hardt e Negri (2005, p. 67 e segs.), esta alteração de forma e
finalidades da guerra ocorrida no início da década de 1970 tem íntima relação com
a produção econômica, pois basta ver (apenas como exemplo) que o Tratado de
Mísseis Antibalísticos, assinado entre os Estados Unidos e a União Soviética em
26 de maio de 1972, tenha ocorrido justamente entre dois momentos importantes
da economia mundial: em 1971 houve a desvinculação do dólar americano do
padrão ouro e, em 1973, a primeira crise do petróleo. É também neste período que
se caracteriza, para os economistas, a produção pós-fordista (já refenciada no
capítulo II da presente pesquisa), a qual “baseia-se na mobilidade e na
flexibilidade; integra vetores de inteligência, informação e trabalho imaterial;
potencializa a força, ampliando a militarização aos limites do espaço sideral, sobre
todas as superfícies do planeta e até o fundo dos oceanos” (2005, p. 68), ou seja, o
movimento do poder é no sentido de ultrapassar a lógica da disciplina ao controle
extremo e vital de todos.
5.1.1.3.
Um terceiro significado: exclusão social, excesso de biopoder e
violação dos Direitos Humanos
É preciso, neste instante, descrever outra tendência proporcionada
pelo pós-fordismo, estimulando uma caracterização de novas exclusões sociais. A
produção pós-fordista é marcada, a partir do início dos anos 1970, pela
diminuição da quantidade de força de trabalho necessária ao processo produtivo,
prioritariamente, pelo desenvolvimento das novas tecnologias requerido pela
estrutura de produção capitalista que procurava mecanismos alternativos em
função das constantes e cada vez maiores reivindicações dos trabalhadores
assalariados, buscando-se, pois, uma maior valorização do capital, ou seja, não
ampliar a produção, mas tão somente modificá-la, proporcionando, já na década
de 1980, uma crescente destruição dos postos de trabalho vivo.
As grandes atrocidades contemporâneas – desde as inimagináveis
agressões e destruição do meio ambiente, o crescente distanciamento e
desigualdades entre pobres e ricos, o aumento em escalas cada vez maiores do
189
número de pessoas que vivem abaixo da linha da miséria (estima-se, hoje, que
mais de 1 bilhão e 100 milhões de pessoas estão nesta condição) – devem ser
analisadas a partir da crítica aos resultados apresentados pela liberalização e
financeirização do capitalismo pós-fordista, isto porque o parque fabril fordista é,
gradativamente substituído por um maquinário de alta tecnologia e de alta
produtividade, necessitando de menos trabalhadores com uma produção maior.
Ainda que possamos identificar no pós-fordismo a emancipação da rigidez
fordista, tanto em relação ao processo produtivo, que gradativamante é superado
por processos flexíveis através da incorporação da alta tecnologia, como também
nas relações “contratuais” coletivas (sindicais, por exemplo), uma vez que, de
certa forma, houve ganhos ao indivíduo trabalhador ao libertá-lo das jornadas
fixas e rotineiras características do “acordo fordista”, outro não foi o resultado
senão um enorme e crescente aumento de grandes parcelas da população em
situação pouco confortável – desempregados ou subempregados – permitindo,
então, que a relação existente no núcleo do próprio sistema produtivo fosse
flexibilizada, tornando-as cada vez mais precárias, permitindo o desaparecimento
de direitos conquistados via longas e dolorosas lutas sociais8.
Dá-se, portanto, uma completa desestruturação da força de trabalho,
forjando, por seu turno, uma nova classe de trabalhadores, destituídos dos mais
elementares direitos, ou seja, a produção pós-fordista conseguiu em pouco tempo
transformar o trabalho regulamentado, constante, estável, no qual o trabalhador
era legitimamente possuidor de direitos, em uma situação de difícil definição, mas
substancialmente caracterizada pelo desespero de não se ter o que fazer e, nesta
situação, submetendo-se a qualquer condição laboral – seja ela precária,
fragmentada, servil – que se lhe oferecesse.
8
Vale lembrar, contudo, que apesar do fordismo ter representado um modo amplo de
reorganização sistêmica universal (como diriam David Ricardo e Marx), ele jamais foi
homogêneo, bastando verificar a periferia do sistema – pense-se no caso brasileiro – e sua singular
dinâmica, na qual os acordos corporativos não atingem mais do que uma parcela da classe
trabalhadora, bem como há uma simbiose entre velhas e novas tecnologias dentro do mesmo
processo produtivo, naturalmente associada a níveis salariais mais baixos que limitam o uso
lucrativo de tecnologias de ponta, mesmo porque há aqueles, e são muitos, que sempre estiveram à
margem desta suposta “estabilidade” (por isso se falar em fordismo periférico). É possível
observar hoje que a velha “sorte da classe trabalhadora” está diretamente relacionada com os
“acordos” corporativos de lá, e, claro, sua não “precarizacao”, que se articulam e se sustentam na
‘precariedade’ daqui. (nota de rodapé elaborada a partir de discussões realizadas durante as aulas
de “Economia Política”, na UNESC, ministradas pelo Prof. Msc. Sandro Grisa).
190
É este o sentido que se quer demonstrar à nova configuração da
relação entre capital e trabalho, isto é, a exclusão dos indivíduos do mercado de
trabalho corresponde, no mesmo sentido e ao mesmo tempo, à total exclusão dos
direitos sociais, à banalização da relação do indivíduo com o Estado, permitindo,
todavia, estabelecer, na contra-mão da história, a trágica situação de milhares de
pessoas sem qualquer expectativa de vida, isto porque a dinâmica da situação está
permitindo aprofundar o déficit social em razão direta à inadequação dos
instrumentos políticos institucionais que no período fordista de produção permitia,
especialmente os instrumentos de inclusão cidadã típicos que o Estado
keynesiano, de certa forma, proporcionava.
Conforme analisa Alessandro De Giorgi (2002, p. 69), “Delineia-se,
nesse momento, uma profunda contradição: o reconhecimento do direito à
cidadania, à inclusão social e ao rendimento é subordinado a um trabalho,
entendido como emprego, que não tem mais uma referência material. Se até a
segunda metade do século XX foi possível construir a cidadania como conjunto de
direitos do trabalho mediados pelo direito ao trabalho, direitos que o compromisso
fordista podia garantir mediante a reprodução do ciclo trabalho-salário-consumocidadania, agora esta dinâmica não é mais imaginável”9.
A conseqüência mais marcante é a forma que foi alterada a relação
social entre capital e força de trabalho, isto porque aquela força de trabalho do
período fordista que necessitava disciplina e controle está flexibilizada, móvel,
fluida, provocando uma negação dos direitos sociais e de cidadania. Agora a
“preocupação” é o que fazer para controlar a multidão10, ou seja, um grande e
9
“Si delínea a questo punto uma profonda contraddizione: il riconoscimento Del diritto allá
cittadinanza all´inclusione sociale e al reddito è subordinato a un lavoro, inteso come impiego, que
non ha più un referente materiale. Se fino alla seconda metà del Nocento è stato possibile costruire
la cittadinanza come complesso di diritti del lavoro mediati dal diritto al lavoro, diritti che il
compromesso fordista poteva garantire mediante la riproduzione del ciclo lavoro-salario-consumocittadinanza, ora questa dinamica non è più immaginabile”.
10
Na obra “Multidão: guerra e democracia na era do Império” (Tradução Clóvis marques. Rio de
Janeiro: Record, 2005), Hardt e Negri, abrem a possibilidade da democracia estabelecer os
parâmetros para alcançar os desejos de um mundo mais igual e livre e a “multidão” é a “alternativa
viva que vem se constituindo dentro do Império”, isto porque globalização é também a “criação de
novos circuitos de cooperação e colaboração que se alargam pelas nações e os continentes,
facultando uma quantidade infinita de encontros”, possibilitando a manutenção das diferenças
aproximando os pontos em comum e o agir conjunto (p. 12). Para eles, a “multidão” diferencia-se
de outros sujeitos sociais como “povo”, as “massas” e a “classe operária”. Se “povo” tem uma
concepção unitária a “multidão” é múltipla – composta de inúmeras diferenças internas (culturas,
raças, etnias, gêneros e orientações sexuais), diferentes formas de trabalho, diferentes desejos e
maneiras de viver. Em relação às massas, compostas de todos os tipos e espécies, não se pode
dizer que diferentes sujeitos sociais as formam, pois sua essência é a indiferença, entretanto na
191
fértil campo a imperar a lógica da ausência de regras e, conseqüentemente,
facilitar e assegurar a intervenção, ainda que violenta, do Estado.
Isto tudo é importante para demonstrar que a cena contemporânea
mudou, isto porque a tendência das novas formas da produção está em constante
transformação, na qual o motor de propulsão é, sem dúvida, a nova forma global
de soberania11, ou a nova ordem política: o Império, isto é, ultrapassando a lógica
do imperialismo moderno – caracterizado pela centralidade do poder e o
monopólio sobre o território – de domínio europeu e da expansão capitalista dos
séculos passados (caracterizados, principalmente, pela conquista territorial
estrangeira), surge um poder em rede, fundado principalmente no poder dos
Estados-nação dominantes e das grandes corporações multinacionais.
É preciso, todavia, delinear as novas configurações da produção da
nova ordem política e econômica global, não mais da força de trabalho do período
fordista, mas a partir de uma lógica da multidão (da composição social da
multidão – características culturais, de raças, etnias, gêneros e orientações
sexuais), a partir das diferentes formas de trabalho, desejos e maneiras de viver,
saberes, imagens, afetos, etc., não mais do trabalho sob o domínio do capital, mas
através da composição social do trabalho, ou seja, ultrapassar os limites do
domínio do poder disciplinar sobre o corpo e entender as transformações sob a
hegemonia do trabalho imaterial, isto porque diante da tendência da
“multidão” as diferenças sociais mantêm-se diferentes. Neste sentido o desafio da “multidão” é
possuir um movimento comum, respeitada a diversidade. Os autores também fazem a distinção de
“multidão” e “classe operária”, pois para eles o conceito de “classe operária” serve, num primeiro
momento para distinguir os trabalhadores dos proprietários dos meios de produção, bem como (em
sentido mais estreito) separando a classe operária (trabalhadores industriais) de outros
trabalhadores (agricultura, serviços, etc.). Num segundo momento, “classe operária” refere-se a
todos aqueles trabalhadores assalariados. Para os autores (Hardt e Negri), “multidão” é um
conceito aberto e abrangente em função das transformações ocorridas na esfera da economia
global, pois se de um lado a classe operária industrial não desempenha um papel hegemônico na
economia global (ainda que, quantitativamente, não tenha diminuído), “a produção já não pode ser
concebida apenas em termos econômicos, devendo ser encarada de maneira mais ampla como
produção social – não apenas a produção de bens materiais, mas também a produção de
comunicações, relações e formas de vida” (p. 13), constituindo-se, pois, de diferentes
configurações da produção social.
11
Michael Hardt e Antonio Negri desenvolvem a idéia de uma nova soberania a partir da categoria
“império” (Império. Tradução de Berilo Vargas. 6a ed., Rio de Janeiro: Record, 2004), aduzindo
substancialmente que é preciso reconhecer que a ordem global contemporânea não pode ser
entendida somente no mesmo sentido atribuído pela soberania do Estado-nação, mas por uma nova
forma de soberania, agora um poder em rede que possui como elementos fundamentais, além dos
Estados-nação, uma ordem destituída de um centro de comando e coordenada por corporações
multinacionais e instituições supranacionais.
192
desmaterialização do trabalho não só surgem novas formas de trabalho como
também outras formas tendem a se transformar.
Cristian Marazzi ao analisar a crise do que chama de new economy12,
reforça a idéia de que a mesma revolução tecnológica que foi responsável pela
produção pós-fordista e redução do tempo improdutivo, também foi capaz de
possibilitar o maior acesso social às informações, contribuindo, porém, com o
aumento do tempo de trabalho, reduzindo o “tempo de atenção que somos capazes
de dedicar a nós mesmos e às pessoas com quem trabalhamos e convivemos”
(2002, p. 35-36).
Entretanto, Marazzi (2002, p. 36) compreende que esta sobrecarga de
informações, resultado do crescimento de dispositivos tecnológicos de acesso às
informações, proporcionou na nova economia, do lado da oferta, “rendimentos
crescentes em virtude da desmaterialização e reprodução dos bens instrumentais”,
entretanto, pelo lado da procura de bens e serviços, a atenção tem rendimentos
decrescentes, “porque a atenção é um bem fugaz, facilmente perecível”.
Como visto, a produção pós-fordista intentou superar os mecanismos
protagonizados pela produção fordista-taylorista, resultando no “trabalho
reflexivo, cognitivo e comunicativo, o trabalho vivo do general intellect
centralizado na cooperação lingüística de homens e mulheres, na circulação
produtiva de conceitos e de esquemas lógicos inseparáveis da interação viva dos
homens” (Cf. Marazzi, 2002, p. 37).
As transformações proporcionadas pela produção da nova economia
estão voltadas à capacidade e quantidade de informações, mobilizando e
otimizando os mecanismos externos ao trabalho (especialmente pela revolução
tecnológica) permitindo a eliminação do tempo improdutivo do trabalhador,
aumentando-se o valor de uso das mercadorias e, conseqüentemente, o lucro, isto
12
A discussão que Cristian Marazzi (2002) faz neste artigo é muito interessante, especialmente
porque ele diagnostica através de análises dos movimentos antiglobalização (de Seattle a Gênova
em julho de 2001), o problema da relação da produção pós-industrial e a capacidade dos mercados
e das empresas se moldarem às novas expectativas, ou seja, “de emancipar-se da fábrica e das
fronteiras nacionais para comercializar desejos, imaginários, estilos de vida, para capitalizar o
imaterial” (p. 32), isto porque, de certa forma, as lutas dos movimentos sociais antiglobalização se
constituíram contra a utilização privada do espaço público, bem como contra a “comercialização
simbólica operada pelas multinacionais produtoras de bens de consumo” (p. 33). Para ele “a luta
contra a logomarca e o circuito mundial de exploração da mão-de-obra funcionou como alavanca
no crescimento global de um movimento ´antiglobal´” (p. 33).
Esta é a razão de identificar a origem da crise da new economy e entendê-la como um “modo de
produção capitalista atravessado pela comunicação, pela força produtiva da linguagem, seja na
esfera diretamente produtiva de mercadorias, seja na monetária e financeira” (p. 35).
193
porque tais transformações reduziram “a quantidade de tempo de atenção
necessária para absorver a oferta total de bens informativos” (Cf. Marazzi, 2002,
p. 37).
Marazzi vê, ainda, que neste contexto a crise gerada pela
desproporção entre a oferta de informações e a procura de atenção conduza a
processos de monopolização da produção e da distribuição da informação, mas
não de sua procura, pois apesar de ser necessário o aumento de investimento para
controlar a atenção é necessário também, do lado da procura (do lado do consumo
da atenção), um rendimento suficiente para adquirir os bens informativos
oferecidos no mercado.
Trata-se de uma contradição capitalista, contradição interna à forma de
valor, ao seu ser simultaneamente mercadoria e dinheiro, mercadoria cada
vez mais guarnecida de informações (necessárias para ganhar um pedaço de
mercado) e dinheiro-rendimento sempre mais distribuído de modo a não
aumentar a procura efetiva. A financeirização da década de 1990 de fato
gerou rendimentos somadores, mas, além de os ter distribuído de modo
desigual, criou-os destruindo salário e estabilidade ocupacional. A destruição
da estabilidade ocupacional e da regularidade salarial contribuiu para agravar
o déficit de atenção dos trabalhadores-consumidores, obrigando-os a dedicar
mais atenção à busca de trabalho que ao consumo de bens e serviços
imateriais (grifo nosso). (Cf. Marazzi, 2002, p. 38).
Este excesso de inovações tecnológicas proporcionou uma alta
produção sem a devida correspondência da capacidade de absorção do mercado à
demanda efetiva, ou seja, superando a capacidade dos indivíduos de consumir,
sejam livros, internet ou via televisão, produzindo uma espécie de recessão
econômica. As conseqüências dessa crise apontadas por Marazzi (2002, p. 41) são
importantes especialmente quando se percebe a destruição de toneladas de
equipamentos
eletrônicos
que
o
mercado
não
absorveu,
destruindo
sistematicamente milhares de postos de trabalho no mundo inteiro: desde grandes
cidades inglesas como Liverpool e Coventry, como no chamado Vale do Silício13
ou nas zonas industriais de exportações das Filipinas e da Indonésia. Estes novos
processos protagonizados pela nova economia são os resultados “da determinação
com a qual o capital destruiu a fábrica fordista; é fruto da violência com a qual o
capital
13
aterrorizou
o
trabalho
cognitivo,
exatamente
como
colonizou
O Vale do silício ou Silicon Valley está situado na Califórnia, Estados Unidos, e corresponde a
um conjunto de empresas produtoras de chips, implantadas na década de 50 do século XX, com o
objetivo de aumentar e inovar suas capacidades científicas e tecnológicas.
194
simbolicamente o espaço público, enxertando no trabalho competências, saberes,
conhecimentos, paixões, afetos, capacidade de relação e de comunicação da mãode-obra” (Cf. Marazzi, 2002, p. 41).
Não se está falando da perda da centralidade do trabalho vivo, mas
uma tendência do mercado de trabalho de um modo geral, mesmo porque, como
afirmam Hardt e Negri isto significa que a cena contemporânea do trabalho e da
produção está “sendo transformada sob a hegemonia do trabalho imaterial, ou
seja, trabalho que produz produtos imateriais, como a informação, o
conhecimento, idéias, imagens, relacionamentos e afetos”, é dizer, não significa
que não existam mais trabalhadores na indústria, comércio ou na agricultura, ou
mesmo tenha diminuído a quantidade desses trabalhadores, mas tão somente que
“as qualidades da produção imaterial tendem hoje a transformar as outras formas
de trabalho e mesmo a sociedade como um todo” (2005, p. 100), mesmo porque,
conforme afirma Ricardo Antunes (2005, p. 161) vários experimentos de
automação dos processos de produção que ignoraram (desconsideraram) o
trabalho vivo fracassaram, demonstrando claramente que mesmo com todo o
aparato tecnológico não se pode prescindir da mão-de-obra viva.
Ocorre, em verdade, que “o sistema de metabolismo social do capital
necessita cada vez menos do trabalho estável e cada vez mais das diversificadas
formas de trabalho parcial”, ou seja, “como o capital não pode eliminar o trabalho
vivo do processo de mercadorias, sejam elas materiais ou imateriais, ele deve,
além de incrementar sem limites o trabalho morto corporificado no maquinário
tecno-científico, aumentar a produtividade do trabalho de modo a intensificar as
formas de extração do sobretralho em tempo cada vez mais reduzido”, produzindo
a redução do proletariado taylorizado, ampliando o trabalho intelectual abstrato
bem como aumentando a quantidade de trabalhadores precarizados (Cf. Antunes,
2005, 160), resultando no aumento da quantidade de trabalhadores que vivem em
condições precárias.
Isto tudo pode ser considerado uma enorme extensão do poder sobre a
vida, é dizer, um excesso de biopoder que provoca uma infinidade de problemas
(já conhecidos), não só na organização da vida social – exclusão social,
desemprego em massa, criminalização da miséria, banalização da vida, etc. –
como também problemas relacionados com a própria dimensão da vida em si
(aqueles ainda não são conhecidos concretamente) – e que de alguma maneira
195
deverão ser enfrentados nas próximas décadas, especialmente sobre as
conseqüências deste excesso em relação à soberania humana sobre si mesma, ou
seja, o domínio do ser humano diante dessa multidão.
5.2.
O mercado como centro de produção normativa e de decisão política
Como foi mencionado no capítulo anterior, no contexto da presente
pesquisa a expressão “mercado” terá seu sentido delimitado como órgão de
decisão política e centro de produção normativa, devendo, entretanto, o mercado
referenciar a necessidade e a legitimação da utilização de mecanismos de controle
social, como passaremos a analisar doravante, isto porque, se partindo da análise
do tópico anterior foi possível contemplar e analisar o desenvolvimento da intensa
peculiar relação entre as novas tecnologias e o mundo do trabalho, é necessário
entender agora que, se há a tendência do mercado de trabalho ser transformado
sob a hegemonia do trabalho imaterial, o deslocamento da soberania do Estadonação ao mercado permitirá dizer que haverá um maior controle da
disponibilidade da vida dos cidadãos.
É preciso, então, relacionar o conteúdo da violência estrutural e
institucional do Estado a fim de estabelecer conexão entre o modelo econômico
neoliberal com o fenômeno da desregulamentação dos direitos sociais e
trabalhistas e a retomada do Estado punitivo, uma vez que a “ascensão do
salariado precário (sobre um fundo de desemprego de massa na Europa e de
“miséria laboriosa” na América) e retomada do Estado punitivo seguem juntos: a
“mão invisível” do mercado de trabalho precarizado encontra seu complemento
institucional no “punho de ferro” do Estado que se reorganiza de maneira a
estrangular as desordens geradas pela difusão da insegurança social.
(WACQUANT, 2001 a, p. 135), ou seja, duas caras da mesma realidade.
Existe uma íntima relação entre economia e sociedade de controle, isto
porque na contemporaneidade ambas representam racionalidades do modelo
liberal de desenvolvimento, em função de permitirem um discurso plasmado na
minimização (redução) do distanciamento social entre os indivíduos, pois, se de
um lado temos a possibilidade de todos participarem ativamente das relações de
196
produção e de consumo, de outro temos o controle estatal garantindo que aqueles
que não estiverem aptos a estas circunstâncias serão absorvidos pelo poder penal.
Entra em cena uma importante face da centralidade do mercado como
órgão de decisão política e centro de produção normativa, isto porque é a ordem
mercadológica que proporciona a tomada de decisão política mais adequada, é
dizer, é a estrutura sócio-econômica que determina a exata dimensão e proporção
da atuação estatal na produção de leis – sejam elas de origem do poder executivo
ou do poder legislativo. Sob um enfoque metafórico, é possível, de forma
analógica, estabelecer a relação entre a categoria schmittiana de “soberano” (como
aquele que decide sobre o estado de exceção) e o mercado.
Ocorre que se no período das políticas keynesianas era possível
minimizar as conseqüências do desemprego e da exclusão social com políticas de
mediação entre poder público e população carente, hoje o cenário é outro, pois os
instrumentos compensadores, típicos do Estado de bem-estar social, não podem
mais ser utilizados, impossibilitando também a satisfação das carências
proporcionadas criando um enorme desequilíbrio social incapaz de ser resolvido
pelo Estado. Para Bauman (1998, p. 34):
A desregulação universal – a inquestionável e irrestrita prioridade outorgada
à irracionalidade e à cegueira moral da competição de mercado –, a desatada
liberdade concedida ao capital e às finanças à custa de todas as outras
liberdades, o despedaçamento das redes de segurança socialmente tecidas e
societariamente sustentadas, e o repúdio a todas as razões que não
econômicas, deram um novo impulso ao implacável processo de polarização,
outrora detido (apenas temporariamente, como agora se percebe) pelas
estruturas legais do estado do bem-estar, dos direitos de negociação dos
sindicatos, da legislação do trabalho e – numa escala global (embora, neste
caso, de modo muito menos convincente) – pelos primeiros efeitos dos
órgãos internacionais encarregados da redistribuição do capital. A
desigualdade – intercontinental, entre os estados e, mais fundamentalmente,
dentro da mesma sociedade (sem levar em conta o nível do PNB exaltado ou
lastimado pelo país) – atinge uma vez mais proporções que o mundo de há
muito pouco tempo, confiante em sua habilidade de auto-regular-se e
autocorrigir-se, parecia ter deixado para trás uma vez por todas.
Para Agamben “o totalitarismo moderno pode ser definido, nesse
sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil
legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas
também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não
integráveis ao sistema político” (2004, p. 13).
197
5.2.1.
A exacerbação da divulgação de atos de violência como mecanismos
de controle
O mercado funciona, dentro de uma lógica globalizada, como órgão
de decisão política e centro de produção normativa, mas também revela outras
importantes facetas, como sua impressionante mobilidade e adequação à
realidade, isto porque na conquista de novos mercados, vale tudo, inclusive a
inserção, no inconsciente, de discursos velados e falaciosos, como a geração de
empregos e renda e arrecadação de impostos. Enfim, qual a importância,
econômica e social, de haver, cada vez mais, um aumento da criminalização de
condutas? A partir da proposição feita pela criminologia crítica (a observação é
proporcionada a partir da análise materialista dos processos institucionais e
estruturais do controle do desvio, tanto do ponto de vista das estratégias de poder
como da análise dos seus receptores – criminalização primária e secundária) é
possível diagnosticar que diante de um Estado inerte de políticas públicas, sociais
e econômicas sérias14, a perspectiva contemporânea frente ao atual quadro de
polarização social15, fomentado pelas políticas sócio-econômicas propostas pelo
neoliberalismo é preocupante.
A forma encontrada para administrar e conter massas de insatisfeitos e
excluídos pelo mercado, é a utilização do sistema de controle social, do tipo penal,
isto porque a sociedade capitalista (na versão neoliberal ‘capitalismo de mercado’)
está baseada na desigualdade e subordinação, necessitando, pois, de um sistema
de controle social do desvio do tipo repressivo, através do aparato do sistema
penal do direito burguês, pois este (direito penal) “é um instrumento precípuo de
produção e de reprodução de relações de desigualdade, de conservação da escala
14
É bom deixar claro que a afirmação de que o Estado está inerte de “políticas públicas, sociais e
econômicas sérias” está relacionado com a orientação liberal que procura transformá-las em
programas “focados”, isto é, sem o caráter de universalidade que caracteriza as chamadas políticas
públicas keynesianas, ou seja, estão orientadas dentro de uma lógica neo-conservadora, para usar
uma expressão do D. Harvey.
15
A polarização social está definida sob o ponto de vista econômico. Ela ocorre ante a desigual
distribuição da riqueza, observando-se o abismo existente entre os poucos que tem muito e os
muitos que tem pouco, caracterizado pelo aumento da quantidade de desempregados formais, pelo
sub-emprego, pela existência do trabalho ilegal (trabalho escravo, trabalho informal e trabalho
ilícito. Este último realizado pelo recrutamento de pessoas – jovens, na sua maioria – para
execução de atividades ligadas ao tráfico ilícito de drogas, armas, etc).
198
social vertical e das relações de subordinação e de exploração do homem pelo
homem” (Cf. BARATTA, 1999, p. 206/207).
O Estado, enquanto produtor de violência, tanto estrutural (pela
reprodução da desigualdade social) como institucional (pela atuação do aparato
repressivo estatal), juntamente às transformações efetivas dos processos de
produção – como do fordismo ao pós-fordismo – corroboram à consecução de
dois objetivos fundamentais à economia política das penas, os quais devem ser
analisados16:
a) a exploração da indústria do crime, fomentada por duas vertentes,
uma pública, outra privada. A indústria do crime, usando a expressão de Nils
Christie, possibilita, através dos mais diversos e modernos mecanismos de
controle (como as câmeras de vídeo, privatização dos presídios, informatização do
controle prisional, aquisição de veículos – motos, carros, caminhões, helicópteros,
aviões – armamentos, suprimentos, investimento tecnológico, treinamento e
contratação de pessoal, etc.) um enorme investimento público no setor. Sob o
signo da iniciativa privada, o controle do crime mostra-se extremamente sedutor
como novo nicho de mercado, especialmente pela possibilidade do surgimento de
empresas que prestam serviços de segurança.
b) de outro lado, há também, como segundo objetivo da
criminalização das condutas, a possibilidade de controle e exclusão dos
excedentes, dos consumidores falhos, daqueles que não fazem diferença à
produção econômica.
É possível dizer, assim, que o mercado, da mesma forma que os
campos de concentração, consegue demonstrar qual a vida que é indigna de ser
vivida. É neste sentido que nos interessa a perspectiva biopolítica diante da lógica
neoliberal de mercado, ou seja, a interação das relações sociais e políticas
contemporâneas diante do fato do homem perder sua condição de vivente: é a vida
nua. É a total indiferença em relação à existência do outro, é a criação do inimigo
diante de sua impossibilidade de ser um consumidor (o consumidor falho, que nos
fala Bauman), é aquele destituído de seus direitos sobre a própria vida, é a
possibilidade de morrer sem estar morto, sem que se cometa contra ele um
16
É bom lembrar aqui que apesar da propositura neoliberal em diminuir as fronteiras do Estado
moderno, “o sistema do capital não sobreviveria uma única semana sem o forte apoio do Estado”
(MÉSZÁROS, 2003, p. 29), comprovando a necessidade da chamada “ajuda externa” para a
reprodução do capital.
199
homicídio, ou, no dizer exato de Agamben (2002, p. 146), como característica do
homo sacer, “o fato de que à soberania do homem vivente sobre a sua vida
corresponda imediatamente a fixação de um limiar além do qual a vida cessa de
ter valor jurídico e pode, portanto, ser morta sem que se cometa homicídio”.
O atual quadro demonstra que este é o sentido e a tendência que se
mostram ao adotar políticas de segurança pública conservadoras nas sociedades
contemporâneas. É preciso, neste momento, entender a relação e as conseqüências
entre a adoção das atuais políticas de segurança públicas e o mercado como
espaço soberano. Esta é uma importante relação que deve estar perfeitamente
delimitada, isto porque parte-se do pressuposto de que há sérias conseqüências na
adoção de políticas públicas neoliberais, em relação à segurança pública,
especialmente pelo deslocamento da soberania do Estado para o mercado.
A partir do paradoxo da soberania estabelecido por Giorgio Agamben,
quando delimita que a vida do homo sacer não pode ser sacrificada, mas pode ser
morta, ele estabelece o limite entre a violência da ordem legal sem significado, ou
seja, a cristalização do código a decifrar: a intromissão da política na vida ou, em
outras palavras, a vertente mais moderna da vulnerabilidade da vida, o que hoje
poderíamos dizer dos não consumidores, aqueles excluídos pelo mercado. Para
Agamben (2002, p. 67),
Se o ser nada mais é, neste sentido, que o ser a-bandonado17 do ente, então
aqui a estrutura ontológica da soberania põe a nu o seu paradoxo. É a relação
de abandono que agora deve ser pesada de modo novo. Ler esta relação
como vigência sem significado, ou seja, como o ser abandonado a e por uma
lei que não prescreve nada além de si mesma, significa permanecer dentro do
niilismo, ou seja, não levar ao extremo a experiência do abandono.
Para entender a condição de exclusão e abandono, é necessário
ultrapassar o paradoxo da soberania (lei com vigência, sem significado), em
direção ao entendimento de que a soberania é a ‘lei além da lei à qual estamos
17
Cabe aqui uma breve inscrição. Para Agamben (2002, p. 36/37), “se a exceção é a estrutura da
soberania, a soberania não é, então, nem um conceito exclusivamente político, nem uma categoria
exclusivamente jurídica, nem uma potência externa ao direito (Schmitt), nem a norma suprema do
ordenamento jurídico (Kelsen): ela é a estrutura originária na qual o direito se refere à vida e a
inclui em si através da própria suspensão”. “(...) chamemos de bando a esta potência da lei de
manter-se na própria privação, de aplicar-se desaplicando-se. A relação de exceção é uma relação
de bando. Aquele que foi banido não é, na verdade, simplesmente posto de fora da lei e indiferente
a esta, mas é abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar em que vida e
direito, externo e interno, se confundem”.
200
abandonados’, ou seja, ser excluído (banido) significa estar em um lugar
indefinível entre a lei e a vida, num verdadeiro ‘estado de exceção’ (Cf. Agamben,
2002, p. 66). A condição de consumidor, imposta pelo mercado é, hoje, a
exposição da vida a uma brutal violência, pois impõe ao sujeito, sob a
identificação perniciosa da liberdade, condições insustentáveis e inatingíveis. Está
implícita nesta condição imposta pelo mercado uma criação de subjetivação, ou
seja, a venda de valores, crenças, posição social e estilo de vida, contribuem ao
sentido angustiante de frustração e violência associada à necessidade (e
impossibilidade) de consumo na fase atual.
A condição do povo hebreu não foi um sacrifício (pois Hitler aludia
que eles foram mortos “como piolhos”), disfarçado pelo véu do holocausto, mas a
realização de uma mera matabilidade. De forma idêntica, não há sacrifício em
excluir do mercado os consumidores e trabalhadores falhos, apenas mera
matabilidade. Nos dois casos, do consumidor pela impossibilidade de consumir
(ou consumir sem liberdade) e do trabalhador por não conseguir vender sua força
de trabalho (alienação18), especialmente pela cruel imposição do sistema penal e
do processo de acumulação do capital, ocorre o abandono desse indivíduo.
A exclusão pelo mercado se dá pela adoção de políticas públicas,
valores e idéias de viés neoliberal, segundo as quais estruturam-se em práticas
ideológicas mercantilistas e privatistas pela diminuição do tamanho do Estado,
garantidor da liberdade de escolha e da regulação pelo mercado. Bauman (1998, p.
23), afirma, entretanto, que no mundo pós-moderno, da vida livre e da
concorrência, o indivíduo é analisado pelo severo teste de pureza que necessita ser
transposto por aquele que pretenda ser incluído socialmente, sob pena de ser
considerado ‘diferente’ pela exigente lógica do mercado consumidor. “Nem todos
podem passar nessa prova. Aqueles que não podem são a ‘sujeira’ da pureza pósmoderna”. Este é o mecanismo de exclusão social mais comum.
18
Alienação, aqui, é tratada em termos marxistas, ou seja, o que determina a alienação é a
oportunidade de determinado indivíduo vender ou não sua força de trabalho, o que não significa
que ele vai vender. Os alienados são aqueles que não têm mais sentido para o Modo de Produção
Capitalista e assim, mesmo que queiram, não conseguem vender sua força de trabalho. Cabe,
porém, para uma melhor percepção da relação que se pretende estabelecer, ou seja, a
caracterização do “abandono”, entender que é no seccionamento que configura o processo de
produção em geral, e o processo de produção capitalista em particular, que se aprofunda e, ao
mesmo tempo, se revela a alienação do processo produtivo, mas, diga-se, traz consigo,
dialeticamente, a necessidade de resolução da alienação. A alienação se caracteriza, assim, como o
total abandono no processo de produção capitalista.b
201
De forma semelhante ocorre com o trabalhador que, por diversas
razões, não consegue mais vender sua força de trabalho19, esta combinação de
fatores fomenta o aparecimento, cada vez maior e de forma permanente, de um
exército de reserva responsável pela maior relação de excesso, sobra e desprezível
força de trabalho, a qual não consegue mais ser vendida. Assim é que, o
indivíduo, ao perder a possibilidade de permanecer dentro de uma relação social
de compra e venda de força de trabalho, deixa de pertencer a ela, caracterizando o
abandono no processo produtivo capitalista.
É preciso perceber a dimensão dessa terrível exclusão (nos dois casos,
tanto pelo mercado como pelo sistema de produção econômica), ou seja, ela não é
operada pelo sistema legal, mas pela biopolítica. Neste sentido, o novo homo
sacer é delimitado pelo mercado, tanto pelo mercado consumidor como pelo
mercado de trabalho, constituindo-se, portanto – tanto o mercado consumidor
como o mercado de trabalho – como “legítimos” espaços biopolíticos da
contemporaneidade.
A aura sacrificável de hoje, são os excluídos (encarcerados, não
consumidores, não-trabalhadores, etc.), pois tutelados por organizações que
buscam satisfazer suas condições básicas de sobrevivência, mascaram, entretanto,
sua condição biopolítica. É um caso flagrante de vidas matáveis e insacrificáveis.
5.3.
O estado de exceção
Sob este ponto de vista, é necessário demonstrar algumas
características da exploração e divulgação da violência e os efeitos perversos
proporcionados pelo sentimento de insegurança. Para esta dilucidação, duas
ponderações devem ser enfrentadas: a primeira está diretamente relacionada com
os efeitos instituídos pela adoção de políticas de segurança pública neoliberais,
ditas conservadoras, como as políticas de “tolerância zero” e o movimento de “lei
e ordem” e, a segunda, está relacionada com os pressupostos econômicos que
19
Poderíamos elencar diversos motivos, dentre os quais: a) a abundância de mão-de-obra pouco ou
nada qualificada que, pelo avanço tecnológico e possibilidade de escolha, há a necessidade do
trabalhador possuir alto nível de qualificação técnica; b) com o aumento da composição orgânica
do capital, cada vez menos força de trabalho é necessária para empregar os meios de produção; c)
necessidade de mão-de-obra excedente para funcionar como regulador de reivindicações salariais;
etc.
202
impõe estas políticas. Estas duas ponderações serão objeto de análise das
hipóteses seguintes.
Cabe aqui mostrar as características e efeitos proporcionados pelo
sentimento de insegurança. Para tanto, é preciso analisar “como” o Estado
contribui e se esforça para inculcar no imaginário popular (senso comum), sob
vários aspectos, que a exclusão social (pobreza em geral) não ultrapassa a órbita
individual, responsabilizando cada indivíduo pelo seu fracasso pessoal.
Foi,
prioritariamente,
mediante
o
positivismo
jurídico,
especificamente pelo princípio da igualdade e, mais adiante convertido de
igualdade jurídica (pois todos são iguais perante a lei), que todos teriam iguais
oportunidades para, num sistema de liberdades, serem responsáveis. Diante dessa
responsabilização pessoal o indivíduo reconhece a possibilidade e necessidade de
delegar a outros que obtiveram sucesso (quem vence é o mais apto – seleção
natural), a administração dos conflitos sociais, privatizando-os, isto porque as
políticas econômicas neoliberais, em especial os processos de globalização,
conduziram à atual crise de identidade da civilização, pois os interesses do grande
capital – traduzida na militarização e hierarquização das potências hegemônicas –
intensificaram a perversa e excludente política social e humanitária.
Ocorre que, neste momento de democracias liberais ou de mercado,
tudo está centralizado no sujeito, desde sua autonomia econômica, política,
jurídica, até simbólica. Para além das mais enfáticas demonstrações narcísicas da
sociedade, há uma perfeita criação e destruição (ambivalência das pulsões) pois
“as formas de destituição subjetiva que invadem as nossas sociedades revelam-se
através de múltiplos sintomas: os colapsos psíquicos, o mal-estar no campo
cultural, a multiplicação de atos de violência e a emergência de formas de
exploração em vasta escala – como a destruição ambiental. Todos estes elementos
são vetores de novas formas de alienação e desigualdade” (Cf. Dufour, 2001, p.
1).
A multiplicação dos atos de violência e as novas formas de exploração
estão caracterizadas a partir do desaparecimento das instâncias coletivas de
resolução dos conflitos em detrimento do surgimento das organizações privadas.
Assim é que a dinâmica social contemporânea, essencialmente individualista da
vida, não se limita à reclusão dos sujeitos ao espaço privado, mas, se caracteriza,
aprisionando-os na solidão radical de seu narcisismo, provocando um sentimento
203
de vazio e uma atitude em relação ao outro, muito mais próxima da indiferença
que da culpa, e este (outro), diante de uma sociedade hegemonicamente de
consumo, é tido apenas como um objeto de consumo.
O resultado dos desvios do projeto de universalização dos direitos
(dignidade, por excelência) a um projeto voltado à promoção do mercado aguça
cada vez mais o drama da polarização social, aumenta o sofrimento dos muitos e
potencializa a inclusão de outros tantos na miséria, pobreza e a não decência de
vida. Contudo, este interessante cenário sugere como e porque o sistema sócioeconômico está a operar o controle dessa população, isto porque, as políticas de
segurança públicas implementadas, trabalham sob a lógica da guerra civil legal
ou, se preferir, sob o perpétuo estado de exceção, no qual as regras apenas
proporcionam sua atuação diante da normalidade social, é dizer, é possível
suspender – via decisão soberana – os direitos individuais e coletivos com a
finalidade de manutenção e (ou) recomposição da ordem, ainda que estes atos
sejam atentatórios a direitos mas que, prioritariamente, possam, apesar de suprimir
liberdades, qualificar positivamente a decisão.
Para Giorgio Agamben “a criação voluntária de um estado de
emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido
técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos,
inclusive dos chamados democráticos”, cuja tendência é a de apresentar-se como
“paradigma de governo na política contemporânea” num patamar de
“indeterminação entre democracia e absolutismo” (2004, p. 13).
Estas políticas de exceção têm gerado conseqüências importantes em
todo o mundo, inclusive no Brasil. As condições dos prisioneiros na Baía de
Guantánamo imposta pela legislação norte-americana, por exemplo, mostram a
lógica do estado de exceção vigente nos Estados Unidos, especialmente depois
dos atentados de 11 de setembro de 2001 ao impor a determinados indivíduos uma
indefinite detentios (suspeitos de terrorismo, principalmente). Para Agamben
(2004, p. 14) esta military order promulgada pelo presidente dos Estados Unidos
em 13 de novembro de 2001 referenda o significado biopolítico do estado
exceção.
Alguns dias antes desta military order ser promulgada, mais
exatamente no dia 26 de outubro de 2001, o Senado norte-americano promulga o
chamado USA Patriot Act (Lei Patriótica, ou a abreviação de "Provide
204
Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism")20 com
finalidade de proteger a sociedade contra ataques terroristas possibilitando
aumentar a segurança interna e declarar guerra contra o terror, eliminando as
barreiras da privacidade (uso de e.mails, internet, ligações telefônicas,
informações pessoais em bibliotecas sobre livros buscados, etc.) dos cidadãos
suspeitos21.
Para Agamben o USA Patriot Act permite ao attorney general manter
preso o estrangeiro (“alien”), pelo prazo de 7 dias (quando deverá ser expulso ou
acusado, formalmente, de violação da lei de imigração, ou outro delito), suspeito
de atividades que ponham em perigo a segurança nacional dos Estados Unidos.
Entretanto, continua Agamben “a novidade da “ordem” do presidente Bush está
em anular radicalmente todo estatuto jurídico do indivíduo, produzindo, dessa
forma, um ser juridicamente inominável e inclassificável”. Argumenta Agamben,
ainda, que os prisioneiros, por exemplo, os “talibãs capturados no Afeganistão,
além de não gozarem do estatuto de POW (prisioneiro de guerra), segundo a
Convenção de Genebra, tampouco gozam daquele de acusado segundo as leis
norte-americanas. Nem prisioneiros nem acusados, mas apenas “detainees”, são
objeto de uma pura dominação de fato, de uma detenção indeterminada não só no
sentido temporal, mas também quanto à sua própria natureza, porque totalmente
fora da lei e do controle judiciário”, situação esta comparável àquela
protagonizada pelos nazistas, em relação aos judeus presos nos campos de
concentração22.
20
Tradução livre do autor da tese: “prover ferramentas necessárias para interceptar e obstruir atos
terroristas”.
21
O referido USA PATRIOT ACT (H.R. 3162) foi publicado no dia 24 de outubro de 2001, pelo
Senado dos Estados Unidos, o qual referencia que estabelecerá normas para deter e punir atos
terroristas dentro dos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como tratará de mecanismos
investigatórios para esta finalidade. Trata-se, portanto, de uma lei muito ampla (342 páginas) e que
propõe, especialmente nos Títulos II e III, a quem estão direcionadas as novas regras (árabes e
mulçumanos) e os mecanismos investigatórios possíveis (fundamentalmente autorizações para
acessar e interceptar comunicações eletrônicas, orais ou virtuais que tratem de terrorismo,
possibilitando abertura de investigação criminal para obtenção de informações). Disponível em
http://www.epic.org/privacy/terrorism/hr3162.html. Acesso em 18 fev 2007.
22
Conforme Martins, Luciano (2002, p. 3, nota de rodapé no 4) “Além das absurdas regras de
funcionamento desses tribunais de exceção, criados por Bush em 13 de Novembro de 2001, o
Pentágono já admite que mesmo que um prisioneiro seja julgado inocente isso não implica na sua
libertação. Nas palavras do Advogado-Chefe do Pentágono, William Haynes: “If we had a trial
right this minute, its is conceived that somebody could be tried and acquited of that charge but
may not necessarily automatically be released”. Tais regras, aliás, suscitaram o seguinte
comentário de Don Rehkopft, Co-Presidente da National Association of Criminal Defense
Lawyers: “If I came out of the woods after 20 years and saw these rules, I’d think Adolf Hitler or
Joseph Stalin wrote them”. Cf. The New York Times, 22/03/02. A Comissão de Direitos Humanos
205
No Brasil, sob os auspícios da imprensa, a produção normativa tem
sido alterada profundamente e as condições de atuação do sistema penal vêm se
mostrando cada vez mais rigorosa, protagonizando a disseminação, também, de
uma legislação de exceção. O sistema carcerário é um dos que mais sofrem
ataques protagonizados pela legislação cada vez mais rigorosa, mas não é só, pois
a legislação penal brasileira também contribui ao atual modelo de regras baseadas
na excepcionalidade.
A criação do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) é característico
dessa realidade. O chamado RDD deu-se, primeiramente, por determinação
contida na Resolução 26, de 04 de maio de 2001, da Secretaria de Administração
Penitenciária do Estado de São Paulo (SAP/SP) que dispunha sobre a necessidade
da regulamentação de um regime diferenciado dentre os estabelecimentos
penitenciários. Assim, criou-se o Regime Disciplinar Diferenciado “destinado a
receber presos cuja conduta aconselhe tratamento específico, a fim de fixar
claramente as obrigações e as faculdades desses reeducandos”, e com objetivo
declarado de reintegração do preso ao sistema comum, o qual deveria ser
alcançado pelo equilíbrio entre a disciplina severa e as oportunidades de
aperfeiçoamento da conduta carcerária (SAP/SP, 2003, p. 9).
Ocorre, entretanto, que a resultante dessas ações excepcionais –
marcadas principalmente pela substituição da ação normativa democrática por
uma ação arbitrária do Poder Executivo, ou seja, uma troca que justifica a
violação de direitos pela garantia de segurança – tem demonstrado o descompasso
entre o recurso retórico (discursos declarados) e seus verdadeiros efeitos
(discursos velados), isto porque, como bem demonstra Rogério Dultra dos Santos
(2006, p. 5), “Os dados da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de
São Paulo, em comparação com os índices de criminalidade violenta da Secretaria
de Segurança Pública do mesmo Estado, apontam claramente não haver relação
entre a ampliação do número de vagas no sistema carcerário e a diminuição da
criminalidade violenta”, é dizer, as medidas e métodos emergenciais de caráter
“excepcional” tão somente proporcionaram uma atuação não só de maior
intensidade qualitativa (na rigidez do processo) mas também uma majoração
quantitativa da população encarcerada.
da OEA, aliás, propôs a constituição de um tribunal independente para definir o status dos
prisioneiros de Guantánamo”.
206
Apesar do discurso oficial (declarado) estar sempre fundado na
punição e ressocialização, percebe-se que a opção (escolha) feita em busca da
segurança reduziu as chances da sociedade contemporânea encontrar seu ideal de
liberdade, mesmo porque esta matriz teórica contribuiu apenas para aumentar o
número de encarceramento e está muito mais voltada, portanto, às políticas que
buscam cada vez mais o controle social. Este controle, diga-se, existe, agora, não
mais (ou não somente) no sentido de um disciplinamento de corpos, em função do
excesso de mão-de-obra e falta de qualificação, mas, principalmente, pela
produção de uma enorme massa de excluídos em função das renovadas condições
de exploração da mão-de-obra, da precariedade e insegurança impostas à força de
trabalho na nova economia flexível, permitindo, às políticas penais, tomar
medidas de caráter de exceção.
A partir de vários discursos – especialmente o da pureza, da beleza
estética e o da ordem – agregados às conseqüências do modelo de produção pósfordista, é permitida à grande massa da população a total exclusão, seja ela do
ponto de vista social, seja ela do ponto de vista do processo produtivo, mas,
fundamentalmente, é através de uma rica história inquisitorial que nas sociedades
ocidentais contemporâneas o discurso punitivo entra em cena com maior vigor,
isto porque o discurso penal da virtude – cada vez mais centrado na separação
entre os bons, puros e virtuosos e os maus (população favelizada, encarcerada,
etc.) – permite a desumanização das classes, das populações, das gentes, das
massas, as quais precisam ser ‘apenas’ controladas, potencializando o ideal de
perversidade do outro. É neste ponto que Slavoj Zizek (2003, p. 47) remete à
noção, recém criada, de Homo sacer proposta por Giogio Agamben:
(...) a distinção entre os que se incluem na ordem legal e o Homo sacer não é
apenas horizontal, uma distinção entre dois grupos de pessoas, mas, cada vez
mais, também a distinção vertical entre as duas formas (superpostas) como
se pode tratar as mesmas pessoas – resumidamente: perante a lei, somos
tratados como cidadãos, sujeitos legais, enquanto, no plano do obsceno
supereu complementar dessa lei incondicional vazia, somos tratados como
Homo sacer.
Assim é que o resultado desse incremento da conflitividade social e
sua conseqüente criminalização são as formas de controle social, do tipo penal –
maior severidade nas penas, aumento do número de vagas em presídios, criação
207
dos tipos penais à criminalização dos pequenos conflitos, controle seletivo das
pessoas, etc. – as quais puderam e estão possibilitando algo até então
inimaginável, ou seja, extrair lucro unindo dois pólos da mesma realidade:
controle social e exploração da miséria.
5.4.
O controle social e reprodução do capital: a face oculta da mesma
“moeda”
Creio que aqui esteja um dos pontos principais da presente tese, isto
porque dentre os problemas a serem resolvidos, propostos inicialmente, dois ainda
não foram discutidos ou, na melhor hipótese, não encontramos respostas
suficientes e adequadas.
O primeiro problema que ainda precisa ser analisado é a afirmação do
fomento ao aparecimento de novas formas de controle social em função da longa
sobrevivência e superação do capitalismo às crises e reorganizações em alegorias
que promovem e deixam rastros de devastação em várias ordens, mas,
principalmente, em relação aos danos produzidos ao meio-ambiente, bem como as
conseqüências sociais – polarização social –, econômicas – exclusão sócioeconômica – e a deterioração da relação política em detrimento do poder do
capital, isto porque, diante das determinações totalitárias do capitalismo
contemporâneo – que pretende relacionar, indevidamente, signos contraditórios,
como “guerra e democracia”, “liberdade e necessidade de consumo”,
“desenvolvimento econômico numa economia pós-fordista e inclusão social”, ou
ainda entre “democracia e capitalismo” – é perceptível a necessidade do capital se
reproduzir buscando cada vez mais espaço.
O segundo problema a ser enfrentado é justamente uma conseqüência
do primeiro, ou seja, quais estão sendo as formas que o capital encontra (ou
encontrou) à sua reprodução diante da realidade de exclusão criada por ela própria
e sua relação com o controle social? Quais as conseqüências da adoção de
políticas públicas neoliberais, especificamente em relação à segurança pública,
aos moldes daqueles denominados como “políticas de tolerância zero”,
“movimentos de lei e ordem”, etc.? Quais são os resultados da “alienação
208
social”23 causados pela criação de inimigos comuns – como os traficantes de
drogas ilícitas e armas, o terrorismo, negros, minorias, favelados, pobres, etc. – e a
divulgação da multiplicação de atos violentos, e a possibilidade da inserção de
novos mecanismos de exploração (econômica) e de controle social?
Como visto até agora, com a adoção das políticas econômicas
neoliberais, foi possível verificar seus efeitos devastadores como a progressiva
pauperização e polarização da população24, as devastações ambientais, a
destruição das instâncias coletivas de resolução dos conflitos e, em conseqüência,
a destruição do indivíduo e a intensificação de processos de subjetivações
voltados à lógica do consumo e do mercado – em relação aos indivíduos que
ficam “sujeitados” a um violento e funcional processo de anulação do seu status
jurídico, o que proporciona o espaço próprio da biopolítica (seu significado é o
estado de exceção), fomentando novas formas de controle e de reprodução do
capital.
Para David Harvey (2004, p. 78) a sobrevivência do capitalismo se dá
– ainda que em meio a diversas crises – mediante à produção de novos espaços à
sua reprodução. Para ele, a sobrevivência do capitalismo está vinculada à sua
tendência de produzir crises de sobreacumulação, caracterizadas pela existência
simultânea de excesso de capital – “acúmulo de mercadorias no mercado que não
pode ser dissolvido sem uma perda, como capacidade produtiva ociosa e/ou como
excedentes de capital monetário a que faltam oportunidades de investimento
produtivo e lucrativo” (Cf. Harvey, 2004, p. 93) – de um lado e, de outro, pelo
excedente de mão-de-obra – desemprego em elevação (Cf. Harvey, 2004, p. 93),
sem que haja, pelo menos aparentemente, uma maneira de conjugar os excessos
lucrativamente, a fim de realizar tarefas socialmente úteis.
Na contemporaneidade, por exemplo, ou na atual fase da new
economy, a crise “revela a existência de uma superprodução digital, um excesso
23
O termo é empregado aqui para representar “a alienação social, na qual os humanos não se
reconhecem como produtores das instituições sociopolíticas e oscilam entre duas atitudes: ou
aceitam passivamente tudo o que existe, por ser tido como natural, divino ou racional, ou se
rebelam individualmente, julgando que, por sua própria vontade e inteligência, podem mais do que
a realidade que os condiciona. Nos dois casos, a sociedade é o outro (alienus), algo externo a nós,
separado de nós e com poder total ou nenhum poder sobre nós”. In: Chauí, Marilena. Convite à
filosofia. 7a ed., São Paulo: Ática, 1996, p.172.
24
A reportagem de Helena Celestino mostra que o número de favelas no Brasil cresceu 150%
entre 1999 e 2001. Esta informação foi dada pelo então Ministro das Cidades, Olívio Dutra, no
plenário da reunião da Comissão de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Ainda segundo o
Ministro Olívio Dutra, no Brasil há um déficit habitacional de 6,6 milhões de moradias.
209
de inovações tecnológicas e comunicativas em relação à capacidade de absorção
do mercado, à sua demanda efetiva” (Cf. Marazzi, 2002, pp. 38-39), isto é, a
condição básica à desvalorização e destruição dos excedentes de capitais e a
conseqüente pulverização da excedente mão-de-obra colocando-a numa situação
de total exclusão.
É preciso, no entanto, encontrar maneiras lucrativas e criativas para
absorver os excessos de capital e impedir a impossibilidade do consumo, sendo
necessário o rápido deslocamento do capital a outras regiões ou, no dizer de
Harvey (2004, p. 78), a expansão geográfica e a reorganização espacial
proporcionam esta absorção. Contudo, é necessário relacionar as novas
necessidades que estão sendo criadas com os propósitos da presente pesquisa, ou
seja, é preciso, então, relacionar a exacerbada divulgação da violência, o
sentimento de medo criado e a imposição social de se ter segurança, seja ela
pública ou privada, com a necessidade de expansão do capital.
Nos termos de David Harvey, o que ocorre é uma verdadeira
acumulação via espoliação, isto porque os excedentes de capital são capazes de
liberar “um conjunto de ativos a custo muito baixo” (2004, p. 124). É preciso,
para o enfrentamento desta questão, lembrar que a formação do sistema capitalista
tornou-se viabilizada em função, principalmente, da utilização do padrão de
financiamento público do chamado Estado-providência, é dizer, uma esfera
pública institucionalmente regulada, revelando-se, portanto, a transferência para o
capital, tanto do ponto de vista estrutural como funcional, da reprodução da força
de trabalho e dos gastos sociais públicos. Trazendo a discussão para o momento
atual, a “ajuda externa” de que fala Mészáros, pode ser entendida pelas políticas
de privatizações adotadas pelos Estados e, especialmente em relação ao conteúdo
das políticas de segurança públicas, elas têm implementado um vasto campo para
investimentos de capitais sobreacumulados. Este é o sentido de se poder afirmar
que a violência está se tornando um grande e lucrativo negócio.
Como se verá mais adiante, não só as privatizações têm este caráter,
mas sem dúvida, são as grandes responsáveis pela nova acumulação (nos termos
de David Harvey, as privatizações funcionam como o ‘braço armado’ da
acumulação por espoliação). Para ele, como visto no capítulo II da presente tese, a
privatização e a liberalização dos mercados foram o mantra do movimento
neoliberal e o resultado foi transformar em objetivo das políticas do Estado a
210
‘expropriação das terras comuns’ através da entrega de ativos de propriedade do
Estado ao mercado para que o capital sobreacumulado pudesse ali ser investido,
abrindo-se, portanto, novos campos de atividade lucrativa.
São exemplos dessa abertura de novos mercados à apropriação dos
ativos pela iniciativa privada na busca de arenas próprias à expansão do capital
não só a privatização dos presídios, mas, partindo-se também da produção
industrial militar e da necessidade do “consumo destrutivo”, estratégias
específicas de privatização do controle público da violência, como a utilização de
câmeras de vídeo, as empresas de segurança privada, o controle social de alta
tecnologia, etc., as quais passaremos a fazer uma pequena análise.
5.4.1.
O controle social na ordem capitalista globalizada
A partir da idéia de criação de uma subjetividade flexível, fruto de um
evidente e contemporâneo mecanismo de controle, o qual é exercido, no mais das
vezes, por intensos processos de subjetivação – pela atuação conjunta, constante e
direta, de dispositivos de controle e disciplina (como estudados no final do
capítulo III da presente tese) – permite uma atuação administrativa suficiente para,
a partir de conflitos e consensos existentes em determinadas situações, viabilizar
uma efetiva estratégia de políticas públicas concretas, em função da realidade
social.
Esta realidade será observada diante do modelo de ordem social que
se pretende atingir, isto é, se estamos vivenciando uma realidade fundada em
princípios neoliberais – a saber: não mais na lógica regida pelo paradigma da
segurança social, mas o da insegurança coletiva – o modelo social estará orientado
e, por certo, estrategicamente posicionado para o controle social a partir de
políticas públicas singularmente voltadas a um modelo social que utiliza
mecanismos defensivos da ordem, “resultando em um modelo desintegrador que
produz uma sensação de insegurança e medo” (Cf. Dornelles, 2003, p. 19).
Assim é que o discurso produzido pelo paradigma neoliberal, ou
conservador, permite alterar a visão do respeito à dignidade e aos direitos
humanos, sendo gradativamente referendado pela lógica da defesa social através
da exclusão total de classes inteiras e tolerar, cada vez menos, as diferenças, o
211
crime e o criminoso. A disciplina das fábricas não é mais necessária, afinal a
massa de excluídos, de braços erguidos, reclama: “estamos a esperar a
exploração!!”, ou seja, as transformações programáticas neoliberais promoveram,
conforme aponta João Ricardo Dornelles (2003, p. 27-28), além da flexibilização
e precarização das relações de trabalho, do aumento crescente do desemprego em
função da implantação dos mecanismos de aumento de produtividade, a
marginalização e exclusão social, não mais em razão das crises cíclicas do
capitalismo,
mas
com
características
estruturais,
isto
porque
afasta
definitivamente enormes contingentes de trabalhadores do mercado formal.
É possível perceber, em função do contexto histórico destas relações,
que é exatamente neste cenário que são formalizadas as políticas de controle
social a partir da necessidade de se estabelecer a ordem e a legitimidade da lei,
isto porque as contradições impostas pelo modelo neoliberal estão a proporcionar
significativas e crescentes desigualdades25 e é, conforme aponta Dornelles (2003,
p. 33), “sob esses segmentos sociais que se concentra o foco da ação repressiva de
controle e vigilância”, principalmente os mecanismos repressivos de controle
penal, tendo como conseqüência evidente uma maior criminalização das classes
sociais ditas “perigosas”, o que já havia sido insistentemente denunciado pelas
diversas correntes da criminologia crítica.
Ao estabelecer este diálogo, João Ricardo Dornelles apresenta, na
verdade, de forma bastante evidente, toda fundamentação aos procedimentos cada
vez mais rigorosos das políticas sociais de controle de viés neoliberal, isto é, a
forma de resposta estatal para resolver o problema da violência e da delinqüência
foi sempre a utilização de métodos que viabilizaram a guetificação das massas
urbanas – excluídos de modo geral, como as massas negras, do final do século
XIX, que foram sendo criadas nas cidades brasileiras com os grandes contingentes
de homens negros, escravos e libertos, bem como os pobres e favelizados da
contemporaneidade – o que permanece proporcionando a constante apartação
dessas massas da cadeia produtiva e da possibilidade de consumo.
Como mostra Vera Malaguti Batista (2003, p. 57), de forma
semelhante, em diversos períodos da história brasileira, especialmente na
implantação da ordem burguesa do final do século XIX (o Brasil escravocrata
25
Interessante exposição de dados nos oferece João Ricardo Dornelles (2003, p. 32), em notas de
rodapé nos 38 e 39.
212
permanece até 1888), na recepção da doutrina de segurança nacional do século
XX, nas políticas urbanas de apartação (no Rio de Janeiro do final do século XIX,
como apontou Vera Batista (2003, p. 39), as concepções higienistas de
intervenção urbana propuseram, através de Pereira Rego, “uma cirurgia na cidade
com esvaziamento do centro e remoção dos bairros pobres para áreas
periféricas”), ou ainda entre os anos 1968 e 1988 – época da ditadura militar até a
transição ao governo democrático constitucional – quando se percebe que houve
uma transferência da busca pelo inimigo externo, ou seja, do terrorista para o
traficante (2003, p. 40), houve a perseguição às classes supostamente perigosas
demonstrando, claramente, a íntima relação, que sempre houve, no Brasil e nos
países centrais de capitalismo avançado, entre liberalismo (ou neoliberalismo) e as
políticas penais mais conservadoras e violentas.
Dornelles (2003, p. 33-34), então, apresenta algumas características e
conseqüências das ‘respostas estatais’ que visam estabelecer a ordem, as quais
podem ser resumidas em 4 posições, da seguinte forma:
a) políticas de segurança públicas militarizadas, com base na repressão
ao crime, publicizado através dos discursos denominados ‘lei e ordem’, com
objetivos definidos na manutenção da ordem pública, penalização dos conflitos
sociais, construção de presídios, aumento da quantidade de tipificação legal
(criminal) das condutas, aumento das penas e impossibilidade de supostos
benefícios aos condenados (liberdade condicional, progressão de regime, etc.),
estabelecendo campanhas de combate ao inimigo (hoje o traficante, ontem o
terrorista político, um pouco antes os negros, etc., etc.), espalhando um clima de
medo na população;
b) a adoção das políticas de segurança públicas mais conservadoras
tem elevado o número de mortes de pessoas suspeitas (supostos delinqüentes) nos
enfrentamentos com a polícia. Neste sentido, Dornelles indica (nota 42, p. 34) a
pesquisa realizada pelo ISER, coordenada por Inácio Cano, referente às mortes
produzidas pela polícia no Estado do Rio de Janeiro entre os anos 1993 e 199626;
26
Além da pesquisa apresentada pelo ISER cabe observar, somente a título de ilustração, a
reportagem apresentada no jornal Folha de São Paulo, de 18 de outubro de 1999, (FS, 1999, p. 1)
na qual soldados da Polícia Militar de São Paulo descrevem os métodos de tortura, julgamento e
execução de suspeitos de terem cometido delito. Conforme relatado na reportagem, aqueles
supostos criminosos são julgados dentro da viatura, durante o trajeto do local do incidente até o
hospital. Os relatos dos policiais são no sentido de que a análise do caso e “visual”, ou seja, para
eles o bandido se “conhece pelas tatuagens e pela roupa que ele usa. É só bater o olho e eu sei se o
213
c) há uma tendência ao armamentismo particular, em função da
necessidade de proteção particular (pessoal e patrimonial) e descrédito das
instituições. Esta conclusão pode ser compreendida a partir do resultado do
plebiscito (“referendo das armas”), ocorrido em 2005, no Brasil, quando houve
uma consulta popular sobre a possibilidade da venda legal de armas à
população27;
d) o estímulo ao encarceramento pela criação de tipos penais e o
aumento de penas, o fomento ao surgimento de empresas de segurança privadas,
empregando-se integrantes ou ex-integrantes das polícias ou forças armadas e a
veiculação de propostas de privatização do sistema penitenciário. Esta
característica revela, na verdade, não só uma tendência liberal de diminuição do
tamanho do Estado, mas sua própria definição (weberiana) como detentor do
monopólio do uso legítimo da força, sofre abalo significativo.
Os dados coletados e divulgados no site da Federação Nacional das
Empresas de Segurança e Transporte de Valores confirmam estas características28.
O total de empresas de segurança privada no país, regularmente instaladas –
mediante autorização do Departamento da Polícia Federal – em 2001 eram 1300
empresas legalizadas (aproximadamente, 4.500 clandestinas), em 2004 passou
para 1.884 empresas legalizadas, um crescimento de 44,92%. Esta tendência – o
crescimento dos serviços de segurança privada – revela, entretanto, um fenômeno
que atinge outros países e que vem ocorrendo desde a década de 1970.
Outro exemplo revelador é o trazido por Leonarda Musumeci (1998)
sobre a expansão do setor de segurança privada a partir de dados colhidos pela
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (1985-1995). Sua verificação
(1998, p. 23) permite apontar que o total de pessoas ocupadas na atividade de
cara deve ou não”. Para se identificar quem são aqueles que não podem chegar com vida no
hospital, os policiais escolhem pessoas que trocaram tiros com policiais e outras encontradas
feridas. Em outra reportagem, do mesmo jornal e na mesma data (FS, 1999, p. 3), os relatos dos
policiais são mais específicos. A ação policial, na investigação dos fatos é, na maioria das vezes,
cercadas por graves sessões de tortura, desde palmatória, choques elétricos e espancamento.
27
Muito embora haja outros fatores que determinaram o resultado das urnas, o medo e a
insegurança foram o mote principal da campanha pelo “não”. Como se sabe, os eleitores foram às
urnas para responder à seguinte pergunta: "O comércio de armas de fogo e munição deve ser
proibido no Brasil?". A decisão, por ampla maioria (63,94% dos votos válidos) foi pelo “não”, ou
seja, representou a suposta necessidade que as pessoas vislumbraram de obter segurança particular
com a aquisição de armas.
28
Estes dados podem ser vistos em http://www.fenavist.org.br/site/internas.asp?area=874&id=19.
Acessado em 23/03/07. Os dados de 2001 foram coletados do jornal Diário Catarinense, de 26 de
outubro de 2003, Caderno Especial sobre segurança, p. 3.
214
vigilância e guarda saltou de 199.137 em 1985 para 422.057 em 1995, ou seja, um
crescimento de 112%. Esse crescimento é superior ao do conjunto do setor
serviços (43%) e dos subsetores que o compõem: comércio (54%); transportes
(33%); comunicações (24%); instituições financeiras (-29%); administração
pública (12%) e outros serviços (56%).
Estas contribuições nos permitem formular algumas hipóteses de
resposta: é o próprio Estado, através de seu modelo de políticas de controle social
– cada vez mais rigoroso e de viés neoliberal, conservador e autoritário – que
permite a gestão violenta da população excluída (dos meios produtivos e do
consumo) da maneira mais perversa possível, é dizer, no Brasil e no mundo as
taxas de encarceramento estão aumentando e são exatamente as camadas mais
carentes da população que sofrem a atuação da mão de ferro do Estado ou, nas
palavras de Dornelles (2003, p. 35-36), essa política criminal neoliberal ao
elaborar um discurso de combate à delinqüência, o faz a partir de um modelo que
proporciona uma maior desumanização dos supostos delinqüentes, estratégia pela
qual os torna cada vez menos aptos ao competitivo mercado.
Aqueles não adaptados e incapacitados tecnicamente estarão
automaticamente selecionados e condenados à exclusão. Serão, também,
potencialmente, os mais prováveis selecionados ao rígido controle sócioeconômico e penal, ou seja, o excesso de indivíduos excluídos e que não serão
absorvidos (ou literalmente aproveitados) pelo mercado, potencializam, não mais
o treinamento e docilização de seus corpos, mas antes, a neutralização pelo
excesso.
Este controle social do excesso se traduz pelas intensas políticas
penais ditas eficientistas, ou seja, não se trata mais de tentar corrigir os problemas
de ordem social, mas sim efetivamente neutralizar exatamente aqueles que
provocam a desordem com repressão.
Poder-se-ia acrescentar, para análise de mais um dado importante, de
outro efeito do encarceramento de massa. Uma vez que a privatização do sistema
prisional é um fenômeno bem consolidado em diversos países, bem como o
surgimento de empresas de segurança privada também está se tornando uma
tendência mundial, é interessante perceber que (pelo menos no Brasil é possível
215
afirmar) há um crescimento do número de trabalhadores nesse setor até o ano de
2003, quando começou a ocorrer uma pequena diminuição de postos de trabalho29.
Conforme se verifica pelos dados apresentados pelo estudo
encomendado pela Federação Nacional da Empresas de Vigilância e Transporte
de Valores (conforme tabela abaixo), havia em 2002 um vigilante para 552
habitantes no Brasil, em 2005 há um para cada 482 habitantes, ou seja, representa
um significativo aumento da “necessidade” de se buscar segurança.
Ano
Quantidade vigilantes por habitantes
2002
1/552
2003
1/529
2004
1/504
2005
1/482
Esta mesma pesquisa apontou que havia uma projeção de empregos
gerados no setor de 424.800 vagas no Brasil em 2005 e que o piso salarial da
categoria seria em 16 de maio de 2006 entre R$ 347,34 em Sergipe e R$ 962,37
no Distrito Federal. Três características podem ser observadas a partir dos dados
até aqui apresentados:
a) a evolução tecnológica novamente fazendo desaparecer postos de
trabalho mas, ainda assim, como acontece no capitalismo contemporâneo, há um
29
Em sua pesquisa de doutorado, Fortes de Oliveira (2004, p. 12) aponta que a “participação da
segurança privada nos serviços não-financeiros, em termos de empregados, é mais que o dobro da
participação em termos de receita operacional líquida. Isto significa que para o volume de recursos
apropriados, as empresas de segurança privada estariam garantindo mais postos de trabalho que a
grande maioria das outras atividades de serviços não-financeiros”. A diminuição da quantidade de
postos de trabalho deve-se, principalmente, a quantidade de empresas que existem
clandestinamente – ou seja, sem licença oficial do Departamento da Polícia Federal – bem como
pelo fato de que há muitos “seguranças particulares” que são, na verdade, policiais (normalmente
militares, civis) que fazem esse “bico” para complementar renda, mas que não divulgam
oficialmente essa condição. Como alerta Leonarda Musumeci (1998, p. 20): “Os números da
PNAD, ao que tudo indica, não contemplam essa atividade paralela, já que a maior parte das
perguntas sobre emprego refere-se à ocupação única ou principal e é pouco provável que policiais
na ativa declarem como seu trabalho principal a vigilância privada exercida ilegalmente, ainda que
a renda ganha nesta última possa ser superior à que obtêm no serviço público. Duas perguntas
sobre outras ocupações — se o entrevistado possuía mais de um trabalho na semana de referência
e que função exercia no segundo trabalho [IBGE (1993a)] — poderiam fornecer uma idéia
aproximada do número de agentes que fazem “bico”, mas o total de respostas positivas, em
confronto com estimativas da mídia, sugere que, por se tratar, nesse caso, de uma prática ilícita, o
segundo emprego é omitido pela maior parte dos entrevistados. Em 1995, no país como um todo,
só 10% das pessoas com ocupação principal em atividades de segurança pública reconheceram
possuir outro trabalho e apenas 1,5% declarou como trabalho secundário a ocupação de vigilante
ou vigia”. Merecem atenção, pela riqueza de dados, os trabalhos de Aryeverton Fortes de Oliveira
e Leonarda Musumeci acima referenciados.
216
visível aumento do faturamento do setor de vigilância e transporte de segurança
privada (pessoal e patrimonial), bem como há um crescimento na proporção de
vigilante por habitante no Brasil;
b) o piso salarial da categoria é de certa forma baixo, pois a média
nacional é de R$ 558, 65, ou seja, aproximadamente 1,5 salários mínimo;
c) são as classes populares que estão servindo nesse nicho de mercado
em duas frentes bem definidas: como força de trabalho e como matéria prima. É
exatamente esta conjugação – exploração da mão-de-obra e utilização do sistema
penal como controle, exclusão e aniquilamento dos excessos – que permite a
potencial exploração do medo e da abundante força de trabalho a ser apropriada
permitindo a ampliação (reprodução) do capital. Um dado é bastante
representativo: no ano de 2002 o faturamento do setor de segurança privada foi de
R$ 7.000.000,00 e em 2005 houve um enorme salto para R$11.800.000,00, ou
seja, um crescimento de 68,57%30.
Ficam evidentes os motivos pelos quais os investimentos em
segurança vêm aumentando, desde a privatização de presídios até a segurança
privada. O sonho (ou a promessa) moderno de pureza (limpeza) e ordem31 foi
colocado de tal forma que, hoje, na pós-modernidade só podemos pensar em
civilização, a partir de um princípio e lógica do economicamente correto, sem o
que o indivíduo seja considerado fora do contexto social. É exatamente a lógica da
exclusão que o sistema de controle penal representa, pois é lá que estarão,
potencialmente, aqueles que não possuírem, minimamente, condições de
permanecer no mercado consumidor.
30
Um dado, no mínimo curioso, é revelado pela pesquisa: o faturamento do setor é maior
justamente na região sudeste, na qual são veiculadas as notícias de maior impacto sobre a
violência, especialmente Rio de Janeiro e São Paulo.
31
Para Zygmunt Bauman beleza, limpeza e ordem são promessas da modernidade. A partir da
análise de Freud em “Mal estar na civilização”, Bauman afirma que na modernidade o sonho de
perfeição pela beleza (prazer da harmonia e perfeição da forma), limpeza (pois a sujeira seria
incompatível com a civilização) e ordem (compulsão à repetição que dá segurança, evitando a
hesitação ou indecisão), são ganhos que não devem ser desprezados, entretanto o preço pago é
muito alto, pois deve existir um responsável controle da liberdade e os impulsos devem estar
preparados e reprimidos, se for o caso. Lembrando Freud, diz Bauman sobre o mal-estar da
modernidade: “A civilização se constrói sobre uma renúncia ao instinto”, é dizer o excesso de
ordem que leva, necessariamente, à escassez de liberdade. Para ele (1998, p. 10) “os homens e
mulheres pós-modernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por um quinhão
de felicidade. Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de segurança que
tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade individual. Os mal-estares da pósmodernidade provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança
individual pequena demais”.
217
O dado revelador é a necessidade de se criar “necessidades”, é dizer: é
absolutamente necessário estabelecer, primeiramente, uma classe de excluídos e,
posteriormente, que esses estejam prontos a serem selecionados pelo sistema
penal através de um poderoso sistema de controle. Para tanto, é preciso permitir
que o cidadão seja motivado (subjetivado) a uma sensação de insegurança, com
um conjunto de circunstâncias capazes de criar a necessidade de se ter segurança,
que possibilitará um aumento do sistema penal, seja ele público ou privado, mas,
em qualquer caso, apto a municiar (incrementar) a indústria do controle penal
(prisões e sistemas privados de segurança), cumprindo duas principais funções:
controle social e reprodução do capital.
Os dilemas envolvendo segurança pública iniciam com a divulgação
da violência e a banalização dos direitos e garantias fundamentais. Entretanto, da
mesma forma que à ampliação do capital é necessário que o consumo esteja em
crescimento, o que representaria um dado absolutamente positivo, caso,
evidentemente, este consumo não tivesse sido criado pela necessidade da
descoberta de novos valores de uso, mas, sim, pela necessidade humana.
Como afirma Mészáros (2002, p. 677), “o resultado positivo dessa
interação dialética entre produção e consumo está muito longe de estar
assegurado, já que o impulso capitalista para a expansão da produção não está de
modo algum necessariamente ligado à necessidade humana como tal, mas
somente ao imperativo abstrato da ‘realização’ do capital”, o aumento da
divulgação da violência cumpre também idêntico papel.
De forma muito semelhante, então, a busca pela segurança, não foi (e
não é) produzida pela necessidade humana ante a crescente violência urbana, mas
tão só (e da mesma forma que se faz à expansão do capital) pela necessidade de
realização do capital. Sob este ponto de vista, é necessário demonstrar algumas
características da exploração e divulgação da violência e os efeitos
proporcionados pelo sentimento de insegurança. Para esta dilucidação, duas
ponderações devem ser enfrentadas: a primeira, está diretamente relacionada com
os efeitos instituídos pela adoção de políticas de segurança pública neoliberais,
ditas conservadoras, como as políticas de “tolerância zero” e o movimento de “lei
e ordem” e, a segunda, está relacionada com os pressupostos econômicos que
impõem estas políticas.
218
5.4.2.
A gestão política de Segurança Pública conservadora: “eficientismo
penal”, “tolerância zero” e “teoria das janelas quebradas” como
controle social de classe
Os modelos de políticas de Segurança Pública apresentados no mundo
contemporâneo estão diretamente vinculados aos resultados das enormes
transformações políticas e econômicas efetivadas nos últimos 30 anos, mais
precisamente a partir dos anos 1970 e a intervenção dos pressupostos neoliberias
dos anos 1990. Como visto no final do segundo capítulo, um dos resultados destas
transformações políticas e econômicas, as quais resultaram num abismo entre
pobres e ricos ou, mais precisamente, entre incluídos e excluídos (polarização
social), foi a possibilidade destes (mais pobres e excluídos) se tornarem matériaprima abundante do grande negócio envolvendo a segurança pública e,
diretamente, sua privatização.
Assim, para responder ao problema do interesse e da exploração da
violência, é necessário analisar o cumprimento da função do cárcere na formação
do proletariado industrial, bem como no papel que é desenvolvido no controle da
reprodução da força de trabalho assalariada, devendo-se, para tanto, considerar as
origens do sistema prisional e suas funções econômicas que ele assumia, em
especial pelas idéias protagonizadas por diversos autores de matiz marxista, como
Alessandro Baratta, Dario Melossi, George Rusche, Otto Kirchheimer, Maximo
Pavarini e, mais recentemente, Alessandro De Giorgi, dentre outros.
Através das análises acima indicadas – tanto das origens e funções
econômicas do sistema prisional como suas funções aparentes e veladas – é
possível perceber que o cárcere exerce esse fascínio de poder, pois ao mesmo
tempo que possibilita o caráter repressivo, através de suas técnicas de poder (de
disciplinamento dos corpos e controle), é possível vislumbrar que o sistema penal
(especialmente
a
prisão)
exerce
um
importante
papel
na
sociedade
contemporânea, que é exatamente um poderoso regulador do valor do capital
variável (valor da força de trabalho – salário), isto porque estes trabalhadores,
expulsos do mercado de trabalho pela sua abundância, tornaram-se fatores
determinantes à valorização da mão-de-obra, em função dessa população
219
excedente que deve ser explorada e criminalizada32, mantendo-se, portanto uma
estreita relação entre a precarização do estado social, crescimento da população
marginalizada – excluída – e o recrudescimento das políticas penais de
encarceramento (principalmente sobre a população pobre, tóxico-dependentes e
imigrantes).
A vulgarização dos direitos sociais denunciada por Loïc Wacquant
com o corte no orçamento dos gastos com serviços sociais em detrimento do
aumento do orçamento destinado à polícia (já referenciado no Capítulo III, da
presente tese), é impressionante. Isto apenas representa o incremento às políticas
chamadas de “tolerância zero” ou do “eficientismo penal”.
a) As políticas públicas criminais denominadas de “eficientismo
penal”
Antes mesmo de falarmos sobre eficientismo penal ou “tolerância
zero” é preciso estabelecer nosso local de fala sobre as políticas públicas criminais
e de segurança. Primeiramente, cabe entender o conceito de política criminal, não
restrito à justiça criminal, como parte da política social e, portanto, como parte de
um sistema de controle social que integra outras agências públicas e também as
policiais que se encarregam tanto da implementação dos critérios normativos
quanto daqueles critérios silenciados ou negados pelo discurso jurídico, porém
legitimados socialmente pela recorrência e acatamento de sua aplicação
(Dornelles, 2003, p. 39; Batista, 1998, p. 77).
Partindo da idéia de que o conceito de política criminal é, também,
ideológico e que se constitui num poderoso instrumento de controle social, de
legitimação e reprodução da realidade social, Dornelles (2003, p. 40-41) aponta o
modelo neoliberal de políticas públicas como responsável pela atuação do Estado
como facilitador das idéias e “condições à acumulação ampliada do capital sem a
ameaça dos setores da sociedade considerados perturbadores da ordem”, traçando,
32
Há estudos recentes que procuram relacionar índices de desemprego com taxas de
encarceramento. Entre os autores, destacam-se, Stevem Box e Chis Hale que analisam a realidade
européia da década de 1970 e 1980, Bruce Western e Katherine Beckett, que analisam a relação de
funcionalidade das políticas penais e desemprego, nos Estados Unidos, nas décadas de 1980 e
1990 e, mais recentemente, Loïc Wacquant, que analisa a ação do neoliberalismo no Estado de
bem-estar social e sua profundas conseqüências, em especial a substituição do Estado social pelo
Estado penal.
220
como características desse modelo de política criminal, a íntima relação de
interesses entre poder econômico e Estado, uma ação repressiva e autoritária no
tratamento da ‘criminalidade de rua’, tipicamente pelas chamadas políticas de
tolerância zero, diversificando e aumentando o tipo de sanções penais e
extrapenais, transformando as políticas criminais em políticas de segurança, “onde
prevalecem os fins puramente repressivos, não mais visando identificar o
responsável penal, mas sim a demonstração de efetividade do sistema”, ou seja, é
o “eficientismo penal como política de resultados”.
Esta eficiência, fundada num procedimento consubstanciado no
movimento moderno de busca pela ordem, que buscaria atender uma ampla
camada da população destituída de seus direitos civis, sociais, econômicos,
políticos, culturais, caracterizou-se na contemporaneidade reveladora, no sentido
de implicar em políticas públicas que passaram a penalizar grupos de pessoas já
excluídos do processo produtivo e estigmatizados pela simples suspeição de
pertencerem a grupos produtores da desordem social, ou seja, houve uma
ocupação dos espaços públicos, anteriormente destinados à inclusão e integração
social, por políticas penais criminalizadoras e, cada vez mais, encarceradoras.
Surge, no entanto, uma situação, no mínimo, curiosa, pois se estamos
vivendo um momento de políticas neoliberais, de mínima participação
(intervenção) do Estado na gestão da economia, na privatização das relações de
mercado e financeirização do capital, de flexibilidazação das relações trabalhistas,
também vivemos o outro lado da moeda, é dizer, sob o ponto de vista da
intervenção estatal no controle social, ela é mais intensa e atua, no mais das vezes,
através de seus órgãos (Polícias, Legislativo, Judiciário, Ministério Público, etc.)
de forma autoritária e a produzir um sistema penal (Direito Penal, Processo Penal
e Execução Penal) seletivo, estigmatizador e cada vez mais rígido, sempre com o
discurso da eficiência ao controle.
Contudo, é exatamente este sistema penal que produz políticas
públicas (em sentido amplo) que visam, além de criminalizar os conflitos sociais e
não resolvê-los, ao mesmo tempo, imunizar determinadas classes sociais33.
Para Dornelles (2003, p. 49-53), são características desse eficientismo
penal, no processo de criminalização dos conflitos sociais: o fundamentalismo
33
Veja, por exemplo, as inúmeras hipóteses de exclusão de ilicitude existente nos crimes contra o
sistema financeiro, crimes tributários, crimes previdenciários, etc.
221
penal, ou seja, a “polarização ideológica entre as forças do bem e forças do mal”
no combate à criminalidade; sua expressão é o direito penal máximo, “cujos
resultados,
mesmo
quando
aparentemente
positivos
na
diminuição
da
criminalidade, não são compensadores, pois não conseguem demonstrar que
outras formas de tratamento da questão não alcançariam maior eficiência no
controle
penal
e
na
segurança
pessoal”;
há
uma
despolitização
e
descontextualização dos conflitos sociais, o que permite aumentar os níveis de
impunidade e de imunidade de certos grupos sociais, aumentando-se, entretanto, a
criminalização de condutas e a seletividade criminal em função da inadequação
dos programas de repressão penal com a expansão dos meios a atingir todos os
setores sociais.
É exatamente a consolidação do projeto tipicamente de cariz
neoliberal – eficiência, individualismo, contração do Estado nas políticas públicas
sociais e ampliação do Estado penal – que este modelo de combate (no sentido
específico de guerra), não da pobreza, mas contra os pobres e sua máxima
criminalização, a partir das políticas penais de “tolerância zero”, que vai viabilizar
o controle social e os ajustes estruturais econômicos impostos pelos diversos
organismos institucionais e financeiros (FMI, Banco Mundial, etc.).
b) Controle social, repressão e intolerância: do controle da pobreza ao
encarceramento dos pobres
Como aponta Bauman, diante da conjuntura de nossa sociedade
contemporânea (de extremos), em que o medo de não se alcançar a felicidade é
imenso – o que torna ainda maior a incerteza – e ultrapassando a lógica moderna
da regulamentação, pois hoje (na contemporaneidade) tudo é possível diante da
flexibilização dos procedimentos, a insegurança é plena. A ordem, como analisa
Zygmunt Bauman (1999a), é um ideal da modernidade que é buscado em função
de nossos medos diante de uma situação de desordem, isto é, numa situação em
que estamos, incompreensivelmente, incertos do que fazer ante as alternativas que
nos são colocadas. A ordem é estabelecida para apontar o caminho ideal (ou os
caminhos ideais) e é exatamente a incerteza de saber qual é o melhor caminho que
faz com que nos esforçamos à sua busca.
222
É possível dizer que, muito além do medo do inimigo conhecido, a
insegurança existe em relação ao estranho. É esta insegurança que se tornou
intolerável. O discurso público contra determinadas classes sociais, etnias,
minorias, gênero, por exemplo, passou a cumprir um papel fundamental na
produção das políticas públicas de combate. Não é difícil entender o “porque” que
durante as crises dos ciclos econômicos – ou diante das recessões de determinados
períodos, especialmente a partir da metade dos anos 1970 – determinados
segmentos sociais são, providencialmente selecionados pelo sistema penal,
fazendo com que a população encarcerada – ou sob algum tipo de controle penal –
aumente vertiginosamente como aconteceu nos Estados Unidos e Inglaterra34.
É preciso perceber, neste instante, as diversas composições que
resultaram na atual configuração das relações e controles sociais, isto porque
como afirma Alessandro De Giorgi (2002, p. 75) a transição do fordismo ao pósfordismo é caracterizada pela passagem de um regime de carência e,
conseqüentemente, o desenvolvimento de um conjunto de estratégias orientadas
para a disciplina da carência, para um regime produtivo definido pelo excesso e,
conseqüentemente, pela emergência de estratégias orientadas para o controle do
excesso35.
Partindo-se, então, da idéia trazida por De Giorgi, no sentido de
superação ou aparente esgotamento da função de racionalização disciplinar da
produção e da alienação da força de trabalho à acumulação capitalista, própria do
regime fordista, é possível pensar em novas tendências e estratégias de controle
34
Neste sentido, importante verificar os dados trazidos por Loïc Wacquant (2001a, p. 28). Ele
mostra que o recurso de encarceramento foi utilizado de forma progressiva a partir dos anos 1970.
Segundo ele, depois de 1960, quando a população carcerária tinha diminuído em 12%, a partir de
1970 houve um aumento significativo na população encarcerada nos Estados Unidos, passando
dos, aproximadamente, 200 mil detentos para 825 mil em 1991. Os quadros apresentados por Loïc
Wacquant sobre a população encarcerada em prisões federais e em casa de correção (2001a, p. 29)
entre 1970 e 1991 são reveladores.
35
Se por um lado temos a partir da segunda metade dos anos 1970 um regime caracterizado pelo
controle dos excessos, antes disso poderíamos dizer que tínhamos um regime disciplinar das faltas.
Lembrando as origens da instituição carcerária (séculos XV, XVI e XVII), quando se falava em
carência de mão-de-obra, impôs-se a privação da liberdade e o trabalho assalariado como
dispositivos ideológicos aptos a impor a condição de cidadania, exatamente no sentido de que
ambas as situações provocam as mais variadas maneiras de privação e carência. De Giorgi (2002,
p. 75) analisando as tendências entre as dinâmicas da produção e as formas do controle neste
período de transição entre fordismo e pós-fordismo, chama atenção para a progressiva redução do
nível de “emprego” da força de trabalho e a diminuição da demanda do trabalho vivo ocorrida a
partir da metade dos anos 1970 e também para as mudanças nas condições da composição da força
de trabalho, nos processos de constituição das subjetividades produtivas e nas dinâmicas de
valorização capitalista.
223
social e, mais adequadamente, estabelecer uma relação própria entre elas com a
automação da produção com sua conseqüente redução do trabalho humano vivo36,
a hiperatividade legislativa e do discurso policial repressivo e encarcerador, o
embrutecimento e a intolerância das relações e conflitos sociais, com os atuais
mecanismos de reprodução do capital.
Este modelo sócio-político de atuação das instâncias estatais,
poderíamos dizer, mais conservador, centrado na manutenção da ordem pública,
com políticas repressivas extremamente ostensivas e diretas, cuja divulgação está
prioritariamente condicionada e atrelada ao discurso de “lei e ordem”,
criminalizando os conflitos sociais e as camadas mais vulneráveis da sociedade –
corresponde a um modelo de práticas de violência estrutural e institucional,
principalmente dos órgãos policiais encarregados da segurança pública, muitas
vezes autoritária e ilegal.
A partir do final da década de 1970 toma grande fôlego o projeto
neoliberal com a eleição de Margareth Thatcher, na Inglaterra, em 1979 e, em
1980, com Ronald Reagan, nos Estados Unidos. A partir da metade dos anos 1980
os efeitos políticos e econômicos do projeto neoliberal se tornam uma realidade
muito visível, especialmente com a explosão do desemprego e o aumento
significativo da exclusão social em conseqüência do declínio do estado social (ou
estado caritativo norte americano ou estado de bem-estar europeu, como chama
Loïc Wacquant) 37.
Segundo Dornelles (2003, p. 54), houve a partir desse momento um
verdadeiro tráfico de idéias e valores que reforçaram a criminalização da miséria
como eficiente mecanismo de controle dos conflitos sociais com a finalidade de
“regular o trabalho assalariado precário em sociedades capitalistas neoliberais”.
Interessante notar, a partir dos dados trazidos por Loïc Wacquant, o grande salto
36
Como alerta De Giorgi, não é pacífica a idéia de que a automação da produção determinaria um
processo de redução do trabalho humano, com vistas à valorização do capital, isto porque é
necessário considerar que ela também proporciona a emergência de setores complementares, como
é o caso dos setores terciários desqualificado, ou mesmo a emergência de sistemas de produção
inteiros, como é o caso existente no sudeste asiático em que a automação é quase inexistente
(2002, p. 81. Ver especialmente nota de rodapé no 13).
37
A partir dos dados e análises, sobre os Estados Unidos da América, apresentados por Loïc
Wacquant (2001a, p. 23-27) é possível perceber o que ele chama de ‘declínio do Estado
caritativo’. Mais especificamente, afirma ele que nas décadas de 1970 a 1990 houve uma visível e
progressiva substituição de um Estado caritativo por um Estado penal, caracterizado pela
criminalização dos indivíduos das classes mais baixas da população e, conseqüentemente mais
vulneráveis.
224
quantitativo do número dos encarceramentos ocorridos, principalmente, nos
Estados Unidos, fundamentalmente pela atuação cada vez mais rigorosa das
políticas penais, ainda que os dados demonstrassem que estava havendo uma
diminuição da criminalidade em décadas anteriores – dos anos 1960 a meados de
1970.
A chamada “nova direita” passa a atuar através de instituições
formadoras de opinião e financiadoras de intelectuais de perfil neoliberal,
conseguindo estabelecer uma espécie de senso comum sobre a violência e a
desordem, responsabilizando os próprios indivíduos carentes (vendedores
ambulantes, os sem teto, os que pedem esmola, mendigos, prostitutas, os que
cometem atentados à moral e aos bons costumes, etc.) pela sua própria desgraça.
Deixa-se de pensar a questão social, a partir da política e da economia, para entrar
no campo do biológico, é dizer, para autores como Charles Murray e Richard
Herrnstein, o desemprego e a pobreza seriam o resultado de uma menor
capacidade intelectual e moral de um determinado indivíduo, o que lhe
proporcionaria uma maior propensão ao crime e a comportamentos desviantes
(Dornelles, 2003, p. 56-57).
Neste contexto, as políticas públicas de segurança preconizam um
maior rigor e uma intolerância cada vez maior aos pequenos infratores devendo
ser vigiados, controlados e, se necessário, eliminados. Era preciso, portanto, um
efetivo e direto controle das ações dos pobres nos espaços públicos através do
aumento do patrulhamento policial, da redefinição das responsabilidades
operacionais dos policiais, levantamento permanente dos resultados do
policiamento e informatização geral para que a ação policial fosse a mais precisa,
imediata e inflexível contra os pequenos infratores (Cf. Dornelles, 2003, p. 61).
Este discurso criminalizante, norte-americano, proporcionou uma
grande transformação no modelo de gestão da segurança pública, exportando-se e
incrementando a agenda política sobre segurança pública para diversos países da
Europa e América Latina. No Brasil, a administração do Presidente Fernando
Henrique Cardoso – que iniciou seu primeiro mandato em 1995 e finalizou em
2002– foi marcada pelo tratamento da questão social através de políticas
criminalizadoras, despolitizando a questão social, tratando-a como se fossem
práticas criminosas comuns e, como se não bastasse, por exemplo, enfatizando a
qualificação de criminosos e desordeiros os integrantes dos movimentos sociais,
225
especialmente dos trabalhadores do MST (Movimento Sem Terra), permitindo,
com isso, o encobrimento da realidade econômica e social, excessivamente
concentradora de riqueza e excludente (Cf. Dornelles, 2003, p. 65 e nota de
rodapé no 75).
O resultado desse intenso processo de criminalização, conseqüência
direta das políticas públicas de caráter neoliberal, evidencia, cada vez mais, um
aumento no grau de violência, em particular realizada por dois importantes eixos:
a violência estrutural e a violência institucional38 do Estado. Com o encolhimento
do estado de bem-estar social e o crescimento do estado punitivo39, ocorrem dois
fenômenos que podem ser visualizados da seguinte maneira: em primeiro lugar e
atrelado diretamente às políticas de segurança pública, está o aumento
significativo da quantidade de pessoas encarceradas ou submetidas ao controle
penal e, em segundo lugar, como conseqüência do primeiro e vinculado à
incidência de intensos processos de subjetivação que visam criar a necessidade de
se ter segurança, está a nova função social dos mecanismos de controle social,
qual seja, não mais (ou não só) disciplinar, controlar, classificar ou excluir, mas
reproduzir e expandir o capital por meio das privatizações das prisões, pelas
empresas de segurança privada, pela instalação de câmeras de vídeo e outros
equipamentos de segurança, os quais fundamentam a exploração econômica do
medo e do controle penal.
38
Estas formas de violência são analisadas no Capítulo 1 da presente tese. Como visto, os
mecanismos estatais de coerção, capazes de realizar os pressupostos do capitalismo globalizado,
necessários à acumulação do capital, utilizam-se da profusão do medo, produzindo a imagem
necessária do terror social, e da violência tanto institucional – pela atuação repressiva do Estado e
do parlamento – como estrutural – impondo a produção e reprodução da desigualdade social – para
submeter determinadas classes sociais, especialmente estratos sociais mais baixos a todos os tipos
de violência, fazendo-se compreender, diante do ponto de vista da subjetivação de condutas, o
lugar de cada um na estrutura social, isto é, além de estabelecer e reproduzir a propriedade privada
dos meios de produção, fornece também os meios necessários à contenção da grande massa de
excluídos, a fim de manter a ordem social necessária ao processo de reprodução do capital.
39
Este discurso punitivo pode ser caracterizado, principalmente, através da violência institucional,
materializada pela a) maior quantidade de tipificação legal de condutas; b) pelo aumento do
aparato policial; c) pelo surgimento de regras mais duras, tanto no encarceramento quando na sua
manutenção (no Brasil, por exemplo, pode-se pensar nas regras de criminalização dos crimes
hediondos, ou ainda no chamado RDD – Regime Disciplinar Diferenciado – e nos Estado Unidos,
por exemplo, pode-se citar as detenções de meros suspeitos, como está acontecendo na Base
Militar de Guantánamo); d) nos processos de criminalização dos delitos denominados de menor
potencial ofensivo, como acontece, por exemplo, com as leis ditas descriminalizadoras,
despenalizadoras ou, ainda, desencarceradoras, quando na verdade permitem que um maior
número de pessoas esteja submetido a algum tipo de controle penal; e) com um discurso
criminalizante diretamente vinculado aos conflitos sociais; etc.
226
5.4.3.
A privatização das prisões: retirada da “sujeira” pelo controle social
A análise até aqui desenvolvida somada às pesquisas realizadas em
diversos países, inclusive no Brasil, demonstra, efetivamente, um enorme
crescimento da população marginalizada retratada, no mais das vezes, de forma
padronizada como se fosse real e, especificamente, um mesmo tipo de gente: uma
classe
social
destituída
de
desejos
próprios,
perigosa,
suja,
inferior,
monocromática (escura, por excelência) e excluída do processo produtivo, logo
descartáveis, recuperando-se, pois, a lógica da demonização das classes populares
do século XIX, uma vez que eles mesmos seriam os responsáveis pelas próprias
condições, ou seja, “é tentar responsabilizar as próprias classes subalternas, menos
favorecidas, pelos conflitos sociais e a fronteira que se estabeleceu na sociedade
brasileira entre os mais privilegiados e os muitos despossuídos” (Cf. Dornelles,
2003, p. 14).
Este tipo de comportamento social impediu, a partir de um olhar mais
atento, a observação da alteridade e os mais diferentes modos de viver e
fundamentou, de um modo geral, o aparecimento de políticas de segurança
públicas muito mais voltadas ao recrudescimento do sistema penal – sistema
carcerário, sistema judicial-legal (processo penal, direito penal e execução penal)
– proporcionando conseqüências que apontam, cada vez mais, às práticas de
intolerância e polarização social.
Löic Wacquant (2005, p. 10) ao analisar as conseqüências da
dominação neoliberal, afirma que os países desenvolvidos são incapazes de
perceber a privação econômica e grandes massas populacionais, a desafiliação
social e a desonra cultural produzidas. Para ele, a desestruturação das condições
de cidadania está diretamente relacionada com a deterioração da classe
trabalhadora e dos enclaves etnorraciais da metrópole dual e “trata-se de uma das
maiores forças que alimentam a rápida expansão e o endurecimento uniforme da
polícia e das políticas penais armadas contra a pobreza urbana nos Estados Unidos
e na União Européia”.
No Brasil a situação não é diferente, aliás, esta situação toma rumos,
talvez, ainda piores, uma vez que é exatamente em função de todas as
circunstâncias proporcionadas pelas políticas econômicas neoliberais e pelos
227
intensos processos de subjetivações – na maioria das vezes ignoradas – que
sufragaram os projetos de acesso à justiça, distribuição eqüitativa de cidadania e
implementação e respeito aos Direitos Humanos.
A dimensão que se pretende traçar, portanto, é a que leva em
consideração uma grande diversidade de aspectos – sociais, econômicos, culturais
e político-institucionais – evitando-se a fragmentação da realidade, observando a
avalanche de exclusão social por elas provocadas, isto porque, como aponta João
Ricardo W. Dornelles (2003, p. 14), “quando se afasta os aspectos
socioeconômicos da análise, mantendo apenas as variáveis socioculturais, é como
se houvesse uma imputação da responsabilidade pela violência generalizada aos
próprios segmentos sociais mais pobres e vulneráveis, que na verdade são aqueles
mais atingidos e ameaçados pelo crescimento do fenômeno da violência e pela
generalização das ilegalidades”. Importante salientar, entretanto, como a
polarização social, a intolerância à diferença (soropositivos, negros, pobres,
homossexuais, estrangeiros, etc.) fomentam um alto grau de determinação nas
políticas de segurança pública mais autoritárias, proporcionando um direto
aumento nas taxas de encarceramento.
Esta idéia é trazida de forma bastante clara por Minhotto (2000, p.
153) ao afirmar que não há relação direta e unívoca possível entre violência,
punição e degradação das condições de existência dos estratos mais baixos da
população, entretanto, diz ele, “a conjugação de fatores como o aumento da
polarização entre as classes sociais, um clima de intolerância por parte de certos
segmentos da população, especialmente os que exercem maior influência na
definição de políticas penais, e a agenda política dos governos conservadores, tem
um claro impacto no aumento das taxas de encarceramento”.
Assim, são exatamente estas políticas penais mais rigorosas que
possibilitam fazer uma relação não causal e definida, mas conseqüente e paralela
entre o modelo econômico vigente, a ‘necessidade’ de um aumento do controle
social e o aumento das taxas de encarceramento. Aliado a estes fatores é possível
perceber também uma tendencial relação dos hábitos sociais preponderantes,
favorecendo uma correspondência entre o sistema de produção e formas de punir,
apontando circunstâncias sociais definidoras das políticas penais.
A relação possível que deve apresentar-se como tendencial em tempos
de crise econômica está diretamente relacionada, então, à construção social do
228
tipo de desvio que se deve combater, é dizer, proporcionar uma demanda social
capaz de subjetivar o cenário político e social de forma a aumentar o anseio à
severidade das penas, à criminalização de condutas e à intolerância ao desvio,
permitindo a instalação de uma nova moralidade – de concepção conservadora –
induzindo consensos sociais em busca da ordem e do controle social via políticas
de segurança públicas40 cujo ‘pano de fundo’ estabelecido é o estado de exceção.
Há fatores, portanto, que delineiam um cenário no qual: a) a criminalidade e a
violência tomam conta da agenda política; b) as garantias constitucionais não são
levadas em consideração (princípio da presunção da inocência, do devido
processo legal, do contraditório, etc.); c) o medo e a insegurança são responsáveis
e capazes de impor à população uma troca simbólica entre ‘segurança’ ou
‘liberdade’, permitindo que haja um condicionamento da população em legitimar
e
definir
ações
e
políticas
penais
conservadoras
que
aumentem,
significativamente, as taxas de encarceramento41.
São estas as condições que permitem a confluência de diversos fatores
à expansão das privatizações dos presídios, especialmente sob o argumento da
necessidade de se obter eficiência, segurança e redução dos custos na execução
das penas privativas de liberdade. Na verdade, as privatizações têm encontrado
lugar de destaque à necessidade de se buscar, nos termos de David Harvey, a
abertura de novos espaços a serem apropriados pelo capital sobreacumulado (o
excedente de capital que não encontra escoador do excedente de capital). A
privatização dos presídios (como em outros setores da economia) exerce, na
contemporaneidade, papel semelhante à acumulação primitiva que Marx
descreveu, é dizer, a tomada das terras, via violência física, que fundamentava a
40
O controle social do desvio – como mecanismo de resposta da sociedade ao indivíduo ou grupo
determinado – é exercido por meios públicos ou privados, individuais ou coletivos, e visa adequar
o indivíduo ou grupo ao modelo pressuposto de sociedade apresentada, isto porque a definição do
desvio – e seu controle por conseqüência – acompanha e muda em função da perspectiva de se
estabelecer a garantia da ordem. A definição, portanto, tanto do desvio (crime ou pecado) como da
ação das agências de controle (polícia, Poder Judiciário, igreja, família) se dá a partir de
mecanismos políticos, econômicos e sociais. Por estas razões e em função desses mecanismos se
afirma que o controle social é seletivo, podendo, portanto, diante da capilaridade dos
micropoderes, ser exercido à formatação e docilização de corpos e mentes.
41
Interessante verificar site: http://oglobo.globo.com/pais/mat/2007/04/10/295296751.asp,
acessado em 11 abr. 2007, no qual trata de uma pesquisa realizada pela CNT/Sensus, na qual
constata um índice de aprovação de 81,5% para redução da idade à responsabilidade penal. Os
dados apresentados pela reportagem (pesquisa) são significativos, entretanto, para o interesse da
presente tese é fundamental atentar-se à declaração do Cientista Político Ricardo Guedes, do
Instituto Sensus, entrevistado na reportagem, segundo o qual o resultado da pesquisa mostra que a
percepção da violência é maior do que o problema em si, afirma ele que: “a pesquisa revela que a
percepção da violência é maior que a violência”.
229
acumulação
é
hoje
realizada
pela
apropriação
de
ativos
financeiros
sobreacumulados visando a obtenção do lucro.
As privatizações do sistema penitenciário ocorridas no mundo, bem
como aquelas ocorridas no Brasil42, são exemplos claros da dupla necessidade
imposta pelo capital: a abertura de novos espaços a serem apropriados pelo capital
sobreacumulado e a busca da ordem e do controle social via políticas de segurança
públicas, ou seja, a privatização do sistema penitenciário permite a realização e a
expansão do capital e potencializa a limpeza social dos excluídos.
O significado biopolítico dessa privatização é o exercício de uma
função de confinamento e classificação espacial, isto porque, como enfatiza
Bauman (1999, 114), a prisão e o isolamento proporcionam, além do tradicional
método para lidar com setores problemáticos e de difícil controle da população,
uma separação espacial forçada como forma de reagir à intolerância da diferença,
perpetuando a diminuição da visão do outro, ou seja, “as qualidades e
circunstâncias individuais que tendem a se tornar bem visíveis graças à
experiência acumulada do relacionamento diário raramente são vistas quando o
intercâmbio definha ou é proibido – a caracterização toma então o lugar da
intimidade pessoal e as categorias legais que visam subjugar a disparidade e
permitir que seja desconsiderada, tornam irrelevante a singularidade das pessoas e
dos casos”.
Somente para se ter idéia, conforme demonstra a pesquisa realizada
por Sandro Cabral (2005, p. 123), há tendência, no Brasil, de crescimento da
população carcerária acima dos patamares do crescimento vegetativo43 da
população, uma vez que a quantidade de presos nos últimos 12 anos aumentou
42
Estas acompanharam a tendência nacional de privatizações, as quais iniciaram a partir do
Programa Nacional de Desestatização - PND, instituído pela Lei no 8.031, de 12.04.90, quando a
privatização tornou-se parte integrante das reformas econômicas iniciadas pelo Governo Federal.
No primeiro período analisado pela pesquisa (1990 – 1994) foram privatizadas 33 empresas. No
segundo período (1995 – 2002) iniciou-se a fase da privatização dos serviços públicos, sendo
incluídos o setor elétrico, financeiro e as concessões das áreas de transporte, rodovias, saneamento,
portos e telecomunicações. Laurindo Dias Minhoto (2000, p. 168) lembra que o Conselho
Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) propôs em janeiro de 1992 a adoção da
privatização no Brasil. Interessante leitura pode ser feita da nota de rodapé no 210 dessa mesma
obra, na qual o autor aponta curioso neologismo criado a partir das propostas de regras básicas
para o programa de privatização do sistema penitenciário no Brasil, do tipo “parque penitenciário
nacional”, fazendo-se clara alusão ao discurso contemporâneo do mercado uma vez que este
aparece à legitimar o procedimento sob o argumento de proporcionar a melhoria na qualidade dos
serviços prestados através do aumento de investimentos a serem realizados pela iniciativa privada.
43
Crescimento vegetativo é a diferença entre a taxa de natalidade e a de mortalidade
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Crescimento_vegetativo, acessado em 20 de março de 2007).
230
mais de 130% em relação à população. Os dados apresentados pelos censos
penitenciários revelaram que houve um extraordinário salto quantitativo, passando
de 129.169 presos em 1994 – equivalente a 84 presos por 100.000 habitantes –
para 361.402 presos44, em 2005 – equivalente a 195 presos por 100.000
habitantes. Na verdade os dados informativos colhidos no site do Ministério da
Justiça indicam que havia, em junho de 2006, 371.482 presos45 para uma
população de 186.770.56246, ou seja, o equivalente a 199 presos por 100.000
habitantes47.
Ano
Quantidade de presos
Taxa de encarceramento
Presos/100.000 hab.
1994
129.169
84
1995
148.760
95
1997
170.602
108
2002
240.107
141
2005
361.402
195
2006
371.482
199
É possível perceber, com estes dados, que o crescimento da população
carcerária aumentou significativamente, entretanto, para os objetivos da presente
pesquisa é importante perceber, também, a partir do cruzamento de dados
apresentados pelo Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN – e Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – que esta população carcerária
representa um nicho de mercado excepcional e em crescimento. Veja-se, além
disso, que os indicadores apresentados por Sandro Cabral (2005, p. 125)
44
Dados capturados no site http://www.mj.gov.br/depen/sistema/CONSOLIDADO%202006.pdf,
acessado em 19 de março de 2007.
45
Dados capturados no site http://www.mj.gov.br/depen/sistema/2006_junho.pdf, acessado em 07
de março de 2007, e estão atualizados com data de junho de 2006. Os dados dos anos anteriores
foram colhidos nos Censos penitenciários de 1995, 1997 e 2002. Saliente-se e adite-se que a
população carcerária no final de 2006 já havia atingido 401.236 presos, conforme se vê no site
http://www.mj.gov.br/depen/sistema/Pesquisa%20(Desembro-2006).pdf, acessado em 19 de março
de 2007.
46
Este dado está atualizado até julho de 2006 e foi capturado no site
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/estimativa2006/POP_2006_DOU.pdf,
acessado em 19 de março de 2007.
47
Uma ponderação deve ser levada em consideração: a população carcerária em dezembro de
2006, com visto, chegou aos 401.236 presos, entretanto não foi possível fazer uma relação entre
presos e quantidade de habitantes (100.000) em função de que até o presente momento o IBGE não
havia disponibilizado estatísticas suficientes, assim, considerando-se esse fato, chega ao número
apontado de 199 presos por 100.000 habitantes em junho de 2006 através da seguinte fórmula:
total de presos / (total da população/100.000) = 371.482 / (186.770.562/100.000) =
371.482/1867,70562 = 198,89 presos por 100.000 habitantes.
231
demonstram haver um déficit no ano de 2005 de, aproximadamente, 145.482
vagas, mas acrescenta que há um déficit potencial de 345 mil vagas no país, em
função, principalmente, dos mandados de prisão expedidos e ainda não
cumpridos.
Esta mesma pesquisa aponta ainda dois dados importantes que
merecem destaque: primeiro, o custo estimado à absorção desse déficit oficial de
vagas no Brasil é, conforme dados disponibilizados pelo DEPEN, de R$ 1,4
bilhão de reais e; segundo, dos 361.402 que formavam, em dezembro de 2005, a
população carcerária brasileira, 5.346 (1,48% do total de presos) estavam reclusos
em estabelecimentos prisionais com operações terceirizadas48.
Este crescimento da população carcerária no Brasil, frise-se, não é
privilégio exclusivo, isto porque há tendência em diversos países, em função de
fatores relativamente conhecidos, especialmente pelas recentes transformações da
economia capitalista, como a mundialização e financeirização do capital – vistas
nos capítulos II e III da presente tese – que proporcionam um aumento
significativo de possibilidades lucrativas em função da criação de espaços
próprios à reprodução do capital, notadamente pelo surgimento de lugares e
momentos propícios à exclusão social, isto é, à gestão penal dos excessos
populacionais.
Recorrendo novamente à pesquisa de Sandro Cabral (2005, p.
123/124), é possível perceber o aumento da população submetida ao sistema penal
em diversos países. Comparativamente o Brasil está entre os países que possuem
uma população carcerária no nível inferior a 200 presos por 100.000 habitantes,
entretanto, os dados revelam que já estamos bem à frente de países europeus
desenvolvidos como a Itália, França, Alemanha e Reino Unido49. Como já foi
mostrado, em junho de 2006 o Brasil já possuía 199 presos por 100.000
habitantes, entretanto não foram levados em consideração, por exemplo, os dados
relativos
ao
número
de
pessoas
submetidas
às
medidas
chamadas
o
“despenalizadoras” como aquelas previstas na Lei n 9,099/95, que possibilitaram
48
Sandro Cabral (2005, p. 187) revela que o Paraná, mesmo tendo sido o primeiro estado
brasileiro a adotar a terceirização dos serviços prisionais, em 2006 reverteu o processo e passou a
administrar os seis estabelecimentos que haviam sido operadas por empresas privadas. Caso esta
retomada das seis unidades pela administração pública não tivesse ocorrido, o percentual de presos
custodiados por operações terceirizadas seria de 2,1% do total de presos no Brasil.
49
Os dados da pesquisa correspondem ao ano de 2003. A proporção de presos por 100.000
habitantes era de 96 presos no Reino Unido, 102 presos na Alemanha, 118 presos na França e 134
presos na Itália.
232
ao suposto autor de um fato delituoso, fazer um acordo judicial que o submete a
um período de prova por um determinado tempo em troca de não ser processado
criminalmente50. Levou-se em consideração para o cálculo das pessoas presas no
Brasil, portanto, somente a quantidade de indivíduos que, apenas e tão só, estavam
custodiados em penitenciárias, presídios51 e delegacias, estaduais e federais,
públicas ou terceirizadas.
A importância de se falar nestes números não contabilizados é, na
verdade, mostrar que há uma quantidade imensa de pessoas que estão submetidas
de alguma forma ao sistema penal e que são, potencialmente, clientes ou
mercadorias aptas a serem reificadas e fetichizadas pelo capital. Veja-se, por
exemplo, que nos EUA o número de pessoas submetidas ao regime de controle
penal, fora das prisões, é significativamente maior que o número de presos
efetivos. Conforme se vê nos dados trazidos pelo Bureau of Justice Statistics, no
final de 2005 havia, aproximadamente, 4.162.500 pessoas submetidas à chamada
probation
e
outras
784.400
sob
o
regime
da
parole
(totalizando,
aproximadamente, 4.946.900 pessoas), enquanto havia 2.193.798 pessoas
custodiadas em prisões federais, estaduais e locais, nos Estados Unidos.
Os dados apresentados pelo Bureau of Justice Statistics do ano de
2005 revelam, por exemplo, que apesar do número de pessoas encarceradas ter
aumentado significativamente nos últimos 25 anos52, o sistema penal tem atuado
com maior rigor nas situações que permitem um controle social fora dos limites
50
São chamadas leis despenalizadoras no Brasil, por exemplo, a Lei no 9.099/95 e a Lei no
10.259/01, as quais dispõem sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, estadual e federal,
respectivamente. No que concerne ao procedimento criminal ambas legislações tratam dos crimes
de menor potencial ofensivo, ou seja, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena
máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa (artigo 61 da Lei no 9.099/95).
Nesta circunstância e havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública
incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação
imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta (art. 76 da Lei no
9.099/95). Conforme artigo 89 da Lei no 9.099/95, nos crimes em que a pena mínima cominada for
igual ou inferior a um ano o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão
do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha
sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão
condicional da pena (art. 77 do Código Penal).
51
Somente a título de esclarecimento, o artigo 87 da Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de
Execuções Penais) dispoõe que a penitenciária “destina-se ao condenado à pena de reclusão, em
regime fechado”. Ressalte-se, por oportuno, que a expressão “presídio” foi utilizada para refenciar
o estabelecimento penal que abriga os presos provisórios (prisões em flagrante, prisão provisória,
prisão temporária, etc.), o que corresponde, entretanto, ao estabelecido no artigo 102 da referida
Lei de Execução Penal, sendo denominada de “Cadeia Pública”.
52
Em relação ao final do ano de 2004, a população encarcerada no final de 2005 tinha aumentado
2,7% e, em relação à população encarcerada em 1980, que era de, aproximadamente, 498.262
pessoas, havia aumentado mais de 4 vezes.
233
estabelecidos pelas prisões (mais de 2 vezes o número de encarcerados), é dizer, o
sistema penal levando e desenvolvendo seus enormes braços às mais longínquas
pradarias.
Diante desses dados, é possível extrair quatro considerações
importantes: primeiro, há tendência de crescimento da população encarcerada, não
só nos Estados Unidos, mas também no Brasil, como uma espécie de
conseqüência das políticas públicas penais mais rigorosas; segundo, os dados
confirmam um aumento significativo do número de pessoas submetidas ao
sistema penal extramuros nos Estados Unidos; terceiro, muito embora não se
tenha dados suficientemente confiáveis, é possível afirmar que há também uma
tendência de se aumentar a população submetida ao sistema penal extramuro no
Brasil, em função das inovações legislativas (com as chamadas lei
despenalizadoras, como a dos Juizados Especiais Estaduais e Federais – Lei no
9.099/95 e Lei no 10.259/01) e, por fim; quarto, este crescente número de pessoas
submetidas às condições de monitoramento judicial (parole e probation nos
Estados Unidos e a suspensão condicional do processo, penas alternativas no
Brasil, por exemplo) significam, na verdade, um enorme potencial à exploração
econômica e a expansão populacional muito grande a ser submetida ao tratamento
mercadológico penal.
É exatamente esta ampliação e desenvolvimento dos enlaces possíveis
do sistema penal que permite o surgimento de novos lugares à expansão do
capital, especialmente a prisão e outros mecanismos de controle, isto porque os
dados apontam elementos que favorecem legalmente (o que dá uma face de
legitimidade ao sistema) a criação de instrumentos de agenciamento de uma
potencial clientela – que nos Estados Unidos corresponde a mais que o dobro de
pessoas encarceradas em relação àquelas submetidas à probation ou à parole – o
que significa um mercado de reprodução do capital extraordinário, ou seja, a
atuação do sistema penal, na contemporaneidade, é exercida não só na prisão mas
também fora dela. Aliás, nestes termos, é possível ainda afirmar que o mercado de
controle penal fora das instituições prisionais é igual ou mais atrativo que a
privatização das prisões, isto porque além da necessidade do controle daqueles
submetidos aos regimes condicionais há outra indústria que é alimentada pelo
fomento e divulgação da violência: a indústria do medo que viabiliza a
234
‘necessidade’ de se procurar segurança (privada) ante a inércia e ineficiência do
Estado, abrindo-se um mercado pouco explorado, mas em franca expansão.
5.4.4.
O controle social privatizado: a exploração econômica do medo53
Há um espetacular cenário de guerras, amplamente divulgado pelos
meios de comunicação: há as guerras contra o tráfico ilícito de entorpecentes,
guerra contra o terrorismo, guerra contra a violência, etc. Entretanto, esse difuso
cenário de práticas violentas, além do fomento à privatização dos presídios para
reproduzir o capital, conter e aprisionar as massas de excluídos, proporciona
também um intenso movimento favorecendo a constituição de, pelo menos, outras
duas situações: a) o surgimento de diversos mecanismos à reprodução do capital,
e b) técnicas, tecnologias e instrumentos erguidos à proteção dos indivíduos
através da guetificação e aprisionamento das diversas classes sociais.
A primeira situação pode ser vista a partir das empresas de segurança
privada, mas é possível encontrar outros mecanismos de reprodução do capital
que utilizam o discurso do medo e a necessidade de se ter segurança, tais como o
crescimento da quantidade de seguros de proteção ao patrimônio (residências,
automóveis, etc.), empresas que realizam a blindagem de automóveis, a venda de
armamentos destinados à segurança (pública e privada), treinamento de pessoal
especializado, investimentos em alta tecnologia (principalmente em software e
chips de monitoramento, etc.), investimentos em tecnologia genética para
desenvolvimento de sistemas de identificação por DNA, investimentos em
equipamentos (automóveis, computadores), etc.
53
Neste ponto da tese é importante estabelecer e informar que alguns dados levantados aqui foram
“capturados” em diversos sites do Governo Federal, de empresas privadas de vigilância e
segurança eletrônica, de associações de empresas de equipamentos (desde tecnologias, pesquisas, e
equipamentos propriamente ditos) de monitoramento – como é o caso da ABINEE (Associação
Brasileira da Idústria Elétrica e Eletrônica) – ou ainda sites de informações técnicas sobre
monitoramento como é o caso do site do Guia do CFTV. Entendo relevante estar fazendo este
pequeno alerta, pois as informações trazidas não devem ser consideradas de forma absoluta, pois
não há base de dados para confrontação, apenas a informação dada. Entretanto, aos fins da
presente pesquisa, os dados referenciados podem prestar informações sobre o tema, porque elas
demonstram, em primeiro lugar, que o desenvolvimento do setor parte da idéia da existência de
insegurança social – consubstanciada, especialmente, no discurso do medo, do aumento da
criminalidade e do terrorismo – e, em segundo lugar, que este é um lugar próprio à expansão do
capital.
235
A segunda situação – guetificação das classes – pode ser observada
pelo processo de crescimento do encarceramento e divulgação incessante dos atos
de violência ocorridos nas sociedades contemporâneas, isto porque este processo é
imanente ao conjunto de práticas que tendem a proporcionar aos indivíduos a
busca de instrumentos que os protejam, ou seja, muito mais que a concretização
de mecanismos disciplinares – como o fez a instituição carcerária – as tecnologias
e instrumentos de proteção contribuem, significativamente, à guetificação das
massas urbanas, seja ela voluntária – como os grandes condomínios fechados
(vertical e horizontal), os centros comerciais, o gradeamento de casas, vigilantes
privados, presídios, etc. – ou involuntária – os guetos resultantes da apartação
social, como as favelas.
A instalação de câmeras de vigilância, como instrumento criado para
proporcionar maior segurança à população, tem como propósito principal
(declarado) o monitoramento eletrônico da sociedade, tanto nas vias públicas
(ruas, logradouros, avenidas, etc.) como em locais privados (lojas, restaurantes,
etc.). Muito embora se discuta, nesta quadra de argumentações, aspectos
destacados da sua constitucionalidade ou não, da invasão da privacidade ou não,
da violação da intimidade ou não, da efetividade da segurança proporcionada
pelas câmeras ou não, os argumentos aqui estudados estarão centrados na
utilização desse instrumento para viabilizar o controle da sociedade e, mais
significativamente, explorar economicamente o medo em função da divulgação do
aumento da violência e a necessidade de se ter mais segurança. É o controle penal
que não mais disciplina, mas produz uma linguagem classificatória que permite a
inclusão e a exclusão, permite a distinção entre classes perigosas e pessoas
honestas. Em tempos de economia flexível e desemprego em massa, é bom pensar
numa difícil e contundente realidade: se os termos da cidadania estão diretamente
relacionados com a possibilidade de se ter um trabalho (ainda que seja precário)
entretanto, como não há espaço para todos, quem será o cidadão contemporâneo?
A quem é permitido estar dentro? A quem não é permitida a entrada?
Há um fluxo migratório em direção à insegurança, isto porque as
classificações, separações e controles disciplinares assim o permitem, por isso a
necessidade dos rótulos, dos chips, pulseiras e braceletes de monitoramento. Se o
sistema penal não conseguir dar a identidade de criminoso, sua identidade de
excluído será dada pela própria condição étnica, de imigrante, de desempregado, e
236
esta violência ser-lhe-á imposta sem que seja minimamente percebida através do
seu monitoramento: o monitoramento das classes perigosas. Se, por um lado, a
segurança pública está cada vez mais truculenta e disposta a atacar, como se
estivéssemos num permanente estado de guerra, por outro a segurança privada
aproveita para alcançar seu desenvolvimento pleno. Esta postura de enfrentamento
que caracteriza a passagem do modelo sanitário para um modelo bélico de política
criminal, é apontada por Nilo Batista (1998) quando analisou as características das
políticas criminais de drogas instaladas no Brasil, durante grande parte do século
XX54.
Esta é a tendência contemporânea de transformação do modelo e das
estratégias de controle social, porque a expansão da necessidade de se ter
segurança e, conseqüentemente, o avanço possibilitado às empresas de segurança
favorece o desenvolvimento e utilização de diversos mecanismos e instrumentos
de segurança (como visto acima), os quais permitem a consolidação da hipótese
de existir, pelo menos, dois sistemas de segurança: a) um sistema caracterizado
por serviços privados de segurança de alta tecnologia utilizados, em sua ampla
maioria, por classes sociais melhor estabelecidas economicamente e, b) um
sistema caracterizado por um serviço de segurança público, truculento, autoritário
e seletivo.
Lembremo-nos que na contemporaneidade o controle social exercido
pelo capital e pelo sistema penal, conjuntamente, realiza outras diferentes funções,
distintas daquelas típicas do período fordista. Muito embora esta relação não seja
exaustiva, cito quatro importantes funções exercidas pelo sistema de controle
econômico-penal: a) a consolidação de um modelo que prioriza a repressão, o
autoritarismo e a guerra contra determinados inimigos (terroristas, classes sociais,
determinadas etnias, minorias, ambulantes, combate às drogas, etc.); b) aumento
quantitativo dos encarceramentos e dos vínculos com sistema penal, permitindo a
captação de matéria prima (pessoas presas) necessária ao desenvolvimento do
negócio carcerário; c) a expansão do capital via desenvolvimento de novos
espaços à sua reprodução e; d) a reprodução do capital através do chamado capital
54
A minuciosa análise de Nilo Batista foi realizada com o objetivo de compreender a política
criminal para drogas no Brasil e seus reflexos no direito e processo penal. Ele denomina o período
compreendido entre os anos de 1914 e 1964 de modelo sanitário e a partir de 1964 de modelo
bélico.
237
destrutivo. As duas primeiras funções já foram analisadas anteriormente, cabendo
agora uma análise nas duas outras funções.
Sob o ponto de vista da procura de espaços à expansão do capital,
foram encontrados, não só na privatização dos presídios, mas também nos
equipamentos de busca de segurança e do controle do crime como a instalação das
câmeras de vigilância, aquisição de veículos, armamentos e informatização dos
mecanismos de controle, treinamento de pessoal, etc. Um dos papéis exercidos
pela criminalização da miséria – produto da enorme exclusão social – é a criação
de espaços à expansão do capital e o apelo para se conseguir fomentar a indústria
da segurança que potencializa a criação das empresas de segurança privada e
implementa outros meios destinados à expansão do capital, é o discurso do medo.
Foi exatamente este discurso o responsável pela implementação, por exemplo, das
políticas de segurança públicas baseadas no eficientismo penal, conhecidas como
de “tolerância zero” ou “teoria das janelas quebradas”, que nada mais são do que
políticas que proporcionam uma maior “penalização da miséria”, para ficarmos na
terminologia de Löic Wacquant.
O sistemático mecanismo de encarceramento tornou-se um grande
negócio, mas há também outras conseqüências da alteração – ou do foco de
atuação do estado de bem-estar para o estado penal – das políticas públicas dos
estados. Para Loïc Wacquant (2001a, p. 27-28) houve uma transformação dos
serviços sociais em instrumentos de vigilância e controle das populações
excluídas, vulnerabilizadas (também chamadas de classes perigosas). Nos Estados
Unidos o acesso à assistência social fica condicionado ao cumprimento de certos
critérios objetivos e obrigações burocráticas, onerosas ou humilhantes, como por
exemplo a assistência às famílias condicionando-a a assiduidade escolar de seus
filhos. No Brasil esta situação é bem semelhante, basta imaginar, nos últimos
anos, os programas de transferência de renda do Governo Federal como o “bolsafamília”55 ou ‘bolsa-escola”56.
55
O Programa Bolsa Família é um programa de transferência direta de renda. Podem ser incluídas
no programa as famílias com renda mensal de até R$ 60,00 por pessoa, independentemente de sua
composição. Por sua vez, as famílias com renda mensal entre R$ 60,01 e R$ 120,00 por pessoa
podem ingressar no Programa desde que tenham gestantes, nutrizes e crianças e adolescentes entre
0 a 15 anos, conforme o site http://www.mds.gov.br/programas/transferencia-de-renda/programabolsa-familia. Para entrar no Programa Bolsa Família, as famílias com renda mensal por pessoa de
até R$ 120,00 devem fazer o cadastro no Cadastro Único dos Programas Sociais.
56
A Bolsa Escola é outro programa de transferência de renda do Governo Federal que dá uma
ajuda mensal de R$ 15,00 para as crianças de 6 a 15 anos, que freqüentam e assistem às aulas e
238
Todos estes dados levantados e apontados anteriormente, os quais
mostram um crescimento das taxas de encarceramento, tanto nos Estados Unidos
como também no Brasil – diga-se, um encarceramento seletivo, classista e étnico
– especialmente aqueles dados que revelam que o crescimento das taxas de
encarceramento passaram a ocorrer quando, e ao mesmo momento em que havia
uma tendência de queda da população carcerária, demonstram uma significativa
mudança nas estratégias de controle social via políticas repressivas e, mais
precisamente, através de tecnologias e estratégias de controle mais presentes o que
correspondeu, historicamente, ao o momento da destruição do estado de bem-estar
a partir de meados dos anos 1970, ou seja, o controle social, as práticas e
estratégias de evitação da exclusão social – pobreza, desemprego, subemprego, é
dizer, os excedentes da força de trabalho, criados pela condição de produção pósfordista – deixaram de ser um problema solucionável pelos instrumentos de
políticas públicas inclusivas, para ser alvo dos instrumentos, tecnologias e
tendências de resolução via penalidade, via controle social do desvio.
O olhar eficiente e garantista da governabilidade está, definitivamente,
atrelado à maximização econômica, ou seja, o controle disciplinar e a economia
política da pena estão diretamente vinculados à ordem produtiva, nisso resulta a
transição de que fala Wacquant de um Estado social ao Estado penal, controlando
não mais a pobreza (conseqüência da imposição do modelo econômico neoliberal)
mas reprimindo os pobres (controle social das massas).
As câmeras de monitoramento surgem no momento em que todos são
suspeitos. Não há como definir, identificar ou diferenciar a classe dos perigosos,
ou melhor, todos são iguais: igualmente perigosos e, por conseqüência, suspeitos.
Como afirma De Giorgi (2002, p. 116) “é exatamente a dificuldade crescente em
distinguir o desviante do precário, o criminoso do irregular, o trabalhador da
economia ilegal do trabalhador da economia informal que determina o
reagrupamento da diversidade em classe perigosa”57.
cobre no máximo 3 crianças por família, sendo que a renda familiar, dividida pelo número de
pessoas que a compõem, não pode ser superior a R$ 90,00, conforme o site
http://www.caixa.gov.br/Cidadao/produtos/asp/bolsa_escola.asp.
57
Proprio la difficoltà crescente di distinguere il deviante dal precario, il criminale dall´irregolare,
il lavoratore dell´economia illegale da quello dell´economia informale, determina il
raggruppamento della diversità in classe pericolosa.
239
É na expressão da suspeição de todos que é possível legitimar uma
atuação que busca, no discurso, dar ao princípio da segurança maior
preponderância ao princípio da liberdade. Este “olhar” que pode ser refletido na
busca da segurança e também na conservação da ordem, é captado pelas lentes
mais ousadas e ávidas à reprodução do capital58. Além das câmeras de
monitoramento eletrônico de pessoas, o controle social está, também, em outros
mecanismos, novas práticas de governo, novos instrumentos de controle e
identificação. É possível, por exemplo, falar em práticas de controle como a
obrigatoriedade de instalação de chips de identificação nos automóveis59 e de
58
Sobre o crescimento das empresas especializadas em equipamentos eletrônicos de vigilância,
interessante matéria pode ser encontrada no site da Abinee (http://www.abinee.org.br/). A referida
matéria traz números e perspectivas de crescimento do setor afirmando que o cenário de guerra
criado em grandes capitais brasileiras – em especial São Paulo e Rio de Janeiro – é um “prato
cheio para as empresas que fornecem serviços de segurança eletrônica no Brasil”. São quase 7 mil
empresas na área que esperavam crescer entre 10% e 15% no ano de 2006, devendo faturar U$S
1,1 bilhão de faturamento. Segundo a reportagem, Paulo Alvarenga, diretor da Abinee, diz que a
alta na procura pelos produtos e serviços do setor nessa época foi também um reflexo da
insegurança mundial generalizada, decorrente do episódio de 11 de setembro de 2001.
A atividade financeira (bancária) é responsável por R$ 19,6 bilhões de investimentos entre
automação, softwares para aumentar a segurança nas transações bancárias, novos terminais de
auto-atendimento e linhas e equipamentos de telecomunicações. Outra tendência apontada é a da
atuação de empresas que integrem os sistemas de segurança, como a Siemens, que obteve 50% do
faturamento com serviços de monitoramento, o que significa, aproximadamente, R$ 7 bilhões em
2005. A matéria informa ainda que a “empresa ampliou seu mix de serviços com o
desenvolvimento de uma tecnologia de monitoramento de condomínios verticais e com a entrada
na prestação de serviços de rastreamento de veículos”. A mesma reportagem traz também algumas
informações sobre as câmeras de monitoramento, sensores e alarmes para locais públicos e
privados. Segundo ela, a partir dos ataques divulgados pela mídia do grupo chamado PCC em São
Paulo – Primeiro Comando da Capital – o interesse da população pelo setor aumentou. A
expectativa é que o setor deva movimentar US$ 1,1 bilhão em 2006, trazendo novidades “que
podem complementar as ações de combate à criminalidade”, sendo uma das principais um
“software que, integrado a uma central de câmeras de monitoramento público, pode controlar o
comportamento de pedestres e veículos e identificar infrações ou situações suspeitas sem que o
operador esteja necessariamente olhando para a tela". Interessante verificar que o discurso está
direcionado para uma sociedade que vive atenta e suspeitando de todos. Um dos atrativos que
chama atenção são os mecanismos de controle da população pois, segundo a reportagem estas
câmeras de monitoramento, pode-se configurar a câmera para disparar um alarme quando um carro
estaciona em local proibido ou um pedestre começa a correr em um calçadão de intenso
movimento, ou seja, “capazes de detectar situações típicas de um ataque criminoso, como carros
ou motos em alta velocidade ou na contramão”. O software pode também armazenar informações
como fluxo de carros em uma rua, formando um banco de dados. O lançamento mundial desse
sistema ocorreu em julho de 2006 e a cidade de Campinas (SP) foi a primeira a adotar em 8
câmeras de rua. Para adaptar este programa nas câmeras já existentes, o custo é de US$ 1.600 por
câmera. Muito interessante para avaliação no presente estudo a chamada “nova atração”: é uma
arma não letal que imobiliza uma pessoa a uma distância de 10 metros por meio do disparo de uma
corrente elétrica de 50 mil volts. Lembremos que a identificação é feita por visualização direta do
operador, ou seja, aliada à possibilidade do erro (do ponto de vista objetivo é possível haver erro
do sistema no momento do disparo, na identificação e seleção da ocorrência, na seleção da vítima
do disparo) ficará ao encargo do operador (critério subjetivo) eleger as infrações, desvios e
desviantes que serão atingidos.
59
A partir da Resolução 212 do Contran, a qual criou SINAV – Sistema Nacional de Identificação
Automática de Veículos – foi regulamentada as regras para implementação obrigatória da
240
monitoramento de presos60 e também chips de identificação nas cédulas de
identidade61.
É bom lembrar que todos estes mecanismos – câmeras de
monitoramento, chips de identificação e monitoramento, etc. – que hoje garantem
sua legitimidade em face do discurso da segurança contra o crime, amanhã podem
estar a serviço da ordem (ou da lei e ordem), podendo ser usados para verificações
de greves, repressão às manifestações políticas e ideológicas, por exemplo, e todo
tipo de controle possível das massas indesejadas (hoje classes perigosas). Por fim,
cabe lembrar que há sistemas disponíveis, por exemplo o programa “Google
Earth”, que permite uma incrível aproximação de imagens via satélite,
localizando ruas e casas em qualquer parte do mundo, e isto ao alcance de todos,
mas, é de se perguntar: se isto está absolutamente disponível a todos o que é
possível saber e que ainda não está disponível? É o controle total de tudo e de
todos.
Independente das questões até aqui levantadas, é importante relembrar
que estes mecanismos, seguramente, utilizam-se do discurso do medo e da
colocação de ‘chips’ de identificação nos veículos nos próximos cinco anos. A Resolução
estabelece, ainda, que após o prazo de implantação, quem não estiver com o ‘chip’ no veículo
estará cometendo infração do Art. 237 do CTB por não ter inscrições e simbologia necessária a sua
identificação o que implicará em multa e pontos na Carteira Nacional de Habilitação.
60
O monitoramento de presos é utilizado nos Estados Unidos e em vários países da Europa e pode
ser realizado via implantação de chips na pele de presos como também com um acessório acoplado
ao corpo, como uma pulseira ou tornozeleira, que manda mensagens a uma central sobre a
localização da pessoa monitorada. A discussão que está sendo travada transita, de um modo geral,
sob dois aspectos: a) uma maior humanização das penas e da diminuição da quantidade de presos
e, b) a violação à privacidade e intimidade das pessoas submetidas a este tratamento, bem como a
produção de estigmas em função das marcas ou acessórios que permitiriam maior visibilidade da
condição de estar preso. Uma outra possibilidade seria permitir que a pessoa condenada pudesse
optar em utilizar ou não o equipamento, ou seja, não de forma impositiva mas facultando-lhe esta
possibilidade. Assim, concordando com o monitoramento, o indivíduo seria vigiado pelo
equipamento sendo que não se sabe se o monitoramento seria realizado por um órgão público ou
privado. No Brasil o monitoramento de presos é um assunto que está sendo discutido no Conselho
Nacional de Política Criminal e Penitenciária. A proposta foi feita pelo Deputado Federal Carlos
Manato (PDT-ES) e a idéia é implantar um microchip sob a pele dos presos e monitorá-los durante
24 horas por dia, via satélite, para diminuir a superlotação das penitenciárias, melhorar a gestão
carcerária no País e monitorar presos que estejam cumprindo pena fora do estabelecimento
prisional. Ver Projeto de Lei no 510/07. Acrescente-se, ainda, que no dia 18 de abril de 2007, o
Governador do Estado de São Paulo entregou ao Presidente do Senado um projeto destinado a
regulamentar o uso de instrumentos de monitoramento (pulseiras e tornozeleiras) nos presos que
estejam em liberdade condicional.
61
Há, no Brasil, tramitando na Câmara dos Deputados, Projeto de Lei proposto pelo Deputado
Federal Félix Mendonça, prevendo que a Carteira de Identidade nacional receba um chip com
todos os dados individuais do cidadão, bem como seu mapeamento genético (DNA). Este projeto
recebeu o número PL 5.520/05 e atualmente está sob análise na Comissão de Finanças e
Tributação da Câmara dos Deputados. O referido Projeto de Lei já foi aprovado pela Comissão de
Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado.
241
necessidade de se ter segurança para subjetivar as condutas dos indivíduos,
forçando-os a consentir e permitir investimentos em segurança pública ou privada.
É o mais completo controle sócio-penal e a plena e irrefreável exploração
econômica do medo. Os nichos desse mercado são os mais variados possíveis:
como visto, é possível realizar o capital na privatização dos presídios, no
comércio de utensílios de controles de pessoas, de ambiente (celas móveis –
“conteiners”), de monitoramento, etc. que, pelo avanço tecnológico e pela corrida
contra o denominado crime organizado, foram necessários ao aparelhamento das
polícias (computadores, veículos, armamentos, treinamento de pessoal, câmeras
de vigilância, etc.), chegando, até mesmo, à venda dos órgãos daqueles
condenados à morte. Parecem ser infinitas as hipóteses à reprodução do capital.
Na Inglaterra, por exemplo, há 4,2 milhões de câmeras de circuito de
televisão, aproximadamente uma câmera para cada 14 pessoas, sendo considerado
o pais mais vigiado do mundo. O monitoramento inclui o acompanhamento, por
parte da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos, de todo o tráfego de
telecomunicações que passa pela Inglaterra. A reportagem afirma que um relatório
da Rede de Estudos sobre a Vigilância na Inglaterra aponta que a “combinação de
câmeras de CFTV, biometria, bancos de dados e outras tecnologias faz parte de
uma rede muito mais ampla de sistemas inteligentes interligados que permitem
acompanhar detalhadamente o comportamento de milhões de pessoas”. Esta
severa intervenção na vida íntima das pessoas é fruto, segundo a reportagem, da
luta contra o terrorismo62.
Veja-se, somente para esclarecer, que este discurso realmente serve
para legitimar o controle total dos corpos vivos e isto possibilita um controle
estatal, restringindo a liberdade e privilegiando a segurança, entretanto a tendência
não é apenas ficar no âmbito do controle público, mas sim controlar a vida privada
das pessoas, uma vez que é perfeitamente possível coletar dados pessoais a partir
de informações dos cartões de crédito, telefones celulares, sites e outras
informações de utilidade comercial.
No ano de 2004, as empresas de segurança eletrônica movimentaram,
aproximadamente, 900 milhões de reais, entretanto se forem consideradas as
instalações de infra-estrutura, como cabeamento de fibra ótica, esse valor pode
62
A
referida
reportagem
pode
ser
http://www.guiadocftv.com.br/modules/news/article.php?storyid=23.
vista
em
242
chegar a 4 bilhões de reais. Multinacionais como a alemã Bosch, as americanas
GE e Honeywell e empresas locais como a Comtex disputam o promissor
mercado de instalação de sistemas públicos de vigilância. A multinacional Bosch
equipa cerca de 80% dos aeroportos do País e ainda é responsável pelas câmeras
do sistema de vigilância instalado no centro de Curitiba. Somente para se ter idéia,
as 1.200 câmeras de segurança instaladas em prédios públicos e na orla marítima
da cidade de Praia Grande – litoral de São Paulo –– custaram aos cofres públicos
R$ 6,5 milhões63.
A reportagem informa ainda que a concorrência no setor é muito
grande uma vez que, segundo apontam os especialistas, este é um tipo de
tecnologia que necessita constante atualização, ou seja, independentemente dos
dados efetivos divulgados estarem corretos, é possível perceber que há uma
tendência para que os investimentos em segurança pública ou privada, não só se
perpetuem, mas cresçam. Utiliza-se, neste setor, a obsolescência como forma de
expansão do capital e, através desta, a chamada taxa decrescente de utilização de
bens e serviços socialmente produzidos.
No Rio de Janeiro as 220 câmeras instaladas em 2006, mais a
estrutura de apoio interligando Polícias Militar e Civil, Corpo de Bombeiros e
Defesa Civil, custaram aos cofres públicos R$ 52 milhões. As câmeras foram
instaladas, principalmente em bairros nobres da cidade como Copacabana, Leblon
e Ilha do Governador. Este fato chama a atenção quando é associado a outro fato
ocorrido na cidade do Rio de Janeiro no ano de 2001, a construção de uma piscina
em um bairro da periferia da capital carioca, isto porque há no Brasil a guerra
contra a mistura entre classes sociais – uma outra espécie de guetificação das
massas urbanas: se por um lado é construída uma área de lazer para evitar que
determinadas classes sociais deixem seus locais de origem e se dirijam às zonas
nobres da cidade, nestas instalam-se o monitoramento eletrônico para coibir,
evitar e separar os indesejados (as classes ditas perigosas). Estas, então, são outras
63
Esta
reportagem
pode
ser
capturada
no
site
http://www.link.estadao.com.br/index.cfm?id_conteudo=6206. Outros dados informativos
passados pela reportagem merecem destaque: há uma previsão, por exemplo, de que as empresas
que fornecem sistemas eletrônicos de vigilância atenderão apenas 5% da demanda existente.
Somente para se ter idéia do potencial do setor no Brasil, estima-se que menos de 10% (460 mil)
dos prédios em São Paulo são monitorados por sistemas de vigilância com câmeras e alarmes. Da
mesma forma, no setor bancário foram investidos no ano de 2005, R$ 400 milhões só em
segurança eletrônica. No Rio de Janeiro, no setor de comércio (supermercados, armazéns lojas,
etc.) estima-se que tenham sido gastos em segurança eletrônica em 2005 de 2,5% do total faturado.
243
funções dos instrumentos de vigilância eletrônica e de outros equipamentos, é
dizer: não só monitorar, mas expandir o capital, apartar (ou eliminar) as classes
perigosas, evitando-se o contato com elas (como se fossem portadores de doenças
contagiosas) isto porque serão identificados como perturbadores da ordem pois a
diferença denota a desordem intolerável.
Por fim, cabe ainda uma pequena análise da última função exercida
pelo sistema de controle econômico-penal (acima enumerada pela letra “d”): a
reprodução do capital através do capital destrutivo. Como dito anteriormente
(Capítulo II, itens 2.4.3 e 2.4.4), esta tendência da taxa de utilização decrescente –
incorporada ao sistema produtivo do “capitalismo avançado” através do chamado
consumo destrutivo, especialmente, pelo complexo industrial-militar – exerce uma
função importante no desenvolvimento do capital. Para que a vida útil da
mercadoria seja uma realidade e possibilite a expansão do capital, é preciso que
esta tenha seu tempo de vida limitado, o que é realizado pela sua destruição. É
bom lembrar que para Mészáros, no nível do sistema produtivo capitalista,
consumo e destruição são equivalentes funcionais no processo de realização do
capital, ou seja, se à reprodução do capital é necessário uma demanda efetiva,
também é necessário – e o capital assim o faz – colocar em movimento forças
produtivas e destrutivas.
É exatamente neste sentido – do movimento de forças produtivas e
destrutivas – que as guerras ocupam um lucus privilegiado. Muito embora, hoje,
Mészáros (2002, p. 1002) indique que os desafios internos obrigam o capitalismo
a se confrontar com seus próprios problemas não permitindo que o futuro do seu
desenvolvimento possa agora ser adiado por muito tempo, nem transferido para o
plano militar, o fato é que os gastos militares (complexo industrial militar, como
denomina Mészáros) não param de crescer. Para justificar a necessidade dos
Estados se defenderem e criarem guerras, são utilizadas diversas orientações,
especialmente após os acontecimentos de 11 de setembro de 2001. É possível
proclamar guerra contra o terrorismo (desde o “totalitarismo” religioso, ao
terrorismo praticado pelos movimentos sociais como o MST, por exemplo), contra
as drogas, contra as destruições ambientais, à implementação da democracia, etc.
244
Os dados observados pelo relatório anual do SIPRI64 (Stockholm
International Peace Research Institute) mostram que os gastos militares em
diversas partes do mundo estão em franco crescimento e apontam os Estados
Unidos como o maior “investidor”. Do total dos gastos com a indústria bélica no
ano de 2004, os Estados Unidos gastaram 47% dos custos mundiais, ou seja, 455
bilhões de dólares de um total de mais de 1 trilhão de dólares (1,035 trilhão de
dólares). Em 2004, a média global dos gastos militares correspondeu a 162
dólares per capita e 2,6% do produto interno bruto mundial.
O complexo militar-industrial facilita a circulação e expansão do
capital, isto porque há um equivalente funcional à sua disposição do capital, ou
seja, como afirma Mészáros (2002, p. 687), na prática, não havendo distinção
entre consumo e destruição, o capital pode circular com maior velocidade dentro
do próprio círculo do consumo. É o que ele chama de linha de menor resistência
do capital, do ponto de vista do capital. Para Mészáros o complexo militarindustrial resolve, com sucesso, duas restrições fundamentais: os recursos
limitados da sociedade e a constituição do próprio consumidor.
Assim, se por um lado ele consegue legitimar o desperdício sob o
argumento da necessidade patriótica, por outro, ele remove as restrições
tradicionais do círculo de consumo, definido pelas limitações do apetite dos
consumidores, ou seja, ele reestrutura a produção e o consumo de maneira a tornálo desnecessário. Esta é a contribuição que o complexo militar-industrial
proporciona, isto é, assegura a maior expansão em suas operações, permitindo
altos índices de lucratividade em função de que o consumidor (diante da lógica do
capital) passa a ser o próprio Estado, é dizer, as necessidades passam a ter uma
conotação ideológica e a necessidade de intervenção do Estado capitalista passa a
ser fundamental.
Não se trata, pois, de uma remilitarização do mundo na guerra contra
o terrorismo, contra o tráfico ilícito de drogas, contra o mal, ou coisas do gênero,
mas mecanismos de controle social via expansão do capital. O aparelhamento, ou
a militarização dos diversos estados latino americanos corresponde, na verdade,
aos pressupostos de estabilização do capital via acordos de livre comércio na
região, e que apontam para esta necessidade (remilitarização da América Latina)
64
Os dados podem ser observados no site http://www.yearbook2005.sipri.org/ch8/ch8.
245
sob o preocupante argumento de que a polarização social, os altos índices de
desemprego, os conflitos sociais e a violência urbana, podem causar insegurança
social capaz de impedir investimentos privados (e conseqüentemente o
“desenvolvimento” da região), justificando a) a implantação de todas as políticas
tradicionais de segurança pública (a “teoria das janelas quebradas”, políticas de
“tolerância zero”, “eficientismo penal” e “penalização da miséria”); b) a
relativização dos Direitos Sociais e dos Direitos Humanos; c) a privatização dos
presídios; d) o aumento dos encarceramentos, e) uma maior criminalização
(seletividade primária e secundária); e) criação de mecanismos que aumentem os
vínculos com o sistema penal e; f) o aumento do controle social via instrumentos,
técnicas e tecnologias de monitoramento.
São estas situações de exploração econômica do medo que
proporcionam a busca e o encontro dos espaços necessários à expansão do capital.
6
Considerações Finais
EM
BUSCA
LIMPEZA,
DO
CONTROLE
TOTAL
ANIQUILAMENTO
ACUMULAÇÃO
CAPITALISTA
E
DOS
CORPOS:
EXCLUSÃO
EM
À
TEMPOS
CONTEMPORÂNEOS
Considerando os objetivos e hipóteses levantadas na introdução da
presente pesquisa, procurou-se responder algumas importantes indagações, mas
prioritariamente sobre a tendência contemporânea de uma possível relação entre a
lógica do sistema econômico neoliberal – as chamadas economias de mercado –,
as contradições das políticas de segurança pública e o aparecimento de novas
formas de controle da população, com vistas à reprodução e acumulação do
capital. Esta tendência acontece, notadamente, pela profunda e preocupante
polarização econômica da sociedade, mas também pela implementação de
políticas públicas atentatórias aos direitos humanos, especialmente contra as
camadas sociais mais vulneráveis.
Substancialmente o trabalho procurou investigar quais os interesses na
exploração e divulgação da violência (por exemplo, as guerras internacionais, o
combate ao tráfico ilícito de entorpecentes), à consecução das finalidades
resultantes da lógica de mercado em detrimento aos direitos e garantias
fundamentais. Partiu-se, portanto, de alguns pressupostos levantados nos dois
primeiros capítulos.
Ao analisar o liberalismo econômico no contexto da democracia e da
globalização, pode-se perceber que a sociedade capitalista está marcada pelo
confronto e pela violência, não tanto por aquela violência prodigalizada pelos
estéricos meios de comunicação, que apenas proporciona o aumento da sensação
de insegurança, mas marcada por uma violência estrutural (econômica e social) e
institucional (especialmente utilizando-se do aparato policial para selecionar os
indivíduos, criminalizando muitos e imunizando alguns), que barbariza e ataca,
num constante procedimento de combate à dita criminalidade.
249
As conseqüências políticas dos processos de globalização conduziram
à atual “crise de identidade” da civilização, no sentido que Bauman (2000, p. 12)
empresta a expressão. Para ele as instituições políticas sucumbiram ante a força e
a imposição ao conformismo realizado pelo liberalismo, isto porque somente são
colocados poucos caminhos a percorrer, como se não existisse outra “opção entre
ditadura do mercado e a do governo sobre as nossas necessidades, como se não
houvesse lugar para a cidadania fora do consumismo”.
Neste sentido é que foi discutida a questão da liberdade e suas
implicações na contemporaneidade, especialmente neste contexto de intensa
exclusão social e de políticas de segurança pública calcadas na intolerância e no
discurso autoritário da “lei e da ordem”, demonstrando que as pretensões
modernas de igualdade e liberdade não foram alcançadas. É a partir desse ponto
que começa a ser discutida e questionada a liberdade de cada indivíduo, isto
porque cada um passa a sentir-se livre no momento em que o sentimento de
igualdade também perpassa a todos, ainda que estejamos tratando de uma
igualdade formal.
Os vínculos estabelecidos entre liberdade e desejo – “eu posso
desejar” – enfeixam uma relação de esgotamento, no sentimento individual e
coletivo, que permite ao sujeito estabelecer as pontes necessárias às suas
realizações – “se posso desejar, sou livre”. Entretanto, estes mesmos desejos, cujo
referencial se transfere ao símbolo da liberdade – “não serei reprimido, pois se
desejar é possível não perverto a ordem pública” – são intensamente reproduzidos
por diversos mecanismos sociais. Ocorre “que o aumento da liberdade individual
pode coincidir com o aumento da impotência coletiva na medida em que as pontes
da vida pública e privada são destruídas” (Bauman, 2000, p. 10).
Pavimenta-se o caminho à utilização da violência como mecanismo de
estabilização política e social, tendo como conseqüências as constantes agressões
aos direitos fundamentais, isto porque a crise de identidade representada pelo
sentimento de insegurança1 impede a utilização de instrumentos coletivos de
resolução dos conflitos sociais, a qual pode ser representada pelos inúmeros atos
de violência (público e privado), pela destruição ambiental, pela exploração em
vasta escala, etc. Interessante perceber que o campo da insegurança é o único
1
Bauman (2000, p. 13), refere-se a “Unsicherheit”, como o termo alemão que melhor traduz esse
sentimento de insegurança, muito embora possa também significar incerteza e falta de garantia.
250
passível de alterações, exigindo-se ações coletivas, contudo “a maioria das
medidas empreendidas sob a bandeira da segurança são divisórias, semeiam a
desconfiança mútua, separam as pessoas, dispondo-as a farejar inimigos e
conspiradores por trás de toda discordância e divergência, tornando por fim ainda
mais solitários os que se isolam (Bauman, 2000, 13).
Foi percebido, principalmente focando a literatura de Hannah Arendt,
de que forma a busca pela autoridade política guarda íntima relação com todo o
problema levantado na pesquisa: ‘curiosamente’ o sentimento de liberdade
permite que se deseje aquilo que for suficiente para atingir a plenitude da
Unsicherheit, ou seja, a busca da autoridade é feita pela profusão da violência e do
medo, como instrumentos necessários à realização dos pressupostos do
capitalismo liberal. A mínima intervenção estatal na regulação econômica permite
a plena liberdade do mercado para controlar e administrar as atividades
econômicas, o que é necessário para controlar as massas, isto porque para garantir
a ordem – segurança, garantia e certeza – o Estado fica legitimado a utilizar-se da
violência (ainda que com isso perca poder, no sentido arendtiano) – tanto
estrutural como institucional.
É necessário que o indivíduo possua o “sentimento de pertencimento”
e evite a criação dos desejos, deixando que apenas deseje o que for permitido ao
cumprimento dos objetivos estruturais da sociedade liberal, de capitalismo
globalizado (de mercado, sem intervenção estatal), em que a produção das
subjetividades condicionará os desejos de consumo. Por certo, esta é a razão para
se falar em crise de identidade ou, como diz Bauman, no mal-estar da pósmodernidade, pois a destruição da instância política ocorre justamente em função
da supressão da liberdade. Este é o sentido da liberdade no contexto da estrutura
social capitalista.
Impondo-se como a única “alternativa” possível e produzindo um
sentimento de terem triunfado seus pressupostos políticos (democracia liberal) e
econômicos (capitalismo globalizado), o capital e sua acumulação se
desenvolvem, de forma insidiosa, através de intensos processos de subjetivação,
na produção e satisfação dos desejos, marcados pelo princípio de mercado que
impõe o padrão de consumo, bem como determina quem são os incluídos e
excluídos. A conseqüência é a determinação do mercado como centro de produção
normativa e de decisão política.
251
Identificadas as constantes tensões sociais, provocadas pelas
profundas contradições estruturais e endêmicas ao modo de produção capitalista e
sua relação com os processos de subjetivação, é fundamental compreender que
estas contradições revelaram a dificuldade da reprodução do capital e a
necessidade de se achar novos espaços próprios a esta finalidade. Na onda da
liberdade, o capital também buscou livrar-se das amarras impostas pelas barreiras
da soberania dos Estados-nação, e a “mundialização do capital2” ocupou a
centralidade dessa operação. Entretanto, os resultados da financeirização do
capital e o ressurgimento de formas agressivas e brutais de aumento da
produtividade do capital, baseado na combinação de apropriação da mais-valia
absoluta e relativa, tiveram como resultado um ‘espetacular’ aumento do
desemprego (Chesnais, 1996, p. 16-17).
Dois problemas foram revelados: primeiro, o dito aumento das taxas
de
desemprego,
o
que
representará
menos
pessoas
consumindo
e,
simultaneamente, o aumento dos excluídos; segundo, como conseqüência do
primeiro, e diante da transição e tendência da produção, notadamente do modelo
fordista ao atual momento de flexibilização da produção permite concluir que a
condição do novo proletariado e as dinâmicas das relações de produção estão a
influenciar o novo encarceramento, mas, atente-se, não mais para disciplinamento
dos corpos, mas para o controle das classes excluídas e à reprodução do capital.
a) Para o controle social surge a estatização do biológico, “o que se
poderia denominar a assunção da vida pelo poder” (Foucault, 1999, p. 286)
tornando-se possível o acesso à vida das pessoas. É a politização do poder de
controlar a vida, pois as necessidades agora não são corpos dóceis e treinados,
mas o total controle da vida. Com o deslocamento da soberania do Estado para o
mercado, a condição de consumidor imposta por este, representa a exposição da
vida à violência, pois impõe ao sujeito, sob a identificação perniciosa da
liberdade, condições inatingíveis, permitindo que os não consumidores (ou
“consumidores falhos”, no dizer de Bauman) ou os trabalhadores que não
conseguem vender sua força de trabalho tenham tratamento “diferenciado”:
exclusão social e abandono.
2
Chesnais (1996, p. 17) diz: “a Expressão ‘mundialização do capital’ é a que corresponde mais
exatamente à substância do termo inglês ‘globalização’, que traduz a capacidade estratégica de
todo grande grupo oligopolista, voltado para a produção manufatureira ou para as principais
atividades de serviços, de adotar, por conta própria, um enfoque e conduta ‘globais’”.
252
b) Para a acumulação do capital o caminho é um pouco mais velado.
Como se viu, a exclusão pelo mercado se dá pela adoção de políticas públicas de
viés neoliberal, as quais diminuem o tamanho do Estado, não permitindo que se
tenha espaço para todos. Aqueles que ficam “de fora” têm o tratamento
diferenciado: indiferença, exclusão e controle total. De forma semelhante ocorre
com o trabalhador que não consegue mais vender sua força de trabalho. Em ambas
as situações, a exclusão (pelo mercado ou pelo sistema de produção econômico)
não é realizada legalmente, mas pela biopolítica. Qual ou quais os caminhos que
devem ser percorridos à acumulação do capital utilizando-se o ‘lixo desprezado’?
Na busca por novos espaços à reprodução do capital, Harvey apontou
para as privatizações. Mészaros para o capital destrutivo e para as taxas
decrescentes de utilização. Bauman para a utilização dos excluídos. Orientandonos pela leitura da criminologia crítica, Baratta apontou para a contenção das
massas de insatisfeitos pela exploração do trabalho precário, pela ausência de
proteção social do Estado e excluídos do mercado de trabalho, a utilização do
sistema de controle social, do tipo penal, justamente para manter a ordem e as
condições da precarização das relações sociais.
Isto ocorre, pois a busca pela segurança não é uma necessidade, mas
tão somente um elemento à realização do capital e a adoção de políticas de
segurança pública neoliberais, como as políticas de “tolerância zero” e o
movimento de “lei e ordem”, cumprem esse papel e contribuem ao
encarceramento em massa, seguindo uma lição norte-americana, que está sendo
aplicada também em diversos países da Europa e da América Latina, inclusive no
Brasil. Assim é que a exploração da indústria do crime entra em cena. Através dos
mais diversos mecanismos de controle como as câmeras de vídeo, a privatização
dos presídios, a informatização do controle prisional, a aquisição de veículos –
motos, carros, caminhões, helicópteros, aviões – armamentos, suprimentos,
investimento tecnológico, treinamento e contratação de pessoal, etc., há um
enorme investimento público e privado no setor e, conseqüentemente, a
possibilidade da reprodução do capital.
Veja-se aqui, contudo, a confirmação da hipótese apresentada: num
primeiro momento, o sistema penal, através da criminalização das condutas, do
aumento do aparato repressivo e das inúmeras hipóteses de controle penal fora do
sistema carcerário (probation, parole, suspensão condicional do processo,
253
transação penal, etc.), exerce o controle e a exclusão dos excedentes, dos
consumidores falhos e daqueles que não fazem diferença à produção econômica e,
num segundo momento, alimenta o sistema fornecendo matéria prima abundante
ao grande negócio envolvendo a segurança pública e, diretamente, sua
privatização.
As atitudes políticas ao adotarem medidas penalizadoras cada vez
mais rigorosas, tanto nos Estados Unidos como em países da América Latina ou
Europa, apenas refletem o sentimento social de insegurança reinante, que clama
por ações repressoras cada vez mais intensas (aumento das penas, pena de morte,
tipificação de condutas3, recrudescimento do regime prisional de cumprimento de
penas privativas de liberdade, etc.). Exatamente nesta perspectiva, que programas
de políticas de segurança pública, como o ‘tolerância zero’, são sacralizados como
suficientes à resolução dos conflitos sociais4.
Basta dizer, somente a título de exemplo, que nos Estados Unidos, a
adoção das políticas de segurança, fundadas no discurso de Lei e Ordem, resultou
num aumento significativo na quantidade de pessoas submetidas ao sistema penal,
sendo considerado o responsável pela diminuição dos índices de criminalidade na
cidade de Nova York, entretanto, não é dito nem divulgado, que cidades como
Boston e Chicago já haviam registrado a diminuição das taxas de criminalidade
três anos antes da implementação das referidas políticas de tolerância zero
(Wacquant, 2001, p. 28).
3
No momento da realização dessas considerações finais da presente pesquisa, recebi o Boletim
Informativo do Congresso Nacional, noticiando que a Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania (CCJ) estará votando, nos próximos dias, projeto de lei que estabelece um aumento de
pena para crimes contra a honra praticados pela Internet. O projeto (PLS 398/07) é do Senador
Expedito Júnior (PR-RO). Ressalte-se, por oportuno, que o número de projetos de lei que são
criados, tipificando novas condutas, aumentando penas de crimes já existentes, ou ainda
aumentando o rigor no cumprimento das penas é, de forma impressionante, muito grande, como,
por exemplo, o ‘pacote antiviolência’, aprovado pelo Senado Federal, no dia 31 de agosto de 2007.
O projeto é da autoria dos Senadores Magno Malta (PR-ES) e Aloizio Mercadante (PT-SP). No
referido ‘pacote’, destaca-se a introdução do monitoramento eletrônico por meio de pulseiras ou
tornozeleiras, a fim de realizar o rastreamento de presos que estão em liberdade condicional,
regime semi-aberto ou saída temporária das penitenciárias, além de presos de alta periculosidade
que ainda cumprem regime fechado. A idéia central (declarada) é que a utilização destes
mecanismos para ‘evitar a superlotação’ do sistema penitenciário nacional. Caberá aos Estados a
definição se os presos utilizarão tornozeleiras ou pulseiras.
4
Somente para lembrar, no terceiro capítulo da presente tese, trouxemos dados estatísticos
importantes levantados por Loïc Wacquant. Naquele momento indicamos que Wacquant (2001, p.
28), demonstra que Nova York, cidade símbolo mundial da segurança pública, fruto da divulgação
das políticas de “tolerância zero”, registrou um aumento dos gastos destinados à manutenção da
ordem, no orçamento para a polícia em 40%, ou seja, quatro vezes mais que as verbas destinadas
aos serviços públicos de saúde, no momento em que cortou 30% nos gastos com os serviços
sociais da cidade, resultando em uma perda de 8.000 postos de trabalho.
254
Como se viu, principalmente no quarto capítulo, os dados revelam,
empiricamente, o que a criminologia crítica já havia levantado, é dizer, o aumento
da população submetida ao sistema penal (cárcere e outras medidas ‘extramuros’5,
como as liberdades vigiadas, sursis processual, etc.) não representa, ou não
significa, diretamente que haja um aumento da criminalidade, mas sim, a adoção
de tais políticas pelo poder de polícia do Estado, notadamente contra determinadas
camadas da população, coincidentemente contra os mais vulneráveis (pobres,
imigrantes, negros, minorias, “não consumidores”, etc.), aponta e identifica a cifra
oculta da criminalidade, fornecendo ao mesmo tempo a matéria prima necessária à
reprodução do capital.
O resultado dessa perversa relação pode ser assustador. Vejamos por
que: nos Estados Unidos a população carcerária aumentou em 20 anos (de 1970 a
1991) quatro vezes – de 200 mil detentos para 895 mil. Hoje, o equivalente a
2,5% da população dos Estados Unidos está submetida a alguma situação de
controle penal. No Brasil a situação não é muito diferente, isto porque, conforme a
pesquisa realizada por Sandro Cabral (2005, p.123), o crescimento da população
carcerária está acima dos patamares do crescimento vegetativo da população e os
dados apresentados pelos censos penitenciários revelaram que em 1994 havia o
equivalente a 84 presos por 100.000 habitantes e em 2006 o equivalente a 199
presos por 100.000 habitantes.
Estes índices são alcançados pela implementação ‘justificada’ de
políticas penais cada vez mais rígidas, pela indiferenciação (ou relativização) dos
Direitos Humanos, pela seletividade primária e secundária, pelo aumento dos
vínculos com o sistema penal, enfim, por diversos instrumentos que visam não só
o controle social (através de técnicas e tecnologias de monitoramento), mas, sem
dúvida, à exploração econômica do medo ao encontro de espaços à expansão e
acumulação do capital.
A relação perversa e assustadora acima referida confirma, entretanto,
uma das hipóteses da presente pesquisa, isto porque ao ser constatado o
crescimento
exponencial
das
empresas
de
segurança
(desde
empresas
especializadas em privatizações de presídios, como de segurança privada), bem
5
Nos EUA o número de pessoas submetidas ao regime de controle penal, fora das prisões, é
significativamente maior que o número de presos efetivos. Ver item “4.5.2. A privatização das
prisões: um nicho de mercado e a retirada da “sujeira” pelo controle social”, no Capítulo IV, da
presente tese.
255
como da população submetida a algum sistema de controle, isto representa a
tendência da possibilidade ao surgimento de novos lugares à expansão do capital.
No Brasil, por exemplo, em apenas três anos, houve um crescimento de 44,92%
dessas empresas (legalizadas).
No mesmo sentido, a prisão e outros mecanismos de controle,
apontam elementos que favorecem legalmente (o que dá uma face de legitimidade
ao sistema) a criação de instrumentos de agenciamento de uma potencial clientela
e até mesmo à possibilidade da legalização do trabalho escravo. Com tudo isso
verifica-se, pois, um significativo mercado de reprodução do capital, ou seja, a
atuação do sistema penal é exercida na prisão e fora dela, sendo aqui,
possivelmente, um lugar igual ou mais atrativo que a privatização das prisões.
7
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