Número 14 – junho/agosto de 2002 – Salvador – Bahia – Brasil LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL, CORRELAÇÃO ENTRE METAS E RISCOS FISCAIS E O IMPACTO DOS DÉFICITS PÚBLICOS PARA AS GERAÇÕES FUTURAS Prof. Gilmar Ferreira Mendes Ministro do Supremo Tribunal Federal. Professor Adjunto da Universidade de Brasília – UnB. Mestre e Doutor em Direito. Ex-Advogado-Geral da União. SUMÁRIO: I – Introdução. II - A Lei de Responsabilidade Fiscal e a Correlação entre Metas e Riscos Fiscais. III - Os Déficits Públicos e os seus Impactos sobre as Gerações Futuras. IV – Conclusões. Notas. I - INTRODUÇÃO É certo que o advento da Lei Complementar Nº 101, de 4 de maio de 2000, representou um avanço significativo nas relações entre o Estado fiscal e o cidadão. Mais que isso, ao enfatizar a necessidade da accountability,i atribuiu caráter de essencialidade à gestão das finanças públicas na conduta racional do Estado moderno, reforçando a idéia de uma ética do interesse público, voltada para o regramento fiscal como meio para o melhor desempenho das funções constitucionais do Estado. Este artigo tem por objetivo analisar dois temas de fundamental importância para a viabilidade da idéia de responsabilidade fiscal. A correlação entre metas e riscos fiscais e o impacto dos déficits públicos sobre as futuras gerações. Percebe-se que esses dois temas se vinculam à função prospectiva da noção de responsabilidade fiscal. Enquanto o primeiro, normalmente, se adstringe a situações futuras próximas, o segundo vincula-se a situações futuras a longo prazo. Portanto, além de a responsabilidade fiscal cumprir o papel de proporcionar recursos de imediato a fim de que o Estado realize as funções a que constitucionalmente está vinculado, busca controlar a situação orçamentária a fim de não comprometer nem o futuro imediato, muito menos o futuro mais distante. II - A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL E A CORRELAÇÃO ENTRE METAS E RISCOS FISCAIS Em dado momento da segunda metade do século XX, chegou-se a acreditar que as fontes de recursos nunca cessariam de existir e, do mesmo modo, brotariam sempre fontes novas a que se recorrer. Este princípio, denominado de inesgotabilidade dos recursos públicos, foi sendo posto em prova pela implacável constatação de que a dinâmica econômica a isto não correspondia. O tempo em que se propalava tal princípio não é remoto. O desregramento fiscal, em nome de uma infeliz política econômica que via a imensidão do céu sem perceber que utilizava asas feitas de cera, afigurava-se como um dos mais nítidos reflexos da adoção de tal princípio, levando à terrível constatação de ver os efeitos desestabilizadores de uma política monetária inflacionária e sua gravíssima repercussão no agravamento das desigualdades no Brasil. É justamente tendo em vista corrigir equívocos desta percepção que se tem a idéia de Estado Democrático e Social Fiscal. A necessidade de unir, como prioridades do Estado, o controle do desregramento fiscal como objetivo e a canalização do que se evitou gastar para políticas que busquem assegurar os direitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos, função maior do constitucionalismo moderno, é não somente premente como legitimamente justificável. O binômio regramento e desregramento fiscais gera, por conseqüência, a contraposição entre metas e riscos fiscais, numa relação inversamente proporcional. A criação de metas pouco impositivas e mal aplicadas gera um maior risco fiscal, que se substancializa na constatação de que os gastos públicos encontram poucos ou quase nenhuns limites; por sua vez, a maior rigidez das metas e sua aplicação efetiva leva naturalmente a uma redução dos riscos fiscais e, naturalmente, a aplicação mais racional do orçamento. Não é preciso aqui ressaltar a importância de se reduzirem os riscos fiscais. A despesa pública, criada de modo desorganizado e caótico, faz com que sejam preteridas necessidades prementes e de cunho universal, em favor de outras, pouco urgentes e benéficas para pequenos grupos sociais. A Lei de Responsabilidade Fiscal, ao buscar fixar rígidos limites nos gastos públicos, busca atenuar ao máximo os riscos fiscais, uma vez que a extinção destes riscos é virtualmente impossível, dadas as variáveis impostas pela realidade. A Proteção dos Direitos Fundamentais e a busca da redução das desigualdades sociais necessariamente não se realizam sem a reflexão acurada acerca de seu impacto na esfera econômica. 2 Um caso paradigmático neste sentido é aquele em que o Tribunal Constitucional Alemão se deparou com o problema da restrição ao ingresso de alunos em universidades daquele País e o conseqüente direito à educação previsto na Lei Básica – caso Numerus Clausus. No presente caso, ocorrido em Hamburgo, pretendia o autor ser aceito em uma Faculdade de Medicina. Durante dois semestres ele tentou a aceitação pela Universidade, tendo sido esta rejeitada sob a alegação de que faltariam lugares para estudantes daquele curso. Embora o Tribunal Constitucional tenha se manifestado favoravelmente ao pleito do autor, salientou o conceito de reserva do financeiramente possível. Deste modo, segundo o Tribunal, não pode existir qualquer obrigação constitucional que faça incluir o dever de, no sistema educacional, fornecer vagas a qualquer tempo e a qualquer um que as pleiteie. Altos investimentos na área da educação tornar-se-iam exclusivamente submetidos a demandas individuais, que além de flutuantes, são freqüentemente influenciadas por circunstâncias das mais diversas. Conduziria também a um erro acerca do conceito de liberdade. A idéia de que cada indivíduo teria demandas ilimitadas, efetuadas em detrimento da comunidade no seu conjunto, seria incompatível com o princípio de um Estado de bem-estar social, além de se opor ao mandato estatal visando a alcançar a justiça social como articulada pelo princípio da igualdade, concedendo o Estado a apenas poucos privilegiados o benefício de limitados recursos públicos e, ao mesmo tempo, negligenciando outras preocupações importantes. Para o Tribunal, dessa forma, um restrição absoluta no que tange à admissão de estudantes somente é constitucional se o legislador impõe tal restrição apenas quando absolutamente necessária, após ter esgotado todas as possibilidades existentes de recursos públicos. A percepção de que é impreciso e mesmo surreal o princípio da inesgotabilidade dos recursos públicos traz à tona o postulado de que a construção de uma sociedade que busque efetivar invariavelmente os direitos e garantias fundamentais constitucionalmente consagrados só é possível através do regramento fiscal, buscando evitar excessos e canalizando os recursos para atividades mais frutíferas para toda a sociedade, no sentido da efetivação daqueles direitos. III - OS DÉFICITS PÚBLICOS E OS SEUS IMPACTOS SOBRE AS GERAÇÕES FUTURAS O estudo das relações entre déficits fiscais e seus efeitos nas gerações futuras, ao menos na economia, não é novo. Economistas clássicos e contemporâneos – dentre eles David Ricardo, Martin Feldstein, James Buchanan e Keynes – trataram do assunto sob perspectivas diferentes. A reflexão jurídica sobre o assunto, contudo, não se tem mostrado tão farta quanto aquela encontrada na economia. Isto se deve, talvez, à associação feita ao tema dos efeitos na utilização de recursos entre gerações especificamente no campo ambiental – fortalecida, principalmente, após a 3 década de 70, quando o movimento ambientalista passou a formular um discurso jurídico mais sólido, angariando adeptos das mais variadas formações, em diversas partes do planeta. Não pode, no entanto, a noção jurídica de efeitos entre gerações se restringir à temática ambientalista. Obviamente ela possui contornos bem definidos naquela área, uma vez que a própria ética ambientalista se funda na distribuição de recursos entre gerações, alicerce para a sobrevivência da própria humanidade. Mas a alocação de recursos públicos através do equilíbrio orçamentário também se mostra indispensável para que as gerações futuras não sejam privadas de políticas públicas propostas para serem minimamente efetivas, por falta de disponibilização orçamentária suficiente. Isto leva a crer que um dos objetivos da idéia de responsabilidade fiscal é preservar a capacidade de financiamento de políticas públicas para as futuras gerações. Do mesmo modo que a ética ambientalista tem enfatizado que os recursos ambientais não são inesgotáveis, colocando-se a possibilidade de as gerações presentes virem a exauri-los, privando as futuras gerações da própria existência, não é menos razoável pensar que os recursos públicos, também exauríveis, podem vir a comprometer o desenvolvimento humano e a existência de grupos menos favorecidos, carentes da ação estatal visando a minorar as desigualdades. Percebe-se que os gastos públicos normalmente beneficiam muito mais as gerações atuais que as gerações futuras. Entre outros fatores, isto se deve ao fato de que as decisões políticas tendem a visualizar um período estreito de tempo a fim de se concretizarem. Natural – mas não ideal – que assim seja. Tomadores de decisões políticas freqüentemente ficam adstritos ao período de seus mandatos, uma vez que percebem que os efeitos de suas decisões são sentidos mais a curto que a longo prazo. Acrescente-se a isto o fato de que muitos eleitores ignoram completamente a complexidade das decisões, não percebendo ou relevando o limitado escopo de tais decisões, não se prolongando no tempo e beneficiando, primordialmente, as gerações atuais. Pode-se argumentar, a contrário, com três situações. A primeira delas é de que não se pode estabelecer uma relação tão rígida no sentido de que déficits públicos terão o efeito prolongado a ser sentido pelas gerações futuras. Um exemplo disto seria o famoso “erro de Malthus”. Ao afirmar que a produção de alimentos cresce em progressão aritmética, enquanto o aumento da população se dá em progressão geométrica, Malthus não levou em consideração a evolução tecnológica como transformadora da capacidade de produção de alimentos, pressupondo mesmo uma sociedade estanque. Neste sentido, seria possível afirmar que poderiam surgir novas formas de alocação de recursos que eliminariam os déficits, não necessariamente impondo ônus adicionais às gerações futuras. Este raciocínio baseia-se, contudo, numa falsa comparação. Primeiramente, porque a alocação de novos recursos nada tem a ver, em princípio, com o impacto tecnológico. O avanço deste não acarreta necessariamente impacto positivo daquela. 4 Um segundo fator diz respeito ao argumento de que a existência de déficits públicos pode promover o desenvolvimento nacional, o que a experiência brasileira não parece confirmar. O terceiro argumento contra a idéia de que déficits imporiam ônus às gerações futuras é o de que não se sabe qual será a postura das futuras gerações quanto aos bens materiais. Uma vez que uma postura antimaterialista, já existente na contemporaneidade, pode se disseminar para uma grande parte da população dentro de um Estado, pode-se facilmente defender que futuras gerações se preocuparão pouco com a alocação de recursos públicos e sua utilização através de políticas públicas, importando-se mais com v.g., valores espirituais, em detrimento dos valores materiais. A fraqueza desta tese está no fato de ser ela, meramente, uma suposição. Destarte, não há nenhum dado seguro para afirmar que determinadas gerações futuras serão anti-materialistas ou que se importarão pouco com alocação de recursos com vistas à promoção de políticas públicas. Esquecer-se das gerações futuras, tendo em vista a possibilidade de estas se tornarem anti-materialistas, é um exercício de mera futurologia, exercício irresponsável, instituidor de compromissos que poderão ou não ser honrados pelas gerações futuras. Portanto, a necessidade de as gerações atuais preservarem recursos para as gerações futuras também se dá no que tange aos recursos públicos. A lei de Responsabilidade Fiscal, ao impor o regramento das contas públicas, racionalizando-as, compromete-se com este objetivo, ao propugnar que o controle orçamentário repercutirá a curto prazo – incidindo sobre as gerações atuais – e a longo prazo – resguardando a viabilidade fiscal do Estado para as gerações futuras. IV - CONCLUSÕES Nestas breve linhas, tentou-se demonstrar que o advento da Lei de Responsabilidade Fiscal está proporcionando uma nova percepção sobre alternativas institucionais que visem a promover maior justiça social nos mais diferentes planos. A função da responsabilidade fiscal, como já dito, é de mero meio. É o conceito instrumento essencial para a atuação do Estado moderno. Não mais se concebe uma atuação estatal efetiva sem uma apurada reflexão sobre os gastos públicos, seus limites e sua aplicação. As alternativas atuais para a construção de uma economia sólida e menos suscetível passam necessariamente pelo controle de gastos públicos. Alguns países desenvolvidos, tendo em vista esta perspectiva, buscaram limitar gastos e muitas vezes editaram leis para este fim. É impossível, na atualidade, visualizar qualquer Estado que se proponha ao desenvolvimento sem um minucioso projeto de controle de gastos públicos. Imprescindível é, pois, que toda a reflexão sobre a necessidade de um conceito de responsabilidade fiscal não seja perdida da vista dos administradores públicos, assim como dos cidadãos. Somente assim, com a 5 atuação de todos os atores sociais, poder-se-á buscar o controle de gastos públicos visando a fomentar um crescimento econômico sustentado e garantidor, principalmente, dos direitos e garantias fundamentais dispostos na Constituição Federal de 1988. NOTAS 1. O conceito de accountability, próprio do sistema anglo-saxão, parece se identificar bastante com a idéia de responsabilidade fiscal, embora com ele não se confunda. Sua tradução é bastante difícil, havendo os que, mesmo analisando profundamente o conceito, não conseguiram encontrar uma tradução satisfatória do termo para o português. Cf. CAMPOS, Anna Maria. Accountability: Quando poderemos traduzi-la para o português? Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro. Vol. 24. Nº 2, 1990, pp. 30-50. Outros, muitas vezes com algum desconforto, definem accountability como: “responsabilidade pela prestação de contas” ou “responsabilidade pela eficiente gerência de recursos públicos”. Cf, respectivamente, PEDERIVA, João Henrique. Accountability, Constituição e Contabilidade. Revista de Informação Legislativa. Brasília. Nº 140, 1998, p. 18 e TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. V: O Orçamento na Constituição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 308. De fato, a tomada de posição acerca de uma tradução correta para o termo leva consigo uma gama de questões outras, mais gerais. A existência de uma efetiva democracia, proporcionando o florescimento de uma cidadania participante não somente se liga à questão da accountability, como condiciona sua própria existência. À medida em que se desenvolve o arcabouço burocrático, os direitos do cidadão devem também se desenvolver, no intuito de evitar os abusos da burocracia em relação àqueles. Não há dúvidas de que “o exercício de accountability é determinado pela qualidade das relações entre governo e cidadão, entre burocracia e clientelas. O comportamento (responsável ou não-responsável) dos servidores públicos é conseqüência das atitudes e comportamento das próprias clientelas”. CAMPOS, Anna Maria. Accountability: Quando poderemos traduzi-la para o português? Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro. Vol. 24. Nº 2, 1990, p. 35. Isto leva a crer que o amadurecimento da sociedade e a emergência de uma cidadania mais ativa faz surgir em seu seio, de modo natural, o conceito de accountability. À medida em que vão se densificando as relações de cidadania, a necessidade de um conceito de accountability vai fazendo-se necessário, até que se torne algo corriqueiro tanto para a burocracias como para os cidadãos. A idéia de accountability, nos países anglo-saxãos, é tão indispensável ao funcionamento da sociedade, que é comum afirmar-se que ela faz parte mesmo da própria condução dos governos: “Accountability is the foundation of any governing process. The efectiveness of that process depends upon how those in authority account for the manner in which they have fulfilled their responsibilities, both constitutional and legal”. DWIVEDI, O. P. Ethics and Values of Public Responsibility and Accountability. Revista Internacional de 6 Ciencias Administrativas. Bruselas. Vol. 51. Nº 1, 1985, p. 63. De modo semelhante, afirma-se: “Se seu sistema não assegura accountability perante os cidadãos, então ele é, por definição, inaceitável”. BEHN, Robert. D. O Novo paradigma da gestão pública e a busca da accountability democrática. Revista do Serviço Público. Brasília. Vol. 49. No. 4, 1998, p. 5. 2. Cf. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. V: O Orçamento na Constituição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pp. 16-20. 3. 33 BverfGE 303. 4. Cf. SHAVIRO, Daniel. Budget Deficits and the Intergenerational Distribution of Lifetime Consumption (Chicago Law & Economics Working Paper Nº 29). Chicago: The University of Chicago Law School, 1995, pp. 3-4. Referência Bibliográfica (ABNT: NBR-6023/2000): MENDES, Gilmar Ferreira. Lei de Responsabilidade Fiscal, Correlação entre Metas e Riscos Fiscais e o Impacto dos Déficits Públicos para as Gerações Futuras. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, nº. 14, junho/agosto, 2002. Disponível na Internet: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: xx de xxxxxxxx de xxxx (substituir x por dados da data de acesso ao site). Publicação Impressa: Informação não disponível. 7