Anais do 5º Encontro do Celsul, Curitiba-PR, 2003 (1089-1094) OBJETO(S) DE DISCURSO: A CORREFERENCIALIDADE EM XEQUE Milton Francisco da SILVA (UFSC / UFPR-PG) ABSTRACT: When several referential expressions amalgamate to make only one “objet de discour” (Mondada e Dubois, 1995), it seems “inadequate” to think about co-reference. The new contextual information activated by each expression “breaks” the coreference: it's on check. To verify this hypothesis, it is considered the notion of “référents évolutifs” (Charolles e Schnedecker, 1993). KEYWORDS: referenciation; “objet de discour”; coreference; “référents évolutifs”. 0 Introdução A discussão que norteia o presente estudo diz respeito a casos em que diferentes informações/predicações cotextuais são ativadas à medida que cada designação ocorre. Nesse caso, parece que a correferência encontra-se em xeque, isto é, não ocorreria, ou, seria irrelevante na atividade referencial (tomada como construção de objeto de discurso). Sob que argumento a correferência deixaria de ocorrer? Uma vez que o referente é construído à medida que é designado, as novas informações inseridas cotextualmente influenciam (e determinam) sua construção a ponto de “quebrar” a correferencialidade. E mais, quando várias expressões referenciais amalgamam-se na construção de um único objeto de discurso, parece que não cabe falar em relação de correferência (identidade entre referentes), pois não há mais de um referente inter-relacionando. Em tempo, este breve estudo tem um caráter especulativo sobre a correferencialidade. Os excertos tomados para análise são extraídos do “Banco de Dados Lingüísticos do VARSUL”, caracterizando-se como texto oral não planejado. Especificamente, esses excertos têm como interlocutores o entrevistador e um informante, na construção de narrativas concernentes a fatos familiares ao informante. 1 Os referentes como objetos de discurso Aqui, sobre a atividade referencial desenvolvida no discurso, orienta-se pelo conceito de referenciação defendido por Mondada e Dubois (1995:288): “referenciação concebida como uma construção colaborativa de objetos de discurso – quer dizer, de objetos cuja existência é estabelecida discursivamente”. Nessa perspectiva, os referentes são entendidos como objetos que se manifestam no discurso, emergindo da negociação dos interlocutores. A referenciação é marcada por uma instabilidade em que o referente introduzido pode ser abandonado e, em seguida, reativado mediante diferentes expressões referenciais, pode ser revisto, corrigido, redirecionado, fragmentado ou enriquecido, pode ser reativado agregando novas propriedades ou dispensando parte das já agregadas. O referente, uma vez introduzido, fica a mercê dos interlocutores e do próprio discurso, ganhando, assim, um caráter dinâmico. A construção de objetos é um processo ad hoc que assume, ao lado das expressões referenciais (enquanto forma e enquanto conceito pré-discursivo), vários outros elementos integrantes do discurso, entre eles, as informações cotextuais que circundam cada expressão referencial, o contexto de situação que acolhe o discurso, os fatores sócio-ideológicos de falante/autor e ouvinte/leitor, o conhecimento de mundo desses indivíduos, seu conhecimento e uso de língua. Esses elementos, organizadamente, interrelacionam em favor da construção de objetos de discurso. Portanto, os recursos formais de que os interlocutores utilizam não são ignorados, mas sim, considerados como elementos indispensáveis na construção do referente, além de que, a forma lingüística empregada emerge dentre outras formas conhecidas do falante. Em outras palavras, essa perspectiva contrapõe-se àquela em que os referentes são identificados voltando-se os olhos apenas aos aspectos formais do texto, como se a inter-relação de elementos formais constituísse o todo textual, por exemplo, conforme a perspectiva de Halliday e Hasan (1976) acerca de coesão, sobretudo quando apontam as relações de correferencialidade. Isso posto, ao observar os objetos de discurso pode-se tomar como partida as expressões referenciais, para em seguida envolver os demais elementos que os constituem, inclusive as informações/predicações difusas no cotexto. Esse aspecto metodológico é aplicado no presente estudo. 1090 OBJETO(S) DE DISCURSO: A CORREFERENCIALIDADE EM XEQUE Embora ocorra objeto de discurso centrado em apenas uma expressão; em geral, a construção de objeto envolve mais de uma, podendo as expressões inter-relacionarem de modos diversos. Dentre essa diversidade, o interesse aqui é pela ocorrência em que as diferentes expressões/denominações são amalgamadas em prol de um único objeto de discurso, sobretudo quando se recorre a informações/predicações cotextuais, o que possibilita a pensar que, conforme Mondada e Dubois (1995:285), “a referenciação adequada pode ser vista como um processo de construção de um caminho ligando diferentes denominações aproximativas que não são apagadas pela última escola”1. Sobre essa ocorrência, postula-se que a inter-relação de diferentes referentes está comprometida por se tratar da construção de um só referente, embora ocorra um processo referencial em torno de cada expressão/denominação. Nesse sentido, evidencia-se a seguinte questão: cabe falar de correferência? Se sim, a correferência seria então uma etapa da construção de discurso. 2 Pensando a correferencialidade A correferencialidade é uma questão que tem preocupado os lingüistas de texto, seja atribuindo-lhe papel relevante na coesão textual, seja “jogando-a para escanteio”. A intenção aqui, antes que assumir um dado conceito, é de expor e “confrontar” o que diferentes autores dizem a respeito da correferência. Por exemplo, Brown e Yule (1983:202), observam que “o reaparecimento de entidades identificadas com diferentes descrições apegadas a elas sugere que precisamos de algum modelo de processamento que permite às entidades acumularem propriedades ou mudarem de estados como progresso discursivo”. Nas entrelinhas, lê-se a posição de xeque da correferencialidade. A perspectiva desses autores diverge da noção de referenciação por considerarem o referente como objeto do mundo, o qual se modificaria durante o evento discursivo; porém, vale o alerta que fazem: chamam a atenção para as alterações que o referente pode sofrer à medida que é designado. Mesmo que a abordagem aqui não se volte para a relação entre correferência e anáfora, vale citar o ensaio de Ilari (2001:107), onde o autor ressalta: “o caso em que a anáfora veicula correferência não é nem o único possível nem o mais interessante ou instrutivo. É, na melhor das hipóteses, um caso limite, que nos impressiona pela sua simplicidade, mas por isso mesmo transmite uma impressão de segurança até certo ponto enganosa”. Isso implica que o processo anafórico é amplo e não pressupõe correferencialidade Ver-se impressionado pela correferência (as palavras de Ilari não são exatamente essas) parece ser um bom motivo para investigá-la. O que haverá por trás dessa simplicidade? Como se safar dessa impressão de segurança? É freqüente nos estudos de texto enfocar a correferência como parte de um conceito maior, por exemplo, de anáfora, por conseguinte, um “abandono” casual desse conceito ao investigar a correferência pode conduzir a resultados questionáveis. Para a abordagem que se pretende na seqüência, o conceito eleito é o de referenciação (não se sabe os “resultados”, nem os “riscos”). No quadro da referenciação, a correferência pode ocorrer uma vez que o referente não se altera necessariamente à medida que é designado, embora ele tende-se a se modificar. Nesse caso, em geral, não se fala puramente em ocorrência ou não de correferencialidade, mas em uma continuidade referencial, a qual implica algum tipo de relação direta, seja de identidade referencial (relação de correferência) ou não, conforme Koch (2002:84). Um trabalho orientado pelo conceito de referenciação é o de Costa (2001), para quem “a retomada de um referente ao longo do texto mediante escolhas lexicais diversas não estabelece pura e simplesmente a correferência, mas pode mudar significativamente a forma de apresentação do referente”. Sobre uma ocorrência em que diferentes expressões nominais referem-se a um mesmo objeto, a autora observa que “as expressões usadas fazem mais do que indicar a correferência: mostram, ao longo do texto, diferentes categorizações adequadas a apresentação de um referente”. Isso conduz a pensar a relação de correferência como insuficiente (e talvez irrelevante) na construção de objeto de discurso, por conseguinte, identificá-la em condição de xeque. Costa dialoga com Marcuschi (1998:6), para quem a “correferência (remissão que retoma o referente como sendo o mesmo já introduzido (identidade de referentes): dá-se, no geral, com retomadas por repetição, sinônimos ou designações alternativas para o mesmo referente)”. A questão que ainda se apresenta é a seguinte, no caso de amálgama, há mais de um referente? Ou, retomar o mesmo referente acrescendo-lhe novas informações não “quebraria” a identidade de referentes? Quanto aos conceitos de correferência e de identidade de referentes, mesmo que semelhantes, se tratados como distintos, talvez conduzam a resultados interessantes, no entanto o presente estudo não os distingue. 1 Acerca do texto oral, lembra-se que há casos em que parte das denominações é proferida pelo falante e parte pelo ouvinte, o que enfatiza sobremaneira o aspecto “negociação” da produção de referentes e de discurso. O presente estudo não investe nessa particularidade da referenciação. Milton Francisco da SILVA 1091 Parece consenso que a correferência ocorre entre referentes, e não entre expressões lexicais, embora essas sejam imprescindíveis para que a correferência se estabeleça. Conforme Schwarz (2000:54, grifo nosso)2, “a correferência não se dá diretamente no plano textual, mas surge no processo de referenciação pela correspondência de unidades lingüísticas com um mesmo referente e diz respeito a planos intratextuais e extratextuais”. Uma leitura que se faz das palavras de Schwarz é que, em torno de cada expressão/unidade lingüística ocorre referenciação, voltando-se para um só referente. Frente a isso, pode-se considerar a correferência como etapa da construção (via amálgama) do objeto de discurso em foco. Outros autores que questionam a correferência são Charolles e Schnedecker (1993:106), para quem as informações acionadas quando da designação trazem grave prejuízo ao estado da entidade referida, a ponto de poder-se perguntar se, ao fim desses avatares, tem-se a mesma entidade, e se portanto, é ainda possível falar de correferência. Parece que a relação de correferência está comprometida até mesmo a nível discursivo, pois o referente evolui à medida que é designado, seja agregando novas propriedades ou descartando parte das já agregadas. Para Charolles e Schnedecker há no discurso referentes evolutivos (conceito que de certo modo surge como resposta à sugestão de Brown e Yule). Trata-se de uma perspectiva que “tenta matar” a noção de correferência, e que, ao menos no presente estudo, dialoga com o conceito de objeto de discurso. 3 Apostando na evolução de referentes Uma ressalva deve ser feita, a concepção de referente evolutivo está submetida a uma orientação mentalista de produção textual (e interpretação referencial), o que de certo modo desprivilegia os elementos do contexto situacional e extra-textuais que envolvem os interlocutores e o texto. A semelhança dessa concepção com a de objetos de discurso parece residir no fato de ambas reconhecerem que o referente é passivo de alterações motivadas pelo próprio discurso. Talvez isso seja o suficiente para lhe dedicar uma análise voltada à proposta do presente estudo. Outra ressalva: o conceito de referente evolutivo é criticado por Mondada e Dubois ao lhe fazerem referência dizendo que “os fenômenos considerados são descritos como transformações de objetos do mundo, às quais correspondem, ou não, as transformações de seus rótulos verbais” (p.275). Atenção devese dar a essas palavras por concernirem à divergência entre a evolução de referentes e a referenciação, no entanto, parece que vale a pena insistir na noção de referentes evolutivos (mesmo que fragmentada ou modificada), não só pela “curiosidade estética” que o esquema proposto por Charolles e Schnedecker possa despertar no leitor, mas sobretudo, pela possibilidade de se pensar a posição de xeque da correferencialidade, ou ainda, quando e como a correferência se sustenta. A tentativa aqui é mesmo pretensiosa: “refinar” a noção de correferência. Esse é o esquema proposto por Charolles e Schnedecker (1993:114), para representar a evolução de referentes: SNO..................pro1......................pro2.....................proN Ptr1 Ot0 Ptr2 Ot1 Ptrn Ot2 Otn SN0 → sintagma nominal inicial; pro1 → primeira forma (pronominal) da seqüência; e Ptr1 → primeiro processo de transformação referencial. Deve-se ter em conta que, para a presente abordagem, Ptr representa o processo de transformação motivado exclusivamente pelas informações/predicações cotextuais pertinentes ao referente. E ainda, “Ot1, Ot2 e Otn são representações diversas e evolutivas no modelo mental criado pelo referente inicial sugerido pelo SN0 [o qual] não seria de fato retomado, nem seria o gatilho único em cada caso, já que a relação se daria com o modelo anterior enriquecido”, comenta Marcuschi (2000:31). O esquema pode ser aplicado com os elementos destacados no excerto abaixo. Sendo que: 2 Aqui, o trabalho de Schwarz é referido via Comunicação de Marcuschi (2000) no 4o. Encontro do Celsul, realizado em Curitiba. 1092 OBJETO(S) DE DISCURSO: A CORREFERENCIALIDADE EM XEQUE Excerto A E É, acontece. F É isso aí. (inint) eu sempre digo, Deus diz que fecha uma porta, abre uma janela, né? A gente teve um lado compensador, né? Agora hoje... minha mãe[1] também teve o lado compensador, porque ela[2], coitada, sofreu (inint) que ela[3] passou, não sei como ela[4] criou os filhos, né? São todos bem de vida (hes) bem de vida, não... não estou dizendo bem de vida rico, né? mas é uma vida digna, né? (est) a pior sou eu, mas eu agora tenho meus filhos também, né? (PRPBR11 - 904 a 915)3 Cadeia A1: minha mãe[1] - ela[2] - ela[3] - ela[4] Minha mãe[1] ela[2] ela[3] ela[4] SNO..................pro1......................pro2.....................pro3 Ptr1 Ot0 Ptr2 Ot1 Ptr3 Ot2 Ot3 Nesse caso, a forma pronominal ela[2] concentra mais informações do que minha mãe[1], por exemplo, coitada e sofreu (Ptr1) convergem a [2], mas não a [1] diretamente. O elemento [3] não recebe claramente informações cotextuais (Ptr2) devido ao ruído representado por (inint)4, no entanto, percebe-se que há a intenção do falante em dizer algo. Por sua vez, ela[4] é enriquecido por criou os filhos (Ptr3). Portanto, há uma evolução do referente estabelecida discursivamente (convém dizer que não há relação de correferência?). Embora Charolles e Schnedecker sirvam-se apenas de cadeias em que a expressão inicial (SN0) é uma forma nominal e as demais são formas pronominais, o processo de evolução pode também ser observado em cadeias constituídas apenas por formas nominais ou em cadeias em que formas nominais e pronominais alternam-se. Vale observar um exemplo, cadeia constituída por apenas formas nominais. Excerto B F Aí eu fiz o ginásio[1] lá em quatro anos e em sessenta e cinco eu voltei a Pato Branco[2]... voltei a Pato Branco[3], voltei procurar um emprego[4], saí, né? (est) eu tinha feito o ginásio[5]. Não era difícil, ver se arrumava uma coisa melhor[6]. (est) E aí acabei indo trabalhar de garçom, num bar[7] ali, um bar famoso[8] ali da época, que era o Bar Dezessete[9], aí a gente, era o ponto de todo[10] (inint) aí já comecei a conhecer funcionário do banco e tal, E Foi se enturmando. F Aí que começou a pintar que tinha uma vaga pra contínuo. Até um... (PRPBR23 - 401 a 413) Cadeia B1: um bar[7] - um bar famoso[8] - o Bar Dezessete[9] - o ponto de todo[10] Cadeia B2: um emprego[4] - uma coisa melhor[6] Parece que a construção do referente (por exemplo, na cadeia B1) não encontra informações complementares no cotexto. Ainda assim ocorreria o processo de evolução? A princípio não, uma vez que Ptr implica informações/predicações cotextuais. Para submeter a cadeia B1 ao esquema proposto, é necessário reconhecer a carga semântico-referencial ativada pelo próprio SN como integrante do Ptr. Isso é o que se faz aqui, amplia-se a noção de Ptr. Daí: 3 A identificação dos excertos segue orientação de Knies e Costa (1996). O excerto em questão corresponde às linhas 904 a 915, da entrevista n. 11 realizada em Pato Branco-PR, daí PRPBR. 4 Conforme Knies e Costa (1996), (inint) indica parte da entrevista ininteligível e, por conseguinte, não transcrita. Milton Francisco da SILVA um bar[1] 1093 um bar famoso[2]...o Bar Dezessete[3] o ponto de todo[4] SNO.........................SN1.............................SN2..........................SN3 Ptr1 Ot0 Ptr2 Ot1 Ptr3 Ot2 Ot3 Nesse caso, a evolução do referente ocorre sobretudo mediante a carga semântico-referencial particular de [2], [3] e [4], ativando, assim, propriedades até então não contidas no objeto de discurso. Caso semelhante ocorre na cadeia B2. Ao dilatar a noção de Ptr não se deseja afirmar que as formas nominais não são influenciadas pelo cotexto, mas acredita-se que, nas cadeias B1 e B2, a influência cotextual não é determinante na evolução do referente. Frente a isso vale retomar a cadeia A1, inclui-se na discussão a seu respeito que o objeto de discurso é enriquecido também pela carga semântico-referencial ativada pela expressão um rapaz. Com a noção de Ptr ampliada, parece que a evolução de referentes manifesta-se em toda cadeia referencial. No entanto, ainda pode-se questionar sobre o conceito de evolução frente aos objetos de discursos representados por: Cadeia B3: o ginásio[1] - o ginásio[5] Cadeia B4: Pato Branco[2] - Pato Branco[3] Nesses casos, nem as informações cotextuais nem a carga semântico-referencial são acionadas de modo a apontar para uma evolução. De modo que, ao se perguntar se a correferência ocorre nessas cadeias, o conceito de referentes evolutivos não é o suficiente para uma resposta. Melhor assumir a presença de correferência, o que parece compatível com o conceito de referenciação, visto que, como já dito, conforme esse conceito, o referente não se modifica necessariamente à medida que é designado. Vale dizer que essa questão não gira em torno da repetição de formas nominais como apontam as cadeias B3 e B4, pois há ocorrências semelhantes em que se pode observar a evolução. Veja: Excerto C F E a outra foi num... comigo também, foi um bagre[1] que eu ganhei de pre... presente, lá no Quartel, o rapaz que mora perto lá do Quartel. E eu estava cortando bagre[2], mas não sabia que o... que o esporão estava fincado aqui. Quando eu corto, a cabeça vem junto com a minha mão. (est) (SCFLP19 - 195 a 202)5 Cadeia C1: um bagre[1] - bagre[2] Nesse caso, há informações cotextuais (estava cortando) requeridas pela referenciação quando [2] é enunciado, mostrando, assim, uma evolução em relação a [1]. Antes de qualquer equívoco, vale dizer que a concepção de referentes evolutivos é apresentada aqui de modo muito breve, isso leva a postular que uma análise cuidadosa pode evidenciar, por exemplo, nuanças não identificadas nos casos expostos anteriormente, ou, até mesmo, aspectos que contrariem a evolução de referentes. Por fim, o conceito de referentes evolutivos desmonta de fato o conceito de correferência? Acredita-se que sim, pois trata-se de um único referente que evolui à medida que o discurso é enunciado. E ainda, a análise possibilita, em parte, delinear (“refinar”) a correferencialidade, sobretudo mediante as cadeias B3 e B4. 4 Buscando caminho(s) Certamente há outros caminhos a seguir. A construção de objeto de discurso mediante amálgama pode ser investigada, por exemplo, pela perspectiva dos produtores de texto, a qual é relevante nos estudos em lingüística de texto por se voltar para as condições de produção textual e por levar em conta enfaticamente a cooperação dos interlocutores e uma concepção sócio-interacionista de língua. Uma abordagem nesse sentido provavelmente questionaria se o amálgama é uma escolha do falante/autor ao construir referentes. O que talvez esteja ocorrendo para facilitar ao ouvinte/leitor a identificação 5 Excerto da entrevista 19 realizada em Florianópolis-SC 1094 OBJETO(S) DE DISCURSO: A CORREFERENCIALIDADE EM XEQUE referencial. Ou, talvez, por falta, no buffet cognitivo-lingüístico, de uma expressão referencial capaz de referir o que se deseja. Um caminho “seguro” é questionar a construção referencial a partir do conceito de categorização. Nesse caso, antes que verificar se há correferência na construção do referente, verifica-se se o referente mantém-se sob a mesma categoria ou se é recategorizado. A categorização concerne diretamente ao discurso e a práticas sociais dos indivíduos, o que a torna, pertinente e instigante. Uma abordagem na perspectiva da categorização certamente coloca a correferência como um conceito secundário no processo referencial, “além de realmente refiná-lo”, o que talvez tornaria menor a “impressão de segurança até certo ponto enganosa” alertada por Ilari. Outra perspectiva possível para delinear a correferencialidade entre as expressões referenciais é a hipótese de que, quando o referente integra o “núcleo tópico”, as informações cotextuais “quebram” a correferencialidade, enquanto que, quando o referente não integra o “núcleo”, as informações cotextuais não lhe dizem respeito a ponto de modificá-lo. Para tanto, o que é um “núcleo tópico”? Sobre o que o falante está falando? Há referentes presentes no texto dispensáveis a essa resposta, enquanto há outros indispensáveis. Os indispensáveis, inevitavelmente, integrariam o “núcleo”. Esse poderia ser um critério para atribuir ou não a uma cadeia referencial o status de integrante de “núcleo tópico”. Todavia, isso é apenas apontamento. Os vários caminhos apontados e abandonados ao longo deste breve estudo poderiam ser reativados neste momento, como sugestão de novas leituras, novos estudos. Que sejam assim entendidos. A imagem que perdura é a posição de xeque da correferencialidade, sobretudo como conceito (ir)relevante na construção de objeto de discurso. RESUMO: Quando várias expressões referenciais amalgamam-se constituindo um único objeto de discurso (Mondada e Dubois, 1995) parece “inadequado” pensar em correferência. As novas informações cotextuais acionadas com cada expressão “quebram” a correferencialidade: ela encontrase em xeque. Para verificar essa hipótese, considera-se a noção de referentes evolutivos (Charolles e Schnedecker, 1993). PALAVRAS-CHAVE: referenciação; objeto de discurso; correferência; referentes evolutivos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BROWN, Gillian e YULE, George. Discourse analysis. Cambridge University Press, 1983. CHAROLLES, Michel e SCHNEDECKER, Catherine. Coréférence et identité. Le problème des référents évolutifs. Languages, 112, p.106-126, 1993. COSTA, Iara Bemquerer. Indicações para o estudo da referenciação no texto. Anais do 4o. Encontro do Celsul. 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Anáfora indireta: o barco textual e suas âncoras. 4o. Encontro do Celsul, Curitiba, novembro de 2000. Mimeo. MONDADA, Lorenza e DUBOIS, Danièle. Construction des objets de discours et categorisation: une approche des processus de référenciation. In: Berrendonner, A. / M-J Reichler-Béguelin (eds). TRANEL 23, pp. 273-302, 1995. SCHWARZ, Monika. Indirekte Anaphern in Texten. Studien zur Domängebundenen Referenz und Kohärenz im Deutschen. Tübingen: Niemeyer, 2000.