UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO Lauro Francisco da Silva Freitas Junior PÓS-MODERNIDADE, GLOBALIZAÇÃO E OS NOVOS PARADIGMAS DE ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO: o princípio do promotor natural Belém 2009 Lauro Francisco da Silva Freitas Junior PÓS-MODERNIDADE, GLOBALIZAÇÃO E OS NOVOS PARADIGMAS DE ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO: o princípio do promotor natural Dissertação apresentada ao programa de Mestrado da Universidade da Amazônia – UNAMA, na área de Direito do Estado, como requisito para obtenção do Título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Direito do Estado. Linha de Pesquisa: Constituição, Direitos Humanos e Relações Internacionais. Orientadora: Dra. Daniella S. Dias. BELÉM 2009 F866p Freitas Junior, Lauro Francisco da Silva. Pós-modernidade, globalização e os novos paradigmas de atuação do ministério público: o princípio do promotor natural. / Lauro Francisco da Silva Freitas Junior Belém, 2009. 118 f. Dissertação. (Mestrado) Universidade da Amazônia, 2009. Programa de Mestrado em Direito. Orientadora: Profª Drª Daniella S. Dias. 1. Ministério Público. 2. Promotor Natural. 3. Globalização. 4. Crime Organizado. 5. Pós-Modernidade. I. Título. CDD 341.413 LAURO FRANCISCO DA SILVA FREITAS JUNIOR PÓS-MODERNIDADE, GLOBALIZAÇÃO E OS NOVOS PARADIGMAS DE ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO: O PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL. Dissertação apresentada ao programa de Mestrado da Universidade da Amazônia – UNAMA, na área de Direito do Estado, como requisito para obtenção do Título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Direito do Estado Linha de Pesquisa: Constituição, Direitos Humanos e Relações Internacionais. Orientadora: Dra. Daniella S. Dias. BANCA EXAMINADORA: ______________________________ Profª Drª Daniella S. Dias (Orientadora) ______________________________ Examinador(a) ______________________________ Examinador(a) Aprovada em _____/ _____/ _____. Conceito: BELÉM 2009 Para Ana Cristina e minha família, sempre presentes em minha vida com apoio e amor incondicional e verdadeiro. Para a Prof ª. Dra. Daniella S. Dias, orientadora desta dissertação, sou grato pelas conversas e conhecimentos transmitidos. Para a Ana Luiza, minha pequenina, sempre constante companheira de estudos. RESUMO O presente trabalho objetivou verificar a interpretação do princípio do promotor natural face à realidade atual, marcada por conjunto de problemas e desafios que levam diversas instituições democráticas a reverem seus parâmetros de atuação. A verificação a principio do promotor natural, necessariamente, perpassa pela análise da pós-modernidade e da globalização, contexto pelo qual o Ministério Público não pode estar dissociado, bem como pelo estudo do crime organizado, fenômeno presente na sociedade atual. Na mesma esteira, por se tratar de princípio – do promotor natural - a interpretação de princípios constitucionais não poderia ficar sem uma análise, mesmo que sem aprofundamento. Como complementação da análise, foi feita uma abordagem da Instituição Ministério Público objetivando encontrar seus elementos essenciais. Assim, uma nova interpretação do princípio do promotor natural diante da realidade globalizada teve por objeto demonstrar que esse princípio precisa ter análise "elastecida" tendo em vista nova estruturação e criação de grupos de trabalho tendo em vista combater o crime organizado, um dos grandes problemas e desafios a serem enfrentados pela sociedade e pelo Ministério Público. Com isso buscamos encontrar os limites e a extensão do principio do promotor natural, gravado na Constituição Federal de 1988. Palavras-chave: Ministério Público. Princípio do Promotor Natural. Pós-modernidade. Globalização. Crime Organizado. ABSTRACT The present work objectified to verify the interpretation of the Natural persecution attorney Principle face to the current reality, marked for set of problems and challenges that take diverse democratic institutions to review its parameters of performance. I begin it to the verification of the natural persecution attorney, necessarily, permeates for the analysis of after-modernity and the globalization, context for which the Public prosecution service cannot be disconnected, as well as for the study of the organized crime, present phenomenon in the current society. In the same mat, for if dealing with principle - of the Natural persecution attorney - the constitutional interpretation of principles could not be without an analysis, exactly that without deepening. As complementation of the analysis, a boarding of the Institution was made Public prosecution service objectifying to find its elements essential. So, a new interpretation of the Natural persecution attorney Principle in front of the globalized reality had for object to demonstrate that this principle needs to have an enlarged analysis tends in view new structuring and creation of work groups that intends to combat the organized crime, one of the great problems and challenges be faced by the society and for the public prosecution service. With this we search to find the limits and the extension of the Natural persecution attorney Principle, printed in the Federal Constitution of 1988. Keywords: Public Prosecution Service. Natural persecution attorney Principle. Post-modernity. Globalization. Organized crime. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 9 1.1 DELIMITAÇÃO DO TEMA ................................................................................ 9 1.2 MARCO JURÍDICO-TEÓRICO .......................................................................... 11 1.3 OBJETO E SIGNIFICADO DESTA DISSERTAÇÃO ...................................... 11 2 PÓS-MODERNIDADE, GLOBALIZAÇÃO E OS NOVOS RUMOS DO DIREITO NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO .............................. 13 2.1 A CONFIGURAÇÃO DA PÓS-MODERNIDADE ............................................. 14 2.2 A GLOBALIZAÇÃO COMO FENÔMENO PÓS-MODERNO ......................... 18 2.3 A SOCIEDADE DE RISCO NO CONTEXTO PÓS-MODERNO ...................... 26 2.4 O CRIME ORGANIZADO NA PÓS-MODERNIDADE .................................... 30 2.4.1 Crime Organizado: Definições ........................................................................... 36 2.5 OS REFLEXOS DA PÓS-MODERNIDADE SOBRE O DIREITO PENAL ..... 39 3 INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E PRINCÍPIOS JURÍDICOS .. 43 3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ............................................................................ 43 3.2 INTERPRETAÇÃO E HERMENÊUTICA .......................................................... 46 3.2.1 A Missão de Interpretar ..................................................................................... 47 3.2.2 Interpretação Constitucional ............................................................................. 49 3.3 PRINCÍPIOS JURÍDICOS ................................................................................... 52 3.3.1 A Normatividade dos Princípios ....................................................................... 53 3.3.2 A Distinção Estrutural entre Regras e Princípios Jurídicos ........................... 55 4 O MINISTÉRIO PÚBLICO: ELEMENTOS ESSENCIAIS .......................... 59 4.1 A ORIGEM DO MINISTÉRIO PÚBLICO .......................................................... 59 4.2 O MINISTÉRIO PÚBLICO NO BRASIL ........................................................... 62 4.2.1 O Ministério Público e sua Inserção na Atual Arquitetura Constitucional 65 Brasileira .............................................................................................................. 4.2.2 O Novo Perfil do Ministério Público Brasileiro ............................................... 70 4.3 PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO ....................... 73 4.3.1 Princípio da Unidade do Ministério Público .................................................... 73 4.3.2 Princípio da Indivisibilidade do Ministério Público ........................................ 75 4.3.3 Princípio da Independência Funcional do Ministério Público ....................... 76 5 A TEORIA DO PROMOTOR NATURAL ...................................................... 79 5.1 O PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL ..................................................... 80 5.2 O PROMOTOR NATURAL COMO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL ........... 85 5.3 O PROCURADOR-GERAL, DESIGNAÇÕES E GRUPOS ESPECIALIZADOS ............................................................................................ 87 5.4 O PROCURADOR DE JUSTIÇA NATURAL .................................................... 90 5.5 NORMAS POSITIVAS QUE AJUDAM A ENTENDER O PRINCÍPIO DO 91 PROMOTOR DE JUSTIÇA NATURAL ............................................................. 5.6 O TRATAMENTO JURISPRUDENCIAL DISPENSADO PELO STF 93 ACERCA DO PROMOTOR NATURAL ............................................................ 5.6.1 Os Julgamentos do Re 387974-DF E HC 902877-4-DF ................................... 95 5.7 O PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL NO COMBATE AO CRIME 97 ORGANIZADO .................................................................................................... 6 CONCLUSÃO ..................................................................................................... 102 REFERÊNCIAS .................................................................................................. 110 9 1 INTRODUÇÃO 1.1 DELIMITAÇÃO DO TEMA O objetivo primordial da Constituição Brasileira de 1988 foi transformar o Brasil em um verdadeiro Estado Democrático de Direito, ou seja, em um Estado que garantisse os direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, concebidos estes como os valores supremos de nossa sociedade. Assim, compreender o atual momento histórico pelo qual passa o Brasil é compreender as bases do modelo jurídico determinado na Carta Magna de 1988. Em outras palavras, conhecer os atores que atuam (ou que deveriam atuar) na defesa do regime democrático instituído, entre eles o Ministério Público. O Ministério Público, por seu turno, aparece neste novo cenário, como Instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos sociais e individuais indisponíveis, ou seja, recebeu destinação constitucional de defensor dos fundamentos e valores do Estado Democrático de Direito que se implantou no Brasil e, para tanto, recebeu instrumentos importantíssimo para desempenhar suas funções, como a ação penal, a ação civil pública, a ação direta de inconstitucionalidade, entre outros institutos. Nesse diapasão, não podemos olvidar que após a Constituição de 1988, o Ministério Público passou a ter perfil constitucional peculiar, na condição de defensor do regime democrático e dos interesses indisponíveis da sociedade (BRASIL, 1988, art. 127 da CF-88). Não podemos deixar de levar em consideração que, além de inovações constitucionais, o Ministério Público, assim como a própria sociedade, também está sujeito às interferências e alterações pela qual o mundo passa. Nesse sentido, o mundo pós-moderno, a globalização e as conseqüências que surgiram, ou que foram fomentadas, em decorrência desses fenômenos, são realidades que não podem passar despercebidas. A pós-modernidade nos leva a uma crise de paradigmas em todos os ramos de atuação do Estado. Com um mundo globalizado, fenômenos que já existiam, tiveram uma expansão jamais vista. Aqui nos referimos ao crime organizado que, em conjunto com outras mazelas sociais, aflige ainda mais a sociedade. 10 Diante do agravamento da criminalidade organizada, o aparato estatal mostra-se pouco eficaz em sua contenção e, sobretudo, não sendo capaz de promover uma convivência segura e pacífica. A repressão do crime se mostra deficiente. É momento de preocupação. A proliferação do crime organizado solapa a base do Estado e torna o regime democrático de direito frágil e desacreditado. Diante deste cenário, o Ministério Público, como defensor do Estado Democrático de Direito ganha evidência ímpar. Isto porque a referida atuação se traduz, em verdade, na resistência indispensável à preservação do próprio Estado Brasileiro. Não adotar este posicionamento, significa assumir um risco de caminhar em sentido contrário, ou seja, retornar ao estágio no qual o Ministério Público não tinha importância nenhuma. Para essa atuação moderna o Ministério Público, antes de tudo, deve ser eficaz. Essa eficiência é demonstrada por meio de resultados na área de combate ao crime organizado. E para tanto, princípios e valores institucionais devem ser revistos e analisados sob uma nova perspectiva. É o caso do princípio do promotor natural, que ultimamente tem sido discutido pelo Supremo Tribunal Federal. Considerando os referencias teóricos para a transformação da sociedade e os novos fenômenos surgidos desta era iniciou-se esta dissertação com uma análise da sociedade pósmoderna, da globalização e seus desdobramentos para o direito e o crime. A interpretação e os princípios constitucionais serão analisados como suporte para o entendimento do princípio do promotor natural que, apesar de amplamente estudado e referenciado, não possui previsão expressa em nosso ordenamento jurídico. Como o eixo principal do principio do promotor natural é o próprio Ministério Publico, o estudo desta Instituição ganha importância relevante para essa dissertação. O propósito desta dissertação é analisar o que existe de referencial teórico e jurídico para a utilização do princípio do promotor natural no Brasil que atravessa por uma era pósmoderna, globalizada e de criminalidade organizada. Delimitando o objeto de análise da presente dissertação, apresentamos as principais indagações a serem respondidas: a) Diante de um mundo pós-moderno, globalizado e de criminalidade organizada pode o Ministério Público ficar inerte a essa nova realidade e não procurar meios de se modernizar e se tornar eficaz? 11 b) De que forma deve ser visto e interpretado o princípio do promotor natural em um novo cenário pelo qual passa a sociedade brasileira? 1.2 MARCO JURÍDICO-TEÓRICO A linha de pesquisa desenvolvida nesta dissertação objetiva o estudo bibliográfico e jurisprudencial do principio do promotor natural. Tal princípio se encontra inserido no âmbito do Ministério Público, assim a análise perpassa pelo estudo pormenorizado dessa Instituição. Por outro lado, qualquer análise do Ministério Público não pode ser separada da contextualização do momento pelo qual a sociedade brasileira atravessa. Assim, o estudo da pós-modernidade, da globalização e da disseminação da criminalidade organizada não poderia passar despercebido. Por conseqüência, a doutrina sobre o tema foi analisada por meio das obras de Casttels, Baumam, Giddens, Beck, Ianni, dentre outros autores que explanam as alterações pela qual a sociedade atual passa. Por se tratar de principio - do promotor natural - uma incursão no tema de interpretação, regras e princípios também foi relevante. Para tanto, as análises realizadas – especialmente aquelas sobre princípios e regras - foram consolidadas sobre as doutrinas de Alexy, Dworkin, Eros Grau, Canotilho, Barroso, Dantas, dentre outros. O Ministério Público enquanto Instituição deve ser entendida como instrumento de democracia e garantia constitucional, logo, sua destinação, não surgiu do nada, possui uma história e todo um arcabouço doutrinário, revelado por autores expoentes Mazzilli, Jatahy, Carneiro, Lyra, Emerson Garcia. 1.3 OBJETO E SIGNIFICADO DESTA DISSERTAÇÃO A dissertação está estruturada em seis partes, a partir deste capítulo introdutório. A sociedade pós-moderna, o fenômeno da globalização e sua implicação no desenvolvimento da criminalidade organizada e nos novos rumos do direito, trazem uma contextualização do momento pelas quais as Instituições atravessam na atualidade (cap.2). 12 Para análise do principio do promotor natural, surge o capítulo 3. Nele é levantada a teoria de interpretação e a teoria dos princípios, o qual analisará a normatividade dos princípios e sua parcela de responsabilidade como ato interpretativo. A análise da Instituição do Ministério Público é ponto de partida de qualquer instituto que envolva esse Órgão. Desta forma, entender sua origem e outros elementos essenciais no permitirá enxergar o princípio do promotor natural por outra perspectiva, mais abalizada e de acordo com sua destinação constitucional (cap.4). O Capítulo 5 específico sobre a teoria do promotor natural perpassa por toda a doutrina que, até então, existe sobre o tema, bem como toda atividade jurisprudencial, que ao longo de décadas, o Supremo Tribunal Federal vem desenvolvendo acerca do princípio. Nessa mesma linha, o princípio é revisitado diante de uma nova ótica e em conjunto com o fenômeno da criminalidade organizada e com a necessidade de existência de um Ministério Público mais eficiente. O capítulo 6 é conclusivo e tem como finalidade esclarecer os demais pontos analisados bem como realizar a interconexão entre os diversos capítulos de forma a dar uma visão contextualizada e atual do principio do promotor natural, onde fique evidenciada a destinação constitucional do Ministério Público, ou seja, a defesa da sociedade. 13 2 PÓS-MODERNIDADE, GLOBALIZAÇÃO E NOVOS RUMOS DO DIREITO NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO Ao longo dos últimos quarenta anos tem-se falado, persistentemente, que a sociedade ingressa em uma nova era de sua história. Essa idéia sugere que, conquanto ainda seja uma sociedade industrial, ela passou por mudanças de tal alcance que não pode mais ser aceita pelo velho nome nem estudada no contexto de antigas teorias. Essa sociedade seria agora a sociedade pós-moderna.1 Mas, talvez, não a conheçamos suficientemente, e, por certo, não foi questionada, ainda, qual a relação da mesma e seus efeitos, com o Ministério Público Brasileiro. Assim, surge a necessidade de uma melhor análise da pós-modernidade. Nela verificamos que o fenômeno da globalização está diretamente ligado a outro fenômeno, também bastante atual, conhecido por crime organizado. Desde logo, é fácil perceber que estamos diante de uma crise de paradigmas, que é em boa parte, própria do advento da pós-modernidade. Nesse sentido, nenhuma Instituição sobrevive ou se legitima apenas pelo discurso de defesa da sociedade e de justiça. Nenhuma Instituição sobreviverá sem planejamento de atuação. Assim sendo, não basta que o Ministério Público seja dotado de garantias, como a do princípio do promotor natural, antes de tudo, ele deve ser eficaz, para fazer frente a novos desafios e tarefas. Nessa perspectiva, a discussão em torno de novas atribuições e de novos paradigmas de atuação do Ministério Público Brasileiro perpassa pelos fenômenos da globalização e do crime organizado. E mais importante ainda, é analisar como deve ser a postura desse novo Ministério Público Brasileiro frente ao futuro que se aproxima e quais os mecanismos que devem ser utilizados para enquadrar este Órgão nessa nova feição mundial. Para tanto, é imprescindível conhecermos essa nova era da sociedade e os fenômenos dela decorrentes ou já existentes que foram fomentados. 1 KUMAR, Krishan. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: Novas teorias sobre o mundo contemporâneo. 20. Ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997, p. 09. 14 2.1 A CONFIGURAÇÃO DA PÓS-MODERNIDADE Ao longo dos últimos quarenta anos, tem se falado, persistentemente, que a sociedade ingressa em uma nova era de sua história. A sociedade atual ainda seja uma sociedade industrial, passou por mudanças de tal alcance que não pode mais ser aceita pelo velho nome, nem estudada no contexto de antigas teorias. Essa sociedade seria agora, para alguns doutrinadores, a sociedade pós-moderna2. No final do século que passou, uma revolução tecnológica com base na informação transformou nosso modo de pensar, de produzir de consumir, de negociar, de administrar de comunicar, de viver, de morrer, de fazer guerra e de fazer amor3. A pós-modernidade é uma nova era da humanidade, caracterizada, a rigor, por processos de mudança estrutural que deslocam a lógica de funcionamento desse período de transição – como, por exemplo, o modo de produção de bens materiais proeminentemente manufatureiros – para um modelo onde a informação (e seus mecanismos de produção, organização, codificação e disseminação) ganha a centralidade do sistema de sociabilidade entre os indivíduos e os povos4. Assim, a sociedade pós-moderna é baseada na circulação de informação, cada vez mais intensa e sofisticada, em que o computador e a informática se tornam imprescindíveis a todas as áreas: da produção ao conhecimento5. Em relação à pós-modernidade, relata Krishan Kumar: A sociedade pós-moderna associa tipicamente o local e o global. Os acontecimentos globais – a internacionalização da economia e da cultura – são refletidos para as sociedades nacionais, minando as estruturas nacionais e promovendo as locais. A etnicidade recebe um impulso renovado. Ocorre um ressurgimento do regionalismo e dos “nacionalismos periféricos” – o nacionalismo de pequenas nações que foram incorporadas a unidades mais amplas, como o Reino Unido, a França, a Espanha e outros grupamentos 2 KUMAR, Krishan. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: Novas teorias sobre o mundo contemporâneo. 20. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar. 1997, p. 9. 3 CASTELLS, Manuel. Fim do Milênio. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007, (A Era da Informação: economia, sociedade e cultura; v.3), p. 19. 4 MELLO, Alex Fíúza de. Crise Paradigmática ou Miopia Ideológica. A (des) atualidade dos Clássicos em Questão. São Paulo: Doutorado em Ciências Sociais/IFICH/UNICAMP, 1994. (mimeo), p. 1. 5 Willis Santiago Guerra Filho na obra Autopoiese do Direito na Sociedade Pós-Moderna: Uma introdução a uma teoria social sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 22., propõe que se utilize o conceito de “sociedade pós-industrial”, uma vez que é neste setor que realmente ocorrem transformações. 15 nacionais históricos. “Pense globalmente, aja localmente”, o lema da década de 1960, aplica-se a um bom número de novos movimentos sociais, sobretudo aos movimentos feministas e ecológicos. Uma vinculação semelhante ocorre em alguns dos novos movimentos de revivescência religiosa, tais como o fundamentalismo protestante e o islâmico6. Para Alex Fiúza de Melo “a modernidade é a passagem de um estado de rigidez societária, que historicamente entrou em ebulição, para outro estado de sociabilidade em que a fluidez das coisas, pelo impacto do emprego das tecnologias, torna-se o conteúdo das formas.”7 Por ser uma época de transição, os mais desavisados poderiam se questionar de fato a pós-modernidade, realmente, existe. A indústria da cultura, fundamental nas sociedades ocidentais tem seu habitat na produção incessante de imagens. A hiper-realidade é o mundo em que habitamos (mundo virtual), por boa parte do tempo. A chamada informação de massa e veloz nos leva ao êxtase da comunicação.8 A expressão pós-modernidade mobiliza emoções das mais diversas e contraditórias, bem como extremadas. Sua conceituação é tormentosa. Explicar a conceituação de uma era que já passou, que virou historia é simples, no entanto, conceituar algo que estamos vivendo é difícil, quiçá impossível, ainda mais em uma era volátil e cheias incertezas como a que vivemos. O que nos parece certo é que a modernidade está ficando para trás, vez que algumas de suas características9 não estão mais presentes e que vivemos algo novo, com características, já ditas, marcantes. 6 KUMAR, op. cit., p. 159-160. 7 MELLO, Alex Fiúza de. Para Construir uma Universidade na Amazônia: realidade e utopia. Belém: EDUFPA, 2007. p. 33. 8 9 BAUDRILLAND apud KUMAR, op. cit., p. 164. A modernidade é uma invenção da Idade Média cristã. O mundo antigo era pagão e o moderno cristão. Mas, somente no século XVII foi plenamente desenvolvida em Francis Bacon, Descartes, entre outros. 16 Vejamos tentativa de conceituar a pós-modernidade, nas palavras de Krishman Kumar: […] O que torna o pós-modernismo tão diferente como enfoque é que ele transcende esses aspectos conhecidos para fazer alegações abrangentes, e para muitas pessoas, chocantes, sobre a própria notícia da sociedade e da realidade objetiva. Faz afirmações não só sobre a nova sociedade ou a realidade social, mas sobre nossa maneira de conhecer a própria realidade. Passa da história e da sociologia para questões filosóficas sobre a verdade e conhecimento.10 E continua o autor: Mais uma vez, podemos começar com o conhecido, mas com “jeito” novo, a maioria das teorias sobre a sociedade contemporânea atribui um importante papel aos meios de comunicação de massa, sobretudo na era das telecomunicações e do computador. Esse fato é ainda mais claro na teoria da sociedade de informação, mas entre também nos temas do pós-fordismo e nas teorias marxistas de capitalismo tardio 11 A pós-modernidade, como movimento intelectual, é a critica da modernidade, a consciência da necessidade de emergência de outra visão de mundo, a consciência do fim das filosofias da história e da quebra das grandes metanarrativas, demandando novos arranjos que sejam capazes de ir além dos horizontes fixados pelo discurso da modernidade. Por outro lado, como contexto histórico, a pós-modernidade é um sintoma de um processo de transformações que estão profundamente imersas em uma grande revolução cultural, que desenraiza paradigmas ancestralmente fixados 12. Nesse sentido, como conjuntura de transformações, a pós-modernidade sintetiza um complexo de mudanças. Assim, em pleno início de século, uma parcela da humanidade, a dita “desenvolvida”, passa por mudanças estruturais jamais vistas, levando a humanidade a uma série de desafios, angústias e incertezas. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman fala em passagem da fase “sólida” da modernidade para a líquida, ou seja, para uma condição onde organizações sociais perdem sua forma original, uma vez que se decompõem e se dissolvem; fase em que o poder se separa da 10 KUMAR, op. cit., p. 160. 11 Id., p. 161. 12 BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na Pós-modernidade. 2. ed.. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 146. 17 política; na redução gradual e consistente na segurança comunal, o colapso do planejamento, de perspectivas; a responsabilidade em responder por escolhas, o risco eminente 13. Por tudo o que foi dito, surge o aspecto de que a pós-modernidade14 possui características próprias e marcantes e que o prefixo pós tem muito mais a função de eliminar o velho (modernidade) do que identificar o novo (o pós-moderno). Na verdade temos uma ruptura. Não conhecemos o que estar por vir. Conforme Zygmunt Bauman nos ensina, a pós-modernidade é a modernidade que atinge a maioridade, a modernidade olhando-se a distância e não de dentro, fazendo um inventário completo de ganhos e perdas, psicanalizando-se, descobrindo as intenções que jamais explicitara, descobrindo que elas são mutuamente incongruentes e se cancelam. A pós-modernidade é a modernidade, chegando a um acordo com a sua própria impossibilidade, uma modernidade que se automonitora, que conscientemente descarta o que outrora fazia inconscientemente.15 Para Ulrich Beck, a pós-modernidade (modernidade reflexiva) significa a possibilidade de uma auto (destruição) criativa para toda uma era: aquela da sociedade industrial, onde o “sujeito” dessa destruição não é a revolução, nem a crise, mas sim a vitória da modernização ocidental16. A pós-modernidade produziu um mundo perigoso e de riscos, afinal, é algo incontrolável e ao mesmo tempo inevitável, a sociedade atual é desorientada e de mal-estar. O mundo em que nos encontramos hoje, em vez de estar cada vez mais em nosso comando, parece um mundo de descontrole.17 No mundo atual, existem as empresas transnacionais que desenvolvem um poder de intervenção e de decisão comparável aos do Estado-nação, com a diferença que essa soberania se exerce simultaneamente no interior de inúmeras territorialidades (nacionais), condicionando governos locais e articulando-os, no interior das possibilidades de cada 13 BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2007, p. 7-10. 14 Anthony Giddens na obra As conseqüências da modernidade. São Paulo. UNESP, 1991, p. 12-13, afirma que: “Em vez de estarmos entrando num período de pós-modernidade, estamos alcançando um período em que as conseqüências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes. Além da modernidade, devo argumentar, podemos perceber os contornos de uma ordem nova e diferente, que é “pósmoderna”, mas isto é bem diferente do que realmente é chamado por muitos de pós-modernidade”. 15 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1999. P. 288. 16 BECK, Ulrich. Modernização Reflexiva: Política, tradição, estética na ordem social moderna. São Paulo: Ed. da Universidade Estadual Paulista, 1997. p. 12. 17 GIDDENS, Antonhy. Mundo em Descontrole. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 14. 18 conjuntura, em função de um projeto maior que não tenha mais emblemas, nem hinos ou bandeiras de cores e sentidos circunscritos à dimensão da modernamente construída noção de nacionalidade18. Estabelece com propriedade Eduardo Bittar: Na pós-modernidade, o retorno ao Estado não significa um saudosismo ao leviatã de Hobbes, ou muito menos uma repactuação contratualista rousseaniana, mas, considerando-se outros aspectos demográficos de poder (abertura para os movimentos sociais, ampliação da capacidade participativa, ampliação de um papel controlador de normas etc.), uma re-fundação da política sobre uma ética que valorize o estar-em-comunidade, noção esta esfacelada ao longo das ultimas décadas pela falta de uma cultura do consenso vitimada por uma cultura de competição. 19 A pós-modernidade é inerentemente globalizante20. O local está conectado ao global. As atividades locais, em muitos casos são atingidas por acontecimentos distantes. E o inverso também funciona assim. Assim, a experiência global da modernidade está ligada à influência das instituições modernas nos acontecimentos da voz cotidiana. Enfim, a globalização é um fenômeno da pós-modernidade. 2.2 A GLOBALIZAÇÃO COMO FENÔMENO PÓS-MODERNO Uma nova economia surgiu em escala global nos ultimas décadas do século XX. Trata-se de uma economia informacional, global e em rede. É informacional porque a produtividade e a competitividade dos agentes dessa economia dependem de sua capacidade de gerar, processar e aplicar, de forma eficiente, a informação baseada em conhecimentos; é global porque as principais atividades produtivas, o consumo e a circulação assim como seus componentes (capital, trabalho, matéria-prima, administração, informação, tecnologia e mercados) estão organizados em escala global, diretamente ou mediante uma rede de conexões entre agentes econômicos; e, é em rede porque nas novas condições históricas, a 18 MELLO, op. cit., p. 03. 19 BITAR, Eduardo. Curso de Filosofia Política. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 50. 20 GIDDENS, 1991, op. cit., p. 69. 19 produtividade é gerada e a concorrência é feita em uma rede global de interação entre redes empresariais 21. Para a economia, a globalização é um fenômeno de derrubada de fronteiras comerciais, industriais e econômicas, entre os países do plante Terra. É o livre comércio intenso. O conceito de globalização não é fechado, muito pelo contrário, é bem aberto, pois é associado comumente à ênfase dada pela literatura inglesa dos anos 80 e a uma economia política de relações internacionais. Ultimamente, este conceito tem se alargado e expressado um vasto e complexo conjunto de processos. Para Jose Eduardo Farias, os processos relacionados à globalização são destacados da seguinte forma: a crescente autonomia adquirida pela economia em relação a política, a emergência de novas estruturas decisórias operando em tempo real e com alcance planetário; as alterações em andamento nas condições de competitividade de empresas, setores, regiões, países e continentes; a transformação do padrão de comércio internacional, deixando basicamente de ser eminentemente inter-setorial e entre firmas passando a ser infra-setorial e intrafirmas; a “desnacionalização” dos direitos, a desterritorialização das formas institucionais e a descentralização das formas políticas do capitalismo; a uniformização e a padronização de práticas comerciais no plano mundial; a desregulamentação dos mercados de capitais, a interconexão dos sistemas financeiro e securitário em escala global, a realocação geográfica dos investimentos produtivos e a volatilidade dos investimentos especulativos; a unificação dos espaços de reprodução social, a proliferação dos movimentos imigratórios e as mudanças radicais ocorridas na divisão internacional do trabalho; e por fim, o aparecimento de uma estrutura político-econômica multipolar incorporando novas fontes de cooperação e conflito tanto no movimento do capital quanto no desenvolvimento do sistema mundial 22. A globalização não é um fenômeno novo e exclusivo do século XX. Os antigos impérios quando se expandiram, geraram modernização econômica, cultural e jurídica e passaram por esse processo. Na era moderna, as grandes expansões de Portugal e Espanha já denotavam globalização, vez que a cartografia e o crescente conhecimento científico da navegação proporcionaram um desbravamento territorial. Em outra época, quando da 21 CASTELLS, v. 1, op. cit., p. 119. 22 FARIAS, José Eduardo. O Direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 59-60. 20 revolução industrial, os ingleses precisavam escoar sua produção para o exterior, a globalização também se fez presente23. No entanto, a economia globalizada é uma realidade histórica diferente da economia mundial. A economia mundial, a qual já existe no ocidente, pelo menos, desde o século XVI, é uma economia em que a acumulação de capital avança por todo o mundo, enquanto a que economia globalizada é algo diferente: é uma economia com capacidade de funcionar como uma unidade em tempo real, em escala planetária 24. A globalização é processo que se caracteriza pela dimensão financeira, pelas transformações institucionais, políticas, organizacionais, comerciais, financeiras e tecnológicas ocorridas ao longo das últimas três décadas e, especificamente, no aspecto financeiro, pode ser resumida (1) na liberação monetária e financeira; (2) na desitermediação; (3) e na abertura dos mercados financeiros nacionais. A abertura do mercado internacional representou dois processos conjugados ou mudanças, aquele relativo às barreiras internas e aquele outro que separava os mercados nacionais e externos25. Desta forma, a globalização não pode ter um conceito inédito ou original na teoria econômica e também não fica adstrita somente a esta área. São as palavras de Ivo Dantas: As teorias [da globalização] apresentadas como vimos de cunho eminentemente econômico, serviram para demonstrar a dimensão e complexidade dos temas pertencentes à globalização, que apesar de possuir vários aspectos inclusive culturais, tem sido tratada quase exclusivamente na perspectiva da ciência econômica, o que torna a maioria dos estudos a seu respeito algo incompleto, sobretudo, quando não se faz referência aos problemas legais que a sua adoção provoca nos âmbitos externos e internos aos estudos principalmente quando estes aderem à forma de Estado neoliberal26. Assim, fica nítida a importância para apresentação do processo de globalização, sua incursão na seara econômica, no entanto, também é nítido que sua abrangência é muito maior em outras áreas do conhecimento, sobretudo na sociologia e no direito. 23 FARIAS, op. cit., p. 60. 24 CASTELLS, v. 1, op. cit., p. 142. 25 ROCHA, Luiz Alberto G. S. Estado, Democracia e Globalização. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 92. 26 DANTAS, Ivo. Direito Constitucional Econômico. Curitiba: Juruá, 1999, p. 117. 21 Em decorrência de todo esse processo, a globalização é multifacetária, se apresentando das mais variadas formas. Mas afinal, como fica o homem no meio deste processo? Giddens define globalização como “a intensificação de relações sociais mundiais que unem localidades distantes de tal modo que os acontecimentos locais são condicionados por eventos que acontecem a muitas milhas de distância e vice-versa.” 27 Na sociedade global, “ao contrário do que se verifica na sociedade nacional, a desterritorialização é um processo cada vez mais intenso e generalizado. Há coisas, pessoas e idéias desterritorializando-se o tempo todo. As relações, os processos e as estruturas de dominação a apropriação, antagonismo e integração, parecem desenraizar-se. Há fatos sociais, econômicos, políticos e culturais ocorrendo perto e longe não se sabe onde.” 28 Assim, a indefinição das fronteiras do Estado-Nação implica dificuldades para a definição de cidadania. Um centro de poder bem definido dilui o controle social e pulveriza os desafios a serem enfrentados pela política. 29 Assim, o processo de globalização tende a enfraquecer ou solapar formas nacionais de identidade cultural. Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicas e parecem “flutuar livremente”.30 O autor Ulrich Beck distingue os termos globalidade e globalização. Para ele, globalidade significa que não mais existem espaços isolados, onde nenhum país, nenhum grupo pode se isolar dos outros, daí o entre choque das formas econômicas, culturais e políticas. Por isso afirmar que a “sociedade mundial” representa um conjunto de realizações sociais que estão paralelas à política de Estado Nacional legalmente constituído. Assim, a sociedade mundial é algo não integrado e altamente diversificado. Por outro lado, a globalização seria o processo em que o Estado Nacional vê sua soberania, sua identidade, sua 27 GIDDENS, 1991, op. cit., p. 69. 28 IANNI, Octavio. A sociedade Global. 13. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 100. 29 CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. 6.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. (A Era da Informação: economia, sociedade e cultura;v. 2), p. 365. 30 HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. p. 73-75. 22 rede de comunicação, sua chance de poder e sua orientação sofrerem a interferência cruzada de atores transnacionais. 31 Beck também diferencia globalismo: Globalismo designa a concepção de que o mercado mundial ou bane ou substitui, ele mesmo, a ação política; trata-se, portanto da ideologia do império do mercado mundial, da ideologia do neoliberalismo. O procedimento e mono causal, restrito ao aspecto econômico, e reduz a pluridimensionalidade da globalização a uma única dimensão – a econômica –, que, por sua vez, ainda é pensada de forma linear e deixa todas as outras dimensões – relativas à ecologia, à cultura, à política e a sociedade civil – sob o domínio subordinador do mercado mundial. 32 Sobre globalização, acentua Paulo Silva Fernandes: Assim, findo este parágrafo já longo, e em resumo, podemos falar da globalização como sendo um estreitamento (e aprofundamento) espaciocultural de toda uma estrutura econômica, social, política e cultural, suportado por um densa, complexa e interligada rede de comunicação que, possibilitando-o, acelera ainda mais todo um processo de diluição (outra vez a figura do leviatã nos assalta …) do “uno” no “múltiplo”, do “ser-aídiferente” no “ser-em-todo-lado-igual”, de caldeirão onde se fundem diversidade culturais, econômicas, políticas e sociais em conseqüência do qual cada vez menos se encontra um “eu genuíno”. 33 Dessa forma, a globalização revela que estamos perante um fenômeno multifacetado com dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo34. A globalização nestes contornos é inevitável. O mundo trilha em um caminho sem volta. A abrangência de interesses envolvidos não nos permite afirmar que a globalização é um fenômeno passageiro. Em um cenário pós-moderno globalizado, os conceitos de Nação, Estado e Soberania encontram-se conectados ou relacionados com processos econômicos, sociais, políticos e culturais que se implicam e se complementam. 31 BECK, Ulrich. O que é Globalização? Equívocos do globalismo: respostas à globalização. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 29-30. 32 Ibid. p. 27-28. 33 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal. Panorâmica de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 41-42. 34 SANTOS, Boaventura de Sousa. A Globalização e as Ciências Sociais. 3. ed.. São Paulo: Cortez, 2005. p. 26. 23 A palavra “Estado” é oriunda de “Stato”, particípio do verbo “Stare”, e designado “organização estável”. Este conceito de Estado descreve e indica um padrão de ordenamento político que ganhou ênfase a partir do século XIII com a expansão das cidades. Vinculado a este Estado, surge soberania em seu significado mais atual, o qual encerra um poder estatal incontrastável com uma determinada sociedade política, poder este independente, supremo, inalienável e, principalmente, exclusivo. Em outras palavras, poder de manter os cidadãos sob controle e, mediante estabelecimentos de comportamentos padrões e normas. Nas palavras de Zygmunt Bauman: O significado de “Estado” foi precisamente o de um agente que reivindica o direito legitimo e se gabava dos recursos suficientes para estabelecer e impor as regras e normas que ditavam o rumo dos negócios num certo território; regras e normas que, esperava-se, transformassem a contingência em determinação, a ambivalência em “Eindentigkeit” [clareza], o acaso em regularidade – em suma, a floresta primavera em um jardim cuidadosamente planejado, o caos em ordem35. Nessa linha, o Estado significa aquele que detém o poder de soberania interna e externa sobre a área e o corpo de cidades. O termo nação adquire a forma de comunidade organizada, onde a união desses fatores faz surgir o Estado Nacional36. Em outra época, o Estado-Nação se baseava na crença que podia ter o controle de suas riquezas. No entanto, a capacidade instrumental deste Estado-Nação está comprometida de forma decisiva pela globalização das principais atividades econômicas, pela globalização da mídia e da comunicação e pela globalização do crime 37. O declínio deste Estado-Nação se deve à sua clara subordinação aos movimentos e às articulações do capital, ou seja, a dinâmica do capital se apresenta diferente da dinâmica do Estado-Nação, seja ele dependente, associado ou dominante. Os aparelhos estatais acabam por serem agências da economia mundial e freqüentemente cedem às exigências das relações, processos e estruturas que articulam a sociedade global38. 35 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1999. p. 68. 36 ROCHA, op. cit., p. 15. 37 CASTELLS, v. 2, op. cit., p. 288. 38 IANNI, op. cit., p. 92. 24 Assim, malgrado o fenômeno globalização, o Estado-Nação não está em vias de desaparecer. Ele é apenas redimensionado na era da informação 39. É certo que sofre muitas influências do novo mercado econômico mundial, fazendo vir à tona sua fraqueza e sua forma obsoleta de governar. A globalização fez com que o Estado sofresse um duro golpe em sua base de sustentação: a soberania nacional. Elucida José Eduardo Faria: Uma das facetas mais conhecidas desse processo de redefinição da soberania do Estado-Nação é a fragilização de sua autoridade, o exaurimento do equilíbrio dos poderes e a perda de autonomia de seu aparato burocrático, o que é revelado pelo modo como se posiciona no confronto entre os distintos setores econômicos (sejam eles públicos ou privados) mais diretamente atingidos, em termos positivos ou negativos, pelo fenômeno da globalização40. Para o professor Luiz Alberto Rocha: Nessa fase pós nacional o Estado está obrigado a viver com outros atores internos (sociedade civil organizada em nível global) e externos (organismos internacionais), sob os quais não tem poder de controle. Tudo isso proporciona, no mínimo, a relativização da soberania (soberania limitada) em nome de uma organização que conjuntamente possa ensinar soluções para seus problemas comuns. Que comunidade é ou será é que, apesar dos inúmeros trabalhos e do modelo da União Européia, ainda resta ao futuro nos apresentar! 41 A defesa do Estado-nação na era da globalização não significa a velha idéia de soberania. É necessário estabelecer um novo conceito de soberania, onde os Estados-nação, não sejam mais vistos com poderes absolutos, capazes de impor resultados em todas as dimensões dentro de um território. Trata-se de percebê-los como locais a partir dos quais novas formas de governabilidade podem ser propostas, legitimadas e monitoradas. Nesse sentido a soberania transformar-se. O Estado todo-poderoso, com competências ilimitadas, não mais é cogitado. Doravante, seu poder e relevância derivam de sua capacidade de policiar 39 CASTELLS, v. 3, op.cit., p. 435. 40 FARIAS, op. cit., p. 25. 41 ROCHA, op. cit., pag. 163. 25 seus limites físicos, e, principalmente, da possibilidade de representar efetivamente os cidadãos dentro de suas fronteiras 42. A globalização, porém, como já foi dito alhures, não exterminará o Estado do cenário mundial, ele continuará existindo, enfraquecido, mas existindo. A globalização, como fenômeno multifacetário que é também influenciou a área do direito. As transformações das sociedades contemporâneas modificam o antigo modelo de direito (positivismo jurídico)43 à medida que as estruturas e relações de poder assumem novas configurações e inovam-se as formas de produção e de operação do direito. A globalização evidencia essa transformação, pois com ela, geram-se novas formas de direito que estão em relações variadas com as fronteiras do direito estatal. A produção normativa foi extremamente alterada pela inserção de novos atores, assim como o próprio modo de legislar. A produção normativa sofreu um forte impacto da globalização tendo em vista o surgimento desses novos atores – regionais ou mesmo globais – que passaram a editar normas jurídicas no sentido mais tradicional (obrigatoriedade, generalidade e bilateralidade). A globalização muda o panorama jurídico de produção de direito. O Estado perde parte do monopólio de produção legislativa e com isso, parte de sua soberania 44. Nesse sentido, são as palavras de Jose Eduardo Faria: O denominador comum dessas rupturas [institucionais nas estruturas jurídicas e políticas do Estado] é, como se vê, o esvaziamento da soberania e da autonomia dos Estados nacionais. Por um lado, o Estado não pode mais almejar regular a sociedade civil nacional por meio de seus instrumentos jurídicos tradicionais, dada a crescente redução de seu poder de intervenção, controle, direção e indução. Por outro lado, ele é o obrigado a compartilhar sua soberania com outras forças que transcendem o nível nacional. Ao promulgar suas leis, portanto, os estados nacionais acabam sendo obrigados 42 GONÇALVES, Alcindo. Soberania, Globalização e Direitos Humanos. In: DERANI, Cristiane. Globalização e Soberania. Curitiba: Juruá, 2008.p. 25-26. 43 O positivismo jurídico caracteriza o direito como um conjunto de normas estatais, produzidas por instâncias de representação políticas democráticas e efetivadas por instituições estatais especializadas, com alta coordenação horizontal e integração vertical (organização burocrática). O direito tem fronteiras nítidas, num triplo sentido: disciplinar, política, e fronteiras nacionais em que o direito é associado à soberania estatal, tornando o Estado o único produtor legítimo do direito. 44 ARNAUD, André-Jean; JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Dicionário da Globalização. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2006. p. 155. 26 a levar em conta o contexto econômico-financeiro internacional, para saber o que podem regular e quais de suas normas serão efetivamente respeitadas 45. Esse cenário revela as mudanças do sistema jurídico, vez que, com elas criam-se novas formas jurídicas de direito que estão em relações variadas com as fronteiras do direito estatal. As técnicas jurídicas são aprimoradas, por meio de cooperação entre juristas, agentes políticos, especialistas e cidadãos nos processos de tomada de decisão. A legislação passa a adotar princípios diretores, como por exemplo, o princípio da dignidade da pessoa humana. Foi visto que, na entrada do novo milênio as ciências sociais deparam-se com algo, talvez, já mais visto na história da humanidade. O homem, a sociedade e o Estado atravessam mudanças estruturais que se desdobram para todas as áreas do conhecimento. A pós-modernidade aliada ao processo de globalização deixa o cenário mundial diferente, com novos atores e com novos conceitos até então desconhecidos. Como nos ensina Zygmunt Bauman: Esta nova e desconfortável percepção das “coisas fugindo ao controle” é que foi articulada (com pouco beneficio para a clareza intelectual) num conceito atualmente na moda: o da globalização. O significado mais profundo transmitido pela idéia da globalização é o do caráter indeterminado, indisciplinado e de autopropulsão dos assuntos mundiais, a ausência de um centro, de um painel de controle, de uma comissão diretora, de um gabinete administrativo. A globalização é a “nova desordem mundial” de Jonit com um outro nome. 46 2.3 A SOCIEDADE DE RISCO NO CONTEXTO PÓS-MODERNO Na sociedade moderna a ênfase era dada ao perigo, na pós-moderna é dada ao risco, vez que o perigo só existe em função do risco. O risco, e não mais a segurança47, gera o perigo. Assim, a sociedade pós-moderna é sinônimo de sociedade de risco. O fenômeno do risco, não é recente, e pode ser fornecido por várias ciências. 45 FARIAS, Jose Eduardo. Direito e Globalização Econômica: Implicações e Perspectivas. Editora Malheiros: São Paulo, 1998. p. 11. 46 47 BAUMAN, op. cit., pag. 66-67. Em contraposto ao risco, existe a possibilidade da estabilização de estruturas de expectativas com o conseqüente fornecimento de segurança. 27 No entanto, foi nas ciências sociais que encontramos uma melhor análise, vez que a ação humana é o centro da observação. Existe um trabalho específico, feito de forma racional, onde se analisam as conseqüências de diversas decisões e suas possibilidades de benefícios e prejuízos. Nesse contexto, o risco decorre da omissão humana de prevenção, ou então, quando os danos decorrem de decisões tomadas pelo próprio indivíduo. Por outro lado, todo dano que seja indiferente diretamente ao ato humano, como um terremoto e as catástrofes em geral, tem-se o perigo48. Augusto Silva Dias conseguiu identificar três fases na historia do risco, da seguinte forma: A primeira corresponde ao advento da base moderna, em que, todavia, os riscos ainda são “incipientes” e “controláveis”; a segunda, que se estende “de finais do século XIX até a primeira metade do século XX” surge da vontade de “conter e domesticar estes riscos mensuráveis e controláveis”, com o fim de reduzir tanto a sua ocorrência como a sua gravidade, e que corresponde ao Welfare State; a terceira fase, por fim, corresponde ao nosso tempo, coincidente com o fracasso do Welfare State e o aparecimento de novos, graves e incontroláveis riscos, fruto desmedido do desenvolvimento da sociedade industrial tardia 49. O Risco se refere aos infortúnios ativamente avaliados em relação às atividades futuras. O termo só passa a ser amplamente utilizado em sociedades voltadas para o futuroque vêem o futuro precisamente como um território a ser conquistado ou colonizado. O conceito de risco perpassa por uma sociedade que tenta ativamente romper com seu passado – de fato, característica da sociedade pós-moderna50. Os riscos na sociedade pós-moderna se expandiram. Não só pelo aspecto de estarem globalizados, mas também porque não se resumem mais somente ao aspecto do meio ambiente. A violência, a insegurança, o tráfico de drogas e de pessoas, os delitos eletrônicos compõem o triste cenário em que viemos. São os riscos pós-modernos, que tem como procedência o próprio homem. Assim, se reconhece que as modernas sociedades industriais, geraram riscos que comprometem a continuidade da própria sociedade51. 48 Essa diferença é apenas conceitual e didática vez que, entendemos que todo perigo, na atualidade, resulta de ato humano. Para efeito de entendimento, neste trabalho, risco seria sinônimo de perigo. 49 DIAS, Augusto Silva. Protecção Jurídico Penal de Interesses dos Consumidores. 2. ed. Policopiada, das “Lições” aos Cursos de Pós-graduação em Direito do Consumo e em Direito Penal Econômico e Europeu, FDUC, 2000. P. 02, apud FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “Sociedade de Risco” e o Futuro do Direito Penal: Panorâmica de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 33 50 GIDDENS, 2007, op. cit., p. 33. 51 FERNANDES, Paulo, op. cit., p. 46. 28 O risco pós-moderno se caracteriza pela ausência de segurança e a presença da contingência. É de domínio doutrinário que a sociedade caracteriza pela pós-modernidade e nunca pela indeterminação e pela instabilidade, geradas pela falta de segurança e pela possibilidade premente do dano em face do risco inerente às ações52. A sociedade pós-moderna é uma sociedade de risco, uma sociedade também com outros caracteres individualizadores, que convergem na sua caracterização como uma sociedade de objetiva insegurança53. Dessa forma, já é sabido que a globalização possui diversos dissabores, o mundo agora possui insegurança e riscos jamais vistos. A insegurança e o risco deixaram de ser locais e passaram a ser globais. No entanto, o risco é algo que, da mesma forma que a globalização, é um fenômeno real e inevitável e inerente ao ser humano. Nas palavras de Antonhy Giddens: Finalmente, é impossível adotar simplesmente uma atitude negativa em relação ao risco. O risco sempre precisa ser disciplinado, mas a busca ativa do risco é um elemento essencial de uma economia dinâmica e de uma sociedade inovadora. Viver numa era global significa enfrentar a diversidade de situações de risco. Com muita freqüência podemos precisar ser ousados, e não cautelosos, e apoiar a inovação científica ou outras formas de mudança. Afinal, uma raiz do termo “risk” no original português significa ousar .54 Como já foi dito, a sociedade de risco é um fenômeno pós-moderno. A vida pósmoderna e os avanços tecnológicos ocasionam novos riscos, que atualmente podem ser gerados por qualquer pessoa no mundo. Esses riscos, considerando suas gravidades, podem gerar o fim da vida no planeta Terra (aqui podemos considerar os riscos ao meio ambiente e os de segurança mundial, gerando uma guerra nuclear). Segundo Ulrich Beck: Os riscos e perigos de hoje se diferenciam essencialmente dos da Idade Média pela globalidade de suas ameaças e por suas causas modernas. São riscos da modernização. São um produto global da maquinaria do processo industrial e são aumentadas sistematicamente com seu desenvolvimento posterior55. 52 COSTA, Renata Almeida da. A Sociedade Complexa e o Crime Organizado: A Contemporiedade e o Risco nas Organizações Criminosas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 33. 53 SÁNCHES, Jose Maria Silva. La Expansion Del Derecho Penal. 2. ed.. Madrid: Civitas, 2001. p. 15. 54 GIDDENS, 2007, op. cit., p. 44-45. 55 BECK, Ulrich. La Sociedad del riesgo: hacia uma nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998. p. 28. 29 A sociedade pós-moderna pode definir-se, todavia, como uma sociedade do medo. Com efeito, uma das características mais significativas desta era, é a sensação de insegurança, ou seja, surge uma forma, especialmente aguda, de viver em risco 56. O conceito de risco parecer significar um “inter” “est” entre a segurança e a destruição. Algo que se situa a meio dessas duas variantes, um “Estado intermediário”, em que a percepção dos riscos ameaçadores determina o pensamento e a ação. Diríamos nós, no sentido da percepção quase - apocalíptica destes novos riscos: a sua invisibilidade aliada a perdurabilidade de seus efeitos bem como essa sua dimensão hercúlea, faz-nos sentir o vazio da impotência para os travar e controlar, originando sentimentos de insegurança e medo. 57 A sociedade de risco criou uma estranha realidade, uma unidade jamais vista. As categorias agora são diluídas e se misturam, chegando ao ponto de se confundir. Autor e vítima, no que tange ao dano ambiental, são as mesmas personagens do processo 58. É o que Beck chama de “efeito boomerang” 59, onde tudo em volta, é seu agressor. Diariamente, somos confrontados com os resultados de nossas ações e, assim, co-responsáveis ou co-vítima de todo um processo de degradação ambiental e principalmente, social. Beck se referia ao “fim dos outros” da seguinte forma: até agora, todo sofrimento, toda miséria, toda violência, que os seres humanos causaram a outros resumia-se a categoria dos <<outros>> […]. Tudo isto já não existe desde Chernobyl. Chegou ao final dos outros, o final de todas nossas possibilidades de distanciamento tão sofisticados, um final que se tornou palpável com a contaminação atômica. 60 O mundo agora, além da problemática ambiental, possui outros problemas. A violência em escala mundial, o surgimento do terrorismo fundamentalista e o crime organizado internacional, são alguns exemplos. 56 SÁNCHES, op. cit., p. 20. 57 FERNANDES, Paulo, op. cit., p. 59-60. 58 Processo semelhante ocorre com o político corrupto que sofre com a violência urbana; o traficante que vê sua família por possuir um de seus membros usuário dependente de droga. 59 BECK, 1998, op. cit., p. 43. 60 Ibid., p. 11 30 2.4 O CRIME ORGANIZADO NA PÓS-MODERNIDADE A sociedade pós-moderna globalizada propiciou o aparecimento de novos riscos e sensações de insegurança, fatores este que se devem ao desenvolvimento acelerado das grandes cidades, da migração de pessoas, dos avanços tecnológicos, da ausência de fronteiras e da versatilidade do fluxo de capitais circulantes no mundo, todos como conseqüências sociais da globalização 61. A dinâmica da globalização reduziu os entraves ao movimento de pessoas, bens e transações financeiras. As barreiras comerciais e financeiras foram derrubadas. Com isso, os grupos internacionais do crime organizado puderam expandir a sua ação e organização. Nas últimas duas décadas, as organizações criminosas vêm estabelecendo, cada vez mais, suas operações de uma forma transnacional, aproveitando-se da globalização econômica e das novas tecnologias de comunicação e transporte62. O crime organizado beneficia-se da globalização da economia, do livre comércio, do desenvolvimento das telecomunicações e do sistema financeiro internacional. O crime forma uma rede paralela ao Estado, com um poderio financeiro gigante, em decorrência da facilidade de “lavagem de dinheiro” e do grande poder de influência (corrupção). Outrora, este panorama era quase que inexistente ou muito restrito a nichos de máfias espalhados pelo globo; agora, com a globalização, é uma realidade presente em todos os países do mundo. O fenômeno da globalização encontra-se presente nas práticas ilícitas. Talvez seja esta a marca mais evidente, na atualidade, do crime organizado. As redes criminosas internacionais têm grande facilidade de tirar proveito das oportunidades que a globalização oferece. Sem barreiras, os criminosos podem expandir as suas redes e aumentar a cooperação em atividades ilícitas, notadamente, no que diz respeito à “lavagem de dinheiro”. Nessa mesma linha, com a abertura de capitais, o crime organizado vai estabelecendo companhias ou negócios ditos quase-legais, facilitando diversas iniciativas criminosas, que lhe proporcionem lucro. Com a globalização, tivemos avanços revolucionários nas tecnologias de informação e de comunicação. O mundo está mais próximo, assim como o crime. 61 CALLEGARI, André Luis. Crime organizado: tipicidade - política criminal – investigação e processo: Brasil, Espanha e Colômbia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 11. 62 CASTELLS, v.3, op. cit., p. 205. 31 O antigo crime organizado internacional tinha, no controle fronteiriço, na velocidade menor no transporte e nas telecomunicações, bem como na necessidade de movimentar dinheiro em espécie, grandes impedimentos. Assim, não é possível afirmar que se tratava de crime organizado global, mas sim local. Para Manuel Castells “a prática do crime é tão antiga quanto à própria humanidade, mas o crime global, a formação de redes entre poderosas organizações criminosas e seus associados, com atividades compartilhadas em todo o planeta, constitui um novo fenômeno que afeta profundamente a economia no âmbito internacional e nacional, a política a segurança e, em última análise, as sociedades em geral”. 63 Outro efeito da globalização, notadamente, a redução dos entraves ao movimento de pessoas, tem permitido aos internacionais do crime organizado, expandir quer a diversificação, quer a penetração aos negócios. O crime não se limita mais aos negócios tradicionais e nem a espaços tradicionais. Por fim, com a globalização, as redes criminosas têm se tornando mais sofisticadas e flexíveis. Ao longo do século XX, em decorrência do comércio ilícito, as organizações criminosas passaram a ser mais vistas pelo Governo e pela própria sociedade. No entanto, o crime vinha sendo visto de forma “caseira”, sem muitas preocupações. Com o fenômeno da globalização, isso mudou. Elucidando o tema Moisés Naim relata: Apenas recentemente essa mentalidade – restrita – começou a mudar. Graças à Al Qaeda, o mundo agora sabe o que pode fazer uma rede de indivíduos altamente motivados, sem vínculos nacionais e cujos poderes emanam da globalização. O problema é que o mundo ainda pensa nessas redes principalmente em termos de terrorismo. No entanto, como as páginas seguintes comprovarão, o lucro é uma motivação tão poderosa quanto Deus. As redes de comerciantes de bens ilícitos sem pátria estão mudando o mundo tanto quanto os terroristas – provavelmente mais. Mas o mundo, obcecado pelo terror, ainda não se deu conta.64 Em contrapartida, como política de segurança, se faz necessário estabelecerem-se rapidamente políticas claramente repressivas vinculadas ao tema esse tema (crime organizado, tráfico de drogas, terrorismo etc.), o que abre um amplo debate sobre a função e atuação eficaz dos Órgãos responsáveis pela repressão ao crime, em âmbito nacional e internacional. 63 64 CASTELLS, v.3, op. cit., p. 203. NAÍM, Moisés. Ilícito: o Ataque da Pirataria, da Lavagem de Dinheiro e do Tráfico à Economia Global. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2006. p. 11. 32 Uma moeda sempre possui dois lados. No nosso caso, um lado corresponde à última década do século XX, aonde vimos o mundo mudar em uma avalanche súbita e inesperada de idéias novas e tecnologias inéditas. Da mesma forma, ocorreu com a política e com a economia. O outro lado da moeda, menos empolgante, é o crime global. Os traficantes nunca foram tão internacionais, ricos e politicamente influentes. O crime global se expandiu, a ponto de se tornar uma força política. O estudo ou análise da economia e da política não pode deixar de lado essas mudanças. As redes criminosas crescem num ambiente globalizado. Nesse contexto, escreveu André Luís Callegari: De um lado, parece claro que em matéria de criminalidade organizada é necessária a adaptação a um problema novo, real e em expansão. Sem dúvida a criminalidade se encontra imersa em um profundo processo de organização, acompanhando fenômenos como a globalização da economia ou a aparição de novas zonas sumidas na anomia, fruto da imposição do bloqueio soviético. Entretanto, não se deve esquecer que, sendo um problema real, é objeto de intensa instrumentalização. Com efeito, até o súbito reaparecimento do novo terrorismo global, o crime organizado (em especial o narcotráfico), foi apresentado como a principal ameaça coletiva, substituindo os desaparecidos medos da guerra fria65. Para Moíses Naím, o sucesso das redes criminosas baseia-se tanto na mobilidade internacional como na sua habilidade de se beneficiar das oportunidades brotadas da separação dos mercados e que desaguaram dentro das fronteiras dos estados soberanos. Para os criminosos, as fronteiras criam oportunidades de negócios e escudos convenientes; no entanto, para os funcionários do governo que os caçam, as fronteiras são freqüentemente obstáculos instransponíveis. Os privilégios da soberania nacional transformaram-se em fardos e limitações para os governos devido a essa assimetria. No confronto global entre governo e criminosos, os governos saem sistematicamente perdendo.66 Atualmente, o comércio ilícito permeia, com a mesma intensidade, sociedades ricas e pobres. Antigas modalidades de tráfico 67 são revitalizadas e toda uma linha nova de negócios está aparecendo. 65 CALLEGARI, op. cit., p. 15. 66 NAÍM, op. cit., p. 18. 67 Tome-se de exemplo a escravidão que, supostamente estava morta. No entanto, se faz presente na forma da coerção sexual e no trabalho doméstico e rural feito por imigrantes ilegais que trabalham para pagar dívidas indetermináveis que os prendem aos traficantes. 33 O mercado ilícito global destrói indústrias inteiras enquanto erguem outras, cria e destrói carreiras políticas, desestabiliza alguns governos e apóia outros. Diante deste panorama sombrio, quem sofre é a própria sociedade. Em uma ponta, temos os países onde as rotas de tráfico, as fábricas clandestinas, os recursos globais roubados não se distinguem mais da economia oficial e do governo; e em outra ponta, os países ricos consumidores. 68 O futuro que nos aguarda revela que o crime organizado terá um impacto ainda maior na promoção da democracia, nos negócios e finanças, nos movimentos migratórios, na segurança global, na guerra e na paz. Nada se compara ao negócio das drogas. O tráfico de drogas, entre as modalidades de crime organizado, é o que detém o maior número de integrantes definidos e maior divisão de funções. A natureza do comércio ilícito de drogas é global. No entanto, a atenção maior está voltada para as fontes de sempre – a demanda é Norte-Americana, enquanto Colômbia, México, Afeganistão e alguns outros países, são os ofertantes. Desde a década de 90, os Estados Unidos continuam a ser o maior país consumidor de drogas ilícitas e também árduo combatente, inclusive além de suas fronteiras, a essa criminalidade.69 Por outro lado, Colômbia e Afeganistão são os maiores produtores de cocaína e heroína, respectivamente, do globo 70. A globalização trouxe aberturas e capitais e o livre comércio no mundo inteiro. Na mesma esteira, o comércio de drogas ilícitas se expandiu. São várias as principais características da indústria do tráfico de drogas: Ela está orientada à demanda e à exportação; a indústria é totalmente internacionalizada, com uma divisão bastante rigorosa da mão-de-obra entre os diferentes locais do processo produtivo; o componente essencial de toda a indústria da droga é o sistema da lavagem de dinheiro; o cumprimento de todo o conjunto de transações é assegurado por meio de violência em um 68 No entanto, as confortáveis vidas da classe média dos países ricos estão muito mais ligadas ao tráfico – e seus efeitos globais – do que a maioria de nós pode imaginar. 69 Cf. NAÍM, op. cit., p. 78. 70 Cf. Ibid., p. 68. 34 nível extraordinário; e, a indústria da droga precisa da corrupção e da penetração em seu meio institucional para poder funcionar, em todas as etapas do sistema 71. O tráfico de drogas, guardadas as devidas proporções, mantém as mesmas estruturas de uma indústria globalizada, legalmente constituída. É oportuno lembrar que, as transformações das indústrias globais, seja qual for a natureza, não seriam possíveis sem as inovações e ferramentas da globalização 72. O tráfico de drogas, entre as modalidades de crime organizado, é a mais perigosa e devastadora, porque do tráfico de drogas, surgem diversos outros crimes e danos sociais irreparáveis. A escravidão não pertence mais ao passado. Para termos uma idéia, foram necessários 400 anos para que 12 milhões de escravos africanos fossem levados ao novo mundo e hoje, estima-se que 30 milhões de mulheres e crianças foram vítimas do tráfico, somente na Ásia, nos últimos 10 anos. O tráfico humano ainda não é o mais rentável (perde para o tráfico de drogas), mas é o que mais cresce, e de forma avassaladora. De modo geral, os escravos são oriundos de países pouco desenvolvidos. No entanto, ultimamente tem se desenvolvido uma prática na Europa, onde turistas abastadas são seqüestradas e vendidas em um mercado negro e desenvolvido. A globalização trouxe o aumento da escravidão, vez que novos mercados foram criados para os traficantes humanos. A abertura de fronteiras e a facilidade de movimentação permitiram o aumento do contrabando 73 de seres humanos, notadamente de mulheres e crianças. O tráfico humano é a forma mais sórdida de circulação do trabalho na nova economia global. 74As operações do tráfico sexual são eficientes e degradantes. A triste realidade atual é que, onde houver demanda por sexo, os traficantes expandirão seus negócios, ou seja, o mundo é o limite! 71 CASTELLS, v.3, op. cit., p. 227-231. 72 Os atravessadores de drogas não só podem usar o serviço de entrega rápida, como também podem, ao rastrear um carregamento on-line, saber se chegou ou se ficou detido, o que os avisa para uma possível interceptação, eliminando ou diminuindo a ação do governo em combater o crime. 73 Os termos contrabando humano e tráfico humano designam, em princípio, duas atividades diferentes. No contrabando humano, o imigrante paga ao contrabandista pela travessia. No caso de tráfico, o traficante decide, coage o imigrante e o vende como mão-de-obra. Mas na realidade, a distinção não é tão nítida. 74 NAÍM, op. cit., p. 88. 35 Tão nefasta como a prostituição global é a pedofilia. Um novo paraíso para o turismo sexual de menores vem surgindo. Atualmente, países da América Central têm sido identificados como possuidores de instalações hoteleiras especiais, dedicadas à prostituição infantil. Relacionada à prostituição, está pornografia infantil. A tecnologia é um dos principais fatores responsáveis pelo crescimento desse tipo de atividade. Câmeras, vídeos, mesas de edição caseiras, computação gráfica, tudo isso trouxe a indústria da pornografia infantil para dentro de casa, o que significa difícil fiscalização. A internet abriu novos canais de informação para os que procuram ter acesso a menores com intuito sexual, vez que o anonimato assegurado pelo site eletrônico ajuda a romper a barreira do medo existente da massa de pervertidos que vivem entre nós.75 Para Mario Daniel Montoya, estima-se que a cada ano mais de um milhão de crianças são forçadas a exercer a prostituição, com finalidades sexuais e dentro da pornografia infantil. Às vezes, somente pequenos grupos de criminosos de uma determinada região estão relacionados com a prostituição; na maioria dos casos, a criminalidade internacional participa do negócio76. Desta forma, o Estado, por meio de sua Polícia, perde o controle, permitindo que o crime organizado global, em suas variadas vertentes, mantenha a influência nas respectivas bases nacionais. Para Manuel Castells: Com o Estado-nação sitiado, e as sociedades e economias nacionais já inseguras de suas inter-relações com redes transnacionais de capitais e pessoas, a influência crescente do crime global pode provocar um retrocesso significativo dos direitos, valores e instituições democráticas77. 75 CASTELLS, v.3, op. cit., p. 185-186. 76 Ibid. p. 411. 77 Ibid, p. 241. 36 2.4.1 Crime Organizado. Definições O crime organizado, além de uma realidade, virou moda no Brasil e no mundo. 78 Qualquer bando ou quadrilha que tenha tido uma ação criminosa eficaz e com lucro considerado alto, a imprensa e até mesmo órgão estatais, os qualificam como crime organizado. Conceituar o crime organizado não é tarefa fácil. Diversos aspectos merecem ser levados em consideração, como aspecto econômico, institucional e dimensão de atuação. Assim, temos algumas definições retiradas da obra de Marcelo Batlouni Mendroni79: Federal Bureau of Investigation (FBI): Qualquer grupo tendo algum tipo de estrutura formalizada cujo objetivo primário é a obtenção de dinheiro através de atividades ilegais. Tais grupos mantêm suas posições através do uso da violência, corrupção, fraude ou extorsões, e geralmente têm significante impacto sobre os locais e regiões do País onde atuam. INTERPOL: qualquer grupo que tenha uma estrutura corporativa, cujo principal objetivo seja o ganho de dinheiro através de atividades ilegais, sempre subsistindo pela imposição do temor e a prática da corrupção ONU: Organização de grupos visando à prática de atividades econômicas; laços hierárquicos ou relações pessoais que permitem que certos indivíduos dirijam o grupo; o recurso da violência, à intimidação e à corrupção; e à lavagem de lucros ilícitos. UE – União Européia: Associação estruturada de mais de duas pessoas estabelecida durante um período de tempo e que atue de maneira concertada com fim de cometer delitos punidos com pena privativa de liberdade ou medida de segurança de privação de liberdade de ao menos 4 anos, consistindo estes delitos um fim em si mesmos ou um meio de obter benefícios patrimoniais e influir de maneira indevida no funcionalismo da autoridade pública. 78 Neste sentido, o crime organizado deve ser entendido como sinônimo de organização criminosa. MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado: aspectos gerais e mecanismos legais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 16-18. 79 37 Por seu turno, a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, realizada em 2000, entende como organizações criminosas um grupo estruturado, em que atuam três ou mais pessoas com o objetivo de cometer um ou mais delitos graves, com os quais possam obter – direta ou indiretamente – vantagem econômica indevida. A Convenção esclarece que o grupo não pode se reunir de forma esporádica e fortuita para o cometimento do delito e crime grave é aquele onde a pena cominada seja de privação de liberdade no máximo de quatro anos80. Assim, observa-se que existem diversas definições com pontos semelhantes, mas de conteúdo geral distintas. No entanto, em apertada síntese, o crime organizado pode ser definido como um agrupamento de pessoas baseado em forte hierarquia, com um intuito de praticar atividades ilícitas lucrativas, para tanto, se utilizando do temor, corrupção e violência onde sua área de atuação não fica restrita a uma atividade ou área geográfica. É oportuno frisar que uma organização é um grupo de pessoas (grupo social) com objetivos próprios e dissociados da vontade geral da sociedade. A organização nasce da reunião de vontades individuais voltadas para a consecução de metas pré-definidas, mediante prévia distribuição de tarefas em uma estrutura hierárquica e descritível. Diante dessa premissa, qualquer organização que tenha como escopo conduta negativa que vai de encontro ao sistema jurídico, é uma organização criminosa. Apesar do conceito de organização criminosa ainda não ter sido definido com sucesso, podemos citar suas principais características: 1) alto padrão organizativo; 2) a racionalidade do tipo de empresário da “corporação criminosa”, que oferece bens e serviços ilícitos (tais como drogas e prostituição) e vem investindo seus lucros em setores legais da economia; 3) a utilização de métodos violentos com a finalidade de ocupar posições proeminentes ou de ter o monopólio do mercado (obtenção do máximo lucro sem necessidade de realizar grandes investimentos), redução dos custos e controle da mão-de-obra; 4) valer-se da corrupção da força policial e do Poder Judiciário; 5) estabelecer relações com o poder político; 6) utilizar a intimidação e o homicídio, seja para neutralizar a aplicação da Lei, seja para obter decisões políticas favoráveis ou para atingir seus objetivos 81. Dessa forma, fica reforçado o conceito preliminar de que o crime organizado seria qualquer estrutura organizacional com fins lucrativos, decorrentes da prática de ilícitos penais, em que a consecução desses, é previamente estabelecida. 80 OLIVEIRA, Adriano. Tráfico de Drogas Crime Organizado: Peças e Mecanismos. Curitiba, Juruá, 2008. p. 34. 81 MONTOYA, Mário Daniel. Máfia e Crime Organizado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 67-68. 38 Para Renata Almeida Costa, crime organizado seria um conjunto de crimes, praticados por um grupo de indivíduos. Associados em função de suas vontades livres e conscientes, dirigidos à consecução de metas e de fins comuns, que dependem para o êxito de suas pretensões, da interação com outras organizações sociais, lícitas ou não, e mantém características próprias de hierarquia e de divisão de função para sua subsistência 82. Em outras palavras, a organização criminosa pode ser concebida como um organismo ou empresa, cujo objetivo seja a prática de crimes de qualquer natureza – ou seja, a sua natureza sempre se justifica por que - , e enquanto estiver voltada para a prática de atividades ilegais. É, portanto, empresa voltada à prática de crimes 83. Assim, é importante frisar que as mazelas e os problemas que uma organização, dita legal tem, as organizações criminosas também têm, como problemas de recursos e de recrutamento de pessoal, de disciplina e socialização. Para Mario Daniel Montoya, não é possível estabelecer de maneira completa, certa e definitiva, assim como na conduta criminosa do delinqüente isolado, quais as causas do comportamento das organizações criminosas 84. Apesar de expormos as principais linhas de aproximação conceitual e suas respectivas definições, fica evidente a carência ou déficit de uma definição precisa e clara para esse fenômeno criminal, uma vez que o crime não é homogêneo e o objeto da organização criminosa é o delito. A definição rígida pode ignorar algumas organizações criminosas em surgimento. Em um País como o Brasil, existirão diferentes organizações criminosas com distintos modus operandi conforme a deficiência estatal da região que adotem para operar85. Como foi exposto, o combate ao crime organizado é a agenda da vez. A criminalidade é uma real ameaça ao Estado Democrático de Direito. Esse poder paralelo, amparado em um forte poderio econômico, ajuda a deteriorar o Estado de Direito. Para Rodrigo Carneiro Gomes, Com o Estado enfraquecido e debilitado pelas ações do crime organizado, as necessidades da população não são providas, pois deixa de haver resposta estatal à demanda social. Todos pagam o preço da atuação do crime 82 COSTA, op. cit., p. 190. 83 MENDRONI, op. cit., p. 20. 84 Ibid., p. 68. 85 Ibid, p. 21. 39 organizado: a ineficácia e a neutralização do Estado comprometem a prestação dos serviços públicos a quem é de direito – o povo86. Assim, o que pode ser feito para vivermos em sua sociedade do risco aceitável na área social e de segurança? O direito punitivo (penal) é eficiente para responder a uma sociedade que vive o medo e o temor? Como o Estado, com uma nova feição de soberania, pode atuar e combater o risco do crime organizado? 2.5 OS REFLEXOS DA PÓS-MODERNIDADE SOBRE O DIREITO PENAL A pós-modernidade trouxe consigo uma série de modificações, que, em parte, trouxeram benefícios diretos e imediatos aos sistemas jurídicos contemporâneos, e, em parte causou o abalo ainda não plenamente solucionado de estruturas tradicionais, nos âmbitos das políticas públicas, da organização do Estado e, principalmente, na eficácia do direito como instrumento de controle social87. Dessa forma, é perceptível que, com a pós-modernidade, houve uma projeção de crise paradigmática no âmbito jurídico 88. Com uma análise superficial da sociedade de 1970 até os dias de hoje, percebe-se um crescimento abrupto das taxas de criminalidade, pobreza, diferenças sociais, guerrilhas civis, organizações criminosas, formas pela quais a sociedade reage ao processo de sua concretização perante a cultura pós-moderna em ascensão. O surgimento destes novos problemas leva a sociedade a processo, nas palavras de Boaventura de Sousa Santos, de transição paradigmática. Dessa forma, essa transição condensa os conflitos, multiplicam-se as formas de inconsistência do sistema oficial, idealizado para retratar uma sociedade moldada sob cânones e princípios liberais, burgueses, capitalistas, progressistas e cientificistas 89. 86 GOMES, Rodrigo Carneiro. O Crime Organizado na Visão da Convenção de Palermo. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 03. 87 88 BITTAR, 2009, op. cit., p. 176. Para maiores esclarecimentos sobre o conceito de paradigma e suas conseqüências para a evolução da ciência vide: KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. (Coleção Debates). 89 SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2007. p. 165. 40 O Direito necessita de novos paradigmas para responder aos anseios da sociedade. Em decorrência do fenômeno da globalização, o momento nunca foi mais propício. Os tradicionais paradigmas que serviram ao Estado de Direito do século XIX não se encaixam mais para formar a peça articulada de que necessita o Estado contemporâneo para a execução de política pública efetivas90. Em sua obra "A Estrutura das Revoluções Científicas", Thomas Kunh observa que "A emergência de novas teorias é geralmente precedida por um período de insegurança profissional pronunciada, pois exige a destruição em larga escala de paradigmas e grandes alterações nos problemas e técnicas da ciência normal. [...]. O fracasso das regras existentes é o prelúdio para uma busca de novas regras" 91 . Diante deste panorama, fica inevitável perceber que, especificamente o direito penal, merece ser revisitado, vez que novos atores, cenários, e complexos problemas surgiram na era pós-moderna. E que para que este ramo do direito não se torne ineficaz e obsoleto, mudanças de paradigmas se fazem também necessárias. Nesse sentido “a efetividade do direito penal é a sua capacidade para desempenhar a função que lhe incumbe no atual estágio de nossa cultura. [...] um direito penal que não tenha esta capacidade será não efetivo e gerará tensões sociais e conflitos que acabarão destruindo sua eficácia (vigência).92 O direito penal como ciência surgiu nos alvos tempos do iluminismo, e naquela época havia uma grande tendência a sua limitação, seja através de especificações do bem jurídico a ser tutelado ou de tipicidade penal. Em outra época (segunda metade do século XX), o direito penal passou por um aumento, em especial no direito penal secundário (sanção administrativa), objetivando uma maior intervenção do Estado na sociedade. Atualmente, o direito penal expande nos dois sentidos, tanto no direito penal clássico, como no direito penal secundário. Esse alargamento se dá em decorrência do aparecimento de novos bens jurídicos e pela criminalização de condutas até então inexistentes ou que estavam desprotegidas pelo Estado. A sociedade globalizada, dita de risco, gera mais um fenômeno novo: a produção legislativa de tipos penais, sem precedentes, em âmbito local e mundial. 90 BITTAR, op. cit. 2009, P. 181. 91 KUHN, op. cit., p. 95. 92 ZAFFARONI, Eugênio Rául; PIERANGELI, Jose Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004. p. 348. 41 Assim, a relação pronta e supostamente eficaz encontrada pelos legisladores e operadores do direito, é a resposta repressiva e aguda do aparelho estatal. No entanto, entendemos que essa reação deve ser feita com cautela. O sistema penal apresenta falhas, é verdade, mas não pode haver uma inflação legislativa e não resolver o problema. É necessário detectamos os problemas pontuais e tentar solucioná-los sem uma avalanche de leis inócuas. Nas palavras de Luciano Anderson de Souza: Desse modo, a ciência penal necessita cada vez mais estar atenta às novas realidades, munida de eficaz sistemática e metodologia que lhe resgate a credibilidade. A adoção, pelos estudiosos e aplicadores da lei penal, de concepções ultrapassadas, isto é, incapazes de prover o intérprete de elementos permissivos da real compreensão e soluções de inéditos problemas, somente agravará as conseqüências sociais danosas93. O avanço tecnológico inerente à sociedade do risco modernamente configurada evidencia a necessidade de tutelar novos bens jurídicos. Nesse diapasão, o bem jurídico individual, concreto, perde espaço, como também é colocada de lado, a responsabilidade individual. Existe a necessidade, preeminente, de tutelar os bens jurídicos supra-individuais. Se outrora, o direito penal clássico se preocupava com o individual e o liberal, agora está em voga a tutela de bens jurídicos sociais, supra-individuais difusos. Temos que concordar com o autor português Paulo Silva Fernandes, que assim escreveu: Do mesmo modo [que a sociedade] o crime se tornou global: é a multiplicação da criminalidade organizada em redes altamente densificadas, que percorrem todos os setores da sociedade. Sociedades são criadas com o intuito único de praticar crimes ou facilitar ou cobrir a sua execução. A evolução da técnica propiciou novas e perigosas formas de delinqüir. E o crime por excelência da era global é o crime econômico. É o multiplicar, em termos inéditos, tanto da criminalidade econômica como da delinqüência de colarinho branco, como ainda e por ultimo dos crimes of the powerful, em largas escala de circuitos criminosos que englobam a circulação de grandes capitais e a movimentação de inúmeras pessoas e organizações, freqüentemente à escala internacional ou global, em prol do fim comum, a obtenção de lucros fabulosos provenientes da prática criminosa, tudo isto a colocar novos e difíceis problemas ao direito penal de cunho clássico94. 93 SOUZA, Luciano Anderson de. A Expansão do Direito Penal e Globalização. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 155. 94 SOUZA, Luciano, op. cit., p. 36-37. 42 Por seu turno, Silva Sanchez, ao analisar o direito penal e sua expansão, entende que esta ciência perpassa por três velocidades, a saber: uma primeira velocidade, representada pelo direito penal da “prisão”, em que haja rígido respeito aos princípios político-criminais clássicos, às regras de imputação e os princípios processuais; uma segunda velocidade, para os casos em que, por não tratar-se de prisão e sim de penas de privação de direitos e penas pecuniárias, poderia haver uma flexibilização dos princípios básicos de política criminal, de acordo com a intensidade da sanção; e uma terceira velocidade, onde o direito penal da “prisão” concorra uma ampla relativização de garantias político-criminais, regras de imputação e critérios processuais. 95 Assim, diante de um cenário de criminalidade organizada, crimes econômicos profissionais e do próprio terrorismo, para onde avançar o direito penal? É o caso de refletirmos sobre o problema com capacidade crítica frente à realidade vivenciada. Diante deste panorama, com o aumento de criminalidade de todas as formas, a sociedade espera algo do direito penal. Nesse aspecto, somos do entendimento que o direito penal deve ser compreendido como algo mais amplo, ou seja, aqui deve ser incluído o direito processual penal, e até mesmo a política criminal. O direito penal sozinho não é antídoto para problemas sociais nem para a deformação de valores e de toda uma elite que se criou em uma “cultura de ilicitudes”, falta de ética, e ao desrespeito total à autoridade. Para conter a “cultura de ilicitude” se faz necessária uma reengenharia de instituições especializadas que combatem o crime, como o Poder Judiciário, a Receita Federal, as Polícias e o próprio Ministério Público. Em outras palavras, uma nova política criminal em tempos de globalização. 95 SÁNCHES, op. cit., p. 183. 43 3 INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E PRINCÍPIOS JURÍDICOS No capítulo anterior, foi feita a análise contextualizada de forma a refletir sobre os problemas pelos quais a sociedade atravessa para avaliação de uma nova postura do Estado e de seus Órgãos, em especial o Ministério Público, frente aos novos desafios impostos pela globalização. O que procuraremos demonstrar nesse capítulo é a importância da interpretação constitucional e dos princípios para um melhor entendimento do principio do promotor natural que, conforme foi dito, enceta mudanças de postura e de paradigmas do Ministério Público brasileiro, nesse novo contexto mundial. Toda interpretação deve atender a compreensão ampla do mundo. Por meio da interpretação, pode se realizar a sociedade, a justiça e especialmente, a vida, dentro de uma perspectiva humana e para o ser humano, buscando uma interação mais plena e verdadeiramente democrática.96 Nesse contexto, a interpretação que qualquer norma, seja ela regra ou princípio, perpassa pela realização de justiça. Em relação às normas atinentes ao Ministério Público não poderia ser diferente, por conseguinte, a interpretação e a análise dos princípios ganham relevância ímpar para esse estudo. 3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Todo problema exposto ao Sistema Judicial passa por um discurso, ou seja, é permeado de diálogo (conflito de idéias, o dubium)97. Nesse processo, são produzidas interpretações, que são resultantes de reflexões e análises dos mais variados objetos e problemas que, em última análise, reclamam uma solução, conhecida como decisão. Dessa forma, o sistema jurídico, por meio de seus intérpretes, em especial, seu intérprete nato, o 96 MOTTA, Moacyr Parra. Interpretação Constitucional sob Princípios. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 181. 97 FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Direito, retórica, e comunicação: subsídios para uma pragmática do discurso jurídico. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 74. 44 magistrado, diante da necessidade de solucionar conflitos, deve interpretar o direito e aplicálo mediante criteriosa seleção de possibilidades. 98 Assim, o Poder Legislativo fornece o arcabouço de enunciados e Leis que, somente a partir do caso em concreto, da subsunção, passam do estado de inércia e ganham dinamismo quando interpretados e aplicados pelo Poder Judiciário. Toda discussão tem como foco a linguagem nas proposições jurídicas, vez que todo enunciado só existe com a linguagem, assim as palavras ditas pelo legislador podem ser mutações quando analisadas pelo intérprete (juiz). Nesse contexto, o importante não é a confecção da Lei e sim o momento de sua aplicação e interpretação. Daí, podermos afirmar que decisão jurídica é o que o juiz interpreta.99 Diante dessas premissas, cabe distinguir a aplicação do direito, a hermenêutica 100 e a interpretação. A aplicação do direito consiste no enquadramento de um caso concreto na norma jurídica adequada. Submete-se a lei a uma relação de vida real; procura-se se aponta o dispositivo adaptável a um fato determinado. Em outras palavras, é a subsunção do fato à regra jurídica. A adaptação de um preceito ao caso concreto pressupõe: a) a Crítica, a fim de apurar a autenticidade e, em seguida, a constitucionalidade da lei, regulamento ou ato jurídico; b) a Interpretação, a fim de descobrir o sentido e o alcance do texto; c) o suprimento das lacunas, como auxílio da analogia e dos princípios gerais do direito; d) o exame das questões possíveis sobre ab-rogação, ou simples derrogação de preceitos, assim como acerca da autoridade das disposições expressas, relativamente ao espaço e tempo.101 Nesse contexto, podemos afirmar que interpretação e aplicação não se realizam autonomamente. É um equivoco conceber a interpretação como mera operação de subsunção. O intérprete extrai o sentido do texto a partir e em virtude de um determinado caso em concreto. A interpretação do direito consiste em “concretar” a lei em cada caso, ou seja, na 98 GÓES, Gisele Santos Fernandes. Princípio da Proporcionalidade no Processo Civil: o poder de criatividade do juiz e o acesso à justiça. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 01. 99 GRAU, Eros. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 4. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. P. 65. 100 A ciência que estuda a interpretação é a hermenêutica: este domínio teórico e especulativo tem por objeto sistematizar critérios, métodos, regras, princípios científicos que possibilitem a descoberta do conteúdo, sentido, alcance e significado da interpretação. 101 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 16. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 07. 45 sua aplicação. Dessa forma existe uma igualdade entre interpretação e aplicação, não são momentos distintos, porém uma só operação. A interpretação e aplicação fazem parte de um processo unitário, superpondo-se. No tocante à interpretação constitucional, a “concretização” e a “compreensão” só são possíveis em face de um problema concreto. Logo, “não há interpretação da Constituição independente de problemas concretos”. (interpretação = aplicação). Como forma de esclarecimento, nos relata Daniella Dias: A interpretação é o desvelamento do sentido da norma e do conteúdo, viabilizando e elucidação de sentidos, conteúdos axiológicos que necessitam, para sua efetividade, de concretização de realidade. A interpretação é atividade que viabiliza a concretização da norma, transpondo o fosso existente entre o abstrato (texto jurídico) e o concreto (fato social). Neste sentido, a função interpretativa só ganha relevância e sentido se realizada em razão da necessidade de análise de um caso concreto das questões que necessitam de soluções jurídicas, de forma a se realizarem a justiça e a consagração dos direitos humanos.102 Assim, quando não tivermos uma discussão visando à solução de um conflito (dubium), estamos diante de um discurso jurídico. Caso contrário estaremos diante de um discurso do direito, aquele realizado pelo intérprete autêntico. A interpretação do direito tem caráter constitutivo – e não meramente declaratório – e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de enunciados normativos e de fatos concretos do cotidiano, de normas jurídicas a serem analisadas para a solução do problema, mediante a definição de uma norma de decisão. O intérprete insere a norma na vida. Daí concluirmos que, nenhuma interpretação ocorre no vazio. Muito pelo contrário, a interpretação é uma atividade contextualizada, que leva em consideração as condições sociais e históricas determinadas, produtoras de usos lingüísticos dos quais deve partir qualquer atribuição de significado, em todos os domínios da hermenêutica jurídica. 103 Em outras palavras compreender e interpretar significam mais que a análise do texto normatizado. É preciso situar os fatos em concreto, no tempo e no espaço; estar atento às condições da época; saber as influências recebidas e as que exerceu. 104 102 DIAS, Daniella S. Desenvolvimento Urbano. Curitiba: Juruá, 2002. p. 75-76. 103 Cf. COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. 3. ed.. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 42. 104 MOTTA, op. cit.,p. 169. 46 3.2 INTERPRETAÇÃO E HERMENÊUTICA É sem dúvida, envolver-se em campo de extremas dificuldades a tentativa de interpretar um texto jurídico 105. Interpretar a lei é descobrir o significado, o conteúdo e o alcance dos símbolos lingüísticos, escritos em seus artigos, parágrafos, incisos e alíneas. A interpretação é A interpretação é antes de qualquer coisa uma atividade criadora. Em toda interpretação existe, portanto, uma criação de direito. Trata-se de um processo no qual entra a volição humana, em que o intérprete procura determinar o conteúdo exato nas palavras, em imputar um significado à norma. Nesse sentido, a interpretação é uma escolha entre múltiplas opções, fazendo-se sempre necessária, por mais bem formulado que seja o texto legal. A atividade interpretativa busca, sobretudo, reconstruir o conteúdo normativo, explicitando a norma em concreto em face de determinado caso.106 Mas qual a etimologia do termo “interpretar”? Antônio Houaiss, em seu dicionário da Língua Portuguesa107, descreve o termo “interpretar”, etimologicamente oriundo do latim de interpretor, aris, atus, sum, Ari, ou seja, “explicar, traduzir, compreender, avaliar, decidir”. Assim, interpretar é explicar, compreender, avaliar e, primordialmente, decidir. São essas tarefas de que se ocupa o intérprete nato – o juiz. Por seu turno, hermenêutica – do grego hermeneutiké, scilicet téchne, a arte de interpretar – deriva de Hermes, deus grego, filho de Zeus e da ninfa Maia, quem, dentre suas diversas atribuições, cabia servir de arauto dos olímpicos, intermediários entre homens e deuses, intérprete da vontade divina. 105 Normas não são o texto nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu trabalho. O importante é que não existe correspondência entre norma e dispositivo, no sentido de que sempre que houver um dispositivo haverá uma norma, ou sempre que houver uma norma deverá haver um dispositivo que lhe sirva de suporte. 106 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 103. 107 INTERPRETAR. In: HOUASSIS, Antônio. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 1636. 47 A hermenêutica pode ser conceituada como uma teoria geral da ciência do espírito que engloba o estudo da atividade humana de interpretar, estando a interpretação jurídica dentro da hermenêutica geral. 108 Por fim, podemos afirmar que o hermeneuta oferece enunciado e subsídios que servirão à interpretação. O intérprete os torna como dados prévios, e deles se utilizará segundo sua arte interpretativa. 3.2.1 A Missão de Interpretar Interpretar é explicar, esclarecer; dar o significado de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair, de frase, sentença ou norma, tudo o que na mesma se contém 109. A lei encontra-se em seu estado bruto, atendendo a proposições jurídicas potencialmente aplicáveis, mas cabe ao intérprete transformá-la em estado definitivo. Eis a interpretação. Assim, todo e qualquer texto, por mais singelo que pareça, necessita de interpretação. Interpretar é nas palavras de Karl Larenz é uma atividade de mediação, pela qual o intérprete traz à compreensão o sentido de um texto que se torna problemático. 110 Para Carlos Maximiliano interpretar uma expressão de Direito não é simplesmente tornar claro o respectivo dizer, abstratamente falando, é, sobretudo revelar o sentido apropriado para a vida real, e conducente a uma decisão reta111. Diante dessas premissas, resta claro que a interpretação é necessária, onde aquele velho brocado latino interpretatio cessat in claris era ingenuamente utilizado, além de conduzir a um círculo vicioso, pressupõe a existência de leis cuja redação, se bem cuidada, impediria dúvidas, obscuridades ou contradições, tornando dispensável o labor interpretativo. 108 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais: Uma contribuição ao Estudo das Restrições aos Direitos Fundamentais na Perspectiva da Teoria dos Princípios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 24. 109 MAXIMILIANO, op. cit., p. 07. 110 LARENZ, Carl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Caloute Gulbekian, 1997, p. 339. 111 MAXIMILINO, op. cit. p. 08. 48 Por outro lado, urge assinalar que qualquer interpretação possui um caráter lingüístico destacável, quando exige que seus interlocutores falem a mesma linguagem, como condição de possibilidade de sua mútua compreensão, afinal, quem fala uma linguagem que mais ninguém fala, em realidade não fala. 112 Toda norma jurídica é objeto de interpretação, seja lei escrita (seu campo mais freqüente), seja a decisão judicial, seja o direito consuetudinário, seja o tratado internacional. Assim, a norma costumeira, a jurisprudência, os princípios gerais do direito podem, e devem ser interpretados, para se esclarecer o seu real significado e alcance. A interpretação legal é responsável pela criação da norma e de sua evolução. Toda lei enseja interpretação, e o processo hermenêutico tem, sem dúvida, relevância superior ao próprio processo de elaboração legislativa, uma vez que será por meio da interpretação da lei que esta será aplicada e inserida em um contexto fático e específico, sendo adequada a toda uma realidade histórica e os valores dela decorrentes. Como já foi dito alhures, os textos legais são meras representações gráficas de ordens e de condutas de uma determinada sociedade, aptas a regularem relações intersubjetivas. A lei e o direito dependem de sua interpretação se realizar. Sem interpretação, direito (enquanto norma jurídica) não há; só texto. A necessidade de interpretar a lei é a busca do conhecimento que esta contém. O intérprete tem como missão estabelecer uma conexão entre o passado e o futuro, entre o hipotético e o real, no sentido de que o trabalho é buscar nos textos já existentes os preceitos que prevalecerão no exame de casos regidos, em concreto, por eles. Toda interpretação deve ao atender o bem comum, ou seja, às projeções da lei sobre a vida das pessoas, dos grupos e da própria sociedade visando o justo. Antes de tudo, a interpretação é prudência e coerência. Não há interpretação certa ou errada, mas sim coerente ou não. Nessa linha, o sistema constitucional brasileiro, elencou objetivos constitucionais que traduzem os propósitos da República Federativa do Brasil. Está localizado no art. 3.º da Constituição, ao dispor que “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I- construir uma sociedade livre, justa e solidária. Assim, justa é a sociedade na qual se presencia a justiça substancial mediante a 112 GADAMER apud COELHO, op. cit, p. 40. 49 adoção de políticas públicas por parte do estado direcionadas à diminuição das desigualdades. 113 Dessa forma, a Constituição e as Leis devem atender certas necessidades e devem ser interpretadas no sentido que melhor atenda a finalidade para a qual foi criada e à falta de uma melhor orientação, devem ser avaliadas visando os fins maiores do Estado, entre eles, o da justiça. 3.2.2 Interpretação Constitucional A interpretação constitucional busca compreender, investigar e revelar o conteúdo, o significado e o alcance das normas que integram a Constituição. É uma atividade de mediação que torna possível concretizar, realizar e aplicar as normas constitucionais. Nas palavras de J. J. Gomes Canotilho: Interpretar uma norma constitucional consiste em atribuir um significado a um ou a vários símbolos lingüísticos escritos na constituição com o fim de se obter uma decisão de problemas práticos normativo-constitucionalmente fundada. Sugerem-se aqui três dimensões importantes da interpretação da constituição: (1) interpretar a constituição significa procurar o direito contido nas normas constitucionais; (2) investigar o direito contido na lei constitucional implica uma actividade – actividade complexa – que se traduz fundamentalmente na «adscrição» de um significado a um enunciado ou disposição linguística (“texto da norma”); (3) o produto do acto de interpretar é o significado atribuído. 114 Em síntese, a interpretação constitucional consiste num processo intelectivo por meio do qual enunciados lingüísticos que compõem a constituição transformam-se em normas (princípios e regras constitucionais), isto é, adquirem conteúdo normativo. O intérprete, ao realizar a sua função, deve sempre iniciá-la pelos princípios constitucionais, é dizer, deve-se partir do princípio maior que rege a matéria em questão, voltando-se em seguida para o mais genérico, depois o mais específico, até encontrar-se a 113 Ronald Dworkin na obra A Virtude Soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 09, afirma que “nenhum governo é legitimo a menos que demonstre igual consideração pelo destino de todos os cidadãos sobre os quais afirme seus domínios e aos quais reivindique fidelidade e que a consideração igualitária é a virtude soberana da comunidade política, sem ela o governo não passa de tirania”. 114 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria e Prática. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1997. p. 1184-1185. 50 regra concreta que vai orientar a espécie. A respeito da importância dos princípios constitucionais na atividade interpretadora, escreve Luís Roberto Barroso: Ao intérprete constitucional caberá visualizá-los em cada caso e seguir-lhes as prescrições. A generalidade, abstratação e capacidade de expansão dos princípios permite ao intérprete, muitas vezes, superar o legalismo estrito e buscar no próprio sistema a solução mais justa, superadora do summum jus, summa injuria. Mas são esses mesmos princípios que funcionam como limites interpretativos máximos, neutralizando o subjetivismo voluntarista dos sentimentos pessoais e das conveniências políticas, reduzindo a discricionariedade do aplicador da norma e impondo-lhe o dever de motivar seu convencimento. 115 Paulo Bonavides assinala que a moderna interpretação da Constituição deriva de um estado de inconformismo de alguns juristas com o positivismo lógico-formal que tanto prosperou na época do Estado liberal. 116 Com efeito, continua o autor, até a Constituição de Weimar, vivia-se o período de ouro das constituições normativas, do formalismo jurídico, típico do Estado liberal. "Por aonde veio a resultar um Direito Constitucional fechado, sólido, estável, mais jurídico do que político, mais técnico do que ideológico, mais científico do que filosófico. Um Direito Constitucional compacto, sistemático, lógico, que não conhecia crises nem se expunha à tensões e às graves tormentas provocadas pelo debate ideológico da idade contemporânea." Com o aparecimento do Estado Social, quando as constituições assumem a forma de autênticos pactos reguladores de sociedades heterogêneas e pluralistas, arvoradas por grupos e classes com interesses antagônicos e contraditórios, surge uma nova interpretação constitucional, que "já não se volve para a vontade do legislador ou da lei, senão que se entrega à vontade do intérprete ou do juiz, num Estado que deixa assim de ser o Estado de Direito clássico para se converter em Estado de justiça, único onde é fácil a união do jurídico com o social...”. Completa o autor. Os modernos métodos de interpretação constitucional caracterizam-se, pois, pelo abandono do formalismo clássico e pela construção de uma hermenêutica da Constituição, voltada para a garantia e proteção de direitos humanos. A prática da interpretação constitucional se difere da interpretação tradicional que se utilizava com bases privatísticas.117 Vale dizer, existe diferença entre hermenêutica e interpretação especificamente constitucional. 115 BARROSO, op. cit. p. 150. 116 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 424. 51 A Constituição, assim como o sistema de normas interno ao ordenamento jurídico, é um sistema de regras e princípios. E essa natureza diferenciada de princípios e regras que leva a entender uma interpretação constitucional diferenciada, diante da hermenêutica tradicional118. Nessa linha, Inocêncio Mártires Coelho entende que a Constituição possui uma peculiar estrutura normativo-material, especificamente em sua parte dogmática, onde se enquadram os direitos fundamentais. E, é esse aspecto que permite diferenciar a interpretação constitucional da interpretação tradicional. Para o autor paraense, o exegeta deve escolher uma perspectiva metodologicamente adequada ao objeto do seu trabalho hermenêutico, isto é, deve haver estreita ligação entre método e objeto. 119 A interpretação constitucional, além de exigir conhecimento técnico elevado, exige sensibilidade jurídica, política e social, do hermeneuta ou aplicador do direito, se quiser penetrar no verdadeiro sentido das disposições constitucionais e nos seus reflexos no ordenamento jurídico global. 120 Para Gisele Góes, “a interpretação deve culminar sempre na ratificação dos caminhos políticos esposados pelo texto maior, para se estar diante de um sistema constitucional não só eficaz, como também dotado de legitimidade”. 121 Assim, diante da importância da atividade interpretativa, mormente, a interpretação constitucional para a consecução das metas escolhidas pela sociedade brasileira, que estão inseridas na Constituição Federal de 1988, ganha relevância a atividade interpretativa no que tange à aplicabilidade dos princípios constitucionais referentes ao Ministério Público. 117 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 5. Ed. São Paulo: RCS Editora, 2007. p. 68. 118 Ibid, p. 71. 119 Ibid., p. 61. 120 BARACHO apud MOTTA, op. cit., p. 170. 121 GÓES, op. cit., p. 13. 52 3.3 PRINCÍPIOS JURÍDICOS O constitucionalismo moderno vem tendo como característica marcante um movimento de positivação dos princípios gerais do direito, sendo marco inicial desta nova fase o advento do Estado social de direito.122Essa movimentação migratória dos princípios jurídicos para as constituições, quer por princípios já reconhecidos pela legislação infraconstitucional, quer pela incorporação de princípios oriundos do direito internacional, acabam sendo marca preponderante das constituições atuais, incluindo aí, a Constituição Brasileira. A constitucionalização dos princípios jurídicos veio no mesmo momento em se faziam ferrenha defesa doutrinária da força normativa e vinculativa dos princípios, idéia oposta ao positivismo que até então, dominava o cenário jurídico. A utilização dos princípios jurídicos apenas como fonte normativa subsidiária não tinha mais espaço na teoria constitucional contemporânea. Esse novo constitucionalismo, por seu turno, caracteriza-se pela prevalência da Constituição. O dogma da submissão à lei é substituído pela máxima sujeição à Constituição, que a esta altura, seria um sistema normativo aberto constituído por regras e princípios voltados à consecução da justiça efetiva. Luis Roberto Barroso, com sua clareza peculiar, arremata: A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios, sua incorporação, explícita ou implícita, pelos textos constitucionais e reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre direito e ética.123 Diante dessas premissas, torna-se inevitável o conhecimento, nem que seja superficial, da estrutura e do conceito de princípios jurídicos. 122 Os marcos iniciais do Estado Social de Direito, conforme largamente difundido por historiadores e cientistas políticos, são as constituições mexicanas de 1917 e a alemã de 1919 (Constituição de Weimar). 123 BARROSO, op. cit., p. 349-350. 53 A busca pelo conceito de princípio não é tarefa das mais fáceis em decorrência de seu aspecto polissêmico. Sérgio Sérvulo da Cunha enumera onze acepções para o termo princípio, no entanto, conclui: Em todas essas acepções do termo “princípio” ressalta um aspecto seminal e organizativo. O que permite dizer: o termo “princípio” designa uma entidade presente em qualquer objeto que se possa intencionar (na realidade considerada como um todo, nas coisas consideradas em si mesmas, na natureza, na sociedade, no entendimento, no fazer e no agir), que faz parte desse objeto como seu início, fundamento, idéia ou forma. 124 3.3.1 A Normatividade dos Princípios Diante de tudo o que já foi exposto, podemos afirmar que o sistema jurídico do Estado de direito democrático é um sistema normativo de regras e princípios 125, uma vez que as normas do sistema tanto podem revelar-se sob a forma de princípios como sob a forma de regras. Outrora, a metodologia tradicional distinguia a normas dos princípios, no entanto o novo constitucionalismo admite que tanto as regras e os princípios, são normas. A distinção entre regras e princípios passou a ser uma distinção entre normas. Eis a normatividade dos princípios. A normatividade dos princípios, também chamada de positivação dos princípios, é de vital importância. A inserção de princípios em nível constitucional resulta na formação de uma escala hierarquizada, onde a interpretação das regras existentes numa Constituição é basilada pelos princípios126. Assim, princípio é toda norma jurídica considerada como determinante de outra norma ou outras que lhe são subordinadas, que a pressupõe, desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito maior em direção ao preceito menor. 127 Nessa linha de sistema 124 CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Princípios Constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 10. 125 CANOTILHO, op. cit., p. 1143. 126 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 78. 127 Nesse sentido observa Celso Antônio Bandeira de Melo: “3. Princípio – já averbamos alhures – é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia 54 jurídico como ordem global, e de subsistemas, como ordens parciais, podemos dizer os princípios, como normas que são, desempenham a função de dar fundamento material e formal aos subprincípios e demais regras integrantes da sistemática normativa. 128 O estudo dos princípios requer uma análise mais detalhada, agora nos quadros do direito constitucional. Desta forma, os princípios constitucionais expressam valores essência da Constituição, trazem nítida a necessidade de equilíbrio e harmonia social. São, portanto, o fundamento das regras, fornecendo a estas a densidade normativa necessária quando utilizadas. Em outras palavras, são seus sustentáculos. 129 A principal abordagem é feita em relação à tipologia ou classificação dos princípios constitucionais. Na doutrina, entendemos a classificação de Canotilho, a mais clara e condensada, que utiliza com referência a Constituição de Portugal. Segundo o autor, os princípios constitucionais podem ter a natureza de “princípios jurídicos fundamentais”- são aqueles historicamente objetivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional; os “princípios políticos constitucionalmente conformadores” – são princípios constitucionais que explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte; os “princípios constitucionais impositivos”- são todos os princípios que impõem aos órgãos do Estado, sobretudo ao legislador, a realização de fins e a execução de tarefas. Traçam, sobretudo ao legislador, linhas de sua atividade política e legislativa; e os “princípios garantia”- tem como finalidade precípua instituir direta e imediatamente um garantia aos cidadãos. 130 Ultrapassada a análise de conceitos e definições, oportuno adentrarmos no estudo do comparativo entre regras e princípios, vez que já foi dito alhures que ambos são espécies sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra” (MELO apud, GRAU, op. cit. p. 78-79). 128 ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceitos de Princípios Constitucionais. 2. ed. São Paulo: Ed. Revistas dos Tribunais, 2002. p. 77-78. 129 DIAS, Daniella S, op. cit., p. 86. 130 CANOTILHO, op. cit., p. 1148 55 normativas, no entanto com diferenças importantíssimas para o entendimento da nova interpretação constitucional e, por conseguinte do entendimento do sistema jurídico atual. 3.3.2 A distinção estrutural entre regras e princípios jurídicos A distinção das normas em regra e princípios jurídicos pode ser considerada com um dos argumentos básicos da teoria dos direitos fundamentais. A consolidação da normatividade dos princípios jurídicos é o fim da teoria formal-positiva e o início da teoria material da Constituição e dos princípios constitucionais, voltados aos direitos fundamentais e aos direitos humanos. A primeira acentuação distintiva entre regras e princípios estaria em sua abstração. As regras trazem a descrição de estados-de-coisa formados por um fato ou certo número deles, enquanto nos princípios há um referência direta a valores. Desta forma, as regras se fundamentam nos princípios, os quais sozinhos não tinham como fundamentar nenhuma ação, dependendo para isso de uma regra concretizadora. Princípios, assim, têm um grau incomparavelmente mais alto de generalidade e abstração do que a mais geral e abstrata das regras.131 Mais tarde, Ronald Dworkin estabeleceu mais dois critérios, baseados em duas idéias: a primeira, a do tudo ou nada, e a segunda, a do peso ou da importância132. Para o norte-americano as regras são aplicáveis à maneira tudo ou nada, onde dado os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão. 133 131 GUERRA FILHO, op. cit., p. 95-96. 132 Para Dworkin, 2005, op. cit. p. 42, os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão de peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a política de proteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade de contrato), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais importante que outra freqüentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa dimensão é uma parte integrante do conceito de princípio, de modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é. As regras não têm essa dimensão. 133 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: M. Fontes, 2002. p. 39. 56 Por outro lado, Humberto Ávila conceitua regras e princípios da seguinte maneira: As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhe são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos. Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de completariedade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção. 134 Nesse aspecto, pode-se concluir que regras são normas que ordenam algo definitivamente, são mandamentos definitivos. Regras são, por isso, normas que sempre somente podem ser cumpridas ou não-cumpridas. Por outro lado, princípios são “mandamentos de otimização”, na expressão de Alexy135, que se cumpre na medida da possibilidade, fáticas e jurídicas, que se oferecem concretamente. A normatividade dos princípios ou sua positivação e suas diferentes funções na ordem jurídica traz à baila indagações e dúvidas no tocante à idéia de conflito entre eles. Em suma, o conflito de regras resulta em uma antinomia, que deve ser resolvido pela perda de validade de uma das regras em conflito, afasta-se a incorreta e aplica a regra mais adequada ao caso em concreto. Antinomia jurídica própria é a situação que impõe a extirpação, do sistema, uma das regras. 136 Complementa Ronald Dworkin: Se duas regras entram em conflito, uma delas não pode ser válida. A decisão de saber qual delas é válida e qual deve ser abandonada ou reformulada, deve ser tomada recorrendo-se a considerações a considerações que estão além das próprias regras. Um sistema jurídico pode regular esses conflitos através de outras regras, que dão precedência à regra promulgada pela autoridade de grau superior, à regra promulgada mais recente, à regra mais específica ou coisa desse gênero. Um sistema jurídico também pode preferir a regra que é sustentada pelos princípios mais importantes (nosso sistema [norte-americano] utiliza essas duas técnicas). 137 134 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 78-79. 135 ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2007. p. 132. 136 GRAU, 1998, op. cit., p. 97. 137 Ibid, p. 43. 57 A colisão entre princípios resulta apenas em que se privilegie o acatamento de um, sem que isso implique o despeito total do outro. Há incompatibilidade, mas não exclusão. Daí Eros Roberto Grau afirmar que esse tipo de conflito não resulta em antinomia 138. O mesmo autor sugere solução para o conflito de princípios: Isso significa que, em cada caso, armam-se diversos jogos de princípios, de sorte que diversas soluções e decisões, em diversos casos, podem ser alcançadas, umas privilegiando a decisividade de certo princípio, outras a recusando. Cada conjunção ou jogo de princípios será informada por determinações da mais variada ordem: é necessário insistir, neste ponto, em que o fenômeno jurídico não é uma questão política e, de outra parte, a aplicação do direito é uma prudência e não uma ciência.139 Os princípios, na medida em que não disciplinam nenhuma situação jurídica específica, considerados de forma abstrata como se apresentam no texto constitucional, não entram em choque diretamente, são compatíveis uns com os outros. No entanto, se em determinado caso em concreto surgir uma colisão de princípios, a decisão a ser tomada é de a privilegiar determinado princípio, em detrimento de outro, com a manutenção da validade de todos, embora diminuídos, circunstancial e pontualmente, em sua eficácia. 140 É importante também frisar que, a colisão de princípios se resolve pela ponderação de valores em que o operador jurídico realizará análise dos valores constitucionais em jogo e qual deles, diante do caso em concreto, se faz mais importante.141 Por derradeiro, já sabemos que as regras são desdobramentos normativos dos princípios, assim, é fácil concluir que não pode haver antinomias ou conflitos entre regras e princípios. No entanto se, se tratar de um caso difícil, a solução é comparar os dois princípios que dão sustentação às regras, sem se fazer verificação de pesagem entre a regra e o princípio, em tese, conflitantes.142 Diante do que foi dito, verificaremos neste estudo, os princípios constitucionais atinentes ao Ministério Público em especial, ao princípio do promotor natural, com o intuito 138 GRAU, op. cit., p. 98. 139 Ibid, p. 99. 140 GUERRA FILHO, op. cit., p. 67. 141 DIAS, op. cit., p. 104. 142 Willis Santiago Guerra Filho, op. cit., p. 52, assim escreveu: “Já na hipótese de choque entre regra e princípio, é curial que esse deva prevalecer, embora aí, na verdade, ele prevalece, em determinada situação concreta, sobre o princípio em que a regra se baseia.” 58 de se fazer uma análise referente à sua utilização no panorama jurídico brasileiro, com a finalidade de avaliar uma melhor adequação do mesmo em uma era pós-moderna e de organizações criminosas em expansão. 59 4 MINISTÉRIO PÚBLICO: ELEMENTOS ESSENCIAIS Discutir o Ministério Público e o seu papel no sistema constitucional implica, necessariamente, fazer uma incursão na sua história e nos objetivos que, há não muito tempo, lhe foram traçados e que configuraram seu presente e condicionaram seu futuro. Assim, quando se analisa e procura abordar, atualmente, as funções, a legitimidade social e institucional e os limites da intervenção processual que cabem em cada sistema de justiça ao Ministério Público, discute-se no fundo, em primeiro plano, a razão de ser – a natureza – desta instituição no seio das instituições a quem o Estado incumbe de realizar a justiça e o direito.143 Após a Constituição de 1988, o Ministério Público passou a ter perfil constitucional peculiar, na condição de defensor do regime democrático e dos interesses indisponíveis da sociedade (art. 127 da CF-88). Assim, o Ministério Público buscar a justiça social, fundado nos princípios fundamentais da República (art. 1.º, I e II da CF-88), tais como a cidadania e a dignidade da pessoa humana e tendo como destinação final a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3.º, I da CF-88), objetivo maior da nação brasileira. É nesse contexto que se insere o presente capítulo, buscando analisar, pelo prisma constitucional, o papel do Ministério Público e sua destinação originária, para avaliar se este importante Órgão, essencial a função jurisdicional do Estado, vem acompanhando as mudanças que o mundo pós-moderno vem passando. 4.1 A ORIGEM DO MINISTÉRIO PÚBLICO O Ministério Público possui origem controvertida, no entanto, para uma melhor compreensão da Instituição do Ministério Público, é necessário, levar em conta razões históricas que permearam seu nascimento e seu desenvolvimento até os dias de hoje. Nesse sentido, a evolução do Ministério Público está ligada diretamente à evolução do Estado moderno, notadamente, ao aparato relacionado à prestação da justiça. 143 CLUNY, Antônio Francisco de Araújo Lima. O Ministério Público na Hora da Globalização: O Presente e o Futuro. Justitia, São Paulo, v. 64, n. 197, jul∕dez., p. 409, 2007. 60 Sobre a origem do Ministério Público, o estudo encontrado na doutrina serve apenas para rememorar seu curso histórico. A doutrina especializada tende a rejeitar essas origens, vez que nenhuma delas apresenta uma Instituição que reúna, ao mesmo tempo, todas as atribuições que o Ministério Público moderno possui. Roberto Lyra, em sua obra conclui que os gregos e romanos não conheceram, propriamente, a Instituição do Ministério Público. 144 Apesar disso, a pré-história do Ministério Público não deixa de ser importante. Berto Valois descreveu os deveres do Ministério Público, no Egito, há 4.000 anos: I) é a língua e os olhos do rei do país; II) castiga os rebeldes, reprime os violentos, protege os cidadãos pacíficos; III) acolhe os pedidos do homem justo e verdadeiro, perseguindo o malvado e mentiroso; IV) é marido da viúva e o pai do órfão; V) faz ouvir as palavras da acusação, indicando as disposições legais aplicáveis em cada caso; VI) toma parte nas instruções que descobrem a verdade.145 Assim, é certo afirmar que, na antiguidade, algumas funções exercidas pelo Ministério Público atual, eram bem visíveis. No entanto, tratavam-se de funções atribuídas às pessoas que não representavam um órgão, nem gozavam de prerrogativas semelhantes ao do Ministério Público de hoje. A origem próxima do Ministério Público contemporâneo está ligada à organização do Estado, em especial à administração da justiça. Para tanto, o Ministério Público precisava de um terreno fértil e da existência de princípios básicos inerentes a um Estado moderno, que podemos enumerar: a) a superação da vingança privada; b) a entrega da ação penal a um órgão público tendente à imparcialidade; c) a distinção entre acusador e Juiz; d) a tutela de interesses da coletividade e não somente os do fisco e os do soberano; e, e) a execução rápida e certeza da sentença dos juízes. Desta forma, a origem próxima do Ministério Público é atribuída à França, nação que foi o berço do Estado moderno. Na França houve a criação dos “advocat et procureur du roi”. As funções dos procuradores do rei destinavam-se não apenas a denunciar os que violassem a Lei, mas também a executar a sentença proferida pelo Juiz, garantindo o proveito econômico da Coroa. Com a Ordenança de Felipe, o Belo (Felipe IV), os procuradores do Rei ganharam maior evidência e atribuições. Eles representavam a Instituição, assim, os interesses do 144 LYRA, Roberto. Teoria e Prática da Promotoria Pública. 2. ed. Porto Alegre: S. A. Fabris, 2001. p. 17. 145 Ibid., p. 17. 61 soberano, cujo poder se incrementava de sorte a opor-se àqueles da Igreja e os dos senhores feudais146. Surgia, então, o Ministério Público. O perfil atual do Ministério Público somente surgiu na França, após o conturbado período da revolução, com o movimento de codificação patrocinado por Napoleão Bonaparte, mormente pelo Código de Instrução Criminal e pela Lei datada de 20 de abril de 1810, que lhe asseguraram o papel de titular da ação penal. Como bem elucida Roberto Lyra: Com a projeção individualista da Revolução Francesa, consolidaram-se aquelas conquistas, que, assim, caminharam para o pacífico destino de princípios fundamentais e distinguiram o Ministério Público como força social.147 A expressão “Ministério Público” nasceu do exercício das funções dos procuradores do rei franceses que, em seus ofícios ou correspondências se tratavam como ministério ou função pública, visando se distinguir da função privada do advogado; de outra sorte, a expressão “parquet” tem origem no estrado (tipo de madeira) existente nas salas de audiência, onde os procuradores do rei podiam sentar-se lado a lado, com os magistrados. Hélio Tornaghi assim lecionou: O Ministério Público constitui-se em verdadeira magistratura diversa da dos julgadores. Até os sinais exteriores dessa preeminência foram resguardados; os membros do Ministério Público não se dirigiam aos juízes no chão, mas de cima do mesmo estrado (parquet) em que eram colocadas as cadeiras desses últimos e não se descobriam para lhe endereçar a palavra, embora tivessem que falar de pé (sendo por isso chamados de “magistrature debout” magistratura de pé).148 Paralelamente às origens francesas, temos as reminiscências históricas de Portugal, em relação ao Ministério Público. 146 SOUZA, Motauri Ciochetti de. Ministério Público e o Princípio da Obrigatoriedade: Ação Civil Pública, Ação Penal Pública. São Paulo: Método, 2007. p. 132. 147 148 Ibid., p. 20. TORNAGHI, 1976, p. 277-278 apud JATAHY, Carlos Roberto de C. O Ministério Público e o Estado Democrático de Direito. Perspectivas Constitucionais de Atuação Institucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 20. 62 Em Portugal, a primeira menção existente acerca do assunto é um diploma legal de 1289, em que se criava a figura do procurador do rei, cargo de natureza política e permanente, no entanto, sem feições de magistratura.149 Como é sabido, por um longo período, vigorou em nosso país a ordem jurídica portuguesa, que possuía três grandes marcos legislativos: as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas. Com as Ordenações Afonsinas, demonstrando a necessidade de se estabelecer uma Instituição que apoiasse aqueles que reclamassem por justiça, bem como defendesse o interesse geral, surge, em 1447, a figura do Procurador de Justiça. As Ordenações Manuelinas cuidaram da figura do “Promotor de Justiça da Casa de Suplicação”. E por fim, as Ordenações Filipinas de 1603 e que se cria, de maneira sistemática, o Órgão de um Promotor de Justiça. Em resumo, é nítido que o Ministério Público evoluiu junto com o Estado moderno e que seu fortalecimento é inerente à democracia e ao Estado de Direito. Ensina-nos Eduardo Ritt: Assim, é com a República e as instituições políticas modernas, surgidas com o ideal liberal, que o Ministério Público encontra sua vocação histórica. Com a República, a soberania desloca-se da figura real para, pelo menos formalmente, o povo, ser em nome desse exercido. Portanto, a instituição do Ministério Público surge com o ideal de liberdade, caminhando aos poucos, com a transformação da sociedade, principalmente, no século XX, na direção da titularidade dos interesses sociais, gerais e difusos, no Estado Democrático de Direito.150 Como forma de melhorar o entendimento, importante é a análise da Instituição do Ministério Público brasileiro e seu desenvolvimento constitucional. 4.2 O MINISTÉRIO PÚBLICO NO BRASIL Após análise superficial das origens do Ministério Público na história da humanidade, faz-se necessária a análise da Instituição em terras brasileiras, vez que nos 149 150 JATAHY, op. cit., p. 15. RITT, Eduardo. O Ministério Público como Instrumento de Democracia e Garantia Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 117. 63 moldes aqui efetivados, não existe nada igual no mundo. A semelhança que podemos encontrar entre o Ministério Público Brasileiro e os ministérios públicos alienígenas é que todos possuem uma origem democrática e estão relacionados com o Estado de Direito. E termina por aí! O primeiro texto genuinamente brasileiro a ter relação com o Ministério Público é datado de 1609. Nele foi prevista a figura do Promotor de Justiça, o qual deveria fazer parte da composição do Tribunal da Relação da Bahia. Com a criação da Casa de Suplicação do Brasil em 1808, no Rio de Janeiro, mais uma vez era mencionado o cargo de Promotor de Justiça. Nessa oportunidade, foi estabelecido, com exclusividade, o cargo de Procurador da Coroa. Nascia assim, a separação, até então inexistente, das funções de defesa do Estado e do Fisco da defesa da Sociedade. Com a independência do Brasil, 1822, sobreveio a Constituição outorgada de 1824, que atribuiu ao Procurador da Coroa e Soberania Nacional a acusação nos juízos de crimes, ressalvadas as atribuições da Câmara dos Deputados, no que diz respeito à iniciativa acusatória. A partir de 1828, já existia um Promotor de Justiça junto a cada Tribunal de Relação, inclusive o da Corte e em cada Comarca. Dessa forma, apenas no Império, o Ministério Público passou a receber tratamento sistemático. Com efeito, o Código de Processo Criminal de 1832 tratou acerca dos requisitos para a nomeação do Promotor e das funções alusivas ao cargo. A reforma processual de 1841, consubstanciada na Lei nº 261 de 03 de dezembro, reforçou a figura do Promotor de Justiça. 151 Nessa mesma época, merece destaque a Lei nº 2.040 de 28.09.1871 (Lei do Ventre Livre) que conferiu ao Promotor de Justiça a função de “protetor dos fracos e indefesos”, estabelecendo que lhe competia velar também para que os filhos livres de mulheres escravas fossem devidamente registrados. 151 A Lei estipulou em dois artigos a figura do Promotor de Justiça: Art. 22. Os promotores públicos serão nomeados e demitidos pelo imperador ou pelos presidentes de províncias preferindo sempre os bacharéis formados, que forem idôneos, e serviram pelo tempo que convier. Na falta ou impedimento, serão nomeados inteirinamnete pelos juízes de direito. Art. 23. Haverá pelo menos em cada Comarca um Promotor de Justiça que acompanhará o Juiz de Direito; quando, porém se as circunstâncias exigirem, serão nomeados mais de um. Os Promotores venceram o ordenado que lhes for arbitrado, o qual, na Corte será um conto e duzentos mil réis por ano, além de mil e seiscentos réis por oferecimento do libelo, três mil e duzentos réis por cada sustentação no Júri, e dois mil e quatrocentos réis por arrazoados escritos. 64 Somente na República, o Ministério Público passou a ser tratado como Instituição. Pelo Decreto n. 1.030, o Ministério Público, expressamente, passou a funcionar perante as justiças constituídas como “Advogado da Lei”, passou a ser o fiscal de sua execução, o procurador dos interesses gerais, o promotor da ação pública contra todas as violações do direito, o assistente dos sentenciados, dos alienados, dos asilados e dos mendigos, requerendo o que for a bem da justiça e dos deveres da humanidade.152 A Constituição de 1891, assim como a Carta Magna que a antecedeu (Constituição de 1824), não mencionou a Instituição do Ministério Público, no entanto, se reportou à figura do Procurador Geral da República, assim como a Constituição de 1824, se reportara ao Procurador da Coroa e à Soberania Nacional. A Constituição de 1934 foi a primeira a constitucionalizar o Ministério Público, inovando o seu tratamento ao reservar a este Órgão capítulo próprio, inclusive distinguindo a Instituição do Poder Judiciário, e, ao mesmo tempo, equiparando ambas as instituições como dignidades fundamentalmente protegidas. 153 Na carta de 1937, editada sob a ditadura de Vargas, o Ministério Público, constitucionalmente, sofreu um retrocesso, eis que apenas foi citado em artigos esparsos. Na esfera infraconstitucional, nesse período, foi editado o Código de Processo Penal Brasileiro, em 1941, em vigor até hoje que, juntamente com o Código de Processo Civil Brasileiro de 1939, deu ampla importância ao Ministério Público. Entretanto, com a Constituição democrática de 1946, a Instituição do Ministério Público voltou a ter relevo. Naquela Carta, o Ministério Público teve um Título próprio, fora dos demais Poderes. Foi assegurado ao Membro do Ministério Público estabilidade e inamovibilidade, bem como lhe foi outorgada a representação da União aos Procuradores da República, que podiam, no entanto, delegar tais funções, nas comarcas do interior, aos Promotores de Justiça. Na Constituição de 1967, o Ministério Público foi inserido na Seção e no Capítulo do Poder Judiciário. Em seguida, na Emenda nº 1/69, o Ministério Público retornou ao âmbito do Poder Judiciário, mantendo, entretanto, a autonomia de organização e a carreira conforme os previsto na antiga Constituição. 152 LYRA, op. cit., p. 23. 153 JATAHY, op. cit., p. 20. 65 E, finalmente, temos a Constituição Cidadã de 1988. Nela o Ministério Público foi “reinventado”. Surgiu uma instituição nova e evoluída, fruto de um regime democrático e com duplo objetivo: a de resguardar direitos tão vilipendiados pelo período de exceção e, ao mesmo tempo, a de projetar um país mais justo para uma população tão carente de direitos. Nessa linha, são as palavras de Eduardo Ritt: “Assim, se é certo que o Ministério Público ocidental é filho da democracia e do estado de direito, o Ministério Público brasileiro, especificamente é fruto da necessidade do estado democrático de direito”. 154 E dessa forma, às vezes não tão linear, se deu o desenvolvimento do Ministério Público, como instituição. Todo esse processo evolutivo autorizou o Ministro Alfredo Valadão a escrever: O Ministério Público se apresenta como a figura de um verdadeiro Poder de Estado. Se Montesquieu tivesse escrito hoje o Espírito das Leis, por certo não seria tríplice, mas quádrupla, a divisão dos poderes. Ao órgão que legisla, ao órgão que executa, um outro órgão acrescentaria ele – o que defende a sociedade e a lei, perante a justiça, parta a ofensa de onde partir, isto é, dos indivíduos ou dos próprios poderes do Estado. 155 4.2.1 O Ministério Público e sua Inserção na Arquitetura Constitucional Brasileira A Constituição Federal de 1988 reverenciou o reconhecimento amplo e irrestrito de garantias e direitos fundamentais. A Constituição Cidadã foi extensa e abrangeu direitos individuais e coletivos, elencados ao longo de seu corpo. Na mesma esteira, além de reconhecer direitos e garantias, o Constituinte percebeu a necessidade da implantação de mecanismos e instrumentos, bem como de órgãos que, de forma aparelhada e independente, pudessem tornar realidade os princípios insertos na Constituição. Foi nesse cenário, respeitando os marcos norteadores da Carta de Curitiba 156, que surgiu o Ministério Público que conhecemos. 154 LYRA, op. cit., p. 125. 155 Ibid., p. 23. 156 Por ocasião dos trabalhos preparatórios à Constituição de 1988, o Ministério Público, representado por seus diversos segmentos, elaborou uma carta-proposta referente à disciplina da Instituição o que refletiria seus principais anseios. A proposta foi aprovada em 1986, na ocasião do 1.º Encontro Nacional de Procuradores Gerais de Justiça e Presidentes de Associações, realizado na capital do Estado do Paraná, no período de 20 a 22 de junho, tendo recebido a denominação de Carta de Curitiba. 66 O Ministério Público, consoante, o art. 127, caput, da Constituição Federal, é Instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado incumbido-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. A finalidade da existência do Ministério Público, diz o próprio texto constitucional, é a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, isto é, a função de defesa da sociedade no regime democrático, instituída pela Carta de 1988.157 Merece destaque que a expressão permanente, acrescida da condição essencial, ou seja, indispensável à própria função jurisdicional do Estado, gera impedimento ao próprio Poder de Reforma da Constituição, caso existisse o interesse de retirar o Ministério Público do arcabouço constitucional. Desta forma, partindo-se da própria natureza da atividade desenvolvida do Ministério Público, voltada ao bem-estar da sociedade, protegendo-a contra terceiros e, em especial, contra o Estado, a sua existência deve ser considerada incluída no rol dos direitos e garantias individuais, sendo vedada a apresentação de qualquer proposta de Emenda tendente a aboli-la (art. 61,§4.º, V da CF-88). Assim, devemos considerar o Ministério Público como cláusula pétrea.158 Nesse sentido leciona Emerson Garcia: Por ser inócua a previsão de direitos sem a correspondente disponibilidade de mecanismos aptos à sua efetivação, parece-nos que a preservação da atividade finalística do Ministério Público está associada à própria preservação dos direitos fundamentais o que reforça a sua característica de cláusula pétrea e preserva a unidade do texto constitucional. E continua o autor: Além disso, a limitação material ao poder de reforma alcançará, com muito maior razão, qualquer iniciativa que, indiretamente, busque alcançar idêntico efeito prático (v.g. redução das garantias e prerrogativas de seus membros e supressão da autonomia da Instituição, tornando-a financeiramente 157 JATAHY, Carlos Roberto de Castro. Curso de Princípios Institucionais do Ministério Público. 2. ed. Rio de Janeiro: Roma Victor, 2006. p. 31. 158 Cf. Ministro Carlos Ayres Brito, em palestra proferida da sede do Ministério Público Fluminense em 04.06.2004, citada por Carlos Roberto C. JATAHY, 2006, op. cit., p. 32. 67 dependente do Executivo, e com isto, inviabilizando a sua atuação, que é elemento indicativo de sua própria existência). 159 Por outro lado, a Constituição Federal também dispôs que, o Ministério Público é Instituição essencial à função jurisdicional do Estado. Desta forma, unindo o substantivo Instituição com o adjetivo essencial, concluímos que, somente o Ministério Público pode desempenhar atividades outorgadas pelo legislador constitucional e infraconstitucional, imprescindíveis para a consecução final da justiça. 160 A essencialidade, na prática, também pode ser visualizada quando, em determinada relação processual, a intervenção do Ministério Público for imprescindível. 161 Foi demonstrado até agora que, dentro da nova arquitetura da Constituição Brasileira, específica e própria do Estado Democrático do Direito, o Ministério Público foi erigido à condição de Instituição permanente e independente a qualquer Poder do Estado. Dessa forma, o Ministério Público Brasileiro ganhou feição peculiar e sem similitude no mundo, com atribuições específicas para uma sociedade carente de democracia e de justiça social, como é a brasileira.162 Agora, diante deste panorama, é importante traçarmos um posicionamento do Ministério Público em nossa Constituição, em especial, perante a teoria da separação de poderes. Para isso, se faz necessário uma pequena digressão a essa teoria. A princípio, é correto afirmar que o poder representa um incosteste fenômeno social que, em último grau, se exterioriza pelos elementos concretos da força, em suas várias acepções: econômica, militar e política. Em termos mais amplos dentro da teoria estatal, no entanto, o poder, em sua noção teórica, traduz o veículo instrumental pelo qual se alcança uma ordem social que, representando uma idéia conceitual de direito, tem como finalidade o bem comum. 163 159 GARCIA, Emerson. Ministério Público, Organização, Atribuições e Regime Jurídico. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 48. 160 Ibid, p. 48. 161 Cabe frisar a decisão do STF (agravo de instrumento 172.244/RS, Rel. Min. Celso de Melo, DJ. 13.11.1995, p. 38611), onde ficou determinado que, ato processual (audiência) em que membro do Ministério Público, tenha sido previamente intimado, pode ocorrer com sua ausência, vez que esta falta não pode ser imputada ao aparelho judiciário. 162 163 RITT, Eduardo, op. cit., p. 137. De um modo amplo, busca-se associar a expressão bem comum à idéia de justiça (como valor axiológico), forjando a concepção segundo a qual o bem comum seria a medida da justiça ou a própria finalidade da mesma, em uma acepção ampla de direito. 68 A teoria da "separação de poderes" pressupõe a tripartição das funções do Estado, distinguindo-as em legislativa, administrativa (ou executiva) e jurisdicional. Aristóteles, já na antigüidade, em sua Política, lançou aquela que seria a base de uma teoria acerca da separação das funções do Estado. Na concepção aristotélica o governo dividia-se em três partes: a que deliberava acerca dos negócios públicos; a que exercia a magistratura (uma espécie de função executiva) e a que administrava a Justiça. John Locke (Ensayo sobre el gobierno civil) e Rosseau (Du contrat social) também contribuíram para a construção da "separação de poderes" tendo a mesma sido realmente definida e divulgada por Montesquieu em seu De l’esprit des lois, transformando-se, assim, numa das mais importantes doutrinas políticas de todos os tempos, alçada à categoria de princípio fundamental da organização política liberal. A primeira constituição escrita que adotou na íntegra a doutrina de Montesquieu foi a da Virgínia, em 1776, seguida pelas Constituições de Massachussetts, Maryland, New Hampshire e pela própria Constituição Federal Americana de 1787. Nessa época, os constitucionalistas norte-americanos, afirmaram de modo categórico, que a concentração dos três poderes num só órgão de governo representava a verdadeira definição de tirania. 164 Assim, o principio de Montesquieu, ratificado e adaptado por Hamilton, Madison e May, foi a base da doutrina exposta no Federalista, de contenção do poder pelo poder, que os norte-americanos chamaram de sistema de freios e contrapesos (cheks and balances). A Revolução Francesa proclamou o princípio nos seguintes termos: “Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não estiver assegurada nem determinada a separação de poderes, não tem Constituição”. (Declaração dos Direitos do Homem, art. 16). Não obstante ter o princípio da "separação de poderes" sido uma constante no ordenamento constitucional brasileiro segundo a fórmula preconizada por Montesquieu, a Constituição do Império, excepcionalmente, adotou a separação quatripartita: poderes Moderador, Legislativo, Executivo e Judiciário. O princípio da separação e independência de poderes, malgrado constituir um dos signos distintivos fundamentais do Estado de Direito, não possui fórmula universal apriorística. Tão importante quanto essa divisão funcional básica é o equilíbrio entre os poderes, mediante um jogo recíproco dos freios e contrapesos. Por outro lado, nos dia de hoje, não só o princípio da separação de poderes, como a própria tripartição de poderes, ou seja, a forma das funções do Estado é algo anacrônico, de 164 CAETANO, Marcello. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1996. Tomo I. p. 191. 69 mera constituição ideológica, não científica165. Assim, deve a separação de poderes, ser vista de forma relativizada, mitigada. Dalmo de Abreu Dallari escreveu sobre o tema: A primeira crítica feita ao sistema de separação de poderes é no sentido de que ele é meramente formalista, jamais tendo sido praticado. A análise do comportamento dos órgãos do Estado, mesmo onde a Constituição consagra efetivamente a separação de poderes, demonstra que sempre houve uma intensa interpenetração. Ou o órgão de dos poderes pratica atos que, a rigor seriam do outro, ou se verifica a influência de fatores extralegais, fazendo que algum dos poderes predomine sobre os demais, guardando-se apenas a aparência de separação. 166 Desta forma, uma divisão de funções e não uma separação de poderes rígida é, todavia, importante para possibilitar a eficiência do Estado e a independência de seus órgãos. Diante de tudo que foi exposto, poderia o Ministério Público, ser um Poder de Estado? De acordo com a teoria clássica da tripartição de poderes e o arcabouço constitucional brasileiro, não. Ocorre que, a realidade atual é outra. Um dos pilares da teoria da separação de poderes foi a forma de contenção do poder pelo poder. Nos dias de hoje, o Ministério Público, em decorrência das atribuições, que a própria Carta Magna lhe conferiu, é um exímio Órgão de contenção de arbítrios do Estado. O Ministério Público propicia o acesso à justiça, “zela pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”, consoante determina art. 129, II da CF-88. E ainda mais, o Parquet fiscaliza os demais órgãos públicos e o próprio Poder Executivo. Assim sendo, considerando a realidade e a ideologia da separação de poderes, a discussão acerca de o Ministério Público ser considerado um “Quarto Poder” é válida. 167 Importante ressaltar que, não se trata de “frívola vaidade”, como ressalta o eminente autor Emerson Garcia168, entender o Ministério Público como Poder Estatal. Nosso 165 Nesse sentido RITT, op. cit., p. 142-143. 166 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da Teoria Geral do Estado. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 221. 167 RITT, op. cit., p. 145. 168 Ibid., p. 45. 70 entendimento é que o reconhecimento do Ministério Público como Poder, ao menos no campo ideológico, é o primeiro passo para uma independência total e irrestrita deste grande Órgão. 4.2.2 O Novo Perfil do Ministério Público Brasileiro A Constituição de 1988 teve como fundamento o Estado de Direito e este, por sua vez, está estritamente relacionado à idéia de democracia. Assim, o Estado defendido pela Carta Maior é aquele que exerce seus poderes nos limites postos pelo direito e, em harmonia com parâmetros traçados por estes, sempre com direitos e garantias respeitados, no tocante aos indivíduos. O art. 127, caput, da Constituição Federal comete ao Ministério Público, dentre outros fins, a defesa da ordem jurídica 169 e do regime democrático. Assim, o novo perfil do Ministério Público pressupõe a aferição e fiscalização de todos os atos praticados pelos órgãos do Estado, podendo ajuizar as medidas necessárias ao combate de abusos ou ilegalidades, sempre com o intuito de manter o Estado no limite da Constituição e do direito. Logo, também é de se concluir que, ao Ministério Público compete também, a defesa da ordem constitucional onde quer que, esta se encontre ameaçada. 170 Outra faceta do novo perfil do Ministério Público é a defesa do regime democrático. A Constituição de 1988 estabeleceu no Brasil, de forma expressa, o Estado democrático de direito, quando definiu os fundamentos do sistema de separação de poderes, a soberania popular, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e ainda, o pluralismo político. Agindo dessa forma, a Constituição fixou, de maneira absoluta, a democracia participativa, como norma jurídica constitucionalmente positivada. 169 Nesse sentido a ordem jurídica não guarda similitude com a Lei, mas sim, com o direito, sendo noção eminentemente mais ampla. 170 Nessa linha, asseverou Eduardo Ritt, op. cit., p. 157: A atuação do Ministério Público brasileiro, portanto, é orientada para a supremacia constitucional e para o ordenamento jurídico como um todo não seja agredido, ou por abusos de poder e por atos ilícitos de autoridades públicas (inclusive por atos de improbidade administrativa), ou por atos ilícitos do próprio cidadão. Para tanto, utiliza-se da ação penal, da ação civil pública, da ação direta de inconstitucionalidade e, até mesmo, da representação para fins de intervenção da União e dos Estados, entre outras medidas para manter a legalidade (por exemplo, na defesa do patrimônio público contra os desmandos do administrador público), nos termos do art. 129 da Carta constitucional de 1988. 71 Diante disto, a defesa do regime democrático importa em salvaguardar todos os dispositivos formais da democracia representativa e do conteúdo material da própria Constituição, em especial, os direitos e garantias fundamentais. Essa é uma das funções do Ministério Publico Brasileiro. Assim, o Ministério Público é também Instituição destinada à preservação dos valores fundamentais do Estado enquanto comunidade e, para tanto recebeu a função de efetivar esses direitos. O Ministério Público é um dos instrumentos de efetivação de cidadania. 171 Enfim, para que Ministério Público bem desempenhe a defesa do regime democrático, alguns princípios devem ser respeitados, a saber: a) a existência de mecanismos pelos quais a grande maioria do povo possa tomar decisões concretas, não apenas para a escolha de um governante ou um legislador a cada meia dúzia de anos e, a partir daí, faça este o que bem entender mesmo contrariamente ao que prometeu antes de ser eleito, mas sim para que o povo possa decidir as grandes questões que digam respeito ao destino do país e possa controlar o exercício do mandato dos que foram eleitos, o que inclui necessariamente sua cassação, em caso de violação dos compromissos partidários (recall); b) o funcionamento de canais de manifestação (como criação, fusão, extinção de partidos; sufrágios freqüentes não só para investiduras dos governantes, como também para as grandes questões nacionais etc..); c) não sejam suprimidas pelo poder de emenda à Constituição as garantias fundamentais ao exercício da democracia; d) haja total liberdade no funcionamento desses canais de controle; e) sejam validamente apurados os resultados dessas manifestações (eleições, plebiscitos, referendos); f) sejam efetivamente cumpridas as decisões ali tomadas (dever positivo); g) sejam combatidos qualquer desvio de cumprimento das decisões ali tomadas (dever negativo); h) sejam prioritariamente defendidos “aqueles que se encontrem excluídos, os empobrecidos, os explorados, os oprimidos, aqueles que se encontrem à margem dos benefícios produzidos pela sociedade”. 172 A promoção social está no núcleo do novo perfil constitucional do Ministério Público. A defesa do regime democrático e dos interesses sociais reafirma o compromisso do Ministério Público com a transformação, com a justiça, da realidade social. (art. 127, caput, combinado com art. 1.º e 3.º da CF-88). Nesse sentido os objetivos elencados no art. 3.º da 171 172 Cf. RITT, op. cit., p. 162. MAZZILLI, Hugo Nigro. O Acesso à Justiça e o Ministério Público. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 50-51. 72 Constituição do Brasil vinculam o Ministério Público, ou seja, ele deve defender uma sociedade livre, justa, solidária, com pobreza erradicada e com desigualdades sociais diminuídas. Esta é a destinação de fundo do Ministério Público brasileiro. Assim, para o Ministério Público cumprir sua destinação constitucional não mais se sustenta o modelo institucional antigo. É preciso avançar com planejamento funcional e em suas estratégias de atuação. A atuação individual e intuitiva dos membros do Ministério Público deve ser superada por um novo modelo, em que o compromisso com a transformação social, o planejamento estratégico e a eficiência passem a ser condições naturais em todos os âmbitos da atuação institucional, jurisdicional ou extrajurisdicional. 173 Diante dessas árduas incumbências, resta ao Ministério Público, tentar aparelhar-se e, ao mesmo tempo, modernizar-se. Esta Instituição, ao longo da história, sempre esteve em mutação, daí também ser chamado de agente de transformação social. 174 No pano de fundo do leque de atribuições conferidas ao Ministério Público, existe o interesse maior e supremo que é a defesa da sociedade. A razão de ser do Ministério Público é a comunidade, este quando age é em nome e em prol da sociedade. A Constituição cidadã pugnou pela proteção dos direitos individuais e sociais, enfim, pela defesa da sociedade. Nesse diapasão, os pobres os excluídos não tinham como se organizar, ou buscar, ainda que individualmente, fazer valer seus direitos, de forma rápida e eficaz. Do mesmo modo, erradicar ou amenizar a pobreza com uma melhor forma de justiça, não tinha como ser efetivada por pessoas que sequer tinham consciência de seus direitos. E no mundo globalizado, mais problemas e tarefas surgem para o Ministério Público Brasileiro enfrentar. Assim, como combater uma criminalidade, que deixou de ser desorganizada e pontual e passou a ser organizada e global? O Ministério Público pode ficar inerte a esse fenômeno? O que pode ser feito? Trata-se de enfrentar os novos desafios impostos na era pós-moderna, que quiçá requer a construção de novos paradigmas de atuação e de novas funções que o Ministério Público deva alcançar. Esse é, precisamente, um novo papel do Ministério Público. 173 ALMEIDA, Gregório Assagra de. O Ministério Público no neo-constitucionalismo: Perfil constitucional e alguns fatores de ampliação de sua legitimação social. In: FARIAS, Cristiano Chaves de; ALVES, Leonardo Barreto Moreira; ROSENVALD, Nelson Alves. Temas Atuais do Ministério Público: a atuação do parquet nos 20 anos da Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 48-49. 174 Nesse sentido JATAHY, 2007, op. cit., p. 71. 73 4.3 PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO A Constituição de 1988 (art. 127, §1.º) e a Lei Complementar n.º 8625/93, parágrafo único do art. 1.º, apresentam como princípios institucionais do Ministério Público: a unidade, indivisibilidade e a independência funcional. Todo o arcabouço de direitos e garantias conferidas aos membro do Ministério Público, como órgão da própria sociedade, decorre destes princípios que informam o sistema. Conforme já foi visto no capítulo 3, as constituições são compostas de normas classificáveis em duas categorias principais: os princípios e as regras. Nessa linha, com o rompimento de uma dogmática positivista, os princípios não são mais vistos como meros instrumentos de interpretação e de integração das regras. Princípios são concebidos como forma de expressão da própria norma, sendo sua observância cogente e, qualquer ato de afastamento deles inválido. Diante dessas premissas, conclui-se que os princípios contemplados nos art. 127, §1.º da Constituição da República e nos art. 1º, caput, da Lei n.º 8625/93 são normas de conduta, sendo obrigatória sua observância pelo legislador infraconstitucional, pela Administração Superior do Ministério Público e por tantos quantos se relacionarem com o Ministério Público no exercício de sua atividade finalística.175 4.3.1 Princípio da Unidade do Ministério Público Consoante este princípio, o Ministério Público constitui uma Instituição única, gerando desdobramentos na atuação de seus membros, que não podem ser concebidos na sua individualidade, mas como representantes e integrantes de um só organismo, em nome do qual atuam. Membro e Instituição formam um só todo. Para Hugo Nigro Mazzilli, unidade significa que os membros do Ministério Público integram um só órgão sob a direção de um só chefe. 176 175 Nesse sentido GARCIA, op. cit., p. 56. 176 MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 66 74 Assim, afirmar que a unidade é o princípio institucional do Ministério Público é o mesmo que dizer estarem seus integrantes organizados em um único órgão e submetidos a uma única chefia (Procurador-Geral).177 Essa seria o prisma orgânico do princípio da unidade. No entender de Paulo Cézar Pinheiro Carneiro: a unidade do Ministério Público não significa que qualquer de seus membros podem praticar qualquer ato em nome da Instituição, mas sim, sendo um organismo, os seus membros presentam (não representam) a Instituição sempre que atuarem, mas a legalidade de seus atos encontram no âmbito da divisão de atribuições e demais princípios e garantais impostas pela lei. Da mesma forma, o Poder Judiciário no exercício de sua função jurisdicional, se manifesta através dos diversos juízos, presente também aqui o princípio da unidade. O fato de um juiz absolutamente incompetente julgar uma causa não significa dizer que a instituição não está se manifestando. Esta sim, entretanto, o processo contém vício porque o juiz extrapolou o âmbito de sua competência, fixada na lei. As conseqüências dos vícios serão aquelas fixadas em lei.178 Veja-se que inexiste unidade entre Ministérios Públicos Estaduais e nem entre os diversos ramos do Ministério Público da União. O princípio constitucional da unidade só incide no âmbito de cada Ministério Público.179 É importante ressaltar que o princípio da unidade não significa que os atos e posicionamentos dos membros do Ministério Público são únicos e numa mesma linha. A chefia (base do princípio da unidade) é emissora de ordens e condutas administrativas e não de conduta pessoal funcional, propriamente dita. Desta forma, o princípio da unidade, não significa uniformização de atuação e sim, uma estruturação organizacional constituída de meras recomendações destituídas, a princípio, de imperatividade. Assim, caso fosse diferente, a unidade do Ministério Público estaria em rota de colisão com o princípio da independência funcional, o que não é o caso.180 177 Nesse sentido ver: SILVA NETO, Manoel Jorge e Silva. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 449; BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1140 e MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal. 17.ª. São Paulo: Atlas, 2005. p. 356. 178 CARNEIRO, O Ministério Público no Processo Civil e Penal: promotor natural, atribuição e conflito. 6.ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 2003. p. 42. 179 Foi nesse sentido a decisão do Superior Tribunal de Justiça: “O Ministério Público é uno e indivisível, mas apenas na medida em que os seus membros estão submetidos a uma mesma chefia. Essa unidade e indivisibilidade só dizem respeito a cada um dos ministérios públicos que o sistema jurídico brasileiro consagrou”. (STJ, ROMS 5563/RS. Rel. Min. César Asfor Rocha, 1.ª turma, decisão: 21.08.95, DJ1, de 16.10.95, p. 34.609). 180 Cf. GARCIA, op. cit., p. 56. 75 Por outro lado, sob o prisma funcional, o princípio da unidade significa que, o Brasil, só se pode falar em um único Ministério Público, já que a Instituição, por intermédio de cada um de seus ramos, desempenha, no seu âmbito de atuação, as funções institucionais que lhe foram atribuídas pelo texto constitucional. 181 Segundo Carlos Roberto de Castro Jatahy: A unidade traduz a identidade do Ministério Público como Instituição. Seus membros não devem ser identificados na sua indivisibilidade, mas sim como integrantes de um mesmo organismo, que tem função a exercer de exercer as tarefas constitucionais que lhe foram conferidas pela Carta Magna. Ao atuarem, oficiam em nome da Instituição apresentam como um todo. Deve existir no ordenamento constitucional brasileiro apenas um Ministério Público, embora com atribuições distribuídas e multifacetadas perante os vários ramos do Poder judiciário da União e das justiças estaduais. 182 Nesse sentido, o princípio da unidade do Ministério Público consagra que os seus membros têm a mesma missão, ou seja, tem como destinação aquela estabelecida no art. 127, caput, do CF-88. 4.3.2 Princípio da indivisibilidade do Ministério Público Para o professor Hugo Nigro Mazzilli indivisibilidade significa que seus membros podem ser substituídos uns pelos outros, não arbitrariamente, mas seguindo a forma estabelecida em lei. 183 Esse princípio é corolário da própria idéia de unidade do Ministério Público. A substituição dos membros, uns pelos outros, permite que os trabalhos do “parquet” não sejam paralisados como, por exemplo: no caso de férias, no caso de licenças para tratamento de saúde ou outros afastamentos autorizados pelas respectivas leis orgânicas. Assim sendo, as substituições ocorrem sem prejuízo da atuação de todo o órgão. No entanto, a principal importância e relevância do princípio da indivisibilidade não é regular o trabalho ministerial. Sua importância reside em podermos afirmar que o “parquet”, 181 GARCIA, op. cit., p. 57. 182 JATAHY, 2006, op. cit., p. 37. 183 MAZZILLI, op. cit., p. 66. 76 como órgão, não pode ser dividido internamente em vários outros órgãos autônomos e desvinculados entre si. 184 Assim, a indivisibilidade impede a ocorrência de solução de continuidade na atuação do Ministério Público e também, do mesmo modo, impede que este seja dividido. São as palavras de Paulo César Carneiro: Este princípio é uma decorrência natural do princípio da unidade e nele poderia estar compreendido. Significa que a instituição, o organismo, não pode ser dividido. Quando um membro da instituição substitui outro, é o próprio Ministério Público que continua a atuar. Um pode ser substituído por outro, sem qualquer vinculação de opinião, e sem que tal fato cause a cindibilidade da instituição. É preciso deixar novamente bastante claro que uma coisa é a possibilidade de “in genere” de substituição de um membro por outro, todos obviamente, componentes do mesmo organismo; outra, bem diversa, diz respeito à legalidade dos atos praticados pelo substituto. 185 A indivisibilidade pressupõe substituição legal e não arbitrária e está vinculada, em tese, ao princípio do promotor natural e à garantia da inamovibilidade 186, que veremos mais adiante. 4.3.3 Princípio da Independência Funcional do Ministério Público Entendemos ser o princípio da independência funcional do Ministério Público o mais importante da Instituição. É dele que decorrem os outros princípios. Para o princípio da independência funcional, os membros do Ministério Público, no desempenho de suas atividades, não estão subordinados a nenhum órgão ou Poder, mas somente à sua consciência, já que suas manifestações devem ser sempre fundamentadas em lei. A independência funcional significa que cada membro e órgão do Ministério Público gozam de independência para exercer suas funções, em face dos outros membros e órgãos da mesma instituição. Isso significa que, no exercício da atividade-fim do Ministério Público, 184 Cf. BULOS, op. cit., p. 1140. 185 CARNEIRO, op. cit., p. 42. 186 Nesse sentido JATAHY, 2006, op.cit., p. 44 77 cada qual deles pode tomar as decisões últimas afetas à Instituição, sem se ater a ordens de outros membros ou órgãos da mesma Instituição. 187 Para Manoel Jorge e Silva Neto, a independência funcional dos membros do Ministério Público indica a autonomia de convicção, razão por que tudo que realizam está, exclusivamente, atrelado aos ditames de consciência de cada um. 188 Sábias são as colocações, em relação ao princípio da independência funcional do Ministério Público, feitas por Emerson Garcia: A Constituição de 1988, caminhando no mesmo norte de diversos países democráticos, buscou circundar o Ministério Público de diversas garantias e prerrogativas, todas imprescindíveis ao exercício independente de suas relevantes funções, possibilitando uma proteção adequada contra as retaliações que seus membros certamente sofreriam sempre que contrariassem os detentores do poder, político ou econômico, ou mesmo aqueles adeptos ao tráfico de influência. E prossegue o eminente autor: De acordo com o princípio da independência funcional, aos membros do Ministério Público são direcionadas duas garantias vitais ao pleno exercício de suas funções: a) podem atuar livremente, somente rendendo obediência à sua consciência e à lei, não estando vinculados às recomendações expedidas pelos órgãos superiores da Instituição em matérias relacionadas ao exercício de suas atribuições institucionais; b) não podem ser responsabilizados pelos atos que praticarem no estrito exercício de suas funções, gozando de total independência para exercê-los em busca da consecução dos fins inerentes à atuação ministerial. 189 Desta forma, em razão da independência funcional de seu cargo, poderá o membro do Ministério Público analisar livremente os fatos submetidos à sua apreciação, zelando pela prevalência da situação que se afigure mais justa, a que melhor se ajustar à sua consciência e ao ordenamento jurídico. Para ser uno e indivisível, o Ministério Público necessariamente deve ser independente, no entanto, o reverso não é verdadeiro, para ser independente, o Ministério Público prescinde da Unidade e Indivisibilidade. Daí, ser o princípio mais importante. 187 Cf. MAZZILLI, 2005, op. cit., p. 67. 188 SILVA NETO, op. cit., p. 450. 189 GARCIA, op. cit., p. 65. 78 De que adiantaria termos um Ministério Público em unidade, com atuações uniformes e com membros, uns substituindo os outros, em um órgão sem nenhuma fissura, se ao tomar uma decisão, o Promotor de Justiça não tivesse liberdade de convicção ou escolha? De que serviria a obediência estrita ao propalado princípio do promotor natural, que veremos a seguir, sem independência funcional? A resposta é que, no Brasil, não tem como existir Ministério Público sem independência funcional. Nesse diapasão, é importante esclarecer que independência funcional não se confunde com autonomia institucional. Autonomia institucional é a capacidade do Ministério Público de autogestão, administrativa e funcional, exercendo a independência preconizada no texto constitucional. De outra banda, a hierarquia administrativa não prejudica a independência funcional. Nesse aspecto, a hierarquia tem o propósito exclusivo e único de viabilizar a organicidade administrativa. Voltamos a ressaltar que não existe hierarquia em sentido funcional. Enfim, o membro do Ministério Público defende a sociedade e para tanto, nada pode obstar e contrariar seu modo de pensar e agir. O Ministério Público dependente não é Ministério Público, consoante o que está expresso no texto constitucional, ou seja, o Promotor∕Procurador deve estar imune a pressões externas (dos agentes dos poderes dos Estados e dos agentes do poder econômico) e internas (dos órgãos da Administração do Superior do Ministério Público). A independência funcional seria, nesse sentido, uma garantia da própria sociedade antes mesmo de ser uma garantia do membro do Ministério Público. 79 5 A TEORIA DO PROMOTOR NATURAL Como foi visto, ao lado de expressa atribuição de funções de relevância social, a Constituição Federal impôs ao Ministério Público princípios próprios, como do a unidade, indivisibilidade e da independência funcional de seus membros. Nessa mesma linha, permitiu o desvendamento de outros princípios decorrentes, como o princípio do promotor natural, ao qual este capítulo é dedicado. Antes de tudo, para a completude da destinação imposta pala Constituição ao Ministério Público, todas as garantias e prerrogativas aos seus membros se fazem necessárias. Em relação ao princípio do promotor natural, não poderia ser diferente. Desta forma, o promotor natural é princípio do Ministério Público que comporta mais de uma abordagem, ou seja, decorre de princípios outros e ao mesmo tempo, é garantia de seus membros. Sendo assim, uma análise (doutrinária e jurisprudencial) atualizada do princípio do promotor natural, torna-se indispensável para se verificar se, de fato, o Ministério Público é um Órgão hodierno e eficaz. O princípio do promotor natural tem sido regularmente discutido no âmbito de nossos tribunais superiores há mais de 30 anos, em especial no seio da Suprema Corte, ora pelo seu plenário, ora por turmas, sem uma clara conclusão sobre o tema. Seu argumento embrionário partiu da doutrina e, como precursores membros e exmembros do Ministério Público como Hugo Nigro Mazzilli, Jacques Camargo Penteado e Sérgio Demoro Hamilton (MP/SP) e Paulo Cezar Pinheiro Carneiro (MP/RJ). A idéia inicial era que, ao Ministério Público deveria ser dado o mesmo tratamento dispensado ao Poder Judiciário, no tocante ao Princípio do Juiz Natural. Para entender o assunto com maior clareza, faz-se necessário contextualizar a época em que tal doutrina surgiu. Afinal, qualquer análise ou interpretação só é válida se conhecermos o momento histórico em que foi realizada. 80 5.1 O PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL O princípio do promotor natural surgiu na doutrina nos meados da década de 70, momento em que o Brasil vivia um regime de exceção, quando todo e qualquer movimento de democracia era repelido de plano. Nesse sentido, foram as palavras de Hugo Nigro Mazzilli: Há muito nos posicionamos contra os chamados promotores de encomenda, escolhidos discricionariamente pelo chefe do Ministério Público – já o fazíamos desde 1976 de forma pioneira, ainda sob época da ditadura militar.190 Naquela época não havia respeito às instituições que guardassem relação com o Estado Democrático de Direito. Tudo era permitido no tocante à violação de direitos e garantias fundamentais. Nesse cenário, o Ministério Público tinha evidência mínima. Naquela altura, existia a prática deletéria (hoje quase inexistente) dos poderosos locais pedirem ao Governador, em nível estadual, e ao Presidente, em nível federal, a substituição de juízes e membros do Ministério Público que estivessem “atrapalhando” sua “justiça privada”, no que, quase sempre, eram atendidos em seus pleitos, sendo os “indesejáveis” removidos, às vezes para Comarcas de mais difíceis provimentos, isto é, ao cumprir suas funções, eram punidos por suas instituições. É importante ressaltar também que, neste período, o Ministério Público estava sob a égide da “Carta de 1969”, onde este figurava na estrutura do Poder Executivo, realidade muito distante da que conhecemos atualmente. De outra banda, a defesa da sociedade não estava sob responsabilidade do Ministério Público. Ele não tinha forças e instrumentos para lutar contra os arbítrios dos governantes, e nem mesmo contra as ilegalidades cometidas por um cidadão comum. A criminalidade era ingênua e altamente amadora. Em resumo, o mundo era outro, o a estrutura de governo era outra e a mentalidade era outra. Tudo era diferente. Diante dessas premissas, vamos entender a doutrina do princípio do promotor natural. Segundo essa doutrina, o promotor natural consiste na existência de um órgão do Ministério Público, previamente estabelecido pela Lei para oficiar nos casos que sejam afetos à Instituição. 190 MAZZILLI, 1988, op. cit., p. 68. 81 São as palavras de Paulo Cezar Pinheiro Carneiro: A teoria do promotor natural ou legal, como anteriormente afirmado, decorre do princípio da independência, que é imanente à própria instituição. Ela resulta, de um lado, da garantia de toda e qualquer pessoa física, jurídica ou formal que figure em determinado processo que reclame a intervenção do Ministério Público, em ter um órgão específico do “parquet” atuando livremente com atribuição predeterminada em lei, e, portanto, o direito subjetivo do cidadão ao promotor (aqui no sentido lato), legalmente legitimado para o processo. Por outro lado, ela se constitui também como garantia constitucional do princípio da independência funcional, compreendendo o direito do promotor de oficiar nos processos afetos ao âmbito de suas atribuições.191 E continua o autor: Este princípio, na realidade, é verdadeira garantia constitucional, menos dos membros do parquet e mais da própria sociedade, do próprio cidadão, que tem assegurado, nos diversos processos em que o MP atua, que nenhuma autoridade ou Poder poderá escolher promotor ou procurador específico para determinada causa, bem como que o pronunciamento deste membro do MP dar-se-á livremente, sem qualquer tipo de interferência de terceiros. 192 O postulado do promotor natural se baseia no comando constitucional segundo o qual ninguém será processado ao não ser pela autoridade competente. Nelson Nery Junior escreveu sobre o tema: A idéia do promotor natural surgiu, embrionariamente, das proposições doutrinárias pela mitigação do poder de designação do Procurador-Geral de Justiça, evoluindo para significar a necessidade de haver cargos específicos com atribuição própria a ser exercida pelo promotor de justiça, vedada a designação pura e simples, arbitrária, pelo Procurador-Geral de Justiça. 193 Para a teoria do promotor natural, este seria o reverso do promotor de encomenda de livre escolha do Procurador-Geral, que o designa e o afasta ad nutum.194 O princípio do promotor natural, segundo, essa teoria, visa, em última análise, impedir a atuação do acusador de exceção, designado com propósitos políticos pouco recomendáveis, daí porque não se vislumbra se possa aceitar designações casuísticas. Dessa 191 CARNEIRO, Paulo, op. cit., p. 47. 192 Ibid., p. 47. 193 NERY JÚNIOR, op. cit., p. 87. 194 Cf. MAZZILLI, 2005, p. 69. 82 forma, o princípio visa impedir que o chefe do Ministério Público encarne seu papel como déspota, dotado de poder ilimitado. Para a teoria, os pressupostos para aferição do princípio do promotor natural são os seguintes: a) investidura no cargo de membro do Ministério Público; b) existência de órgão de execução; c) lotação por titularidade e inamovibilidade do membro do Ministério Público no órgão de execução, ressalvadas as hipóteses legais de substituição e remoção; d) definição em lei das atribuições do órgão.195 Sobre o tema do promotor natural, também escreveu Pedro Henrique Demercian: Na realidade – o princípio do promotor natural – trata-se de uma expansão para o regime jurídico do Ministério Público, da tradicional garantia construída no âmbito da jurisdição. É, por assim dizer, um desdobramento do princípio do juiz natural, e que foi concebido com a mesma preocupação de limitar o arbítrio estatal no desenvolvimento do processo. 196 Em um primeiro momento, o princípio do promotor natural combateria o arbítrio, insurgindo-se contra os que violam, com prepotência, as franquias individuais e, principalmente a garantiria a ordem jurídica, protegendo o membro da Instituição, na medida em que lhe assegura o pleno exercício e independente de seu mister, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando um promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e pré-determinados, estabelecidos em lei. Completando esta teoria, temos a idéia de que seria inconcebível um acusador de exceção, já que inexiste juízo de exceção. Embora não tenha sido objeto de explícita remissão no § 1.º do art. 127, a sua base constitucional é o art. 5.º, LIII: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Desta forma, o princípio do promotor natural seria imanente ao novel sistema constitucional brasileiro, assentando-se nas cláusulas da independência funcional e da inamovibilidade dos membros da Instituição, vedando assim, designações casuísticas e arbitrárias pela chefia ministerial. Para Cândido Furtado Maio Neto, o princípio do promotor natural “é todo aquele agente ministerial com poderes a atribuições administrativas e jurisdicionais exclusivas previamente estabelecidas na Constituição, em lei penal adjetiva e nas normatizações ou 195 Cf. BULOS, op. cit., p. 532. 196 DEMERCIAN, op. cit., p. 74. 83 instruções superiores do Ministério Público, devidamente publicados na imprensa oficial da União ou dos Estados.” 197 Hugo Nigro Mazzilli escreveu a respeito: A mera designação, para qualquer função do Ministério Público, é um dos instrumentos pelos quais se acentua ainda mais a indesejável concentração de poderes manejados pelo Procurador-Geral de Justiça, o que submete os membros da Instituição e aniquila de fato e em última análise todas as garantias constitucionais de independência funcional e inamovibilidade conferidas à Instituição.198 Segundo a teoria do promotor natural, no Ministério Público, todos os cargos devem ter atribuições únicas, específicas e com funções previamente estatuídas na lei. Não são tolerados os cargos genéricos, cuja função não esteja delineada precisamente na lei. 199 O princípio do promotor natural pressupõe que cada órgão da instituição tenha, de um lado, as suas atribuições fixadas em lei e, de outro, que o agente, que ocupa legalmente o cargo correspondente ao seu órgão de atuação, seja aquele que irá oficiar no processo correspondente, salvo as exceções previstas em lei, vedado, em qualquer hipótese, o exercício das funções por pessoas estranhas aos quadros do parquet. E ainda, todo e qualquer ato do procurador-geral que contrarie tal princípio, ainda que editado com aparência de legalidade como designações, avocação, delegação e formação de grupos especiais, é absolutamente nulo, incapaz de produzir qualquer tipo de efeito e sujeito a medidas legais que visem ao restabelecimento da observância do princípio do promotor natural. 200 Assim, nos moldes em que foi concebida, isto é, em sua gênese criatória, uma simples leitura conclui que a teoria do princípio do promotor natural, é extremamente rígida, não admitindo mitigações e nem relativismo. Não obstante, analisaremos alguns aspectos doutrinários importantes para justificar a releitura do promotor natural em nosso ordenamento jurídico. 197 MAIA NETO, Cândido Furtado. Promotor de Justiça e Direitos Humanos. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008. p. 104. 198 MAZZILLI, 2007, op. cit., p. 118. 199 NERY JUNIOR, op. cit., p. 91. 200 Ibid, p. 48. 84 Preliminarmente, entendemos que adotar o princípio do promotor natural com base na inamovibilidade de seus membros merece reparos201. A inamovibilidade é uma garantia funcional, cuja finalidade é proteger o pleno exercício das funções dos membros do parquet, contra desmandos de autoridades hierarquicamente superiores. É a garantia quem tem o promotor de justiça de permanecer no local/lugar do qual é titular, impedindo sua remoção exofficio, salvo por motivo de interesse público, assegurada, no caso, a ampla defesa. A inamovibilidade tem relação com o âmbito espacial, enquanto o promotor de justiça natural guarda estreita relação como termo designação. O princípio do promotor natural pressupõe a fixação das atribuições legais do órgão da Instituição e a identidade física do promotor ao processo que lhe é afeto.202 Outrossim, se esta fosse a justificativa deste postulado, deveríamos adotá-lo na Defensoria Pública, uma vez que o §.1° do art. 134 da Constituição, também assegura aos defensores públicos, a prerrogativa da inamovibilidade. Surgiria o “Defensor Público Natural”. No que concerne à alegação da independência funcional do Ministério Público como forma de justificar a existência do promotor natural, entendemos ser a mais acertada. Uma das formas de burla à independência funcional é a designação casuística de um promotor para atuar em feito originariamente atribuído a outro. Não há como negar a designação casuística como forma de clara afronta à independência funcional. Assim, o promotor natural se constitui em um dos desdobramentos possíveis da independência funcional. Das justificativas que resguardam a existência do Princípio do Promotor Natural, a mais “perigosa” seria de tratar com similitude absoluta o Ministério Público com a Magistratura. 201 Nesse sentido: Marcelo Navarro Ribeiro Dantas, op. cit., p. 36 e FONTELES, Claudio Lemos. Reflexões em Torno do Princípio do Promotor Natural. In: _____. Ministério Público Federal: visão do biênio 2003/2005. Brasília: Escola Superior do Ministério Público da União; Fundação Procurador Pedro Jorge de Melo e Silva, 2006. p. 21. 202 Nesse sentido: FONTELES, op. cit., p. 28. 85 O Ministério Público possui base jurídica e estrutura normativa-organizacional ímpar. A própria constituição tratou de fazê-lo. Desta forma, o Ministério Público não pode ser tratado como se magistratura fosse. 203 5.2 O PROMOTOR NATURAL COMO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL Um ponto se destaca na questão do promotor natural no nosso ordenamento jurídico. Ele versa sobre a definição jurídica e doutrinária do que sejam princípios jurídicos, o modo e a forma como tais princípios se encontram inseridos no ordenamento jurídico, além de sua abrangência e de sua penetração no segmento que lhe correlato. Não foi em vão, e muito menos sem pretensão que, em capítulo inteiro deste estudo, tratamos de interpretação, princípios e regras, elementos essenciais para a elucidação deste ponto. 203 Edinaldo de Holanda Borges em parecer que ofereceu no HC n.º 387.974-0/DF, que a nosso ver, esclarece melhor a questão:Estabelece o § 1° do art. 127 da Constituição Federal […]. Essa é a regência fundamental, o arcabouço normativo sobre o qual repousa toda edificação jurídica e doutrinária do Órgão que a história denominou de Ministério Público. Sobredito alicerce constitucional do império normativo, da concepção de KELSEN, cria um parâmetro jurídico-ideológico que limita e conduz toda conceituação do Ministério Público em suas esferas ônticas do exercício funcional. Essa diretiva fundamental, elevada a nível constitucional, não só define o Órgão, como o distingue e o separa dos Poderes constituídos, sobressaindo características inominadas e próprias. Tais predicamentos constitucionais individualizadores separam e distinguem o Ministério Público do Poder Judiciário, evitando que as normas nucleares de ambos sejam confundidas, na dimensão do desempenho funcional[…].Do sobredito paralelo entre as funções judicante e ministerial avulta a diferença que se irradia entre o poder de iniciativa e o poder de decisão. Se ambos não se identificam em sua estrutura formal, também não o fazem em seus princípios regentes. A Teoria Fixista do Juiz Natural, que emana do inciso LIII do art. 5º da Constituição Federal se contrapõe ao princípio constitucional da indivisibilidade que compõe o Ministério Público (§ 1ºdo art. 127).Pelo princípio da indivisibilidade, todos os Membros do Ministério Público são reciprocamente substituíveis, tornando o órgão uma totalidade homogênea, o que se contradiz com a noção de Promotor Natural, que traduz uma prefixação unitária. São dois princípios constitucionais de regência diferente e que se contrapõem em termos e finalidade. O Juiz Natural é garantia individual de julgamento independente. A indivisibilidade é postulado de garantia coletiva da defesa de bens sociais e públicos, que não pode ser fixado em apenas um Membro, mas em todo o Órgão. A diferença sobranceira que se estabelece entre o Poder Judiciário e o Ministério Público, na lição de Bruzzone é a conotação política de suas funções. Ao Ministério Público compete a realização da política criminal da sociedade organizada. A missão do Poder Judiciário, dizia ele, reside no controle e interpretação da lei penal, material e forma, mecanismo pelo qual se ampliará ou se limitará o campo de punibilidade e, em conseqüência, a perseguição e investigação […]. Investigar um delito assumindo funções policiais ou quase policiais é tarefa de órgãos administrativos, não do órgão jurisdicional […]. Essa conotação constitui a diferença que conduz SIEGERT a afirmar a impossibilidade de aplicação dos princípios que regem o Juiz ao Ministério Público. […] Se dois postulados constitucionais, o do Juiz Natural e o do Princípio da lndivisibilidade, estruturam fundamentalmente dois órgãos, não é razoável, nem jurídica, a aplicação inversa das regras, conferindo à estrutura de um órgão o alicerce normativo do outro. Estender a regra fixista do Juiz Natural, para criar o Promotor Natural é dividir as funções do Ministério Público, em contraposição à indivisibilidade constitucional. É afronta ao princípio da não contradição emanado da lógica formal. 86 Para efeito de rememoração, a doutrina divide o gênero norma: as normas princípios e as normas-disposição. Luis Roberto Barroso afirma que “normas-princípios têm, normalmente, maior teor de abstração e uma finalidade mais destacada dentro do sistema” enquanto que as normas-disposição, às quais também se refere como regras, “têm eficácia restrita às situações específicas às quais se dirigem.”204 O princípio jurídico, como norma, é encontrado de forma explícita ou implicitamente no ordenamento jurídico e é especial, na medida em que, diferente das regras, possui caráter geral, abstrato e, principalmente, forte elemento axiológico. Não é preciso descrever, neste ponto, todas as discussões teóricas envolvendo a distinção entre regras e princípios e nem seria útil reproduzir os vários critérios que têm sido empregados para extremar as duas espécies normativas. O que nos interessa agora é a distinção essencial entre princípios e regras. Uma forma bastante resumida de apresentar a questão é a seguinte: as regras descrevem comportamentos (positivos ou negativos), sem se ocupar diretamente dos fins que as condutas descritas podem realizar, ao contrário, os princípios estabelecem estados ideais, objetivos e seriam alcançados, sem explicitarem, necessariamente, as ações que devem ser praticadas para que esse fim seja alcançado.205 Assim, onde a teoria do promotor natural melhor se enquadraria, em nosso sistema jurídico? A nosso ver, promotor natural, em nosso ordenamento jurídico, seria considerado princípio. Apesar de o promotor natural descrever conduta – designação de membro do Ministério Público pelo Procurador-Geral – este também estabelece ideal, objetivo e possui conteúdo axiológico, como um princípio jurídico. A norma do promotor natural pretende produzir um efeito específico: evitar supostos arbítrios de Procuradores-Gerais em designações, avocações ou afastamentos espúrios e dotados de intenções perniciosas, bem como a garantia processual que todo processo o acusador será previamente definido. Nesse aspecto com efeito geral. O fato é que, a tese do promotor natural, em decorrência da importância de sua utilização e a vasta discussão em nosso ordenamento jurídico, já demonstra tratar-se de um 204 BARROSO, op cit, p. 151. 205 ÁVILA, op cit, p. 64 e ss. 87 verdadeiro princípio constitucional. 206 A existência expressa de norma referente ao promotor natural não torna sua utilização duvidosa, pois o mesmo, como já demonstrado, decorre dos princípios que regem o processo e do princípio da independência funcional. Ocorre que em determinados momentos, o princípio pode entrar em rota de colisão com os princípios da unidade e indivisibilidade, que foram esmiuçados anteriormente. Nesse caso, dependendo do caso em concreto, devemos utilizar a ponderação e afastar aquele princípio que seja menos indicado ao caso concreto. Sendo assim, considerando a impossibilidade de designações por parte do Procurador-Geral, nas situações em que o princípio do promotor natural possa vir a prejudicar uma investigação criminal ou uma persecução processual, como ficariam outros princípios de nosso ordenamento jurídico, como o da segurança da social e da eficiência do Ministério Público, uma vez que o aproveitamento dos recursos humanos deste órgão ficariam limitados? Diante da pós-modernidade, globalização e do crime organizado, o principio do promotor natural é passível de releitura e de nova interpretação como princípio jurídico imanente em nosso sistema jurídico, face aos novos desafios serem enfrentados pelo Ministério Público no desenvolvimento de suas funções institucionais. 5.3 O PROCURADOR-GERAL, DESIGNAÇÕES E GRUPOS ESPECIALIZADOS O poder de designar é derivado poder de hierarquia administrativa, o qual faz parte da estrutura do Ministério Público, sendo um dos seus desdobramentos de sua autonomia administrativa. E mais uma vez relembramos que essa hierarquia não atinge o plano funcional, já que aos membros do “parquet” foi assegurada, constitucionalmente, a garantia da independência funcional. Designação é ato pelo qual o Procurador-Geral de Justiça indica Órgão do Ministério Público para oficiar em determinado processo. Este conceito é direcionado para a atividade processual do Ministério Público e engloba quaisquer atividades do “parquet”, como Órgão interveniente, antes ou iniciado o processo.207 206 Nesse sentido: SOUZA, Motauri, op. cit., p. 174. 207 CARNEIRO, Paulo, op. cit., p. 60. 88 Nessa linha, foi visto que, todo ato do Procurador-Geral que vise ferir o princípio do promotor natural, segundo a doutrina 208 que defende esta teoria, seria nulo, ficando vedadas designações, ainda que, com aparência de legalidade. As designações do Procurador-Geral são válidas, desde que seja respeitada a garantia da independência funcional do membro do Ministério Público. A sociedade clama por uma persecução criminal judicial, com plena autonomia, isenta de motivações subalternas e, principalmente, com presteza e eficácia. E foi com esse desiderato que foram criados, na última década, os grupos especializados, no âmbito do Ministério Público. E convém ressaltar que a idéia de criação de grupos especializados não é recepcionada pelos doutrinadores que defendem a teoria do promotor natural. Vejamos esta passagem de Paulo Cezar Pinheiro Carneiro: Na realidade, as equipes especializadas não são órgãos de execução criados por lei com atribuições pré-determinadas; por esta razão elas somente podem se apresentar como serviços auxiliares do gabinete do Procurador-Geral de Justiça, não sendo possível aos membros designados para atuarem nestas equipes exercerem atribuições afetas a órgãos de execução específicos, sob pena de ofensa ao princípio constitucional do promotor natural, garantia também do equilíbrio processual e da igualdade das partes.209 Sem embargo do que já foi dito, não parece que a atuação de um promotor especializado no lugar de outro possa repercutir em um processo, causando-lhe nulidade. 210 O Ministério Público possui os princípios da unidade e indivisibilidade, terreno em que as designações são perfeitamente solidificadas. O cuidado que se tem que ter é de evitar excessos arbitrários e casuísticos e para tanto, o Ministério Público possui outros instrumentos hábeis como remédios – o princípio da independência funcional e o da garantia da inamovibilidade. 208 Para Hugo Nigro Mazzilli (2007, op cit., p. 124): “As designações só podem ocorrer quando haja prévia hipótese legal, como por exemplo: a) na recusa do arquivamento do inquérito policial ou do inquérito civil; b) nos casos de atribuição originária do Procurador-Geral, em que se resolva efetuar delegação, porque, sempre que originariamente lhe caiba agir, pode praticar diretamente o ato, avocar sua prática ou designar quem haja por ele, como nas ações penais originárias; c) nos casos de impedimento, suspeição, conflito de atribuições, recaindo a designação sobre o substituto automático; d) nas hipóteses excepcionais de afastamento compulsório; e) quando de designações quaisquer, em que os agentes envolvidos voluntariamente se disponham a aceitar a designação, pois aqui neste último caso não estaria havendo nenhuma remoção compulsória, evidentemente.” 209 CARNEIRO, José Reinaldo Guimarães. O Ministério Público e suas Investigações Independentes. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 64. 210 Nesse mesmo sentido: DEMERCIAN, op. cit., p. 76. 89 Assim entendemos perfeitamente salutar e legal a criação de grupos especializados, com cargos abertos e genéricos, para melhor utilização de membros do Ministério Público. A Instituição, por determinação constitucional, é um dos pilares do Estado Democrático de Direito e para concretização de seus fins, a “forma” – criação de grupos especializados - não pode ser embaraço de realização de suas metas. Dessa forma, o principio do promotor natural não deve atuar como fator de “engessamento”, a ponto de inviabilizar, a atuação conjunta de promotores em determinada situação cujas peculiaridades a recomendem para um desempenho mais eficiente das funções ministeriais, como no combate às organizações criminosas. A preocupação reside na retirada abrupta e intencional de membro de Ministério Público de determinado feito pelo Chefe da Instituição. Nesses casos, existe clara e evidente afronta ao princípio do promotor natural que deve repelida com veemência. Designação é diferente de retirada de atribuição. Designação é conseqüência do principio do promotor natural, desde que observados critérios pré-estabelecidos. Existem casos cuja complexidade – como o combate ao crime organizado – exige a participação de promotor mais especializado e experiente, e seria retrocesso exigir que neles apenas o promotor natural pudesse funcionar. Sobre o tema, escreveu o Ministro Sepúlveda Pertence, em seu voto no HC 69599-0/RJ: […] Nem me parece que o sistema constitucional constitua óbice à continuidade e ao aprofundamento da experiência de grupos especiais de promotores, dedicados a matérias específicas: na medida em que constituídas na forma da lei, o plexo de atribuições das tais equipes, ipso facto, estará subtraído da esfera protegida das atribuições legais ordinárias do agente que tenha a sua demarcação na competência do juízo perante a qual sirva. Estou, data vênia, em que opinião contrária é fruto do mesmo mimetismo a que aludi e parte da falsa idéia de que a rotina ronceira de que o ofício de cada órgão do Ministério Público dever ter atribuições coextensivas ao de um órgão do Judiciário. Nada, entretanto, o impõe e as conveniências da administração dos fins institucionais do Ministério Público freqüentemente desaconselham. […] 90 5.4 O PROCURADOR DE JUSTIÇA NATURAL É interessante traçarmos algumas linhas a respeito dos Procuradores de Justiça (membros do Ministério Público que exercem suas atribuições junto à segunda instância dos Tribunais de Justiça), para verificarmos se, caso existisse a regra do promotor natural, essa os alcançaria. A Lei Orgânica do Ministério Público do Pará, ao cuidar das atribuições dos Procuradores de Justiça, estabelece que eles têm atribuição junto à segunda instância, junto ao Tribunal de Justiça do Estado, respeitando a competência privativa do Procurador-Geral de Justiça (art. 58 da Lei Complementar n.º 57, de 06 de julho de 2006). Dessa forma, é de se concluir que esses Órgãos do Ministério Público agem, na realidade, como delegatórios do Procurador de Justiça. Assim, os Procuradores de Justiça têm atribuições para atuar em todos os feitos da segunda instância que sejam de atribuição do Procurador-Geral de Justiça, salvo naqueles casos em que essa atribuição for, nos termos da Lei, privativa. De outra banda, o Código de Processo Penal, em seus artigos 610, caput e art. 613 estabelece que, nos tribunais, a vista dos autos deve ser aberta ao Procurador-Geral. Assim, com se trata de oficiar perante tribunais (esta não é atribuição privativa do Procurador-Geral), os demais Procuradores de Justiça também podem se manifestar, caso o Procurador-Geral não tenha se manifestado. Trata-se de atribuição residual. 211 Com efeito, a organização de distribuição de feitos entre Órgãos do Ministério Público de segunda instância tem como finalidade apenas organizar os serviços internos, fato totalmente diferente ao que acontece ao promotor natural, segundo àquela teoria. Sendo assim, não haveria, portanto, razão para entender tal princípio aos Procuradores de Justiça.212 Diante do que foi exposto, mais uma vez, a teoria do promotor natural é relativizada. Entendemos que princípios e garantias dos membros do Ministério Público são estabelecidos com o intuito de atingir a Instituição como um todo. O princípio do promotor natural, caso admitíssemos em sua integralidade, só alcançaria uma parcela da Instituição. E por outro lado, não nos parece razoável que, ao ingressar no Órgão, o membro do Ministério 211 Cf. Pedro Henrique Demercian, op. cit., p. 85. 212 Cf. Ibid., p. 86. 91 Público tenha um portfólio de prerrogativas e garantias e, ao alcançarem seu último nível na carreira, essa sejam diminuídas. Não faria qualquer sentido. O importante é que se mantenha a independência do Membro do Ministério Público, seja ele Promotor ou Procurador. Assim, não é possível e admissível a retirada abrupta de determinado Procurador de caso para ele distribuído. 5.5 NORMAS POSITIVAS QUE AJUDAM A ENTENDER O PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO No tocante ao arcabouço constitucional, os constituintes de 1988 não inseriram na Carta Política em vigor um único dispositivo que, expressa e especificamente, tratasse do princípio ou garantia do promotor natural. Daí que, em visão preliminar, diante dessa atitude da Assembléia Nacional Constituinte, ousamos em entender que o princípio do promotor natural em nosso sistema constitucional deve ser utilizado com temperamentos. Em sede constitucional, os defensores da teoria do promotor natural213 indicam que o fundamento deste princípio repousaria no art. 5.º incisos XXXVII e LIII, os quais refletem, respectivamente “que não haverá juízo ou tribunal de exceção” e que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Essa fundamentação é a mesma do juiz natural e, como veremos mais adiante, Ministério Público e Poder Judiciário são instituições distintas, logo não passíveis de comparações. Na legislação infraconstitucional, existem as seguintes legislações que versam sobre o tema: a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (LOMP, Lei nº 8625/93) e a Lei Complementar n.º 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da União). Vejamos na LOMP: O art. 10, inciso IX, letra “g”, do mencionado diploma legal estabelece que “compete ao Procurador Geral de Justiça, por ato excepcional e fundamentado, exercer as funções processuais afetas a outro membro da instituição, submetendo sua decisão ao Conselho Superior do Ministério Público”. 213 Nesse sentido: DANTAS, Marcelo Navarro. Princípio do Promotor Natural. Salvador: Jus Podvm, 2004. p. 47. 92 O art. 24, do mencionado diploma estabelece que o “Procurador Geral de Justiça poderá, com a concordância do Promotor de Justiça Titular, designar outro Promotor para funcionar em feito determinado, de atribuição daquele”. Por seu turno, o art. 57, XIII da Lei Complementar n.º 75/93 estabelece que “compete ao Conselho Superior do Ministério Público Federal autorizar a designação, em caráter excepcional, de membros do Ministério Público Federal, para exercício de atribuições processuais perante juízos, tribunais ou ofícios diferentes dos estabelecidos para cada categoria.” Desta forma, para os que aguardavam que legislação infraconstitucional trouxesse expressamente em seus dispositivos o princípio do promotor natural, a espera foi em vão. O legislador infraconstitucional, além de não expressar o princípio, demonstrou sua relatividade.214 A nosso ver, se existe possibilidade de afastamento ou designação de membro do Ministério Público de determinada causa, não há como se falar em promotor natural como regra absoluta e fechada. É evidente que promotores especializados têm melhores condições de instruir inquéritos e ajuizar ações civis e penais mais complexas. Os ganhos são de qualidade e de celeridade para o Ministério Público e para a sociedade. Vejamos as palavras de Paulo Cézar Pinheiro Carneiro: É certo, e disso não temos a menor dúvida, que a intenção do legislador foi a de possibilitar naqueles casos de especialização de matéria, de existência de relevante interesse público, da necessidade de dedicação quase exclusiva de promotor a determinada causa, fosse possível designar outro para permitir melhor desempenho processual ou mesmo evitar eventual comprometimento da Instituição. 215 À guisa de conclusão, como forma de reforçar o entendimento que, na legislação infraconstitucional não contempla, em absoluto, o princípio do promotor natural, Rogério 214 Tanto é que Paulo Cézar Pinheiro Carneiro (op. cit., p. 77), em passagem de sua obra, reconhece a intenção da Lei em afastar tal postulado. Fundamental, agora, examinar em separado as únicas duas hipóteses que poderiam, em tese, determinar o afastamento do promotor do exercício pleno ou em parte de suas atribuições fixadas em li, com possível reflexo na teoria do promotor natural. 215 CARNEIRO, Paulo, op. cit., p. 22. 93 Theófilo Fernandes, ao enfrentar a questão, concluiu que as disposições normativas citadas constituem uma afronta ao promotor natural e são eivados de inconstitucionalidade. 216 5.6 O TRATAMENTO JURISPRUDENCIAL DISPENSADO PELO STF ACERCA DO PROMOTOR NATURAL O princípio do promotor natural teve sua primeira aparição no Colendo Supremo Tribunal Federal, ainda sob a égide da Constituição de 1967/69. Trata-se do julgamento do RHC 48728/SP, publicado em 16.11.1971. 217 Naquele julgamento, assim como nos demais que se sucederam sobre a matéria, o princípio do promotor natural não foi reconhecido explicitamente, mas negado. Naquele debate, o voto vencido do Ministro Antônio Neder buscava fundamentar o princípio do promotor natural como sendo uma expansão do juiz natural e que decorria da legalidade e do devido processo legal. 218 Dessa forma, no citado julgamento, não vingou a tese do promotor natural e o tema permaneceu basicamente na doutrina, até que, com o advento da Constituição de 1988, o STF voltou a se manifestar sobre ela, a partir da década de 90. 216 FERNANDES, Rogério Theófilo. Do Promotor Natural. Boletim Jurídico. Uberaba/MG, a.4, nº 188. Disponível em: http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1437 acesso em: 4 mar, 2009. 217 Trata-se de caso histórico, o da denúncia do, então Procurador de Justiça Hélio Bicudo, contra o famigerado esquadrão da morte (o recorrente era ninguém menos que o delegado Sérgio Fleury). 218 A tese capitaneada pelo Ministro Relator Luiz Gallotti foi vencedora e pode ser resumida com o seguinte trecho de diálogo: […] O Sr. Ministro Luiz Gallotti (relator): - O que não se pode escolher é o juiz. O Procurador pode-se. O Sr. Ministro Antonio Neder: - Não. Nem o Procurador pode tanto. ... O Sr. Ministro Antonio Neder: -...a Constituição expressa, no art. 153, § 15º., que é proibido Tribunal de exceção. - O Sr. Ministro Luiz Gallotti (relator): - Mas não diz que é proibido acusador de exceção. Acusador é parte, Tribunal é juiz. O Sr. Ministro Antonio Neder: - O texto não comporta essa distinção: se é proibido Tribunal de exceção, são vedados o juiz e o julgamento excepcionais; e se não é permitido julgamento de exceção, obviamente não se pode compreender julgamento criminal sem acusador e defensor. - O Sr. Ministro Luiz Gallotti (relator): - Mas está escrito Tribunal; V. Exa., vai ler acusador? 94 Em outubro de 1991, já sob a égide da atual Constituição, a 1.ª turma do STF, no julgamento do HC 68.739-3/DF, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, admitiu implicitamente a existência do princípio do promotor natural, buscando conciliá-lo com os princípios da unidade e indivisibilidade do Ministério Público. O mais importante julgamento (leading case) do STF sobre a matéria, no entanto, ocorreu quase um ano depois, em 06 de agosto de 1992, quando em sessão plenária, a Corte Maior apreciou o HC 67.759-2/RJ. Assim, em agosto de 1992 foi a julgamento o Habeas Corpus n° 67.759-2, oriundo do Rio de Janeiro, onde se questionava a designação de um promotor especial, pelo Procurador Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, para atuar em todos os procedimentos persecutórios penais resultantes de determinada operação policial, denominada “Operação Bandeja”, efetuada na Capital Carioca. Neste HC, o impetrante sustentava que tal designação ofendia o Princípio do Promotor Natural que, na hipótese, seria o titular da Promotoria da 5ª Vara Criminal do Rio de Janeiro. Neste julgamento, o Ministro Celso de Mello, o qual foi o Relator, entendeu existir o Principio do Promotor Natural, entretanto, manifestou-se no sentido de que tal Princípio, no Sistema Jurídico Brasileiro, depende de Lei para que tenha aplicabilidade, e enquanto não sobrevier a disciplina legislativa pertinente, não há como aplicar ou mesmo invocar o Princípio do Promotor Natural. Neste mesmo sentido foi o voto do Ministro Sydney Sanches, que entendeu que a Constituição de 1988 não contém explícita, nem implicitamente o Principio do Promotor Natural, nada impedindo, porém, que Lei Infraconstitucional viesse a adotar tal princípio. No mesmo julgamento os Ministros Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio e Carlos Velloso votaram pela existência do Princípio do Promotor Natural no Sistema Jurídico Brasileiro, independentemente de intermediação legislativa, pois o mesmo decorre do princípio da independência funcional do Ministério Público e da garantia da inamovibilidade, ambos relacionados com os princípios do Juiz Natural e do Devido Processo Legal. Por outro lado, manifestaram-se posição de expressa rejeição à existência desse Princípio os Ministros Paulo Brossard, Octavio Gallotti, Néri da Silveira e Moreira Alves. Desta forma, por seis votos a três, mais uma vez, o STF rechaçou a teoria do promotor natural. O pleno do STF voltaria ao tema no HC 69.599-0/RJ, sob a relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, mantendo implicitamente o reconhecimento de que o princípio do promotor natural encontrava guarida na Constituição, mas agora tratava de conciliar o 95 postulado com a existência de grupos especializados de trabalho. Concluiu-se que o reconhecimento do princípio não colide com a criação destes grupos especializados, desde que, e na medida em que, serão obedecidos critérios objetivos de designação. A partir de então, o STF, em seus julgamentos, apenas se reportou ao princípio sem enfrentá-lo.219 5.6.1 Os Julgamentos do RE 387974/DF e HC 90277-4/DF A 2.ª Turma do Egrégio Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 387974/DF, em 12 de maio de 2003, por meio da relatoria da Ministra Ellen Gracie, assim se pronunciou: No tocante ao mérito, adoto a posição que foi fixada pela maioria da Corte no julgamento do HC 67759, Rel. Min. Celso de Melo, DJ 01.07.93. Naquela ocasião o plenário rejeitou a tese do promotor natural. Ao seu expresso afastamento (entendimento manifestado pelos ministros Moreira Alves, Néri da Silveira, Paulo Brossard e Octavio Gallotti), somou-se a posição mais cautelosa, embora concorrente, dos ministros Sydney Sanches e Celso de Melo, para quem a intervenção legislativa se faz necessária para tornar possível a aplicabilidade do princípio. Desta forma, é de se concluir que, após mais de trinta anos de debates sobre o tema na Suprema Corte, composta por “cidadãos de notável saber jurídico”, a existência ou não do princípio do promotor natural em nosso ordenamento jurídico encontrou uma definição: o princípio do promotor natural, para o STF, não existe! 219 Verificar os seguintes julgados: HC 71429-3/SC; HC 74052-9/RJ; HC 77723-7/RS; RHC 80476-4/SC e HC 81998-2/GO. 96 Nessa mesma esteira, no recente julgamento do HC 90277-4/DF (Operação Anaconda), realizado pela 2ª turma em 17.06.2008, tendo como relatora novamente a Ministra Ellen Gracie, a existência do princípio foi, por unanimidade, rejeitada mais uma vez. Extrai-se da longa ementa: DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL. INEXISTÊNCIA (PRECEDENTES). AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA NO STJ. INQUÉRITO JUDICIAL DO TRF. DENEGAÇÃO. 1. Trata-se de habeas corpus impetrado contra julgamento da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça que recebeu denúncia contra o paciente como incurso nas sanções do art. 333, do Código Penal. 2. Tese de nulidade do procedimento que tramitou perante o TRF da 3ª Região sob o fundamento da violação do princípio do promotor natural, o que o representaria. 3. O STF não reconhece o postulado do promotor natural como inerente ao direito brasileiro (HC 67.759, Pleno, DJ 01.07.1993): "Posição dos Ministros CELSO DE MELLO (Relator), SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO: Divergência, apenas, quanto à aplicabilidade imediata do princípio do Promotor Natural: necessidade de "interpositio legislatoris" para efeito de atuação do princípio (Ministro CELSO DE MELLO); incidência do postulado, independentemente de intermediação legislativa (Ministros SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO). Reconhecimento da possibilidade de instituição de princípio do Promotor Natural mediante lei (Ministro SIDNEY SANCHES). - Posição de expressa rejeição à existência desse princípio consignada nos votos dos Ministros PAULO BROSSARD, OCTAVIO GALLOTTI, NÉRI DA SILVEIRA e MOREIRA ALVES". 4. Tal orientação foi mais recentemente confirmada no HC n° 84.468/ES (rel. Min. Cezar Peluso, 1ª Turma, DJ 20.02.2006). Não há que se cogitar da existência do princípio do promotor natural no ordenamento jurídico brasileiro […] Habeas corpus denegado.” (grifamos). Diante de tudo o que foi exposto, restou claro que o princípio do promotor natural sofre resistência em alguns julgados do Supremo Tribunal Federal. Teria, de fato, o Supremo Tribunal Federal, por meio dessas decisões, rejeitado, terminantemente o princípio do promotor natural em nosso ordenamento? Entendemos que não. Primeiro é importante ressaltar que a maioria das decisões é resultante de Turmas do Supremo Tribunal Federal, não devendo representar a posição fechada daquela Corte; segundo, o fato de haver, naquelas hipóteses, considerado que não houve vulneração da independência pelo ato do ProcuradorGeral, ali analisado, não indica, de per si, apreço ou desapreço pelo postulado objeto deste estudo, porque em vários casos o Supremo admitiu o princípio, mas entendeu que, concretamente, não tinha sido afrontado. 97 Desta forma, o principio do promotor natural, segundo o Supremo Tribunal Federal, deve ser analisado no caso em concreto, vez que até então, segundo àquela Corte, não foi detectado caso de violação do postulado, doravante relativizado, do promotor natural. O Ministério Público Brasileiro, como agente de transformação social em um regime democrático, atravessa por uma fase de desafios, acentuada face à pós-modernidade, onde novos desafios se fazem presentes, como o crime organizado. Nesse cenário, novos paradigmas de atuação se fazem necessários. Assim, a relativização do princípio do promotor natural, ou seja, seu afastamento em determinados casos, é uma realidade que não pode passar despercebida, sob pena de inviabilizar a atuação ministerial no combate ao crime organizado. 5.7 O PRINCÍPIO DO PROMOTOR NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO Em todo o mundo, o Ministério Público é o interprete dos interesses gerais na punição e o responsável direto pela eficácia e pela legalidade desta missão. Fiel depositário de tradições e reflexo de tendências, o “parquet” é precursor de uma época em que, na sociedade, só se ouvirá uma voz legítima, a dela própria, como resumo puro e real de anseios, ainda não alcançados. Nesse sentido, se faz necessário uma reflexão da situação atual de nossa administração da justiça. Em primeiro lugar, é forçoso afirmamos que a justiça penal de nosso país, não tem alcançado em nível de eficácia tolerável que a sociedade brasileira exige e merece. E esta falha de prestação de serviço, ocasiona enormes danos comunitários, que não são mais aceitáveis. Como foi visto, o mundo passa por mudanças em todos os seus níveis. A sociedade pós-moderna detém características, até então desconhecidas, que erradia aspectos negativos. O homem mudou. A globalização como fenômeno, veio acrescentar elementos outrora desconhecidos nas relações humanas, onde o homem tem sofrido conseqüências nefastas e incontroláveis. O mundo mudou. Desta forma, diante de essa transformação, elementos novos surgiram em um cenário mundial. Referimos-nos ao crime organizado, que de forma surpreendente, mudou para sempre, o modo de lhe dar com o ilícito, com a contravenção. 98 Sendo assim, o problema da administração da justiça criminal deve ser entendido como um problema de todos, inclusive do Ministério Público. E para tanto é necessário um órgão eficaz, independente, para que possa fazer frente a essa nova realidade. O Ministério Público não pode ser concebido e nem analisado, em uma mentalidade de trinta anos atrás. Hoje os tempos são outros. Instrumentos e princípios jurídicos que ajudaram a consolidação do Ministério Público enquanto Órgão defensor do Regime Democrático (como é o caso do princípio do promotor natural) não devem ser utilizados como forma de inviabilizar o trabalho do “parquet”. A sociedade reclama por uma resposta e o Ministério Público deve adequar-se para dá-la. No caso do crime organizado, a velha fórmula do bando ou quadrilha para tipificá-lo não é mais capaz de subsumir as sofisticadas organizações criminosas, hoje atuantes em todo o globo. Daí a necessidade inadiável de enfrentamento desse fato alarmante, que vem se constituindo no tema principal e mais importante da agenda de estudiosos do direito penal. Assim, uma mudança na mentalidade, na conduta e na postura do Ministério Público brasileiro, onde se priorizasse o combate ao crime, seria suficiente por ora, para enfrentar a criminalidade organizada, respeitando-se, é claro, as garantias do Estado Democrático de Direito, sem ingressar no direito penal de emergência 220, com sacrifícios às garantias individuais. Desta forma, o Ministério Público deve estar apto a enfrentar o problema do crime organizado e outros que se aprimoraram e se disseminaram com a globalização. Sobre o tema Daniella Dias escreveu: O promotor de justiça se vê diante de um paradoxo: as estruturas jurídicas e as instituições com quem trabalha não possuem “lentes” para ver e resolver conflitos complexos, muito menos para viabilizar, de forma eficiente, o exercício de sua função jurídico-constitucional de protetor da ordem democrática e dos interesses sociais e individuais indisponíveis 221. 220 Para Hassan Choukr Fauzzi na obra Processo Penal de Emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 05: “Legislação de emergência é aquilo que foge aos padrões tradicionais de tratamento pelo sistema repressivo, constituindo um subsistema de derrogação dos cânones culturais empregados na normalidade.” 221 DIAS, Daniella S. Algumas Reflexões Pessoais Sobre os Desafios que o Ministério Público Deve Enfrentar na Atualidade. Revista do Programa de Pós-gradução em Direito da Universidade da Amazônia, Belém, v.3, n. 3, 2007. p. 66. 99 E prossegue: Diante desse paradoxo e da necessidade de redimensionamento das atividades ministeriais para dar novo sentido e legitimidade à própria instituição, tendo em vista o resgate da democracia e da cidadania, o Ministério Público busca solucionar os problemas complexos e difusos, dentro da crise paradigmática porque passa o estado democrático de direito.222 Na sociedade brasileira, a violência e o crime estão difusamente propagados. São resultados da explosão do descontrole pós-moderno e da desigualdade social. Nesse cenário, o Ministério Público adota nova feição institucional, despido de alinhamento subserveniente a qualquer dos Poderes de Estado (em especial do Poder Executivo). Agindo assim, o Ministério Público se estabelece para ser a voz da sociedade brasileira ante o Poder Judiciário, tanto na área criminal como na área cível. Dessa forma, as ações institucionais, em especial por meio de grupos especializados, marcam as defesas na seara ambiental, das minorias, do patrimônio público e a própria persecução criminal. A atuação do “parquet” vai ao encontro também, dos autores ligados às organizações criminosas de todos os matizes, até então indiferentes à pretensão punitiva. Para tanto, o Ministério Público deve se despir de conceitos e regras anacrônicas que não ajudam o desempenho institucional, como da adoção total e irrestrita do princípio do promotor natural. Se tal postulado for adotado de forma fechada e inflexível em nosso ordenamento, a atuação ministerial, na área criminal, sofrerá um choque. A criação de grupos de promotores especializados e designações específicas de membros para atuarem no combate ao crime organizado é hoje, uma realidade vital para a proteção da sociedade. A teoria do promotor natural pressupõe limites físicos e geográficos à atuação o Promotor de Justiça. No entanto, em uma era pós-moderna e globalizada onde o crime o organizado não possui “fronteiras”, precisamos de um Ministério Público também “sem fronteiras”, onde com uma atuação articulada possa exercer sua função de forma eficaz. É a dinâmica dos dias atuais. No entanto essa postura encontra resistências. Resistência advinda de grupos políticos internos do próprio Ministério Público, de membros mais conservadores que ainda tem a idéia que o órgão é um fim em si mesmo e que, em decorrência de experiências passadas negativas, insistem em não mudar. E principalmente, da resistência do próprio crime organizado, uma vez que através dele (recursos e habeas corpus 222 DIAS, 2007, op. cit., loc. cit. 100 impetrados por réus em processos crimes) que o princípio do promotor natural é levado e defendido em nossos Tribunais Superiores. Nessa linha, o que seria da “Operação Anaconda”, se o princípio do promotor natural fosse adotado em sua plenitude? Certamente cairia por terra. No entanto, a mais recente decisão sobre o princípio do promotor natural (HC 90277/DF), o postulado foi afastado e a operação foi mantida. O trabalho do Ministério Público não foi em vão! No mesmo sentido, sábias e corajosas as palavras de Antônio Scarance Fernandes: Há com a exarcebação do princípio – do promotor natural -, riscos e dificuldades. O Ministério Público como parte, corre riscos de se tornar órgão inerte, burocratizado, sem forças para realizar eficiente persecução penal. É difícil conciliar o princípio do promotor natural com um Ministério Público mais dinâmico, com um promotor que exerce papel decisivo na fase de investigação fica difícil a atuação dos promotores criminais. 223 E continua o autor: se por um lado, o princípio tem a vantagem de evitar a possibilidade de o Procurador-Geral, movido por influências estranhas, retirar do promotor natural a atribuição para atuar em determinado inquérito ou processo, traz também o risco de fazer com que o Ministério Público, Instituição que pela sua natureza deve ser como característica fundamental a agilidade, o dinamismo, mormente ante as exigências contemporâneas de maior atuação na fase de investigação e de maior eficiência no combate aos crimes graves e à criminalidade organizada torne-se um órgão inerte, burocrático. 224 É justamente nesse último ponto que se questiona: o promotor natural, nos moldes que foi concebido e justificado, representa algo positivo ao Ministério Público? Entendemos que não. O promotor natural, se utilizado de forma absoluta, engessa a Instituição e não “blinda” os promotores de justiça, como argumentam os defensores desta teoria. Na realidade, é instrumento nas mãos das organizações criminosas, na tentativa de inviabilizar o trabalho do Ministério Público. Diante de tudo que foi exposto, o princípio deve servir ao Ministério Público e não ao contrário. Por isso e por outros motivos aqui expostos, o mesmo deve ser interpretado de acordo com a destinação constitucional do Ministério Público, para se fazer valer em nossa atual realidade. 223 FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1999. p. 239. 224 Ibid. loc. cit. 101 Os membros do Ministério Público, para a formação de sua consciência institucional, para compreensão da complexidade e da extensão de sua missão e, principalmente, para uma atuação eficaz, precisam estar integrados aos demais ambientes de significação social e política. Vivemos em uma sociedade em rede. Para Castells “como tendência histórica, as funções e os processos dominantes na era da informação estão cada vez mais organizados em torno de redes” e estas, segundo o autor “constituem a nova morfologia social de nossas sociedades e a difusão da lógica de redes modifica de forma substancial a operação e os resultados dos processos produtivos e de experiência, poder e cultura”. 225Assim, o Ministério Público não poderia ficar indiferente a esse processo. O reconhecimento e a legitimação social do Ministério Público implicam, por isso, mais ciência e imaginação na organização dos meios de que se dispõe, mais, melhor, diversificada e permanente formação de seus membros, em uma especialização crescente, mais coordenação, trabalho coletivo e pluridisciplinar.226 O principio deve ser relativizado como forma do Ministério Público enfrentar novos desafios para sua atuação, o que pressupõe a criação de estruturas administrativas mais flexíveis, que possibilitem a atuação em grupos especializados ou mesmo parcerias de membros de Promotorias distintas, sem que isso leve a uma interpretação de “bloqueio” que venha engessar ou deslegitimar a atuação do Ministério Público brasileiro. 225 226 CASTELLS, v. 1, op. cit., p. 565. CLUNY, Antônio Francisco de Araújo Lima. O Ministério Público na Hora da Globalização: O presente e o Futuro. Revista Justitia, São Paulo, v. 197, p. 409-426, 2007. 102 6 CONCLUSÃO À guisa de conclusão, parece útil apresentar um breve resumo dos objetivos gerais da presente dissertação, por meio dos quais se poderá ter uma visão de conjunto do trabalho, para em seguida, apresentar, de forma mais analítica as principais idéias desenvolvidas ao longo do texto. O objetivo deste estudo foi contribuir para uma melhor análise acerca do princípio do promotor natural o tornando um instituto mais atual, eficaz e de acordo com a nova destinação constitucional do Ministério Público e para atingir esse objetivo algumas proposições centrais foram estudadas. Em primeiro lugar, apresentou-se uma contextualização do momento pelo qual a sociedade (pós-moderna) atual atravessa, com a avaliação de fenômenos como a globalização e da criminalidade organizada e seus reflexos para o direito e as Instituições que tem como finalidade a defesa da sociedade, como o Ministério Público. Em seguida, foi feito uma avaliação da interpretação e de princípios, uma vez que, apesar de não expresso no ordenamento jurídico brasileiro, o promotor natural é princípio constitucional. O estudo por fim, ocupa-se de mais outros dois temas, estes vinculados diretamente ao propósito geral. O primeiro é a análise do Ministério Público enquanto Instituição permanente e indispensável à administração da justiça brasileira, partindo de seu histórico, princípios constitucionais e sua destinação, ou seja, seus elementos essenciais. E por último, a avaliação específica do princípio do promotor natural, desde sua concepção doutrinária até as mais recentes decisões do Supremo Tribunal Federal, tudo com a finalidade de uma melhor leitura do mesmo, em tempos de globalização e de criminalidade organizada. De forma analítica, é possível demonstrar as principais idéias desenvolvidas ao longo do estudo nas proposições que se seguem, na ordem em que foram tratadas no texto. 1. No final do século que passou, uma revolução tecnológica com base na informação transformou nosso modo de pensar, de produzir de consumir, de negociar, de administrar de comunicar e de viver. A pós-modernidade é uma nova era da humanidade, caracterizada, a rigor, por processos de mudança estrutural que deslocam a lógica de funcionamento desse período de transição – como, por exemplo, o modo de produção de bens materiais proeminentemente manufatureiros – para um modelo onde a informação (e seus mecanismos de produção, 103 organização, codificação e disseminação) ganha a centralidade do sistema de sociabilidade entre os indivíduos e os povos. A pós-modernidade, como movimento intelectual, é a critica da modernidade, a consciência da necessidade de emergência de outra visão de mundo, a consciência do fim das filosofias da história e da quebra das grandes metanarrativas, demandando novos arranjos que sejam capazes de ir além dos horizontes fixados pelo discurso da modernidade. Uma nova economia surgiu em escala global nos ultimas décadas do século XX. Trata-se de uma economia informacional, global e em rede. É informacional porque a produtividade e a competitividade dos agentes dessa economia dependem de sua capacidade de gerar, processar e aplicar, de forma eficiente, a informação baseada em conhecimentos; é global porque as principais atividades produtivas, o consumo e a circulação assim como seus componentes (capital, trabalho, matéria-prima, administração, informação, tecnologia e mercados) estão organizados em escala global, diretamente ou mediante uma rede de conexões entre agentes econômicos; e, é em rede porque nas novas condições históricas, a produtividade é gerada e a concorrência é feita em uma rede global de interação entre redes empresariais. Para a economia, a globalização é um fenômeno de derrubada de fronteiras comerciais, industriais e econômicas, entre os países do plante Terra. É o livre comércio intenso. Globalização é a intensificação de relações sociais mundiais que unem localidades distantes de tal modo que os acontecimentos locais são condicionados por eventos que acontecem a muitas milhas de distância e vice-versa. Na sociedade moderna a ênfase era dada ao perigo, na pós-moderna é dada ao risco, vez que o perigo só existe em função do risco. O risco, e não mais a segurança, gera o perigo. Assim, a sociedade pós-moderna é sinônimo de sociedade de risco. O risco pósmoderno se caracteriza pela ausência de segurança e a presença da contingência. É de domínio doutrinário que a sociedade caracteriza pela pós-modernidade e nunca pela indeterminação e pela instabilidade, geradas pela falta de segurança e pela possibilidade premente do dano em face do risco inerente às ações. A dinâmica da globalização reduziu os entraves ao movimento de pessoas, bens e transações financeiras. As barreiras comerciais e financeiras foram derrubadas. Com isso, os grupos internacionais do crime organizado puderam expandir a sua ação e organização. Nas últimas duas décadas, as organizações criminosas vêm estabelecendo, cada vez mais, suas operações de uma forma transnacional, aproveitando-se da globalização econômica e das novas tecnologias de comunicação e transporte. 104 O crime organizado beneficia-se da globalização da economia, do livre comércio, do desenvolvimento das telecomunicações e do sistema financeiro internacional. O crime forma uma rede paralela ao Estado, com um poderio financeiro gigante, em decorrência da facilidade de “lavagem de dinheiro” e do grande poder de influência (corrupção). O fenômeno da globalização encontra-se presente nas práticas ilícitas. Talvez seja esta a marca mais evidente, na atualidade, do crime organizado. O crime organizado pode ser definido como um agrupamento de pessoas baseado em forte hierarquia, com um intuito de praticar atividades ilícitas lucrativas, para tanto, se utilizando do temor, corrupção e violência onde sua área de atuação não fica restrita a uma atividade ou área geográfica. O Direito necessita de novos paradigmas para responder aos anseios da sociedade. Em decorrência do fenômeno da globalização, o momento nunca foi mais propício. Os tradicionais paradigmas que serviram ao Estado de Direito do século XIX não se encaixam mais para formar a peça articulada de que necessita o Estado contemporâneo para a execução de política pública efetivas. 2. Toda interpretação deve atender a compreensão ampla do mundo. Por meio da interpretação, pode se realizar a sociedade, a justiça e especialmente, a vida, dentro de uma perspectiva humana e para o ser humano, buscando uma interação mais plena e verdadeiramente democrática. Toda interpretação deve ao atender o bem comum, ou seja, às projeções da lei sobre a vida das pessoas, dos grupos e da própria sociedade visando o justo. Antes de tudo, a interpretação é prudência e coerência. Não há interpretação certa ou errada, mas sim coerente ou não. A interpretação deve culminar sempre na ratificação dos caminhos políticos esposados pelo texto maior, para se estar diante de um sistema constitucional não só eficaz como também dotado de legitimidade. A constitucionalização dos princípios jurídicos veio no mesmo momento em se faziam ferrenha defesa doutrinária da força normativa e vinculativa dos princípios, idéia oposta ao positivismo que até então, dominava o cenário jurídico. A utilização dos princípios jurídicos apenas como fonte normativa subsidiária não tinha mais espaço na teoria constitucional contemporânea. É possível afirmar que o sistema jurídico do Estado de direito democrático é um sistema normativo de regras e princípios, uma vez que as normas do sistema tanto podem revelar-se sob a forma de princípios como sob a forma de regras. 105 A inserção de princípios em nível constitucional resulta na formação de uma escala hierarquizada, onde a interpretação das regras existentes numa Constituição é basilada pelos princípios. A distinção das normas em regra e princípios jurídicos pode ser considerada com um dos argumentos básicos da teoria dos direitos fundamentais. A consolidação da normatividade dos princípios jurídicos é o fim da teoria formal-positiva e o início da teoria material da Constituição e dos princípios constitucionais, voltados aos direitos fundamentais e aos direitos humanos. Nesse aspecto, pode-se concluir que regras são normas que ordenam algo definitivamente, são mandamentos definitivos. Regras são, por isso, normas que sempre somente podem ser cumpridas ou não-cumpridas. Por outro lado, princípios se cumprem na medida da possibilidade, fáticas e jurídicas, que se oferecem concretamente. 3. Após a Constituição de 1988, o Ministério Público passou a ter perfil constitucional peculiar, na condição de defensor do regime democrático e dos interesses indisponíveis da sociedade (art. 127 da CF-88). Assim, o Ministério Público buscar a justiça social, fundado nos princípios fundamentais da República (art. 1.º, I e II da CF-88), tais como a cidadania e a dignidade da pessoa humana e tendo como destinação final a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3.º, I da CF-88), objetivo maior da nação brasileira. Sobre a origem do Ministério Público, o estudo encontrado na doutrina serve apenas para rememorar seu curso histórico. O primeiro texto genuinamente brasileiro a ter relação com o Ministério Público é datado de 1609. Nele foi prevista a figura do Promotor de Justiça, o qual deveria fazer parte da composição do Tribunal da Relação da Bahia. Na Constituição Federal de 1988 o Ministério Público foi “reinventado”. Surgiu uma instituição nova e evoluída, fruto de um regime democrático e com duplo objetivo: a de resguardar direitos tão vilipendiados pelo período de exceção e, ao mesmo tempo, a de projetar um país mais justo para uma população tão carente de direitos. O Ministério Público propicia o acesso à justiça, “zela pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”, consoante determina art. 129, II da CF-88. E ainda mais, o “parquet” fiscaliza os demais órgãos públicos e o próprio Poder Executivo. Assim sendo, considerando a realidade e a ideologia da separação de poderes, a discussão acerca de o Ministério Público ser considerado um “Quarto Poder” é válida. Nosso 106 entendimento é que o reconhecimento do Ministério Público como Poder, ao menos no campo ideológico, é o primeiro passo para uma independência total e irrestrita deste grande Órgão. Outra faceta do novo perfil do Ministério Público é a defesa do regime democrático. A Constituição de 1988 estabeleceu no Brasil, de forma expressa, o Estado democrático de direito, quando definiu os fundamentos do sistema de separação de poderes, a soberania popular, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e ainda, o pluralismo político. Diante dessas árduas incumbências, resta ao Ministério Público, tentar aparelharse e, ao mesmo tempo, modernizar-se. Esta Instituição, ao longo da história, sempre esteve em mutação, daí também ser chamado de agente de transformação social. A Constituição de 1988 (art. 127, §1.º) e a Lei Complementar n.º 8625\93, parágrafo único do art. 1.º, apresentam como princípios institucionais do Ministério Público: a unidade, indivisibilidade e a independência funcional. Todo o arcabouço de direitos e garantias conferidas aos membros do Ministério Público, como órgão da própria sociedade, decorre destes princípios que informam o sistema. Consoante este princípio, o Ministério Público constitui uma Instituição única, gerando desdobramentos na atuação de seus membros, que não podem ser concebidos na sua individualidade, mas como representantes e integrantes de um só organismo, em nome do qual atuam. Membro e Instituição formam um só todo. Por outro lado, sob o prisma funcional, o princípio da unidade significa que, o Brasil, só se pode falar em um único Ministério Público, já que a Instituição, por intermédio de cada um de seus ramos, desempenha, no seu âmbito de atuação, as funções institucionais que lhe foram atribuídas pelo texto constitucional. Indivisibilidade significa que seus membros podem ser substituídos uns pelos outros, não arbitrariamente, mas seguindo a forma estabelecida em lei. Para o princípio da independência funcional, os membros do Ministério Público, no desempenho de suas atividades, não estão subordinados a nenhum órgão ou Poder, mas somente à sua consciência, já que suas manifestações devem ser sempre fundamentadas em lei. 4. O princípio do promotor natural tem sido regularmente discutido no âmbito de nossos tribunais superiores há mais de 30 anos, em especial no seio da Suprema Corte, ora pelo seu plenário, ora por turmas, sem uma clara conclusão sobre o tema. 107 Segundo essa doutrina, o promotor natural consiste na existência de um órgão do Ministério Público, previamente estabelecido pela Lei para oficiar nos casos que sejam afetos à Instituição. O princípio do promotor natural, segundo, essa teoria, visa, em última análise, impedir a atuação do acusador de exceção, designado com propósitos políticos pouco recomendáveis, daí porque não se vislumbra se possa aceitar designações casuísticas. Dessa forma, o princípio visa impedir que o chefe do Ministério Público encarne seu papel como déspota, dotado de poder ilimitado. Embora não tenha sido objeto de explícita remissão no § 1.º do art. 127, a sua base constitucional é o art. 5.º, LIII: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Desta forma, o princípio do promotor natural seria imanente ao novel sistema constitucional brasileiro, assentando-se nas cláusulas da independência funcional e da inamovibilidade dos membros da Instituição, vedando assim, designações casuísticas e arbitrárias pela chefia ministerial. A norma do promotor natural pretende produzir um efeito específico: evitar supostos arbítrios de Procuradores-Gerais em designações, avocações ou afastamentos espúrios e dotados de intenções perniciosas, bem como a garantia processual que todo processo o acusador será previamente definido. Nesse aspecto com efeito geral. O fato é que, a tese do promotor natural, em decorrência da importância de sua utilização e a vasta discussão em nosso ordenamento jurídico, já demonstra tratar-se de um verdadeiro princípio constitucional. A existência expressa de norma referente ao promotor natural não torna sua utilização duvidosa, pois o mesmo, como já demonstrado, decorre dos princípios que regem o processo e do princípio da independência funcional. Diante da pós-modernidade, globalização e do crime organizado, o principio do promotor natural é passível de releitura e de nova interpretação como princípio jurídico imanente em nosso sistema jurídico, face aos novos desafios serem enfrentados pelo Ministério Público no desenvolvimento de suas funções institucionais. As designações do Procurador-Geral são válidas, desde que seja respeitada a garantia da independência funcional do membro do Ministério Público. A sociedade clama por uma persecução criminal judicial, com plena autonomia, isenta de motivações subalternas e, principalmente, com presteza e eficácia. E foi com esse desiderato que foram criados, na última década, os grupos especializados, no âmbito do Ministério Público. 108 Assim entendemos perfeitamente salutar e legal a criação de grupos especializados, com cargos abertos e genéricos, para melhor utilização de membros do Ministério Público. A Instituição, por determinação constitucional, é um dos pilares do Estado Democrático de Direito e para concretização de seus fins, a “forma” – criação de grupos especializados - não pode ser embaraço de realização de suas metas. Dessa forma, o principio do promotor natural não deve atuar como fator de “engessamento”, a ponto de inviabilizar, a atuação conjunta de promotores em determinada situação cujas peculiaridades a recomendem para um desempenho mais eficiente das funções ministeriais, como no combate às organizações criminosas. O importante é que se mantenha a independência do Membro do Ministério Público, seja ele Promotor ou Procurador. Assim, não é possível e admissível a retirada abrupta de determinado Procurador ou promotor de caso para ele distribuído. Diante de tudo o que foi exposto, restou claro que o princípio do promotor natural sofre resistência em alguns julgados do Supremo Tribunal Federal. No entanto, não vislumbramos se tratar de rejeição. Primeiro é importante ressaltar que a maioria das decisões é resultante de Turmas do Supremo Tribunal Federal, não devendo representar a posição fechada daquela Corte; segundo, o fato de haver, naquelas hipóteses, considerado que não houve vulneração da independência pelo ato do Procurador-Geral, ali analisado, não indica, de per si, apreço ou desapreço pelo postulado objeto deste estudo, porque em vários casos o Supremo admitiu o princípio, mas entendeu que, concretamente, não tinha sido afrontado. O Ministério Público Brasileiro, como agente de transformação social em um regime democrático, atravessa por uma fase de desafios, acentuada face à pós-modernidade, onde novos desafios se fazem presentes, como o crime organizado. Nesse cenário, novos paradigmas de atuação se fazem necessários. Assim, a relativização do princípio do promotor natural, ou seja, uma interpretação estendida em determinados casos, é uma realidade que não pode passar despercebida, sob pena de inviabilizar a atuação ministerial no combate ao crime organizado. O Ministério Público deve estar apto a enfrentar o problema do crime organizado e outros que se aprimoraram e se disseminaram com a globalização. Se o principio do promotor natural for adotado de forma fechada e inflexível em nosso ordenamento, a atuação ministerial, na área criminal, sofrerá um choque. A criação de grupos de promotores especializados e designações específicas de membros para atuarem no combate ao crime organizado é hoje, uma realidade vital para a proteção da sociedade. 109 Há ainda uma observação final a fazer. A pretensão deste estudo não é desconhecer o princípio do promotor natural, eliminando com isso, uma garantia dos membros do Ministério Público e da própria sociedade em ter o devido processo legal respeitado. O objetivo deste trabalho foi apresentar uma nova interpretação do principio do promotor natural, vez que a sociedade atravessa por mudanças impactantes, como a globalização e a criminalidade organizada. Assim, é fundamental, portanto, desenvolver outra linha de pensamento acerca do promotor natural, para que este não enfraqueça o Ministério Público, mas ao contrário, o solidifique. 110 REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2007. ALMEIDA, Gregório Assagra de. 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