Escola Nacional
Florestan Fernandes
Sua história e contribuições
Localização
A Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em Guararema, na Região Metropolitana de
São Paulo, é um centro de educação e formação, idealizado pelo Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST).
Início
A escola foi construída, entre os anos 2000 e 2005, graças ao trabalho voluntário de pelo menos
mil trabalhadores sem terra e Inaugurada em janeiro de 2005, a escola foi nomeada em homenagem
ao educador Florestan Fernandes, incentivador do trabalho coletivo e permanente defensor do
ensino público, gratuito e de qualidade para todos. A escola é considerada como um elemento de
grande importância para o processo de formação da militância do MST e outras organizações.
Nos cinco primeiros anos de sua existência, passaram pela escola 16 mil militantes e quadros dos
movimentos sociais do Brasil, da América Latina e da África. Não se trata, portanto, de uma
“escola do MST”, mas de um patrimônio de todos os trabalhadores comprometidos com um
projeto de transformação social. Entretanto, no momento em que o MST é obrigado a mobilizar
as suas energias para resistir aos ataques implacáveis dos donos do capital, a escola torna-se
carente de recursos. Nós não podemos permitir, sequer tolerar a ideia de que ela interrompa ou
sequer diminua o ritmo de suas atividades.
Imagens da ENFF
Florestan Fernandes
Florestan Fernandes é o intelectual responsável por pensar e lutar pela constituição da Sociologia como ciência e disciplina no
Brasil. Como também lutou pela constituição do Pensamento Social Brasileiro capaz de compreender a realidade brasileira e
suas peculiaridades e entraves para transforma-la.
Florestan por Octavio Ianni
A SOCIOLOGiA DE FLORESTAN FERNANDES inaugura uma nova época na história da Sociologia
brasileira. Não só descortina novos horizontes para a reflexão teórica e a interpretação da realidade social, como permite reler
criticamente muito do que tem sido a Sociologia brasileira passada e recente. Permite reler criticamente algumas teses de Silvio
Romero, Oliveira Vianna, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freire entre alguns outros. Simultaneamente, retoma e
desenvolve teses esboçadas por Euclides da Cunha, Manoel Bonfim, Caio Prado Júnior, entre outros. A partir desse
diálogo com uns e outros, a Sociologia de Florestan Fernandes inaugura uma nova interpretação do Brasil, um novo estilo de
pensar o passado e o presente.
Em uma formulação muito breve, pode-se afirmar que a interpretação do Brasil formulada por Florestan Fernandes revela a formação,
os desenvolvimentos, as lutas e as perspectivas do povo brasileiro. Um povo formado por populações indígenas, conquistadores
portugueses, africanos trazidos como escravos, imigrantes europeus, árabes e asiáticos incorporados como trabalhadores livres. Mas
essa é uma história baseada no escambo e escravidão, no colonialismo e imperialismo, na urbanização e industrialização, por meio da qual
se dá, inicialmente, a formação da sociedade de castas, e, posteriormente, da sociedade de classes. Uma história atravessada por lutas
sociais da maior importância, desde as revoltas de comunidades indígenas contra os colonizadores às lutas contra o regime de trabalho
escravo. História essa que, no século xx, desenvolve-se com as lutas de trabalhadores do campo e da cidade pela conquista de direitos
sociais ou pela transformação das estruturas sociais. Uma parte importante dessa contribuição encontra-se em livros como estes: A
organização social dos Tupinambá, A integração do negro na sociedade de classes, O negro no mundo dos brancos, Mudanças sociais
no Brasil e A revolução burguesa no Brasil.
Florestan por Octavio Ianni
Florestan Fernandes é o fundador da sociologia crítica no Brasil. Toda a sua produção intelectual está impregnada de um estilo de
reflexão que questiona a realidade social e o pensamento. As suas contribuições sobre as relações raciais entre negros e brancos, por
exemplo, estão atravessadas pelo empenho de interrogar a dinâmica da realidade social, desvendar as tendências desta e, ao mesmo
tempo, discutir as interpretações prevalecentes. No mesmo sentido, as duas reflexões sobre os problemas da indução na sociologia
avaliam cada uma e todas as teorias, os métodos e as técnicas de pesquisa e explicação, da mesma maneira que oferecem novas
contribuições para o conhecimento das condições lógicas e históricas de reconstrução da realidade. Essa perspectiva está presente nas
monografias e ensaios sobre o problema indígena, escravatura e abolição, educação e sociedade, folclore e cultura, revolução burguesa,
revolução socialista e outros temas da história brasileira e latino-americana.
O mesmo se pode dizer dos seus trabalhos sobre teoria sociológica. A perspectiva crítica está presente em toda a sua produção
intelectual, incluindo obviamente o ensino, a conferência, o debate público. Questiona o real e o pensado, tanto os pontos de vista dos
membros dos grupos e classes compreendidos na pesquisa como as interpretações elaboradas sobre eles. Assim, alcança sempre algo
novo, outro patamar, horizonte. Vai além do que está dado como estabelecido, explicado. Ao submeter o real e o pensado à reflexão
crítica, descortina as diversidades, desigualdades e antagonismos, apanhando as diferentes perspectivas dos grupos e classes
compreendidos pela situação. Nesse percurso, resgata o movimento do real e do pensado a partir dos grupos e classes que compõem a
maioria do povo. São índios, negros, imigrantes, escravos e livres, trabalhadores da cidade e do campo que reaparecem no movimento da
história. As mais notáveis propostas teóricas da sociologia são avaliadas, questionadas e recriadas, tendo em conta a compreensão das
suas contribuições para apanhar os andamentos da realidade social.
Trechos extraídos do artigo “A Sociologia de Florestan Fernandes” escrito por Octavio Ianni e publicado in Estud.
av. vol.10 no.26 São Paulo Jan./Apr. 1996
A Construção
A escola foi construída graças ao trabalho voluntário de 1.115 militantes dos movimentos sociais
brasileiros. As obras foram iniciadas em 2000. A escola foi erguida sobre um terreno de 30 mil
metros quadrados. O projeto conceitual e arquitetônico das cinco edificações que compõem o
campus da escola é de autoria da arquiteta Lilian Avivia Lubochinski. Ao todo, são três salas de
aula, que comportam juntas até 200 pessoas, um auditório e dois anfiteatros, além de dormitórios,
refeitórios e instalações sanitárias. Todos os trabalhadores do MST que ajudaram a construí-la
passaram por cursos de alfabetização e supletivos ao longo da obra. Organizados em brigadas,
esses trabalhadores ficavam cerca de 60 dias trabalhando na construção da Escola. Em seguida,
voltavam para seus Estados, sendo substituídos por nova brigada. Ao retornar a seus locais de
origem, puderam utilizar os ensinamentos obtidos na Escola para melhorar a qualidade dos seus
assentamentos e acampamentos.
A ENFF foi inteiramente construída com tijolos de solo cimento, fabricados na própria escola.
Além de esses tijolos serem mais resistentes, seu uso possibilita uma redução de 30% a 50% nas
quantidades de ferro, aço e cimento necessárias à execução da obra, comparativamente a uma
edificação convencional. Os tijolos são levados para secar ao ar livre, dispensando-se portanto o
uso de fornalhas e a queima de madeira. Esse tipo de manejo atende a um princípio fundamental
para o MST: preservar e utilizar racionalmente os recursos naturais.
Imagens da ENFF
Financiamento
Os recursos para a construção foram
obtidos com a venda do livro Terra
(textos de José Saramago, músicas de
Chico Buarque e fotos de Sebastião
Salgado), contribuições de ONGs
europeias (como a Frères des Hommes França e a Cáritas - Alemanha) e
doações.
Imagens ENFF
Livro Terra - Prefácio de José
Saramago
É difícil defender
só com palavras a vida
(ainda mais quando ela é
esta que vê, severina).
João Cabral de Melo Neto.
Prefácio
Oxalá não venha nunca à sublime cabeça de Deus a idéia de viajar um dia a estas paragens para certificar-se de que as
pessoas que por aqui mal vivem, e pior vão morrendo, estão a cumprir de modo satisfatório o castigo que por ele foi aplicado, no
começo do mundo, ao nosso primeiro pai e à nossa primeira mãe, os quais, pela simples e honesta curiosidade de quererem saber
a razão por que tinham sido feitos, foram sentenciados, ela, a parir com esforço e dor, ele, a ganhar o pão da família com o suor
do seu rosto, tendo como destino final a mesma terra donde, por um capricho divino, haviam sido tirados, pó que foi pó, e pó
tornará a ser. Dos dois criminosos, digamo-lo já, quem veio a suportar a carga pior foi ela e as que depois dela vieram, pois
tendo de sofrer e suar tanto para parir, conforme havia sido determinado pela sempre misericordiosa vontade de Deus, tiveram
também de suar e sofrer trabalhando ao lado dos seus homens, tiveram também de esforçar-se o mesmo ou mais do que eles, que
a vida, durante muitos milénios, não estava para a senhora ficar em casa, de perna estendida, qual rainha das abelhas, sem outra
obrigação que a de desovar de tempos a tempos, não fosse ficar o mundo deserto e depois não ter Deus em quem mandar. Se,
porém, o dito Deus, não fazendo caso de recomendações e conselhos, persistisse no propósito de vir até aqui, sem dúvida
acabaria por reconhecer como, afinal, é tão pouca coisa ser-se um Deus, quando, apesar dos famosos atributos de
omnisciência e omnipotência, mil vezes exaltados em todas as línguas e dialectos, foram cometidos, no projecto da criação da
humanidade, tantos e tão grosseiros erros de previsão, como foi aquele, a todas as luzes imperdoável, de apetrechar as pessoas
com glândulas sudoríparas, para depois lhes recusar o trabalho que as faria funcionar - as glândulas e as pessoas. Ao pé disto,
cabe perguntar se não teria merecido mais prémio que castigo a puríssima inocência que levou a nossa primeira mãe e o nosso
primeiro pai a provarem do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. A verdade, digam o que disserem autoridades,
tanto as teológicas como as outras, civis e militares, é que, propriamente falando, não o chegaram a comer, só o morderam, por
isso estamos nós como estamos, sabendo tanto do mal, e do bem tão pouco.
Prefacio
Envergonhar-se e arrepender-se dos erros cometidos é o que se espera de qualquer pessoa bem nascida e de sólida formação
moral, e Deus, tendo indiscutivelmente nascido de Si mesmo, está claro que nasceu do melhor que havia no seu tempo. Por
estas razões, as de origem e as adquiridas, após ter visto e percebido o que aqui se passa, não teve mais remédio que clamar
mea culpa, mea maxima culpa, e reconhecer a excessiva dimensão dos enganos em que tinha caído. É certo que, a seu crédito, e
para que isto não seja só um contínuo dizer mal do Criador, subsiste o facto irrespondível de que, quando Deus se decidiu a
expulsar do paraíso terreal, por desobediência, o nosso primeiro pai e a nossa primeira mãe, eles, apesar da imprudente falta,
iriam ter ao seu dispor a terra toda, para nela suarem e trabalharem à vontade. Contudo, e por desgraça, um outro erro nas
previsões divinas não demoraria a manifestar-se, e esse muito mais grave do que tudo quanto até aí havia acontecido.Foi o caso
que estando já a terra assaz povoada de filhos, filhos de filhos e filhos de netos da nossa primeira mãe e do nosso primeiro pai,
uns quantos desses, esquecidos de que sendo a morte de todos, a vida também o deveria ser, puseram-se a traçar uns riscos no
chão, a espetar umas estacas, a levantar uns muros de pedra, depois do que anunciaram que, a partir desse momento, estava
proibida (palavra nova) a entrada nos terrenos que assim ficavam delimitados, sob pena de um castigo, que segundo os tempos e
os costumes, poderia vir a ser de morte, ou de prisão, ou de multa, ou novamente de morte. Sem que até hoje se tivesse sabido
porquê, e não falta quem afirme que disto não poderão ser atiradas as responsabilidades para as costas de Deus, aqueles
nossos antigos parentes que por ali andavam, tendo presenciado a espoliação e escutado o inaudito aviso, não só não
protestaram contra o abuso com que fora tornado particular o que até então havia sido de todos, como acreditaram que era
essa a irrefragável ordem natural das coisas de que se tinha começado a falar por aquelas alturas. Diziam eles que se o cordeiro
veio ao mundo para ser comido pelo lobo, conforme se podia concluir da simples verificação dos factos da vida pastoril, então é
porque a natureza quer que haja servos e haja senhores, que estes mandem e aqueles obedeçam, e que tudo quanto assim não
for será chamado subversão.
Prefácio
Posto diante de todos estes homens reunidos, de todas estas mulheres, de todas estas crianças (sede fecundos, multiplicai-vos
e enchei a terra, assim lhes fora mandado), cujo suor não nascia do trabalho que não tinham, mas da agonia insuportável de não
o ter, Deus arrependeu-se dos males que havia feito e permitido, a um ponto tal que, num arrebato de contrição, quis mudar o
seu nome para um outro mais humano. Falando à multidão, anunciou: “A partir de hoje chamar-me-eis Justiça.” E a multidão
respondeu-lhe: “Justiça, já nós a temos, e não nos atende. Disse Deus: “Sendo assim, tomarei o nome de Direito.” E a
multidão tornou a responder-lhe: “Direito, já nós o temos, e não nos conhece." E Deus: "Nesse caso, ficarei com o nome de
Caridade, que é um nome bonito.” Disse a multidão: “Não necessitamos caridade, o que queremos é uma Justiça que se
cumpra e um Direito que nos respeite.” Então, Deus compreendeu que nunca tivera, verdadeiramente, no mundo que julgara
ser seu, o lugar de majestade que havia imaginado, que tudo fora, afinal, uma ilusão, que também ele tinha sido vítima de enganos,
como aqueles de que se estavam queixando as mulheres, os homens e as crianças, e, humilhado, retirou-se para a eternidade. A
penúltima imagem que ainda viu foi a de espingardas apontadas à multidão, o penúltimo som que ainda ouviu foi o dos disparos,
mas na última imagem já havia corpos caídos sangrando, e o último som estava cheio de gritos e de lágrimas. No dia 17 de Abril
de 1996, no estado brasileiro do Pará, perto de uma povoação chamada Eldorado dos Carajás (Eldorado: como pode ser
sarcástico o destino de certas palavras...), 155 soldados da polícia militarizada, armados de espingardas e metralhadoras,
abriram fogo contra uma manifestação de camponeses que bloqueavam a estrada em acção de protesto pelo atraso dos
procedimentos legais de expropriação de terras, como parte do esboço ou simulacro de uma suposta reforma agrária na qual,
entre avanços mínimos e dramáticos recuos, se gastaram já cinqüenta anos, sem que alguma vez tivesse sido dada suficiente
satisfação aos gravíssimos problemas de subsistência (seria mais rigoroso dizer sobrevivência) dos trabalhadores do campo.
Prefácio
Naquele dia, no chão de Eldorado dos Carajás ficaram 19 mortos, além de umas quantas dezenas de pessoas feridas.
Passados três meses sobre este sangrento acontecimento, a polícia do estado do Pará, arvorando-se a si mesma em juiz numa
causa em que, obviamente, só poderia ser a parte acusada, veio a público declarar inocentes de qualquer culpa os seus 155
soldados, alegando que tinham agido em legítima defesa, e, como se isto lhe parecesse pouco, reclamou processamento judicial
contra três dos camponeses, por desacato, lesões e detenção ilegal de armas. O arsenal bélico dos manifestantes era
constituído por três pistolas, pedras e instrumentos de lavoura mais ou menos manejáveis. Demasiado sabemos que, muito antes
da invenção das primeiras armas de fogo, já as pedras, as foices e os chuços haviam sido considerados ilegais nas mãos
daqueles que, obrigados pela necessidade a reclamar pão para comer e terra para trabalhar, encontraram pela frente a polícia
militarizada do tempo, armada de espadas, lanças e alabardas. Ao contrário do que geralmente se pretende fazer acreditar, não
há nada mais fácil de compreender que a história do mundo, que muita gente ilustrada ainda teima em afirmar ser complicada
demais para o entendimento rude do povo.
Pelas três horas da madrugada do dia 9 de Agosto de 1995, em Corumbiara, no estado de Rondônia, 600 famílias de
camponeses sem terra, que se encontravam acampadas na Fazenda Santa Elina, foram atacadas por tropas da polícia
militarizada. Durante o cerco, que durou todo o resto da noite, os camponeses resistiram com espingardas de caça. Quando
amanheceu, a polícia, fardada e encapuçada, de cara pintada de preto, e com o apoio de grupos de assassinos profissionais a
soldo de um latifundiário da região, invadiu o acampamento. varrendo-o a tiro, derrubando e incendiando as barracas onde os
sem-terra viviam. Foram mortos 10 camponeses, entre eles uma menina de 7 anos, atingida pelas costas quando fugia. Dois
polícias morreram também na luta.
Prefacio
A superfície do Brasil, incluindo lagos, rios e montanhas, é de 850 milhões de hectares. Mais ou menos metade desta
superfície, uns 400 milhões de hectares, é geralmente considerada apropriada ao uso e ao desenvolvimento agrícolas. Ora,
actualmente, apenas 60 milhões desses hectares estão a ser utilizados na cultura regular de grãos. O restante, salvo as áreas
que têm vindo a ser ocupadas por explorações de pecuária extensiva (que, ao contrário do que um primeiro e apressado exame
possa levar a pensar, significam, na realidade, um aproveitamento insuficiente da terra), encontra-se em estado de
improdutividade, de abandono. sem fruto.Povoando dramaticamente esta paisagem e esta realidade social e económica,
vagando entre o sonho e o desespero, existem 4 800 000 famílias de rurais sem terras. A terra está ali, diante dos olhos e dos
braços, uma imensa metade de um país imenso, mas aquela gente (quantas pessoas ao todo? 15 milhões? mais ainda?) não pode
lá entrar para trabalhar, para viver com a dignidade simples que só o trabalho pode conferir, porque os voracíssimos
descendentes daqueles homens que primeiro haviam dito: “Esta terra é minha”, e encontraram semelhantes seus bastante
ingénuos para acreditar que era suficiente tê-lo dito, esses rodearam a terra de leis que os protegem, de polícias que os
guardam, de governos que os representam e defendem, de pistoleiros pagos para matar. Os 19 mortos de Eldorado dos
Carajás e os 10 de Corumbiara foram apenas a última gota de sangue do longo calvário que tem sido a perseguição sofrida
pelos trabalhadores do campo, uma perseguição contínua, sistemática, desapiedada, que, só entre 1964 e 1995, causou 1 635
vítimas mortais, cobrindo de luto a miséria dos camponeses de todos os estados do Brasil. com mais evidência para Bahia,
Maranhão. Mato Grosso, Pará e Pernambuco, que contam, só eles, mais de mil assassinados.
Prefácio
E a Reforma Agrária, a reforma da terra brasileira aproveitável, em laboriosa e acidentada gestação, alternando as esperanças
e os desânimos, desde que a Constituição de 1946, na seqüência do movimento de redemocratização que varreu o Brasil
depois da Segunda Guerra Mundial, acolheu o preceito do interesse social como fundamento para a desapropriação de
terras? Em que ponto se encontra hoje essa maravilha humanitária que haveria de assombrar o mundo, essa obra de
taumaturgos tantas vezes prometida, essa bandeira de eleições, essa negaça de votos, esse engano de desesperados? Sem ir
mais longe que as quatro últimas presidências da República, será suficiente relembrar que o presidente José Sarney prometeu
assentar 1.400.000 famílias de trabalhadores rurais e que, decorridos os cinco anos do seu mandato, nem sequer 140.000
tinham sido instaladas; será suficiente recordar que o presidente Fernando Collor de Mello fez a promessa de assentar
500.000 famílias, e nem uma só o foi; será suficiente lembrar que o presidente Itamar Franco garantiu que faria assentar
100.000 famílias, e só ficou por 20.000; será suficiente dizer, enfim, que o actual presidente da República, Fernando Henrique
Cardoso, estabeleceu que a Reforma Agrária irá contemplar 280.000 famílias em quatro anos, o que significará, se tão
modesto objectivo for cumprido e o mesmo programa se repetir no futuro, que irão ser necessários, segundo uma operação
aritmética elementar, setenta anos para assentar os quase 5.000.000 de famílias de trabalhadores rurais que precisam de terra
e não a têm, terra que para eles é condição de vida, vida que já não poderá esperar mais. Entretanto, a polícia absolve-se a si
mesma
e
condena
aqueles
a
quem
assassinou.
O Cristo do Corcovado desapareceu, levou-o Deus quando se retirou para a eternidade, porque não tinha servido de nada
pô-lo ali. Agora, no lugar dele, fala-se em colocar quatro enormes painéis virados às quatro direcções do Brasil e do mundo, e
todos, em grandes letras, dizendo o mesmo: UM DIREITO QUE RESPEITE, UMA JUSTIÇA QUE
CUMPRA.
•
JOSÉ SARAMAGO
•
1997
Atividades na Escola Nacional
Florestan Fernandes
A escola oferece cursos de nível superior, ministrados por mais de 500 professores, nas áreas de Filosofia Política, Teoria do
Conhecimento, Sociologia Rural, Economia Política da Agricultura, História Social do Brasil, Conjuntura Internacional,
Administração e Gestão Social, Educação do Campo e Estudos Latino-americanos. Além disso, cursos de especialização,
em convênio com outras universidades (por exemplo, Direito e Comunicação no campo). O acervo de sua biblioteca, formado
com base em doações, conta hoje com mais de 40 mil volumes impressos, além de conteúdos com suporte em outros tipos de
mídia. Para assegurar a possibilidade de participação das mulheres, foram construídas creches (as cirandas), onde os filhos
permanecem enquanto as mães estudam. Esta escola oferece cursos, em diversas áreas, que estimulam a capacidade crítica das
pessoas e o desenvolvimentos de conhecimento para a construção de um projeto popular para o Brasil. Os alunos voltam para
a sua comunidade rural para utilizarem na prática o que aprenderem no banco escolar.
Outros exemplos de curso:
■
administração cooperativista;
■
pedagogia da terra;
■
saúde comunitária;
■
planejamento agrícola;
■
técnicas agroindustriais e outros cursos de nível médio;
■
alfabetização.
ENFF desenvolve técnica do ecotelhado em parceria com arquitetos, por
Talles Reis (texto e fotos), postado no site da Associação de Amigos
da Escola Nacional Florestan Fernandes
(http://amigosenff.org.br)
Ecotelhado
Foram alguns meses de intensos trabalhos, o que era para ser uma simples reforma de uma casa
tornou-se uma experiência viva de como é possível construir fora da lógica capitalista dominante,
hegemonizada pelo uso do concreto e do ferro.
A necessidade de se reformar uma das casas da ENFF, que serve de moradia para militantes da
Brigada Apolônio de Carvalho, permitiu a realização da experiência de construção do telhado de
grama, também conhecido por telhado vivo, telhado verde ou ecotelhado.
A definição foi tomada coletivamente pela coordenação da ENFF juntamente com estudantes e
arquitetos do Laboratório de Culturas Construtivas (Canteiro Experimental), do Epa! Espaço
de Projeto e Ação, ambos coletivos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Entre as vantagens do telhado estão o maior conforto térmico e acústico dos ambientes internos,
aumento da área verde, possibilidade de melhor aproveitamento da água da chuva, melhor relação
ecológica da casa com o seu entorno, produção de um jardim ou horta e a utilização de materiais
locais.
Ecotelhado
Na construção priorizou-se a utilização de materiais da própria escola, como a terra, o bambu e a
grama. O trabalho foi todo construído no sistema de mutirão, no qual trabalharam militantes,
educandos, educadores e também os arquitetos.
A união entre a teoria e a prática, o elaborar e o fazer, aliados ao trabalho de mutirão
enriqueceram todo o processo de execução do telhado verde. A obra transformou-se num espaço
em que todos e todas, cada um com graus variados de formação, aprendiam juntos a produzir algo
que nunca antes tinham visto. Inaugurada a casa, todos que participaram de sua construção olham
para o telhado e sentem que construíram algo novo, bonito e inspirador.
Chico Barros, arquiteto do Epa! e do Laboratório de Culturas Construtivas, ressalta que, do
ponto de vista político, o “telhado verde é também um símbolo do combate à transferência de
dinheiro ao grande capital: reduzindo o consumo global do cimento, areia e aço, reduzimos também
— ainda que residualmente, com valor mais simbólico que efetivo — o dinheiro que transferimos à
Votorantim, à Gerdau, às empresas que estão acabando com o Vale do Paraíba extraindo areia
predatoriamente”.
Ecotelhado
Ecotelhado
Trata-se, portanto, de um exemplo de como é possível uma cultura construtiva baseada na
economia de recursos, em uma poética de aproveitamento da estrutura do local (como no caso do
bambu, extraído no território da ENFF) consolidar oposição à cultura construtiva imposta pelo
mercado de commodities.
O caráter replicador da técnica também é fundamental, visto que muitos dos trabalhadores que se
envolveram na construção eram de outros estados e até mesmo de outros países, podendo agora
construir outros telhados verdes em seus assentamentos, acampamentos e comunidades.
Desta rica experiência, constituiu-se o Coletivo Socialista de Construtores. Esse coletivo de
construção é formado por gente que coletivamente faz tudo, se relacionando por meio do diálogo
fraterno em assembléia democrática, tem pintor, pedreiro, telhadista, eletricista, projetista,
arquiteto, engenheiro, encanador... E na composição é que coletivamente fazem arte, constroem
casas e solidificam sonhos.
Ecotelhado
O interessante é que depois de um tempo trabalhando juntos as tarefas se misturam e todos vão
aprendendo no processo, e um pintor também fica mais próximo de eletricista, arquiteto de
ajudante. Essa relação é necessária para a alegria e organicidade da obra.
O coletivo ressalta também que “tornava-se necessário evitar a fetichização da técnica, da mesma
forma que o grande capital tem feito com o tema da sustentabilidade e da agroecologica nos
últimos anos: o ambientalismo é a grande panacéia contemporânea utilizada pelo capitalismo para
sobreviver. Qualquer teto verde, portanto, deve ser tratado de forma crítica: seria incoerente se,
em vez de terem sido utilizados os bambus provenientes da própria escola, fossem comprados, por
exemplo, painéis de madeira compensada para receber a terra”.
O telhado de terra trouxe ainda uma otimização do espaço da casa: a cobertura é de fato uma
espécie de espaço excepcional de lazer, onde é até mesmo possível deitar para tomar sol. Trata-se
de uma obra de arte, porque resultado do trabalho coletivo.
Ecotelhado
O material, em arquitetura, não se limita à matéria, mas inclui também o trabalho como elemento
fundante. E o processo de trabalho desta casa revelou uma sequência de contribuições de várias
pessoas e de um aprendizado conjunto. O resultado é arte para todos que dele participaram.
Para Cristiano Czycza, um dos integrantes da Brigada Apolônio de Carvalho e um dos
moradores da casa do teto verde, a grande vantagem dessa técnica de construção além de
controlar a temperatura do ambiente interno da casa, é possibilitar uma estética diferenciada, já
que no teto também pode se cultivar flores.
Cristiano e os demais moradores já estão planejando o cultivo do jardim no teto, porque ao redor
da casa tudo já está plantado, todos participaram do processo de construção, desde o
planejamento até a execução. Ele enfatiza que essa técnica de construção é mais acessível para a
população que vive no campo, pois utiliza materiais do próprio local.
Ecotelhado
Para Geraldo Gasparin, coordenador da ENFF, "esta experiência na escola nos motiva a dar
continuidade a estes projetos que são feitos em diálogo com os arquitetos da FAU, com os
integrantes da Brigada Apolônio e com os educandos dos cursos que são realizados na Escola.
É um processo onde todos aprendem e todos ensinam”. Ressalta que desta primeira experiência
poderão ser realizadas outras iniciativas de bioconstrução.
A casa do teto verde, como tem sido chamada, integra-se em certo sentido à mística do movimento:
cobre-se com terra para buscar abrigo e para viver, a mesma terra que é objeto da luta dos Sem
Terra.
Entre os bambus colhidos na escola usados na sustentação da cobertura e a terra propriamente
dita que a configura, há uma lona preta que impede a infiltração de água. Esta lona é o coração
deste sistema construtivo e sem ela tal sistema se tornaria inviável.
Ecotelhado
A lona remete às muitas lonas que caracterizam as ocupações realizadas
pelo MST e que indicam o caminho do futuro. A lona preta é um símbolo
importante para o movimento: nesta casa, em certo sentido, antes de se
cobrir com terra estamos nos cobrindo com a lona. A terra, objetivo e meio
da luta, surge para reduzir o calor e tornar a existência mais bonita.
Quem contribuiu nos mutirões de construção
•
Cocó, Tom, Zé Arnor, Diego, Talles, Chico, Pedro, Rafael, Sérgio,
Lucas, Manoel, Rafael, Xisco, Tchesco, Cristiano, Geraldo, Eridan,
Donizete (Piá), Gabriel, Fernando... e tantos outros nos sábados e
outras atividades de trabalho dos estudantes da escola.
Atividades
A partir da música “Assentamento” de autoria de Chico Buarque, responda as seguintes
questões:
Como pode ser compreendida a Escola Nacional Florestan Fernandes, juntamente com
seus princípios e valores, no cenário da educação brasileira onde cada vez mais o acesso ao
conhecimento é controlado pelo valor que o aluno pode paguar? “-- .contente com minha
terra
cansado de tanta guerra”
A partir do relato da experiência do ecotelhado, como podemos pensar as questões
ambientais em relação ao processo de consumo exacerbado dos recursos naturais? “Cana,
caqui
Inhame,
abóbora
Onde só vento se semeava outrora”
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Escola Nacional Florestan Fernandes