O ESTADO NUMA ERA DE
REFORMAS: OS ANOS FHC
Parte 2
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Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão
Secretaria de Gestão
O ESTADO NUMA ERA DE
REFORMAS: OS ANOS FHC
Parte 2
Coleção Gestão Pública
Brasília
2002
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Presidente da República
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão
GUILHERME GOMES DIAS
Secretário-Executivo
SIMÃO CIRINEU DIAS
Secretário-Executivo Adjunto
PEDRO CÉSAR LIMA DE FARIAS
Secretária de Gestão
E VELYN LEVY
Secretário de Recursos Humanos
LUIZ CARLOS DE ALMEIDA CAPELLA
Presidente da ENAP
ESCOLA NACIONAL DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
REGINA PACHECO
Equipe Editorial:
MARIANNE NASSUNO
CRISTÓVÃO DE MELO
CARLOS H. KNAPP
MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO ORÇAMENTO E GESTÃO
SECRETARIA DE GESTÃO
ESPLANADA DOS MINISTÉRIOS, BLOCO K – 4º ANDAR
CEP: 70.040-906 – Brasília – DF
FONES: (61) 429-4905
FAX: (61) 429-4917
www.planejamento.gov.br
www.gestaopublica.gov.br
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Coleção Gestão Pública
VOLUME 7 - PARTE 2
O ESTADO NUMA ERA DE REFORMAS: OS ANOS FHC - Parte 2
Organizadores: Fernando Luiz Abrucio e Maria Rita Loureiro
Revisão: Helena Jansen
É permitida a reprodução total ou parcial desde que citada a fonte.
NORMALIZAÇÃO: DIBIB / CODIN / SPOA
O Estado Numa Era de Reformas: Os Anos FHC - Parte 2/ Organizadores:
Fernando Luiz Abrucio e Maria Rita Loureiro. – Brasília : MP, SEGES,
2002.
316 p.
1. Reforma Administrativa
2. Administração Pública I. Abrucio,
Fernando Luiz
II. Loureiro, Maria Rita
CDU 35.08
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APRESENTAÇÃO
EVELYN LEVY
SECRETÁRIA
DE
GESTÃO
Em 1993, a Escola Nacional de Administração Pública/ENAP, encomendou
um estudo ao Prof. Regis de Castro Andrade sobre a Administração Pública
Federal. Da pesquisa resultou um diagnóstico consistente do funcionamento das organizações e uma caracterização ampla de sua burocracia1.
A importância daquele trabalho se fez sentir rapidamente quando, em
1994, às vésperas das eleições presidenciais, ele serviu de orientação,
aos diversos partidos em disputa, para que se posicionassem frente a um
assunto tão estratégico. Aqueles volumes representaram, de fato, um
mapa da burocracia federal, até então bastante remota em relação ao
restante do país.
Por casualidade ou não, um dos pesquisadores envolvidos naquele
estudo, o cientista político Fernando Abrucio, teve, durante os dois mandatos do Presidente Fernando Henrique Cardoso, uma participação ativa
no desenvolvimento da Reforma, acompanhando-a de perto, subsidiando-a com uma série de pesquisas e colaborando na formação de muitos
dos servidores de carreira concursados no período. Tornou-se assim um
dos maiores especialistas desse tema, reconhecido no país e no exterior.
Ao lado da Profa. Maria Rita Garcia Loureiro, com quem colaborou em
inúmeros desses trabalhos científicos, Abrucio articulou um grupo amplo
de cientistas políticos e economistas para a realização desse livro. São
todos excelentes pesquisadores, trabalhando em diferentes universidades, situadas em diversas regiões do país, constituindo assim o núcleo
inicial de uma rede de estudiosos do tema da Gestão Pública e sua
relação com a conformação do Estado no Brasil.
Ao apoiar a realização desses ensaios, o Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão teve por objetivo estimular o debate das questões
1
ENAP (1993): Estrutura e Organização do Poder Executivo, Administração Pública Brasileira, Vol.2,
Regis de Castro Andrade e Luciana Jaccoud (org.), Centro de Documentação, Informação e Difusão
Graciliano Ramos, ENAP, Brasília.
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referentes à Reforma do Estado na academia, entendendo que se faz
necessário pensá-las de modo crítico, cada vez mais. É preciso criar
competências internas que permitam tornar o Estado mais democrático e
ajustado às necessidades contemporâneas da sociedade brasileira.
Acreditamos que, em conjunto com as demais publicações que integram a “Coleção Gestão Pública”2, essa coletânea dará aos leitores elementos para dar continuidade ao aperfeiçoamento das instituições públicas do país.
2
A Coleção Gestão Pública é composta dos seguintes volumes: (1) Unidades de Atendimento Integrado: como implantar (versão português e espanhol); (2) Balanço da Reforma do Estado no Brasil: a
Nova Gestão Pública; (3) Cidadãos como parceiros: Manual da OCDE sobre Informação, Consulta e
Participação na Formulação de Políticas Públicas (OCDE tradução); (4) Liderança e Setor Público no
Século 21 (OCDE tradução); (5) A Política de Recursos Humanos na Gestão FHC; (6) Responsabilidade e Transparência no Setor Público (OCDE/OAS tradução); e (7) O Estado numa era de Reformas
os anos: FHC (Fernando Abrúcio e Maria Rita Loureiro)
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SUMÁRIO
A DINÂMICA INSTITUCIONAL DA REFORMA DO ESTADO: UM BALANÇO DO PERÍODO FHC
Valeriano Mendes Ferreira Costa 09
INCREMENTALISMO, NEGOCIAÇÃO E ACCOUNTABILITY: ANÁLISE DAS REFORMAS FISCAIS NO
BRASIL
Maria Rita Loureiro & Fernando Luiz Abrucio 57
A TRANSIÇÃO INCOMPLETA: A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL NO GOVERNO FHC
Marcus André Melo 103
DESCENTRALIZAÇÃO E COORDENAÇÃO FEDERATIVA NO BRASIL: LIÇÕES DOS ANOS FHC
Fernando Luiz Abrucio 143
AS AGÊNCIAS REGULATÓRIAS: GÊNESE, DESENHO INSTITUCIONAL E GOVERNANÇA
Marcus André Melo 247
CONCLUSÕES 307
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A DINÂMICA INSTITUCIONAL DA
REFORMA DO ESTADO:
UM BALANÇO DO PERÍODO FHC
1
Valeriano Mendes Ferreira Costa
INTRODUÇÃO
O objetivo central desse texto é fazer um balanço das reformas da Administração Pública Federal durante os dois mandatos do presidente Fernando
Henrique Cardoso (1995-1998 / 1999-2002). Alguns pressupostos orientam a análise. Primeiro distinguimos as reformas institucionais, isto é,
aquelas que alteram o desenho organizacional da administração pública,
das reformas gerenciais, as quais procuram mudar os procedimentos empregados pela burocracia para realizar seus objetivos. No entanto, reconhecemos que essa distinção é meramente analítica. As reformas
institucionais e as reformas gerenciais estão profundamente imbricadas.
É fácil perceber porque, historicamente, as mudanças no desenho
organizacional estão associadas a alterações nas práticas administrativas.
O desenvolvimento de burocracias profissionais foi um fator crucial na
expansão e aumento da complexidade do aparelho estatal e está fortemente associado à formação de grandes estruturas hierárquicas, constituídas por ministérios e departamentos. As reformas gerenciais, por sua
vez, estão ligadas a um modelo organizacional caracterizado pela redução dos níveis hierárquicos e compactação dos órgãos centrais, além da
autonomização das entidades responsáveis pela implementação de políticas e a contratualização das suas relações com os órgãos centrais.
Dado o escopo geral do estudo, não podemos analisar as implicações
das mudanças organizacionais na APF (Administração Pública Federal)
brasileira sobre a eficiência e efetividade da gestão pública. Por isso, nos
limitamos a descrever sistematicamente as mudanças macroestruturais,
1
Doutor em Sociologia pela USP, professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp e
pesquisador do Cebrap. Fabrício Menardi, doutorando em Ciência Política na Unicamp, e Rosângela
Reis Machado, mestranda em Ciência Política na Unicamp, ajudaram na confecção deste trabalho.
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configuradas na legislação ordinária e administrativa. O grande volume
de leis, Medidas Provisórias e, especialmente, decretos voltados para a
reestruturação de ministérios, autarquias, fundações e criação de agências
(em geral, reguladoras), revela uma intensa atividade no âmbito da transformação organizacional. No entanto, essa atividade normativa nada nos
diz a respeito das efetivas alterações no funcionamento da APF.
Para remediar parcialmente essa limitação, realizamos um balanço das
atividades dos órgãos responsáveis pela implementação da reforma: o
MARE (Ministério da Administração e Reforma do Estado), durante o primeiro mandato de FHC (1995-1998); e a Secretaria de Gestão do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, ao longo do segundo governo
(1999-2002).
O texto está dividido em três partes. Na primeira, definimos alguns
conceitos centrais para análise da mudança macroestrutural na administração pública e apresentamos um breve balanço das discussões sobre alterações institucionais em países que realizaram, com graus variados de
sucesso, reformas inspiradas no modelo da Nova Gestão Pública (NGP).
Na segunda parte, fazemos um breve histórico das mudanças na
macroestrutura da Administração Pública Federal entre os anos 1930 e
1994. Na terceira, descrevemos e analisamos as modificações introduzidas
pelo governo Fernando Henrique Cardoso na macroestrutura da APF,
procurando ressaltar as continuidades e rupturas entre os dois períodos
de governo. Na conclusão, apresentamos uma breve agenda de mudanças necessárias à consolidação das reformas iniciadas pelo atual governo.
I - A EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL
Um resultado paradoxal da ampla aceitação das reformas derivadas da
Nova Gestão Pública (NGP) é que essa abordagem perdeu sua
especificidade. De fato, todas as reformas recentes do setor público têm
procurado se legitimar reivindicando com maior ou menor intensidade
sua filiação à NGP. O problema é que a versão “globalizada” do
gerencialismo tende a obscurecer o fato de que as diferenças são muito
maiores do que as semelhanças entre as reformas implementadas em
diferentes países.
Um número crescente de pesquisadores tem demonstrado que a terminologia da NGP encobre processos de reformas administrativas de
alcance e significado muito distintos (PREFORMS, 1998 e RHODES, 1999).
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Isto se explicaria pelo fato de que os países se organizam em torno de
regimes político-administrativos e “tradições estatais” muito diversos.
Sinteticamente, a NGP consistiria em um núcleo de idéias que enfocam
prioritariamente: a qualidade da gestão, a avaliação de desempenho; a
desagregação das burocracias em agências que se relacionam em bases
contratuais - e se possível monetárias (user pay basis) -; o uso de “quasemercados” e terceirização para estimular a competição; redução de custos e um estilo de gestão que enfatiza metas, contratos periódicos e
autonomia gerencial. O consenso aparente em torno dessas medidas de
bom senso, no entanto, obscurece alguns aspectos centrais na avaliação
das reformas gerenciais das décadas de 80 e 90 (RHODES, 1999).
Estudos atuais identificam uma clara diferença entre as reformas nos
países anglo-saxões e nos da Europa continental. Além disso, é fácil
verificar que a tendência atual do reformismo não aponta para uma uniformização das administrações públicas. Na Alemanha, por exemplo, ainda persistem as marcas distintivas da burocracia clássica. Enquanto na
Grã-Bretanha a NGP foi utilizada para reduzir o Estado, na Dinamarca ela
serviu para reforçar suas características básicas.
Mais ainda, a linguagem comum da NGP obscureceu diferenças importantes. No Reino Unido, o gerencialismo corresponde essencialmente
à criação das agências executivas, enquanto que na Austrália ela impulsionou a “democratização” e a maior transparência da Administração Pública Federal; ao passo que na França tal estratégia se resumiu a um processo de descentralização regional (RHODES, 1999).
Para concluir o argumento, vale mencionar o caso da Suécia, onde boa
parte da agenda da NGP foi cumprida, especialmente no que se refere à
redução do déficit fiscal, privatização, terceirização e descentralização de
serviços sociais; mas os gastos totais permaneceram em seus níveis anteriores. O que realmente mudou foi a distribuição das despesas entre os
níveis central e regional/local. Enquanto na década de 60, o governo
central e os regionais/locais consumiam parcelas equivalentes do gasto
público como proporção do PIB (8% para cada um), na década de 90, o
dispêndio público total havia quase dobrado - passando de 16% a 28% do
PIB -, ao mesmo tempo em que a parcela dos recursos controlados pelos
governos subnacionais chegava a 20% do PIB. A partir dessa transformação radical, o Estado sueco foi caracterizado como uma “federação de
comunidades de bem estar” (PREMFORS, 1998). Ou seja, o impacto da
reforma gerencial aprofundou o desenho já bastante descentralizado da
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administração central, reduzindo o controle dos ministérios sobre o gasto
social.
Num balanço final, a Nova Gestão Pública não constituiria um corpo
teórico integrado e consistente, mas uma frouxa coleção de doutrinas,
muitas das quais conflitantes entre si. O principal problema seria a tensão
entre os dois princípios básicos da NGP: de um lado, o fortalecimento
dos mecanismos de controle hierárquicos, voltados para a redução de
custos e equilíbrio fiscal e, de outro, a redução de níveis hierárquicos e
fortalecimento da autonomia gerencial da burocracia (RHODES, 1999).
Para Christensen e Laergreid (1998), levadas a cabo de forma radical,
as reformas propostas pela NGP resultariam em menor controle do governo sobre a administração pública, mas não numa administração pública necessariamente melhor. Na verdade, ao trocar os incentivos institucionais
“internos” da gestão burocrática, pelos incentivos materiais “externos” do
gerencialismo, corre-se o risco de abandonar um modelo baseado na
confiança e na solidariedade entre os servidores, por outro que funciona
basicamente em torno de relações contratuais e sistemas detalhados de
avaliação de desempenho que alimentam a mútua “desconfiança” entre
mandantes e agentes.
Por outro lado, a maior parte das propostas constantes nos planos de
NGP não representaria, separadamente, inovações em relação aos processos de reforma anteriores. Afinal, avaliação de desempenho, subcontratação, privatização, utilização de técnicas gerenciais privadas na
administração pública, são práticas recorrentemente tentadas em todas as
ondas reformistas desde o início do século passado. A novidade residiria
na articulação dessas práticas em torno de um discurso forte, que atinge o
núcleo dos problemas fiscais e administrativos das burocracias.
O problema é que não existe um “pacote” único de medidas
consensuais. As combinações variam em cada contexto nacional. A lição
básica dos mais de vinte anos de ímpeto reformista é que a trajetória
institucional (path dependence) das burocracias importa. Além da tradição estatal/constitucional e política de cada país, fatores como as características organizacionais da administração pública, suas relações com o
governo e a sociedade civil, são cruciais para compreender o sentido das
reformas tanto organizacionais como gerenciais.
Por mudança nas estruturas organizacionais das burocracias públicas
entende-se, geralmente, a alocação e/ou realocação das funções entre
unidades administrativas encarregadas de elaborar e/ou executar políti12
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cas de governo. Mais recentemente, com a ênfase da NGP em mudanças
gerenciais, o conceito incluiu, também, alterações na organização interna
dos órgãos, como realocações de funções entre secretarias, mas, especialmente, transferências de atribuições para agências executivas, além da
“publicização” ou privatização de organizações estatais (POLLITT, 1984).
Deve-se notar, também, que as burocracias modernas atuam dentro de
estruturas em rede que abarcam desde as autoridades governamentais,
lideranças políticas, passando pelos grupos de interesse, clientelas até os
meios de comunicação e a própria opinião pública (JORGENSEN et all,
1998). Evidentemente, como os objetivos do texto são mais restritos,
serão focalizados apenas os aspectos formais da dinâmica organizacional
na administração pública.
A importância da criação de burocracias profissionais para a formação
do Estado Moderno é um tema clássico nas ciências sociais (TILLY, 1975;
SILBERMAN, 1993). No entanto, as motivações e as conseqüências das
mudanças organizacionais para o funcionamento das administrações públicas são questões pouco estudadas atualmente. A preocupação com o
impacto da forma de organização administrativa na eficiência e efetividade
da ação governamental está claramente associada à “ciência da administração”, predominante até meados do século passado (GULICK, 1937,
apud. PETERS, 1995).
Estudos mais recentes invertem a questão, procurando explicar a influência do desenho organizacional das burocracias sobre as políticas
públicas. No entanto, essa abordagem tem ocupado um lugar bastante
secundário na literatura internacional (EGEBERG, 1999). No Brasil, ambas
as linhas de estudo têm sido praticamente ignoradas2.
A grande maioria dos estudos sobre mudanças organizacionais referese a países com sistemas parlamentaristas de origem inglesa, especialmente o Reino Unido, o Canadá e a Austrália (DAVIS et all, 1999). O
termo clássico pelo qual os analistas desses países tratam a administração
pública é sintomático da abordagem pragmática que informa tais estudos:
the machinery of government, isto é, a “máquina de governo”. Por razões
que veremos a seguir, os Estados Unidos não partilham dessa preocupação com as motivações e conseqüências das mudanças organizacionais na
Administração Pública Federal.
2
Os poucos trabalhos que tratam de aspectos organizacionais da APF brasileira têm um caráter
acentuadamente legalista. Os trabalhos mais conhecidos nesse campo são os de Beatriz Wahrlich
(1979a, 1979b).
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Uma razão importante da abordagem pragmática da gestão pública é a
relativa facilidade com que os governos encontram motivos para mudar a
estrutura administrativa. Tal facilidade está associada certamente ao regime parlamentarista majoritário, que garante ao governo o controle mais
ou menos efetivo sobre o Parlamento e onde, em geral, o Judiciário tem
um perfil bastante discreto sobre os assuntos político-administrativos.
Uma comparação com os Estados Unidos, onde o presidencialismo
resulta numa efetiva separação de poderes, ajuda a entender a questão.
No regime norte-americano, a equipotência de Poderes no campo político-administrativo tornou efetivamente muito difícil para o Presidente da
República alterar a estrutura administrativa federal sem uma complexa e
desgastante negociação com o Congresso. O resultado desse constrangimento institucional é que dificilmente se muda a estrutura ministerial
(departamental) que é bastante “enxuta” - são apenas 14 ministérios, o
último tendo sido instituído em 1980. Estes, por sua vez, exercem pouco
controle sobre o grande número de agências independentes, muitas delas
criadas por iniciativa do próprio Congresso na sua eterna disputa com a
Presidência (KAUFMAN, 2001).
As implicações desse arranjo organizacional sobre as políticas públicas
são relativamente bem conhecidas. Em geral, as agências estão inseridas
em redes de interesses que envolvem as clientelas, outras burocracias
federais e estaduais e membros dos comitês do Congresso que lidam com
os assuntos relacionados com as atividades dessas agências. Não é por
outro motivo que dificilmente uma reforma administrativa proposta pela
Presidência ou pelo Congresso, isoladamente, interfere na estrutura
organizacional. Os interesses organizados em torno das agências bloqueiam qualquer mudança que possa afetar seus interesses.
É por isso que as reformas gerenciais na administração pública norteamericana limitam-se a medidas de reorganização interna das agências e
departamentos, geralmente voltadas para a racionalização, redução de
custos e melhoria do desempenho. A National Performance Review,
conduzida por Al Gore, vice do presidente Bill Clinton, em1993, é um
exemplo claro dessa limitação da capacidade de ação da Presidência
sobre a burocracia federal. Enquanto a Grã-Bretanha implementava uma
“revolução gerencial” que em pouco menos de dez anos (1988-1997)
transferiu mais de 70% do Civil Service para as agências executivas, a
NPR à americana se limitava a difundir princípios e práticas de “reinvenção”
da cultura administrativa (HOGWOOD et al, 1999). O mais interessante é
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que o papel do Congresso, através do General Accounting Office, tem
sido central no acompanhamento e cobrança de resultados, pois é a partir
dos performance reviews que os ministérios (Departments) e as agências
podem pleitear recursos orçamentários frente ao Congresso (HINCHMAN,
1997).
Quais as implicações desses argumentos para a avaliação das mudanças organizacionais implementadas ao longo dos dois governos de Fernando
Henrique Cardoso?
Constata-se, basicamente, que o foco analítico não pode se concentrar
exclusivamente nos aspectos conceituais da reforma administrativa, sua
maior ou menor coerência em relação às recomendações da Nova Gestão
Pública. Os aspectos cruciais a serem levados em conta são: a dinâmica
institucional que condiciona as relações entre a APF e os poderes constitucionais - Executivo, Legislativo e Judiciário -, de um lado, e o padrão de
interação entre lideranças políticas (ministros, secretários, secretários-executivos e assessores da Presidência) e burocráticas responsáveis pela
gestão da burocracia.
Por sua vez, essas características tendem a variar de acordo com:
a) o tipo de regime de governo, especialmente com a capacidade do
Executivo de exercer controle sobre o Legislativo, sobre o próprio ministério (ou gabinete) e sobre os cargos superiores na burocracia. Quanto
maior a autonomia efetiva dos Poderes, mais difícil realizar as mudanças
no desenho organizacional.
b) o grau de permeabilidade da administração pública a interferências
políticas, isto é, quanto mais aberta a estrutura de cargos à entrada de
pessoas externas às carreiras ou, correlatamente, quanto maior a liberdade das lideranças políticas (ministros, secretários e assessores ligados ao
governo) para nomear, transferir ou pressionar os escalões superiores
(inclusive gerenciais), maior a possibilidade de conflitos político-administrativos em torno do controle sobre as reformas.
Deste modo, em países com governos parlamentaristas de tipo majoritário, por exemplo, as chances de sucesso e o escopo de uma reforma
administrativa são, em geral, maiores do que em países presidencialistas,
especialmente, quando estes têm fortes características consociativas, como
é o caso do Brasil.
Em países presidencialistas, as perspectivas de reforma dependem
bastante da solidez da base de sustentação política do Executivo no Congresso. Diversas características do presidencialismo norte-americano, por
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exemplo, reduzem muito as chances de sucesso de reformas administrativas amplas. A forte autonomia do Legislativo, assim como a fragmentação e elevada autonomia da burocracia descentralizada (Agências Independentes), praticamente inviabilizam a implementação de mudanças radicais na macroestrutura da administração federal. Com exceção das épocas de crise, as reformas administrativas têm de ser negociadas e compartilhadas com o Congresso.
Ao lado dessas variáveis estruturais, fatores conjunturais também alteram as chances de sucesso de uma reforma. Podemos dividi-los em dois
tipos: os de natureza política, como a capacidade de liderança do Executivo sobre a coalizão de governo e apoio na opinião pública para conduzir a reforma; e os de natureza econômica, como a situação das contas
públicas, ou seja, a maior ou menor folga fiscal para realizar mudanças
institucionais não voltadas exclusivamente à redução de gastos com a
máquina, e o grau de coordenação e cooperação entre a área econômica
e a administrativa.
Além de tudo isso, o ritmo mais ou menos intenso de mudanças na
macroestrutura, como criação/extinção de ministérios e realocação de
funções entre órgãos, não resulta necessariamente de um forte empenho
reformista. Em muitos casos essas modificações fazem parte do jogo político cotidiano. Em alguns casos, visam a aumentar (ou a diminuir) a visibilidade de determinados assuntos ou funções. Em outros servem para
acomodar (ou enfraquecer) membros da coalizão de governo. Com muita
freqüência essas alterações organizacionais almejam apenas a redução de
custos da burocracia, independentemente dos seus efeitos sobre a eficiência ou a efetividade da ação governamental.
As duas principais motivações para qualquer governo implementar
uma reforma administrativa de amplo escopo são: a necessidade de recuperar ou aumentar a capacidade de controle sobre a burocracia e de
coordenação sobre as atividades governamentais; e a necessidade de
fortalecer as bases políticas de sustentação do governo.
Em geral, o perfil das reformas resulta de um trade-off entre essas
duas variáveis. Quando o apoio ao governo é instável e precisa ser
negociado constantemente, as reformas se limitam a mudanças ad hoc na
macroestrutura - como a criação/desdobramento de secretarias e ministérios - para ampliar a coalizão ou satisfazer demandas pontuais de aliados.
Quando o apoio político é sólido, o governo encontra espaço para investir no aumento da capacidade administrativa e, neste caso, as reformas
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podem resultar em amplas modificações na macroestrutura da burocracia
estatal, (p. ex. Grã Bretanha, Nova Zelândia).
II - MUDANÇAS NA MACROESTRUTURA ADMINISTRATIVA BRASILEIRA: BREVE HISTÓRICO
A reforma administrativa implementada nos últimos oito anos pode ser
comparada, em termos de amplitude e impacto, às duas grandes reformas
administrativas da burocracia federal realizadas ao longo do século XX. A
análise dessas duas experiências pode ser útil para percebermos a importância das variáveis institucionais e conjunturais, mencionadas anteriormente.
Nos dois casos anteriores, 1936 e 1967, as conjunturas política e econômica eram favoráveis: havia alta legitimidade/controle do Executivo
sobre os outros Poderes e os gastos governamentais estavam em expansão. Mesmo assim, características estruturais do sistema político limitaram
ou interromperam os processos de modernização e profissionalização da
burocracia federal.
Embora não existam muitos estudos sobre as reformas administrativas
no Brasil, um breve resumo da literatura disponível permite identificar
um diagnóstico mais ou menos consensual. Como argumenta um trabalho
recente sobre as reformas administrativas no Brasil (LIMA JR., 1998),
transcorridos quase 60 anos de tentativas de profissionalização sistemática da APF:
“o fato é que o Brasil nunca teve o modelo burocrático de administração, ou qualquer outro, plenamente instalado. A nossa realidade administrativa tem se caracterizado, independentemente da intencionalidade das
reformas e de seus eventuais êxitos e fracassos, pela convivência de
modelos de administração incompletos, inconsistentes e superpostos”.
Mas, então, quais os objetivos das reformas e por que elas fracassaram? Essencialmente, os dois principais objetivos das reformas no Brasil
foram: 1) aumentar ou recuperar a capacidade de controle e coordenação
dos órgãos centrais da Presidência da República sobre as secretarias e os
ministérios, através da modernização e profissionalização da burocracia,
e, 2) tornar mais eficiente e eficaz a implementação das políticas públicas através da criação de uma estrutura administrativa mais flexível e
descentralizada, voltada prioritariamente para o desenvolvimento econômico do país.
Nos dois casos, os resultados foram: a segmentação da APF em um
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núcleo compacto de órgãos centrais controlados pelo presidente, mas
pouco institucionalizado; uma estrutura ministerial burocratizada, inchada
e desarticulada; e um extenso e heterogêneo conjunto de autarquias,
fundações e, principalmente, empresas públicas e sociedades de economia mista.
A Revolução de 30 tinha um objetivo político-administrativo muito
preciso: “superar a fragmentação do arquipélago político nacional”
(COUTO, 1993: 116), criando um Estado interventor, centralizado e sustentado por uma burocracia altamente profissional e insulada de interferências políticas. A criação do DASP, o núcleo burocrático do novo Estado, diretamente vinculado ao Presidente da República, foi o passo decisivo para o sucesso da reforma. Ele criou regras rígidas de admissão de
pessoal, instituiu o concurso público e estabeleceu critérios meritocráticos
de avaliação - entre outras inovações na administração do pessoal.
O modelo organizacional dessa reforma procurava aumentar a eficiência na gestão administrativa, através do fortalecimento do braço administrativo da Presidência da República - operado pelo DASP - e da criação
de um Serviço Público profissional junto aos ministérios. Ao mesmo tempo, procurava aumentar a eficácia na implementação das políticas, através de uma estrutura descentralizada, mas fortemente coordenada, composta de autarquias e institutos (LIMA JR, 1998).
Se o modelo daspiano foi capaz de implantar um núcleo burocrático
profissional, a administração federal como um todo não ficou imune ao
“contágio patrimonialista”, na expressão de Reis Velloso (Apud. COUTO,
1993). Paralelamente à criação do DASP, em 1938, continuou existindo
uma grande quantidade de cargos comissionados e extranumerários (contratados temporariamente).
Após 1945, com a reativação do sistema eleitoral, o DASP foi perdendo a capacidade de controlar os recursos críticos para a gestão da administração federal, especialmente sobre o pessoal das empresas, autarquias
e fundações e sobre o processo orçamentário. Com o passar do tempo,
foi aumentando a distância entre a administração descentralizada, mais
autônoma, ágil e eficiente, e os ministérios. Tornou-se forte a pressão
para que os próprios ministérios facilitassem a criação de empresas,
autarquias e fundações.
Se levarmos em conta que essas empresas e autarquias já constituíam
os pólos dinâmicos da administração, os setores que reuniam os servidores mais qualificados e, portanto, melhor remunerados, perceberemos
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que o processo de descentralização descoordenado que caracteriza a APF
encontra-se na própria origem da burocracia moderna no Brasil.
Combinando-se a dinâmica da “autarquização”, o alcance restrito da
estrutura de carreiras e a distribuição política de cargos de direção das
entidades autônomas, acentuou-se a fragmentação institucional. Isto explica, em parte, a perda de capacidade de coordenação e controle por
parte dos órgãos centrais. Por sua vez, os ministérios freqüentemente
submetidos ao controle de grupos políticos e com poucos quadros de
carreira qualificados, tinham pouca capacidade de produzir diretrizes para
os órgãos encarregados da execução de políticas, o que apenas contribuía para acentuar a autonomia da administração descentralizada
(GUERZONI, 1996: 42).
Esse quadro se agravou ao longo das décadas de 50 e 60, quando a
pressão pelo desenvolvimento econômico levou os governos Vargas e
Kubitschek a realizarem a modernização da administração sem recorrer a
uma reforma dos quadros profissionais. A estratégia foi a criação das
“administrações paralelas”, grupos e comissões executivas e assessorias
ad hoc que formulavam os planos e programas em articulação com técnicos de associações empresariais, institutos e autarquias.
A segunda grande reforma, realizada trinta anos depois da primeira,
tinha como diretriz tornar mais claro o desenho organizacional da APF,
separando a administração direta (Presidência e Ministérios) da indireta
(Autarquias, Empresas Públicas, Sociedades de Economia Mista). Com a
modernização voltada “para o desenvolvimento” proposta pelo DecretoLei 200/67, o governo militar esperava criar condições para um crescimento do setor produtivo estatal sob o controle de uma forte estrutura de
coordenação e planejamento, centralizada na Presidência da República
(WAHRLICH, 1979).
Diante do quadro acima descrito, o Decreto-Lei 200/67 aparece com
uma tentativa realista de introduzir um mínimo de organização na APF. A
simples listagem das diretrizes centrais do Decreto mostra a sua ambição
(WAHRLICH, 1984, Apud. LIMA JR.1998: 13):
a) planejamento, descentralização, delegação de autoridade, coordenação e controle;
b) expansão das empresas estatais, de órgãos independentes (fundações) e semi-independentes (autarquias);
c) fortalecimento e expansão do sistema de mérito;
d) diretrizes gerais para um novo plano de classificação de cargos;
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e) reagrupamento de departamentos, divisões e serviços em 16 ministérios.
A principal conseqüência da implementação incompleta da reforma
proposta pelo Decreto-Lei 200/67 foi a cristalização da divisão entre uma
administração direta burocrática e pouco qualificada e uma administração
indireta de perfil gerencial, ou melhor, empresarial. Em poucos anos,
foram estabelecidas 267 empresas estatais e cerca de 68 autarquias e
fundações (LIMA JR., 1998).
Ao longo da década de 1970 e primeira metade dos anos 1980, especialmente durante o governo do general Figueiredo, a perda de controle
sobre a administração indireta agravou-se. Duas foram as causas desse
agravamento do processo de descoordenação e fragmentação: de um
lado, a baixa legitimidade política do seu governo impôs a troca de
cargos públicos por apoio político; de outro, a desorganização crescente
da economia, após a crise fiscal de 1982 e a aceleração do processo
inflacionário, desarticularam os mecanismos de controle fiscal e gerencial
sobre os órgãos públicos.
Os dez anos que antecedem o primeiro mandato de Fernando Henrique
Cardoso foram de grande instabilidade política e econômica, e de forma
correlata, de grande instabilidade organizacional na Administração Pública Federal. Todos os governos, durante esse período, utilizaram intensamente a mudança organizacional, mas por razões opostas: no governo
Sarney, para acomodar a ampla e heterogênea base de apoio no Congresso, e no governo Collor, para fortalecer a Presidência e sinalizar
mudanças radicais que pretendia implementar e, finalmente, no governo
Itamar, para reconquistar o apoio político do Congresso. Dois desses
presidentes (Sarney e Collor) também procuraram implementar algum
tipo de reforma administrativa e todas fracassaram, embora por motivos
diferentes.
Sarney adotou uma estratégia de acomodação reativa, criando ou eliminando órgãos em função das oscilações na base de apoio político. A
motivação política das mudanças organizacionais desse período está bem
documentada no relato de Piquet Carneiro (cf. COUTO, 1993):
“...em 1985, recriou-se o Ministério da Desburocratização apenas com
a finalidade de acomodar no primeiro escalão uma corrente política do
Nordeste que apoiara Tancredo Neves(...) logo criou-se o Ministério da
Administração, conferindo status ministerial a um cargo até então considerado de assessoramento direto da Presidência, com o objetivo de aten20
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der a outra conveniência política circunstancial. Desaparecida a razão
política, extinguiu-se mais uma vez o Ministério da Desburocratização
(...)Criou-se (...) o Ministério da Ciência e Tecnologia para servir de nicho
às forças nacionalistas de apoio ao governo; um pouco mais tarde, o novo
ministério foi extinto e suas funções em parte assimiladas novamente
pelo Ministério da Indústria e do Comércio (...) foram fundidos,
reemembrados e criados diversos órgãos e entidades, como o IBDF, a
SEMA, a SUDEPE, a Secretaria de Assuntos Comunitários, etc. - sempre
com o objetivo de compor situações políticas (e até pessoais) meramente
circunstanciais”.
Embora o depoimento expresse o desconforto de um servidor público
diante da grande instabilidade administrativa, ele reconhece que essas
medidas eram racionais tanto do ponto de vista político como administrativo-: buscavam preservar a capacidade de governo, especialmente na
área econômica, isolando-a do assédio clientelista. No entanto, ao oferecer aos grupos políticos ministérios e secretarias em áreas não estratégicas, o governo também acentuava o insulamento do núcleo econômico
profissionalizado, expondo outras áreas-fins (ou mesmo áreas-meio) à
desestruturação de seus núcleos de competência profissional e à
descontinuidade administrativa. Esse padrão “predatório” de reforma
institucional estava diretamente ligado às condições de instabilidade política do governo.
Mas, ao mesmo tempo em que estabelecia um amplo loteamento de
cargos públicos, o governo Sarney tentou implementar mais uma reforma
administrativa, através da criação de um Ministério Extraordinário para
Assuntos de Administração e mesmo uma Comissão Geral do Plano de
Reforma Administrativa. Como resultado dessa tentativa de reestruturação,
o governo criou uma estrutura de gestão e modernização da máquina
pública composta pela SEDAP (Secretaria de Administração Pública, em
lugar do DASP e vinculada à Presidência da República), pela ENAP (Escola Nacional de Administração Pública) e pelo CEDAM (Centro de Desenvolvimento da Administração Pública), todos em 1986. Em 1987 vinculou as fundações à administração direta (Lei 7586/87); e finalmente,
em 1989, criou a carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão
Governamental (Lei 7834/89) que, se efetivamente implantada, constituiria um núcleo profissional e altamente qualificado para ocupar os cargos
estratégicos da APF.
Repetindo a história das tentativas de reforma administrativa anterio21
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res, após intensa produção legislativa e administrativa, os órgãos estratégicos de gestão foram perdendo dinamismo e legitimidade. A Comissão
reformista não resistiu ao Plano Cruzado, tendo seus trabalhos interrompidos em 1986; em 1989, a SEDAP é extinta e suas atividades incorporadas
à Secretaria de Planejamento e Coordenação e, finalmente, o plano de
estruturação da carreira dos Gestores é interrompido, após o primeiro
concurso, também em 1989.
Apesar da grande legitimidade inicial, o governo de Collor de Melo
não teve mais sucesso que seu antecessor. A política de desmontagem da
burocracia, uma estratégia de “tabula rasa”, fracassou junto com a tentativa de governar sem uma coalizão ampla no Congresso. A ambição de
modernizar radicalmente a APF estava em contradição com as condições
institucionais de que dispunha para a implementação das medidas necessárias. Ao contrário do presidente anterior, ele ainda conseguiu produzir
uma verdadeira “revolução” na macroestrutura da burocracia federal.
Na gestão Collor, o número de ministérios foi reduzido de 18 para 12,
enquanto os órgãos diretamente ligados à Presidência passaram de 9 para
12. Os ministérios das Comunicações, Minas e Energia e Transportes
foram fundidos num “superministério” da Infraestrutura. O Ministério da
Previdência e Assistência Social e o Ministério do Trabalho foram fundidos, dando origem ao Ministério do Trabalho e Previdência Social. O
Ministério da Fazenda, parte da Secretaria de Planejamento e o Ministério
do Desenvolvimento da Indústria e do Comércio formaram ao poderoso
Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento. Parte do Ministério da
Educação e Cultura transformou-se na Secretaria dos Desportos, ligada à
Presidência. O Ministério do Interior foi desmembrado em Ministério da
Ação Social, Secretaria do Meio Ambiente e Secretaria do Desenvolvimento Regional, ambas vinculadas diretamente à Presidência. O Ministério da Ciência e Tecnologia foi transformado em Secretaria subordinada à
Presidência, assim como o Ministério da Cultura. No nível central, ainda,
Collor fundiu a Secretaria de Assessoramento da Defesa Nacional (SADEN)
e o Serviço Nacional de Inteligência para formar a Secretaria de Assuntos
Estratégicos. Também parte da antiga SEPLAN foi transformada na Secretaria de Administração Federal. Por fim, o Gabinete Civil da Presidência
da República foi desmembrado em Gabinete Pessoal da Presidência da
República e na Secretaria de Governo (COUTO, 1993).
As extensas mudanças na macroestrutura visavam ao fortalecimento da
Presidência da República em dois sentidos. Primeiro, por meio do au22
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mento das áreas sobre os quais o presidente queria exercer sua marca
pessoal, como meio-ambiente, desenvolvimento regional, ciência e
tecnologia, cultura e esportes. Depois, mediante uma drástica redução no
número de ministérios: de 20 para 12, concentrando enorme poder em
três grandes ministérios - o da Economia, Fazenda e Planejamento (MEFP),
o Infraestrutura (MINFRA) e o do Trabalho e Previdência Social (MTPS) sob os quais também procurava exercer forte controle. Seu principal
objetivo, aqui, foi aumentar o poderio direto sobre assuntos importantes
nas áreas econômica e social, reduzindo as possibilidades de conflitos
intraministeriais. Finalmente, procurou fortalecer seu assessoramento direto, dividindo a Casa Civil em Gabinete Pessoal e Secretaria Geral, além
de consolidar os assuntos de segurança nacional na SAE e a gestão da
máquina pública na SAF (Secretaria de Administração Federal).
Todas essas mudanças provocaram enorme instabilidade organizacional,
perda de memória administrativa e desorganização em vários núcleos de
competência profissional, muitos dos quais já haviam sido afetados durante o governo Sarney. Mas, tal como antes, essas modificações tinham
dois objetivos politicamente racionais dentro da dinâmica institucional do
nosso presidencialismo: de um lado, fortalecer a Presidência, reduzindo o
espaço para a barganha política com as forças do Congresso, de outro,
aumentar a capacidade de coordenação dos órgãos centrais, através da
concentração de muito poder em poucos ministérios, controlados por
pessoas diretamente escolhidas pelo presidente.
Refletindo o fracasso de sua estratégia inicial de confrontação, Collor
iniciou, em 1992, o desmembramento dos grandes ministérios visando à
recomposição de sua base de apoio. Primeiro dividiu o Ministério do
Trabalho e Previdência Social, criando o Ministério do Trabalho e da
Administração. Depois, dividiu o MINFRA em Ministério das Minas e
Energia e Ministério dos Transportes. Neste sentido, a paradoxal vinculação
da SAF (Secretaria de Administração Federal) ao Ministério do Trabalho,
repetiu a trajetória da SEDAP, inclusive na gradativa perda de capacidade
institucional até transformar-se num simples balcão homologador de demandas da burocracia.
O governo de transição de Itamar Franco significou um retorno à
dinâmica institucional do período Sarney: ampliar os cargos para governar. O Gabinete Civil foi recomposto, a SAF voltou à condição de secretaria diretamente vinculada à Presidência. Ressurgiram os ministérios da
Fazenda e da Indústria e Comércio (acrescido do Turismo). Novos minis23
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térios surgiram das secretarias da Ciência e Tecnologia, da Cultura e do
Meio Ambiente. A fusão do Ministério da Ação Social com a Secretaria de
Desenvolvimento Regional resultou no Ministério da Integração Regional. O Ministério da Educação reincorporou a Secretaria de Desportos e o
Ministério dos Transportes e das Comunicações foi redividido.
Um balanço dos resultados das reformas administrativas tentadas ao
longo do século XX mostra que a dinâmica institucional do presidencialismo de coalizão condicionou, decisivamente, o modo como se organizou
a administração pública no Brasil (ABRANCHES, 1988).
Devido às características consociativas do presidencialismo de coalizão,
a base política de apoio ao governo no Congresso pressiona por se fazer
representar no Ministério. Neste sentido, o nosso presidencialismo se aproxima de um regime parlamentarista. Mas, diferentemente dos regimes parlamentaristas europeus, no presidencialismo brasileiro não existe uma clara
separação entre funções políticas e funções administrativas. De fato, praticamente todos os cargos de alto escalão e mesmo os de nível gerencial da
APF podem ser ocupados por pessoas de fora da burocracia profissional de
carreira. E mesmo quando tais postos funções são ocupados majoritariamente por servidores públicos, a dinâmica de comissionamento representa
uma efetiva “politização” da alta administração pública3.
O sucesso das reformas administrativas no Brasil depende, portanto,
de duas condições institucionais básicas: uma base de sustentação política
ampla e coesa no Congresso e, concomitantemente, a capacidade do
governo de imprimir diretrizes político-administrativas claras e consistentes aos órgãos centrais da Presidência e exercer coordenação firme junto
aos Ministérios e aos órgãos da administração indireta.
Reformas de amplo escopo, como as concebidas pelo Plano Diretor
de Reforma do Aparelho do Estado, têm de enfrentar um desafio: como
conciliar a necessidade de tornar mais eficiente e efetivo o controle e a
coordenação sobre o setor público, especialmente em conjunturas de
forte restrição fiscal, com a desconcentração organizacional e a
flexibilização gerencial.
3
Esse fenômeno não é exclusivo do Brasil nem de países ditos subdesenvolvidos. Nos Estados Unidos
o Presidente pode nomear cerca de 7.000 cargos na administração federal, embora a maior parte
desses cargos tenha que ser submetido à aprovação do Senado, no caso de funções politicamente
delicadas, e ao OPM (Office of Personnel Management), no caso de postos que exigem certa qualificação profissional ou experiência prévia. Na Espanha e na Grécia, de forma semelhante ao que
ocorreu no Brasil, a politização da administração pública central foi um “efeito perverso” da
redemocratização (cf. ALBA, 1998).
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III - REFORMAS ORGANIZACIONAIS NOS ANOS FHC
Nesta parte analisamos as iniciativas do governo Fernando Henrique Cardoso que tinham como objetivo reformar o aparelho estatal. Procuramos
responder uma questão básica: até que ponto as dificuldades encontradas
para a implementação do Plano Diretor de Reforma do Aparelho do
Estado decorreram de falhas de concepção e/ou implementação, ou então podem ser explicadas como conseqüência dos obstáculos institucionais
apontados anteriormente?
Estudo recente discute a hipótese de que haveria uma tendência de
“falhas seqüenciais” em todas as reformas inspiradas na Nova Gestão
Pública (REZENDE, 2002). O argumento é central para a compreensão
dos obstáculos enfrentados pelas reformas tentadas pelo governo Fernando
Henrique Cardoso. O problema básico das reformas atuais seria a tentativa
de resolver, simultaneamente, dois problemas com sentidos opostos: aumentar a racionalidade na gestão financeira e fiscal do Estado, e promover
reformas institucionais nas estruturas de controle, gestão e delegação entre
as diversas partes do sistema burocrático”(REZENDE: 2002: 51).
A falha resultaria da falta de cooperação “espontânea” por parte de
atores estratégicos. Enquanto os que estão situados nos órgãos centrais do
governo, especialmente os encarregados das áreas financeira, fiscal e
orçamentária, empenham-se em melhorar o controle sobre o gasto público, visando à redução do custo do funcionamento da máquina pública, os
demais, localizados nos órgãos setoriais (ministérios e agências) estão
interessados em preservar ou aumentar a autonomia sobre seus gastos.
Em resumo, as falhas seqüenciais ocorreriam porque as reformas atuais
exigiriam, contraditoriamente, mais controle fiscal e menos controle
gerencial; este seria o “dilema do controle”.
Tal dilema não se vincula apenas às atuais reformas administrativas,
mas deriva da própria gestão rotineira das burocracias, inclusive as das
empresas privadas. A instituições efetivamente importam, e mais, são
resistentes às mudanças que implicam em rupturas nos arranjos de poder
alcançados à custa de muito conflito e negociação. A trajetória de construção das burocracias modernas ao longo dos dois séculos anteriores mostra
que o “dilema do controle” não se restringe às questões presentes.
O que importa analisar é a relação entre os diferentes arranjos
institucionais que articulam sistema político e burocracia em cada país e
os objetivos propostos por cada programa de reforma. Certamente, em
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todos os casos existirá um trade-off entre controle fiscal e flexibilização
gerencial. Mas, em cada contexto nacional, o dilema se põe de forma
diversa. No caso britânico, tratava-se de “desverticalizar” as grandes estruturas ministeriais resultantes da dinâmica concentradora de poder do
modelo Westminster. No norte-americano, não estava em questão uma
reforma organizacional, mas apenas a difusão de práticas gerenciais voltadas à redução de custos operacionais e maior efetividade e accountability
do setor público. Nos países escandinavos, Suécia, Dinamarca, Noruega,
onde a implementação das políticas é fortemente descentralizada, buscava aperfeiçoar os mecanismos de controle verticais (políticos) e horizontais (sociais) e aumentar a efetividade do gasto. Na França, por outro
lado, a modernização da administração praticamente se resumiu à
descentralização territorial.
O balanço das reformas inspiradas na Nova Gestão Pública não se
resume a uma série monótona de “falhas seqüenciais”. Cada “tradição
estatal” produz um arranjo institucional diferente e, portanto, formas diversas de lidar com o “dilema do controle” Enfim, não podemos confundir as expectativas “revolucionárias”, presentes no discurso da NGP, com
os processos efetivos de reforma. Com exceção de Grã-Bretanha e Nova
Zelândia, em nenhum outro país estava em questão uma aplicação ortodoxa do receituário gerencial. De fato, as exceções configuram a regra,
no caso da onda de reformas atuais.
Como vimos na parte II, o problema histórico da administração pública
no Brasil não é o excesso de controle e centralização administrativa, mas,
ao contrário, a incapacidade do governo central em coordenar de forma
contínua e consistente as ações de uma burocracia fragmentada e heterogênea. Era esse o problema central que o governo Fernando Henrique
Cardoso tinha de enfrentar, tanto do ponto de vista fiscal como gerencial.
Assim, não se tratava de um “dilema do controle”, e sim, a coordenação
de uma complexa agenda de reformas: consolidar o ajuste fiscal, através
da introdução de instrumentos de planejamento, orçamento, gestão e
controle; concluir a profissionalização da administração pública, estruturando
as carreiras, especialmente nos níveis gerenciais, introduzindo simultaneamente mecanismos mais eficientes e eficazes de gestão.
A complexidade dessa agenda exigia do governo uma elevada capacidade de coordenação interministerial, além da cooperação “espontânea”
da burocracia. A construção dessa capacidade dependia não apenas de
vontade política, mas de condições políticas e administrativas favoráveis.
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Um estudo comparado (JANN e REICHARD, 2002) sobre os “países reformistas” conclui que:
“em quase todos os casos as reformas parecem ser mais bem-sucedidas se forem coordenadas e implementadas por atores centrais relevantes, isto é, em geral pelos ministérios da área financeira ou, ainda melhor,
pelo governo central. Uma estratégia clara de reforma e comunicação,
que demonstre aos participantes e observadores que a modernização
administrativa é prioritária na agenda política e que atores políticos relevantes se importam com ela... Mas isso obviamente não vale para todos
os países, e nem é uma estratégia facilmente transferível para a Alemanha, com seu sistema político-administrativo altamente fragmentado,
legalista e voltado para o consenso” (JANN e REICHARD, 2002: 31).
Assim, constatar que a necessidade de ajuste fiscal subordinou todo o
resto da agenda de reformas é importante, mas não suficiente. Em todos
os casos o problema central das reformas sempre foi o de coordenar
redução de gastos e mudanças institucionais, porém, em cada caso, algum tipo de “equilíbrio”, sempre instável, foi alcançado. O importante é
compreender a estrutura de incentivos e constrangimentos à mudança de
cada sistema político.
Uma resposta a essa questão, no caso brasileiro, implica a análise da
reforma sob duas perspectivas complementares. Em primeiro lugar, discuto o papel da reforma do Estado no programa de governo e a trajetória
do órgão encarregado de executá-lo durante o primeiro mandato, o MARE
(1995-1998), e faço um balanço da implementação das três principais
propostas de reforma institucional contidas no Plano Diretor: a
reestruturação do núcleo estratégico, especialmente, o Programa de
Reestruturação e Qualidade; a criação de agências executivas e de organizações sociais. Em segundo, procuro explicar as razões da extinção do
MARE, sua substituição pela SEGES (Secretaria de Gestão do Ministério
do Planejamento, Orçamento e Gestão) e as conseqüências da
descontinuidade administrativa para a dinâmica institucional da reforma
ao longo do segundo mandato (1999-2002).
As condições institucionais para a implementação de mudanças estruturais na Administração Pública Federal durante os dois mandatos de
Fernando Henrique Cardoso foram em geral bastante favoráveis. Apoiado
no sucesso do Plano Real, FHC pôde montar uma grande coalizão eleitoral e de governo. Isto explica a grande estabilidade da base política do
governo no Congresso, fato inédito em nossa história. Além disso, o
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Executivo contou com grande apoio na opinião pública e prestígio internacional. Aproveitando-se do amplo consenso em torno da necessidade
de combater a inflação, o presidente teve condições de iniciar uma ampla reforma do Estado.
Em parte, essa agenda era a mesma que Collor tentou implementar, no
entanto, o novo presidente iniciou seu primeiro período de governo com
uma grande vantagem: a inflação, variável crítica do ajuste fiscal, já estava sob controle. Partindo dessa base superior, Fernando Henrique tinha
condições institucionais para ampliar seu escopo de ação. A agenda de
Collor, baseada no desmonte do Estado, foi substituída por uma agenda
de reestruturação do Estado. Para além da concepção da primeira rodada
de reformas - como a abertura comercial e a privatização - incluiu-se a
criação de um setor regulador para os serviços públicos concedidos à
iniciativa privada e um processo de requalificação da administração pública.
No entanto, quando Fernando Henrique Cardoso tomou posse, em
janeiro de 1995, não havia uma percepção clara do escopo da reforma
administrativa. O próprio programa de governo não tratou este tema
como prioritário. A meta principal do governo era o ajuste fiscal, visando
à manutenção da inflação em níveis baixos. Esse talvez tenha sido o
principal obstáculo enfrentado pelas reformas propostas por Bresser. O
maior compromisso do governo Fernando Henrique, desde suas origens,
sempre foi com a manutenção a qualquer custo do Plano Real.
Além disso, o futuro ministro Bresser não pertencia ao núcleo central
do governo. Foi incorporado tardiamente sem que tivesse qualquer programa consolidado para a reforma do Estado. O desenho do Plano Diretor
da Reforma do Aparelho de Estado foi concluído durante o primeiro ano
e foi recebido pela equipe econômica com certa frieza e desconfiança,
apesar do esforço de Bresser para demonstrar que sua proposta não era
incompatível com o esforço de ajuste fiscal, mas sim complementar a ele.
Em resumo, a estratégia de reforma institucional de Bresser foi construída
por fora do núcleo do governo e sua concepção não se enquadrava
facilmente nas linhas de ação prioritárias. As medidas mais importantes
do primeiro mês da nova administração apontavam para o fortalecimento
da capacidade de controle e coordenação dos órgãos centrais sobre ministérios e autarquias e, em última análise, buscavam dotar o Executivo
de instrumentos administrativos para aprofundar e consolidar o ajuste
fiscal.
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A primeira medida do novo governo (Medida Provisória 813 de 1º de
janeiro de 1995), que reorganizou a Presidência e os ministérios, visou
principalmente ao fortalecimento da capacidade de controle e coordenação dos órgãos da Presidência sobre os ministérios.
O papel de coordenação e a integração das ações governamentais, as
relações com o Congresso Nacional, com os demais níveis da Administração Pública e com a sociedade couberam à Casa Civil da Presidência da
República. A Secretaria Geral, também saiu fortalecida, pois foi encarregada da coordenação interna dos órgãos da Presidência. A Secretaria de
Assuntos Estratégicos também teve fortalecidas suas atribuições de “promover estudos, elaborar, coordenar e controlar planos, programas e projetos de natureza estratégica (...), inclusive no tocante a informações e ao
macrozoneamento geopolítico e econômico, assim como assessorar o
Conselho de Defesa Nacional”.
Além disso, foi reforçado o papel do Conselho de Governo, responsável por assessorar o presidente na formulação de diretrizes da ação governamental, composto pelos titulares dos órgãos essenciais da Presidência da República. O Conselho passava a contar com uma estrutura de
formulação de políticas interministeriais: as Câmaras de políticas setoriais
(regionais, sociais, econômicas), compostas pelos Ministros das áreas envolvidas e presididas pelo Ministro da Casa Civil. Cada Câmara teria um
órgão operacional, o Comitê Executivo, integrado pelos Secretários-Executivos dos Ministérios envolvidos e pelo Subchefe-Executivo da Casa
Civil da Presidência da República. Apenas os Ministros da Fazenda e do
Planejamento e Orçamento participavam de todas as Câmaras.
Outras medidas reforçaram a estrutura de coordenação e controle da
Presidência, como a transformação dos secretários-executivos em elementos de ligação informal entre a Presidência da República e os ministérios e, finalmente, a organização de sistemas de controle interno e de
planejamento e orçamento, sob o controle dos Ministérios da Fazenda e
do Planejamento e Orçamento (MP 839, de 19.01.1995)4.
O fortalecimento da capacidade de coordenação e controle dos órgãos
centrais da Presidência da República procurava também contrabalançar
4
Esses controles sistêmicos seriam consolidados na Lei 10.180 de 6 de fevereiro de 2001.
Organiza e disciplina os Sistemas de Planejamento e de Orçamento Federal, de Administração
Financeira Federal, de Contabilidade Federal e de Controle Interno do Poder Executivo Federal, e dá
outras providências.
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tendências centrífugas resultantes da distribuição de parte dos ministérios
entre os partidos do bloco governista.
Dessa perspectiva, no entanto, a transformação da Secretaria da Administração Federal (SAF) no Ministério da Administração e Reforma do
Estado (MARE), mostrava que a reforma não era uma prioridade governamental. Como órgão responsável por atividades-meio, o MARE não possuía densidade própria, não representava interesses sociais relevantes,
não atraía a atenção da opinião pública e, pelo contrário, tendia a enfrentar resistências generalizadas da burocracia federal, especialmente nos
ministérios maiores, ciosos de sua autonomia. Sem a vinculação direta à
Presidência da República, o MARE seria apenas um pequeno ministério
sem recursos, procurando definir seu lugar entre os cerca de vinte ministérios.
Apenas a competência e o dinamismo de Bresser permitiram superar,
temporariamente, os limites impostos pela situação marginal do MARE e
da reforma administrativa dentro do governo. Ao longo de todo o ano de
1995, Bresser lutou para incorporar a reforma entre as prioridades da
agenda, promovendo seminários internacionais, debatendo, escrevendo
ou dando entrevistas.
Em sua estratégia argumentativa, a reforma administrativa seria um
elemento essencial de mediação entre o ajuste fiscal e o novo modelo de
desenvolvimento econômico, baseado num aparelho de Estado
reestruturado, ágil, flexível, capaz de articular desenvolvimento econômico e social, mercado e sociedade civil. Para concretizar essa transformação, Bresser propunha:
a) a flexibilização da Administração através de uma reforma constitucional e da criação de novas organizações mais autônomas e eficazes;
b) a descentralização dos serviços sociais do Estado através das organizações sociais;
c) e a profissionalização dos administradores públicos, estruturando
carreiras de médio e alto administradores com perfis generalistas para
ocuparem todos os Ministérios.
Apesar da capacidade empreendedora de Bresser, ele não conseguiu
controlar um espaço decisório imprescindível para o sucesso da reforma.
A Câmara de Reforma do Estado (criada através do decreto n.º 1526/95),
órgão responsável pela definição das diretrizes da reforma, era controlada pelo Ministro-Chefe da Casa Civil, Clóvis Carvalho. Isto explica, em
parte, a adoção de um Plano Diretor como instrumento orientador das
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reformas, e não uma Lei Orgânica da Administração Pública ou um conjunto de decretos. Essas duas alternativas poderiam ser bloqueadas dentro
da Câmara de Reforma do Estado. O Plano Diretor, aprovado pela CRE,
representava uma “carta de crédito” a Bresser que teria de lutar para
torná-lo operacional.
Vejamos como se desenvolveram as principais linhas de ação do MARE
ao longo de primeiro mandato (1995-1998).
IV - DA REFORMA INSTITUCIONAL À REFORMA GERENCIAL: A TRAJETÓRIA INCERTA
DO PLANO DIRETOR
O diagnóstico do Plano Diretor de Reforma do Aparelho de Estado era
que a Administração Pública Federal encontrava-se numa acentuada decadência institucional devido ao esgotamento do modelo burocrático, agravado pela crise fiscal provocada pelo Estado Desenvolvimentista. Assim,
a única estratégia social e politicamente viável para a superação da crise
era articular o ajuste fiscal, inescapável, com uma profunda reconfiguração
da burocracia federal.
Deste modo, o Plano Diretor propunha, simultaneamente, a reorganização das estruturas e da forma de gestão do Aparelho de Estado. Reconhecendo a heterogeneidade do setor público, as ações do Plano Diretor
eram orientadas pelos seguintes objetivos:
1- Fortalecer o núcleo estratégico: neste setor deveriam ser mantidas e
mesmo fortalecidas as características básicas da administração burocrática, visando ao resgate da sua capacidade formuladora, reguladora e avaliadora em relação às políticas públicas, além da incorporação de novos
instrumentos - a exemplo dos contratos de gestão - para o aprimoramento
do controle e da avaliação sobre as outras entidades estatais.
2. Revitalizar as autarquias e fundações, na forma de Agências: no
setor de atividades exclusivas de Estado, deveriam ser introduzidas as
Agências como novo modelo institucional, na forma de Agências Executivas e Agências Reguladoras, que revitalizariam as autarquias e fundações, resgatando a sua autonomia administrativa e assimilando novos instrumentos e mecanismos de gestão voltados para a administração gerencial,
por meio da introdução da avaliação de desempenho, do controle por
resultados, da busca da satisfação do usuário e do controle de custos.
3. Publicizar as atividades não-exclusivas de Estado: no setor de atividades não-exclusivas de Estado, deveriam ser disseminadas as Organiza31
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ções Sociais, como forma de propriedade pública não-estatal, nas quais a
sociedade, mediante conselhos, administraria serviços cuja relevância social não recomenda a sua privatização estrita e torna indispensável o
aporte de recursos orçamentários e de bens e equipamentos pelo Estado.
4. Privatizar a produção de bens e serviços para o mercado: em relação a este setor, a produção deveria ser em princípio realizada pelo setor
privado, com base no pressuposto de que as empresas serão mais eficientes se controladas pelo mercado e administradas privadamente, cabendo ao Estado um papel regulador e transferidor de recursos, e não de
execução.
A cada uma das metas propostas correspondia uma linha de atuação
do Ministério: a primeira resultou no Programa de Reestruturação e Qualidade (PRQ), voltado para a qualificação dos ministérios para o exercício
do seu papel formulador de políticas; o segundo, nos projetos de qualificação de autarquias e fundações como Agências Executivas (decretos
2487 e 2488 ambos de fevereiro de 1998), o terceiro, na criação das
Organizações Sociais, que ganharam estatuto legal com a lei 9.637/98; e
a última linha de ação foi incorporada para reforçar a associação entre a
reforma institucional e o esforço de redução dos gastos, pois era controlada pela área econômica do governo.
Esta proposta era convergente com os objetivos do Decreto Lei 200/
67, já que também procurava distinguir as funções de formulação e supervisão, que ficariam, respectivamente, a cargo do núcleo estratégico e
das Agências Executivas e Organizações Sociais. A grande diferença estava na concepção gerencial do Plano Diretor, que buscava fortalecer a
capacidade de controle dos órgãos superiores apoiando-se na
contratualização das atividades governamentais. O contrato de gestão é o
principal instrumento de implementação da Nova Gestão Pública e fundamenta-se na avaliação de desempenho baseada em metas e indicadores previamente definidos.
Embora a concepção geral do Plano Diretor fosse clara, a sua
implementação não dependia apenas da capacidade empreendedora do
ministro Bresser ou da eficácia operacional do MARE. Devido à sua posição marginal em relação ao núcleo governamental e ao pequeno peso do
MARE no conjunto dos ministérios, o sucesso do Plano dependia da “boa
vontade” desses atores. Em termos concretos, era preciso convencer o
núcleo “duro” do governo da compatibilidade entre as mudanças propostas e o ajuste fiscal e, ao mesmo tempo, encontrar ministérios dispostos a
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servir como “cobaia” para os seus programas e assim comprovar a viabilidade da reforma. Na verdade, as duas estratégias estavam fortemente
vinculadas, pois na medida em que fosse bem sucedido na implementação
dos programas, ganharia a confiança dos órgãos centrais.
A primeira parte da estratégia foi relativamente bem sucedida enquanto esteve associada à reorganização da macroestrutura governamental,
implementada através da MP no. 813 de janeiro de 19955. No entanto, o
objetivo da Medida Provisória, no que se refere aos ministérios, era a
redução de custos e a racionalização de estruturas ministeriais limitandose a propor a fusão, a extinção e a privatização de órgãos. Logo tornarse-ia evidente que o desenho da reforma institucional proposta por Bresser
ia muito além da racionalização administrativa.
V - O PROGRAMA
DE
REESTRUTURAÇÃO
DOS
MINISTÉRIOS:
AVANÇOS E OBSTÁCULOS
A concepção do Programa de Reestruturação e Qualidade dos Ministérios
(PRQ) era bastante ambiciosa. Lançado em 1997 dentro do Programa de
Modernização do Poder Executivo Federal (PMPEF), que contava com
financiamento do BID, o PRQ era complementado por dois outros programas voltados para a racionalização de gastos e dos serviços administrativos dos ministérios nos estados6.
A principal qualidade do PRQ era associar as reformas institucional e
gerencial a uma preocupação permanente com a redução dos custos
operacionais da burocracia federal. Mas, por isso mesmo, ele implicava
em profundas alterações na estrutura organizacional dos ministérios. Um
breve resumo dos procedimentos previstos para a implementação do
programa ajuda a perceber as a razão das resistências que teria de enfrentar.
O programa deveria funcionar de forma voluntária, mas uma vez iniciada a sua implementação, havia uma série de procedimentos obrigatórios. A principal etapa era a reavaliação crítica do papel do ministério,
tendo como marcos referenciais a legislação, as concepções do Plano
5
Consolidada, posteriormente, na Lei 9.649 de 27 de maio de1998.
6
O primeiro Programa de Apuração de Gastos Governamentais (Contabilidade Gerencial), tinha
como objetivo introduzir a apuração de custos das atividades/programas/projetos dos órgãos e entidades do Governo Federal. O segundo, denominado Programa de Racionalização das Unidades
Descentralizadas do Governo Federal, visava à racionalização da ação governamental e das atividades administrativas nos estados (delegacias dos Ministérios nos estados).
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Diretor, o orçamento e os programas governamentais relacionados com
as atividades do órgão. A redefinição da situação do Ministério dentro da
estrutura legal e administrativa do Governo Federal poderia implicar transferência de funções para outros níveis de governo, para outros ministérios, para entidades vinculadas ou mesmo a simples eliminação de funções. Apenas a partir daí seria possível discutir o planejamento estratégico do ministério, enfocando sua missão, a visão de futuro e os objetivos
estratégicos.
Essas definições gerais orientariam o desenvolvimento dos aspectos
operacionais do programa, como a identificação de macroprocessos setoriais
dentro dos quais deveria atuar o Ministério. Um refinamento importante
dessa etapa seria a proposta de arranjo institucional do setor, isto é, quais
funções deveriam ser exercidas pelo Governo Federal e quais tipos de
organização seriam mais adequados para cada uma destas funções. Com
base nessas macrodefinições, seria possível desdobrar os macroprocessos
em processos de cada organização, chegando-se a uma definição preliminar da estrutura organizacional, das necessidades de recursos humanos, assim como das propostas de melhoria de gestão. Finalmente, essas
orientações de mudança deveriam ser consolidadas num Plano de
Reestruturação e Melhoria da Gestão dos Ministérios, contendo metas e
indicadores que pudessem ser avaliados7.
A principal característica do programa era sua coerência com as diretrizes do Plano Diretor e seu potencial de impacto sobre a organização do
setor público federal. Além disso, ele integrava de forma explícita a
reestruturação dos ministérios com os novos modelos organizacionais propostos pelo ideário de Bresser: as Agências Executivas e as Organizações Sociais. Essas mudanças na macroestrutura eram coerentes, ainda,
com a concentração das funções de formulação e supervisão nos ministérios, enquanto Agências e Organizações Sociais ficariam encarregadas da
implementação das políticas. O elo entre ministérios e agências e organizações sociais seriam os contratos de gestão, que definiriam metas de
desempenho e indicadores de qualidade e que poderiam ser acompanhados e cobrados não apenas pelo órgão supervisor, mas por ONGs e pela
imprensa.
Apesar do caráter voluntário do Programa, o MARE sabia que teria de
se mobilizar para incentivar adesões. Para quebrar resistências generali7
Programa de Reestruturação e Qualidade dos Ministérios, Cadernos do MARE 12, Brasília, 1998.
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zadas às profundas mudanças propostas era preciso conseguir implementalo em ministérios importantes. Cinco foram os Ministérios que, em princípio, aderiram: além do próprio MARE, os da Saúde, do Trabalho, da
Agricultura e dos Transporte. Outros foram procurados, mas recusaram o
“convite”.
Um balanço do Programa até o final do primeiro mandato, quando o
MARE foi extinto, mostra as dificuldades de se introduzir mudanças estruturais na administração pública. De todos os ministérios envolvidos na
primeira fase do Programa, apenas o próprio MARE concluiu sua
implementação! É certo que a experiência não foi inútil, resultando em
aprendizado para as equipes do MARE e algumas iniciativas isoladas de
modernização nos ministérios participantes. No entanto, do ponto de
vista da consolidação do Programa de Reestruturação e Qualidade, pilar
básico da reforma, os resultados foram desastrosos.
Um dos problemas que afetou a consolidação do PRQ foi a
descontinuidade administrativa resultante de mudanças nos escalões superiores e que, geralmente, atingem também as funções gerenciais. Esse
foi o caso em dois ministérios importantes, Saúde e Trabalho, onde a
mudança de ministros afetou a continuidade do Programa. O próprio
MARE, posteriormente, seria vítima desse problema grave na administração pública brasileira.
Os outros dois Ministérios, dos Transportes e de Minas e Energia, que
simplesmente não aderiram ao Programa, seriam dois importantes exemplos da viabilidade do Programa. Os dois estavam passando por importantes mudanças em função do programa de privatização e seriam ótimos
modelos (benchmarks) da reestruturação organizacional proposta pelo MARE.
Esses exemplos deixam claro que sem o suporte político da Presidência da República o Programa não sairia do papel. O aperfeiçoamento da
coordenação interministerial foi uma das prioridades na reorganização
administrativa no início do governo. No entanto, isto não eliminava os
conflitos entre o núcleo presidencial, responsável pela coordenação, e os
Ministérios. Obviamente, o Programa de Reestruturação e Qualidade dos
Ministérios não poderia ser gerido como uma política setorial entre outras.
A partir de 1997/1998, as dificuldades de implementação do Programa levaram o MARE a um recuo estratégico. Em vez de tentar implementar
reformas setoriais, envolvendo ministérios e órgãos vinculados, passou a
atuar de forma segmentada e reativa, atendendo a demandas pontuais.
Afinal, era mais fácil alterar os métodos de gestão sem alterar a
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macroestrutura, pois, nesse caso, o processo de mudança se mantinha
sobre o controle da burocracia do órgão a ser reformado. Modificações
que afetam simultaneamente a estrutura organizacional e os métodos de
gestão só têm sucesso quando conquistam o consenso da burocracia em
torno das medidas propostas e estão apoiadas numa clara linha de comando e legitimidade dos órgãos responsáveis pela sua implementação.
A perda de dinamismo da reforma foi inevitável, pois o fracasso do
PRQ resultou na fragmentação das linhas de ação do Ministério, eliminando a sinergia entre os novos modelos organizacionais propostos. Na concepção original, a reorganização de cada Ministério resultaria necessariamente num “plano diretor” setorial, dentro do qual seriam definidos quais
dos novos formatos organizacionais seriam mais adequados às novas funções das entidades vinculadas. A viabilidade do modelo de Agências
Executivas e Organizações Sociais dependia em grande medida do sucesso da reestruturação dos ministérios.
A partir desse momento, a reforma desenvolveu-se em linhas de ação
paralelas e descoordenadas. A Secretaria de Reforma do Estado do MARE
continuou oferecendo assessoria a ministérios e órgãos, mas restringiu
sua atuação a projetos de revisão de processos administrativos e medidas
pontuais de reorganização.
O caso mais importante nessa fase foi a inclusão da Presidência da
República no programa de reestruturação. Apesar de positivos, os resultados não parecem ter alcançado repercussão além dos limites da Presidência da República. A situação é paradoxal, pois os dois órgãos que
passaram por reorganizações profundas, a Presidência e o MARE, pareciam ter visões bastante distantes com relação aos caminhos da reforma.
De novo, problemas de coordenação política estavam na origem das
limitações impostas a uma reforma de amplo escopo.
As outras duas linhas de reforma institucional, sem o suporte do PRQ,
seguiram trajetórias incertas, extremamente dependentes do interesse de
ministérios e autarquias isolados. O projeto das Agências Executivas, além
da necessidade de aperfeiçoamento institucional, sofreu uma inesperada
concorrência por parte do modelo de Agências Reguladoras. O modelo
de Organizações Sociais teve uma trajetória paradoxal, pois, se de um
lado foi fortemente questionada por uma Ação de Inconstitucionalidade
(Adin) da oposição, por outro, avançou mais porque foi implementado,
de forma independente, pelos ministérios da Ciência e Tecnologia e do
Meio Ambiente. Vejamos um breve balanço das duas linhas de ação.
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VI - AS AGÊNCIAS EXECUTIVAS
A maior inovação do PDRAE eram as Agências Executivas. Inspiradas no
modelo britânico do Next Steps, elas seriam as “cabeças-de-ponte” do
novo desenho organizacional da administração pública. Por um lado, seriam autônomas, ágeis e flexíveis, fornecendo as condições institucionais
para o desenvolvimento da nova cultura gerencial proposta pelo Plano
Diretor. Por outro, seriam controladas de forma precisa e objetiva por
contratos de gestão que definiriam a missão de cada Agência, seus objetivos de médio e longo prazo, assim como os critérios de avaliação do
desempenho. Seus diretores, espécie de CEOs do setor público, seriam
os responsáveis frente aos ministérios pelo cumprimento dos contratos.
No entanto, entre 1996 e 2002, apenas uma Agência Executiva, o
INMETRO, foi instituída. Num período pouco maior (1988-1997) foram
criadas quase 140 agências next steps, envolvendo mais de 70% do Civil
Service britânico (HOGWOOD, 1999). Antes de desqualificar a comparação, lembro que os ministérios britânicos têm uma longa tradição de
centralização e que mais de 40 dessas agências eram órgãos do Ministério da Defesa. Mesmo se nos limitarmos a uma comparação com o desempenho das agências reguladoras no Brasil, a diferença continua sendo
muito grande. Isto não somente pelo número de Agências criadas no
mesmo período, mas pela relevância dos setores que elas procuram regular: telecomunicações (ANATEL), petróleo (ANP), energia elétrica
(ANEEL), vigilância sanitária (ANVISA), saúde complementar (ANS), Águas
(ANA), transportes terrestres e aquáticos (ANTT e ANTAQ).
Não se trata, obviamente, de propor a aplicação do modelo das Agências Reguladoras ao resto do setor público. Mas é preciso reconhecer que
o sucesso do modelo reside na simplicidade do formato e clareza de
objetivos e, principalmente, na autonomia financeira. O relativo sucesso
das primeiras Agências (ANEEL, ANATEL e ANP) atraiu o interesse dos
demais ministérios. As seguintes (ANVISA e ANS) abriram o caminho
para a criação de Agências Reguladoras em diversas áreas nas quais não
estava claro se haveria a necessidade de um marco regulatório.
Outros tipos de Agência, não previstos no Plano Diretor, também se
desenvolveram a partir do modelo das Reguladoras: as de fomento, como
a ADENE (Agência de Desenvolvimento do Nordeste), a ADA (Agência
de Desenvolvimento da Amazônia), criadas para substituir a SUDENE e a
SUDAM e a ANCINE (Agência Nacional de Cinema), criada para apoiar o
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desenvolvimento da indústria cinematográfica; e as Agências especiais,
como a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) e a AEB (Agência
Espacial Brasileira), inspiradas na experiência norte-americana.
O problema é que o modelo das Agências Reguladoras não pode ser
utilizado como substituto generalizado das Agências Executivas. Estas
visam a revitalizar autarquias, fundações e empresas que perderam sua
autonomia e seu foco operacional, por terem sido reabsorvidas em parte
pela administração direta a partir da Constituição de 1988. Além disso,
muitas secretarias nos ministérios executam funções que poderiam ser
transferidas para Agências. Não se pode imaginar que todas essas atividades sejam adequadamente executadas dentro de um modelo de autonomia
pensado para a regulação de atividades sob o risco de monopolização.
Embora o crescimento imprevisto de agências autônomas possa ser
interpretado como um sinal de dinamismo na administração pública, a
falta de coordenação e, principalmente, a falta de uma concepção mais
abrangente de regulação, colocam questões que precisam ser respondidas. A mais importante refere-se às condições efetivas de autonomia das
agências, tanto em relação ao governo como em relação aos interesses
econômicos a serem regulados. A marginalização da ANEEL durante a
recente crise energética e a situação delicada em que se encontra a
ANATEL diante da crítica situação financeira das empresas de telecomunicações, mostram que não se trata de riscos hipotéticos.
Além da rápida difusão das Agências Reguladoras, o MARE encontrou
muitas dificuldades para definir as bases legais para a criação das Agências Executivas. Somente no início de 1998, através de dois decretos (2.487
e 2.488), foram definidos os critérios para elaboração e avaliação dos
contratos de gestão e os procedimentos para qualificar autarquias e fundações públicas como Agências Executivas. Na verdade, as difíceis negociações para a criação da primeira agência mostraram que ainda persistiam muitas dúvidas a respeito do modelo.
O principal ponto de conflito era a regularidade na transferência de
recursos para a Agência Executiva por parte do Ministério da Fazenda.
Ora, sem o controle do seu orçamento, a autonomia seria mera formalidade. Talvez esta seja a principal diferença entre os dois modelos. As
Agências Reguladoras possuem uma base regular e independente de
financiamento, baseada na cobrança de taxas dos setores regulados. Enquanto isso, as Agências Executivas, assim como as velhas autarquias e
fundações, estão sujeitas ao contingenciamento. Quando atentamos para
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o fato de que o controle do repasse de recursos é um dos principais
instrumentos de atuação da área econômica, começamos a entender a
principal razão para a diferença de desempenho entre os dois modelos.
Enfim, o fracasso na criação de um novo modelo organizacional para a
administração indireta aponta para uma questão central na dinâmica
institucional da reforma administrativa no Brasil. A heterogeneidade e a
fragmentação do setor público, além da trajetória histórica de descontrole
financeiro e administrativo, consolidaram comportamentos “defensivos”
nos órgãos centrais, especialmente no Ministério da Fazenda. Os principais meios de controle tornaram-se os cortes lineares de despesa e a
administração na “boca do caixa”. Deste modo, todo tipo de autonomia
institucional que requisite autonomia financeira é vista com ressalvas
pelos “guardiões do cofre”.
O caso das Agências Executivas é exemplar dessa dinâmica, pois, ao
mesmo tempo em que impedem mudanças amplas na estrutura
organizacional, os controles ad hoc impostos pelos órgãos centrais não
são capazes de impedir alterações pontuais, não planejadas, que aumentam a fragmentação e a heterogeneidade do setor público.
VII - ORGANIZAÇÕES SOCIAIS
As Organizações Sociais (OS) são um modelo institucional para o setor de
atividades não-exclusivas do Estado. Instituições híbridas entre Estado e
sociedade, voltadas à prestação de serviços na área social, as OS seriam
criadas através da extinção de entidades públicas e subseqüente absorção
de suas atividades por entidade pública não-estatal.
A Lei no. 9637, de 15 de maio de 1998, estabeleceu o marco legal das
Organizações Sociais, definindo suas áreas de atuação: ensino, pesquisa
científica, desenvolvimento tecnológico, preservação e proteção do meio
ambiente, cultura e saúde. As OS podem administrar as instalações e
equipamentos dos órgãos e entidades extintos e receber recursos orçamentários para a execução de atividades acordadas em contrato de gestão com o Ministério supervisor, na sua área de atuação.
Atualmente, estão em funcionamento as seguintes OS: a Associação
Brasileira de Tecnologia de Luz Síncroton (ABTluS), a Associação de
Comunicação Educativa Roquete Pinto (ACERP), a Associação Brasileira
para o uso Sustentável da Biodiversidade da Amazônia (BIOAMAZÔNIA),
a Associação Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), o Instituto de
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Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM) e o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA).
Embora em menor escala, o modelo das Organizações Sociais também
enfrentou muitas dificuldades para se consolidar como alternativa de gestão de atividades públicas não estatais. O maior problema era a ambigüidade do processo de “publicização”. Afinal de contas, tratava-se de transferir a gestão de instituições públicas para grupos da sociedade civil ou
de apoiar de forma sistemática a criação de organizações da sociedade
civil para a gestão de atividades científicas, educacionais, artísticas e
médicas? No primeiro caso, teríamos uma tentativa de retomada do
modelo original das fundações; no segundo, uma transferência efetiva
da titularidade do Estado para a sociedade civil, com menor grau de
controle.
A indefinição quanto aos fundamentos do modelo representou menores obstáculos para a implantação de OS por duas razões específicas:
num caso, pelo interesse do Ministério das Comunicações em se livrar de
uma instituição problemática, a TVE do Rio (Fundação Roquette Pinto) e,
no outro, pela maior proximidade do modelo OS com a tradição de
autonomia de gestão das instituições científicas subordinadas ao Ministério da Ciência e Tecnologia. De fato, somente a diferença de “cultura
burocrática” pode explicar porque várias instituições científicas vinculadas ao MCT tornaram-se OS - ABTluS, IMPA, RNP, Mamirauá e Bioamazônia
-, enquanto as universidades e escolas/colégios técnicos e agrícolas, vinculados ao Ministério da Educação, mobilizaram-se fortemente contra a
“publicização”.
O que fica claro no caso das OS é que os ministérios são agentes
estratégicos para a implantação do modelo. Não se trata, na verdade, de
uma escolha doutrinária entre um formato mais ou menos comunitário,
mas da adequação do arranjo em relação ao tipo de atividade exercida
pela instituição e os vínculos que existem com a sociedade civil e o
governo. Na área de ciência e tecnologia existe uma tradição de autonomia operacional das instituições de pesquisa e uma rede de relações com
agências de fomento, redes de associações profissionais e, em alguns
casos, com o próprio mercado.
Em outros setores existe autonomia, mas nenhum tipo de relação
institucionalizada com redes informais de suporte na sociedade civil ou
no mercado - é o caso das universidades e escolas técnicas. Nestes
últimos, a conversão para o modelo OS implicaria num risco de isolamen40
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to e decadência institucional, a não ser que esses órgãos realizassem
grandes mudanças organizacionais e culturais.
Por fim, a maior parte das fundações vinculadas ao setor público é
inteiramente dependente dos recursos federais, são operadas por servidores públicos e mantém relações pouco institucionalizadas com organizações da sociedade civil. Neste contexto, não existem incentivos para a
transformação em OS, a não ser que o governo garanta um repasse
regular de recursos. Mas, neste caso, a tendência é retornar ao mesmo
modelo burocratizado das fundações.
Assim como no caso das Agências Executivas, sem um suporte
institucional mais amplo, isto é, sem uma coordenação entre as várias
linhas de ação da reforma institucional, o destino do modelo OS é incerto.
Pode se consolidar em determinados ministérios, como parece estar ocorrendo nos Ministério de Ciência e Tecnologia e do Meio Ambiente; pode,
também, se transformar numa “solução” para entidades problemáticas,
como aconteceu com a Fundação Roquette Pinto. Contudo, não parece
ser uma alternativa para uma vasta rede de entidades cujas atividades
estão identificadas com a “tradição estatal” brasileira, como as universidades, escolas e colégios técnicos federais, vinculados ao Ministério da
Educação. Por outro lado, Museus e fundações ligadas ao Ministério da
Cultura seriam candidatas “naturais” à transformação em OS.
VIII - A
REFORMA ADMINISTRATIVA NO SEGUNDO MANDATO: O DIFÍCIL RECOMEÇO
O período de transição entre o primeiro e o segundo mandato de Fernando
Henrique Cardoso foi caracterizado por muitas mudanças no nível ministerial. A mais importante no que se refere à reforma administrativa foi a
extinção do MARE.
Embora possa ser interpretada como uma clara derrota da concepção
de reforma institucional defendida por Bresser, o próprio ex-ministro
considerou o fato uma decorrência “natural” da fragilidade do MARE
frente à extensão de sua missão. Certamente, a decisão de alocar a gestão
administrativa e de pessoal em outro Ministério, e não numa secretaria
vinculada à Presidência da República, reduziu as chances de sucesso da
reforma. Pior: a decisão de incorporar as secretarias do MARE ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG) não pode ser considerada um sinal de valorização do Plano Diretor.
A forma como o MARE foi desmembrado e incorporado ao MPOG
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mostra que se tratava de subordinar a concepção de reforma institucional,
consubstanciada no Plano Diretor, à visão pragmática das áreas de planejamento e orçamento. Embora o Plano Diretor não separasse as duas
dimensões, o simples fato de enfatizar a sinergia entre as reformas
institucionais e gerenciais situava-o em rota de colisão com a concepção
dominante no Ministério do Planejamento e Orçamento, expressa claramente no conceito de “Gestão Pública Empreendedora”. Essa concepção
era marcada pela preocupação com as deficiências da gestão orçamentária. Para os dirigentes da área, todo os problemas do setor público se
resolveriam através da difusão de uma concepção de gestão pública
orientada por programas e metas.
Estas diferenças ficaram claras no momento de alocação das antigas
secretarias do ex-MARE. Enquanto as secretarias “operacionais” de
Patrimônio, Recursos Humanos e Logística e Tecnologia da Informação
ficaram subordinadas à recém criada Secretaria de Estado da Administração e Patrimônio (SEAP), sob o comando da ex-Secretária-Executiva do
MARE, Cláudia Costin, a estratégica Secretaria de Reforma do Estado foi
imediatamente incorporada à Secretaria de Gestão (MARTINS, 2002).
Neste novo contexto, perdeu-se o dinamismo da reforma. Além das
perdas resultantes da saída das principais lideranças associadas à reforma e do rebaixamento de nível hierárquico, houve também a perda
de memória administrativa, conhecimento e experiência acumulados
pelas equipes anteriores, assim como a diminuição drástica de sinergia
entre a secretaria formuladora (SRE) e as secretarias operacionais.
Tudo isso pode ser contabilizado como conseqüência da extinção do
MARE.
A posterior desmontagem da SEAP e subordinação direta das secretarias originárias do MARE à Secretaria Executiva do MPOG foi o ponto mais
baixo na trajetória da reforma administrativa. Ao longo do período de
indefinição e isolamento da SEGES dentro do Ministério, que durou até
meados de 2001, a reforma prosseguiu basicamente em duas linhas paralelas. De um lado, o Programa de Gestão Pública Empreendedora tornouse a marca registrada da reforma e o Plano Diretor foi deslocado para um
plano secundário. A PGPE procurava basicamente adaptar a organização
dos ministérios à estrutura matricial do PPA. Tudo girava em torno da
eficiência operacional e da autonomia dos gerentes responsáveis pelos
projetos do Avança Brasil (depois, Brasil em Ação). A segunda linha de
atuação da SEGES resumia-se a atender as solicitações dos ministérios
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para autorização de mudanças administrativas sobre as quais o órgão
tinha pouco o que dizer.
Neste momento, as concepções do Plano Diretor, sintetizadas no Programa de Reestruturação e Qualidade dos Ministérios, e a do Programa
de Gestão Pública Empreendedora, pareciam antagônicas. A cultura “empreendedora” permeou todas as linhas de atuação do antigo MARE, privilegiando as ações de caráter gerencial, especialmente os Programas de
Desburocratização e de Qualidade e Produtividade (MARTINS, 2002).
Deste modo, os princípios consolidados no PRQ deram lugar a uma
atuação extremamente pragmática da SEGES junto aos ministérios. O foco
de intervenção foi bastante heterogêneo, o que não deixou de representar acumulação de experiência e conquista de confiança junto aos ministérios assistidos. Em geral, o objetivo das intervenções nesse período era
a racionalização de processos, visando à maior eficiência dos órgãos já
existentes. Os casos mais conhecidos foram o DENATRAN - do Ministério da Justiça -, o INCRA - do Ministério do Desenvolvimento Agrário -, o
Programa Bolsa Escola - do Ministério da Educação -, a Secretaria de
Estado de Assistência Social (SEAS) - do Ministério da Previdência e Assistência - e a AGU (Advocacia Geral da União).
Intervenções de caráter estrutural na definição de missão, planejamento estratégico e reestruturação organizacional restringiram-se a três Ministérios: Meio Ambiente, Cultura e Defesa.
No primeiro caso, o foco foi a reorganização das áreas de intervenção, a
fim de melhorar a integração das ações do Ministério com os demais, as
ONGs, os estados e municípios. Embora o Meio Ambiente não tenha sido
assistido diretamente, ele incorporou os resultados do planejamento estratégico realizado no IBAMA. Isto mostra que a linha de ação “difusionista”
adotada pela SEGES pode ter efetividade por meio do efeito demonstração.
No segundo, a proposta de reestruturação buscou aperfeiçoar o foco
de atuação setorial do Ministério, com ênfase no desenvolvimento de
modelos de gestão do patrimônio histórico (IPHAN) e museus.
Finalmente, a intervenção no recém criado Ministério da Defesa, embora abrangente, focalizou exclusivamente o Gabinete do Ministro, que
herdou as atribuições administrativas do EMFA, deixando de fora as atividades-fins. O diagnóstico da consultoria contratada propôs que as áreas
em que se dividia o Gabinete deixassem de executar funções, passando
apenas a gerenciá-las, o que possibilitaria a redução do número de servidores, porém ficar-se-ia com os de maior capacitação.
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Elaborou-se, também, um modelo de gestão orientado para resultados,
envolvendo, ainda, um projeto de desenvolvimento tecnológico e uma
maior interação entre o Gabinete e as outras áreas do Ministério da Defesa. Foi proposta um estudo do perfil dos cargos necessários e apontada a
necessidade de criação de uma carreira própria. Todos esses objetivos
seriam alcançados através de planos de ação continuada, operados pelos
próprios servidores do Ministério treinados para isso8.
A partir de meados de 2001, depois de mais uma reorganização
institucional da SEGES, iniciou-se um processo de revalorização do Plano
Diretor. Na verdade, a mudança começou com a posse na recém criada
Secretaria-Executiva Adjunta do MPOG, do antigo titular da Secretaria de
Reforma do Estado, também responsável pelo PRQ. Com esse aliado
importante, a nova Secretária de Gestão retomou uma discussão sistemática sobre a revisão dos modelos institucionais e sua necessária articulação com o programa de requalificação dos ministérios para o exercício
de funções formuladoras e supervisoras.
Ainda nessa linha, a SEGES procurou articular os Programas de
Desburocratização, de Qualidade no Serviço Público e de Valorização do
Servidor ao Programa de Reestruturação e Qualidade, de forma a aumentar a sinergia entre as mudanças gerenciais e as organizacionais. Embora
sejam poucos os ministérios envolvidos em processos de reestruturação,
muitos órgãos estão envolvidos em atividades de reorganização, de definição de foco e de racionalização de procedimentos.
O balanço final das atividades da SEGES, no que diz respeito à
reestruturação de organizações, ou criação de novas entidades, baseadas
nos modelos organizacionais propostos pelo Plano Diretor, mostra uma
considerável recuperação do papel pró-ativo do órgão a partir de 2001.
A mudança é mais evidente no caso das Agências Reguladoras, nas quais
a participação do órgão era secundária. No total, a SEGES participou das
discussões para implantação de quatro novas agências: Agência Nacional
de Águas (ANA), Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT),
Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) e Agência Nacional de Cinema (ANCINE). Além disso, continua envolvida na participação de mais duas: Agência Nacional da Concorrência (ANC) e Agência
8
“Novo Modelo de Gestão para a Administração Interna do Ministério da Defesa”. Balanço dos
resultados do projeto desenvolvido pelo Consórcio Booz Allen - Logos, formado pelas empresas Booz
Allen & Hamilton do Brasil Consultores Ltda. e Logos Engenharia S.A., realizado entre março de 2000
e julho de 2001.
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Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico para o SUS/MS
(ANAPSUS).
A Secretaria também atuou no desenvolvimento do modelo de Agências de Fomento, em substituição às Superintendências de Desenvolvimento do Nordeste e da Amazônia, que resultou na criação da Agência
de Desenvolvimento do Nordeste (ADENE) e da Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA), além da formatação de uma nova Agência de
Desenvolvimento voltada para a Região Centro-Oeste (CENTROESTE).
Outra linha de atuação da SEGES na reforma institucional consistiu na
criação de novas autarquias, como o Departamento Nacional da InfraEstrutura de Transportes (DENIT) e o Instituto Nacional de Tecnologia da
Informação (INTI).
Finalmente, a Secretaria participou na criação das três novas Organizações Sociais vinculadas ao Ministério da Ciência e Tecnologia: o Instituto
de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, o Instituto de Matemática
Pura e Aplicada (IMPA) e a Rede Nacional de Pesquisa (RNP). Numa ação
mais importante, participou na concepção da segunda Agência Executiva, a Agência de Prevenção e Controle de Doenças (APEC).
Além da participação no processo de implantação dos novos modelos
institucionais, a SEGES também reforçou sua atuação na outra dimensão
essencial da reforma: o desenvolvimento e acompanhamento da avaliação dos contratos de gestão que devem regular a relação entre os órgãos
supervisores e as novas agências. A secretaria atendeu principalmente as
Organizações Sociais - ABTLuS, ACERP, Bioamazônia, IMPA e IDSMamirauá
-, mas também participou da comissão de avaliação da única Agência
Executiva, o INMETRO.
A estratégia low profile da SEGES parece estar sendo bem sucedida
em difundir alguns aspectos da “cultura gerencial”. Os sinais ainda são
discretos e são poucos os casos onde se pode afirmar que está consolidado um processo auto-sustentado de aperfeiçoamento gerencial; todavia,
as barreiras parecem estar caindo. Embora tardia, a mudança de foco na
atuação da SEGES representou uma estratégia aparentemente bem sucedida de integração das dimensões institucional e gerencial da reforma.
A recomposição parcial da concepção do Plano Diretor e a acomodação da reforma institucional num ambiente relativamente hostil foram
resultado da rearticulação dos quadros formados na Secretaria de Reforma
de Estado. Isto mostra a importância de duas características essenciais aos
processos de mudança institucional: a existência de lideranças compro45
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metidas e competentes e a continuidade administrativa nos níveis
gerenciais, o que permite a acumulação de experiência e do aprendizado
necessários à contínua avaliação e correção das estratégias reformistas.
Embora a reforma tenha contado com lideranças importantes, a
descontinuidade organizacional e de pessoal afetou o andamento da reforma.
CONCLUSÃO
Ao longo dos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, o desenho
organizacional foi discutido e minuciosamente detalhado, resultando em
extensa lista de leis, Medidas Provisórias e decretos. O modelo
organizacional proposto pelo Plano Diretor previa uma ampla reestruturação
e qualificação das secretarias da Presidência e dos ministérios para cumprirem suas funções precípuas de formulação, coordenação e supervisão
das ações governamentais, enquanto as Agências (executivas, reguladoras, de fomento) e as Organizações Sociais seriam criadas para operar
políticas específicas e desenvolver atividades de interesse público.
No entanto, após oito anos de intensos esforços para aprovar mudanças na Constituição e na legislação ordinária e administrativa, não se pode
dizer que o novo desenho institucional e as novas práticas gerenciais
estejam consolidados no setor público. Além disso, inovações importantes, como as Agências Reguladoras e o Programa de Gestão Pública Empreendedora, que não faziam parte da concepção original do Plano Diretor, adquiriram uma dimensão inesperada.
Ainda é cedo para avaliar se o modelo de gestão pública orientada por
programas e as Agências Reguladoras serão compatíveis com o fortalecimento do núcleo estratégico (os ministérios) ou se os modelos de Agências Executivas e Organizações Sociais sobreviverão às incertezas jurídicas e operacionais. O risco de uma implementação descoordenada e de
um aumento da fragmentação são possibilidades sempre presentes, dada
a dinâmica institucional que descrevemos na parte II.
Também parece claro que as condições institucionais para o desenvolvimento de uma reforma estrutural da administração não são ideais. Uma
secretaria pequena, dentro de um Ministério poderoso, mas orientado
para questões operacionais e por uma mentalidade relativamente fiscalista,
não pode garantir plenas condições para o desenvolvimento de uma
cultura de mudança institucional na Administração Pública Federal.
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Evidentemente, não se trata de impor uma reforma estrutural de cima
para baixo. Mesmo nas condições favoráveis do caso britânico, a liderança reformista negociou bastante com setores estratégicos do Civil Service
para alcançar um mínimo de consenso em torno da necessidade de reformas e como implementá-las. Mas, uma vez iniciado o processo, é preciso
controlar e coordenar as mudanças para evitar distorções e comportamentos oportunistas.
Por outro lado, não podemos deixar de notar que nunca as condições
institucionais foram tão favoráveis para a implementação de reformas
estruturais na APF em contextos democráticos. Houve o fortalecimento
de carreiras estratégicas, como a dos Especialistas em Políticas Públicas e
Gestão Governamental - de onde, aliás, saíram quadros estratégicos para
a formulação e implementação da reforma - dos Analistas de Orçamento
e Finanças e outras. Foi enorme a modernização dos sistemas de informação e gestão de pessoal, dos sistemas de controle interno, e de orçamento e finanças. Estas duas mudanças capacitaram a Administração Pública
Federal para a implementação de alterações organizacionais. Essas condições não existiam há dez anos, como revela um estudo feito pela ENAP e
pelo Cedec (ANDRADE e JACCOUD, 1993).
Lista-se, a seguir, uma agenda com as principais mudanças institucionais
que dariam suporte a uma reforma estrutural na APF:
1) O fortalecimento institucional da Secretaria de Gestão, seja dentro
do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, seja como secretaria
especial vinculada à Presidência da República;
2) A consolidação da Carreira dos Especialistas em Políticas Públicas e
Gestão Governamental, por meio de um plano de alocação dos seus
quadros em áreas estratégicas ao desenvolvimento das reformas
organizacionais e gerenciais, isto é, na própria Secretaria de Gestão e nas
demais responsáveis pela gestão de meios; em áreas correspondentes
nos órgãos centrais da Presidência e nos cargos gerenciais das áreas fins
dos ministérios;
3) O fortalecimento da Escola Nacional de Administração Pública, para
exercer um papel pró-ativo de mobilização, junto com a comunidade
científica, pela reforma do Estado;
4) A consolidação das iniciativas de profissionalização e estabilização
das carreiras gerenciais, tornando mais clara a distinção entre cargos de
natureza política, responsáveis pela formulação geral, e cargos estratégicos, responsáveis pela gestão das políticas públicas.
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ANEXO I
QUADRO 1: ESTRUTURA LEGAL DA REFORMA INSTITUCIONAL AUTARQUIAS, AGÊNCIAS REGULADORAS, AGÊNCIAS EXECUTIVAS E ORGANIZAÇÕES SOCIAIS (1995-2002).
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ANEXO II
ESTRUTURA LEGAL DA REORGANIZAÇÃO MINISTERIAL NOS GOVERNOS DE FHC
(1995-2002)
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INCREMENTALISMO, NEGOCIAÇÃO E
ACCOUNTABILITY: ANÁLISE DAS
REFORMAS FISCAIS NO BRASIL
1
2
Maria Rita Loureiro
3
Fernando Luiz Abrucio
INTRODUÇÃO
A reforma do Estado tornou-se tema central na maioria dos países capitalistas, desenvolvidos e em desenvolvimento, a partir da grande crise que
atingiu suas economias nos anos 1980. A despeito da divergência entre
as interpretações, há razoável consenso de que o aparelho estatal deve
ser reestruturado em sua dinâmica interna e em suas relações com a
sociedade e o mercado. Nesta nova agenda, a dimensão fiscal tem enorme relevância, tanto no debate da literatura como nos processos efetivos
de reformulação da máquina governamental. A discussão deste tema tem
sido dominada por economistas e, em menor medida, por cientistas políticos, que norteiam suas análises pelo foco do desempenho econômico e
da governabilidade. Procura-se aqui conjugar estes aspectos com outra
questão que não é antípoda às anteriores: a importância da negociação e
da accountability democrática para o sucesso das reformas fiscais.
De modo geral, a boa gestão fiscal é tida como condição básica para
que o Estado estabeleça fundamentos macroeconômicos saudáveis e, assim, consiga favorecer a obtenção de um crescimento econômico sustentável. É este o pressuposto - correto, diga-se de passagem - que orienta
parcela considerável da literatura e dos principais atores políticos. Muitos
aspectos influenciam a administração das finanças públicas, como os vetores
internacionais, as condições econômicas internas e a história do aparelho
1
Este texto utiliza-se de pesquisa realizada junto ao Núcleo de Publicações e Pesquisas (NPP) da
EAESP-FGV, ao qual agradecemos pelo auxílio.
2
Doutora em Sociologia pela USP, professora da Fundação Getulio Vargas de São Paulo e Faculdade
de Economia da USP.
3
Doutor em Ciência Política pela USP, Professor da Fundação Getulio Vargas de São Paulo e da PUC-SP.
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estatal em cada país. Todavia, estas variáveis dependem de mecanismos
políticos de formulação e implementação, os quais, num regime democrático, são ainda mais importantes e não comportam respostas únicas e
lineares.
A variável democrática é duplamente afetada pela questão do ajuste
fiscal. De um lado, há os desafios para a governabilidade, uma vez que
os governantes em uma ordem democrática, sendo sensíveis às demandas sociais, terão dificuldades de impor o equilíbrio das contas públicas
aos seus eleitores: cortes de gastos públicos e/ou elevações de tributos
implicam custos políticos elevados e normalmente concentrados, mas
benefícios difusos, incertos e de longo prazo (SCHICK, 1993; MELO,
2002). Tais dificuldades parecem ser ainda mais agravadas em alguns
sistemas políticos, como o modelo brasileiro de presidencialismo de coalizão (ABRANCHES,1987). Nele, existem vários pontos de veto no processo decisório (o bicameralismo e o poder dos governos subnacionais,
por exemplo), além de ser difícil montar a base de apoio governamental
num cenário de fragmentação partidária. Tais características centrífugas,
contudo, convivem com fatores centrípetos, como o grande poder do
Executivo no âmbito legislativo e no processo orçamentário, a capacidade de interferir nas carreiras dos políticos pela distribuição de cargos, o
alto grau de insulamento burocrático em diversas políticas públicas e,
ainda, o papel destacado da figura presidencial no sistema político (LOUREIRO & ABRUCIO, 1999; FIGUEIREDO & LIMONGI, 1999).
O enfoque da governabilidade é o mais comum entre os estudos que
juntam política e economia no entendimento das reformas do Estado. A
preocupação básica desta linha é avaliar os efeitos de diferentes desenhos institucionais sobre a governabilidade, ou seja, sobre a capacidade
dos governos de levar a cabo, ou não, suas políticas públicas em geral,
ou seus programas de austeridade fiscal, em particular (WEAVER &
ROCKMAN, 1993; SCHICK, 1993; LAVER & SHELPSE, 1994; ALESINA,
ROUBINI E COHEN, 1997; SHUGART & MAINWARING, 1997; HAGGARD
& McCUBBINS, 2001).
Em várias ocasiões, as reformas econômicas e os programas de ajuste
fiscal podem comprometer princípios democráticos, em especial os de
accountability, pois, para se obter governabilidade, certos processos de
gestão macroeconômica acabam enfraquecendo os mecanismos de
responsabilização dos governantes. Isso se dá com a criação de agências
insuladas e protegidas das pressões do restante do sistema político, para
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as quais são indicados agentes não eleitos (burocratas de carreira, acadêmicos ou profissionais do mercado) que são pouco ou nada constrangidos
a prestar contas de seus atos ou omissões ante os cidadãos. Na verdade, a
perspectiva da accountability democrática tem sido ainda muito pouco
desenvolvida na literatura4. O presente estudo pretende contribuir para o
avanço desse enfoque teórico por meio da análise das transformações
político-institucionais recentes na área fiscal no Brasil, estudando-as não
só pelo ângulo de sua consistência macroeconômica e da efetividade de
suas políticas, mas igualmente pelo prisma da accountability democrática.
Entende-se por accountability ou responsabilização um processo
institucionalizado de controle político estendido no tempo (eleição e mandato) e no qual devem participar, de um modo ou de outro, os cidadãos
organizados politicamente. Para tanto, são necessárias regras e arenas nas
quais a accountability é exercida, além de práticas de negociação ampliadas entre os atores, para tornar mais públicas e legítimas as decisões.
À noção de responsabilização política, o artigo incorpora a de
incrementalismo. Ao invés de uma concepção exclusivamente totalizadora
de reforma, que supõe a necessidade de uma alteração total do status quo
e a um só tempo, a concepção incrementalista reconhece que mudanças
importantes se dão gradualmente e que cada medida tomada e/ou aprovada influencia, em maior ou menor medida, o caminho posterior - é a
chamada path dependence, ou histerese, para adequar o sentido original
a uma palavra em português. Ocorre algo como uma sedimentação por
“camadas geológicas”. Nesta mesma linha, Gerald Caiden constatou que
as reformas administrativas pelo mundo afora foram realizadas menos por
esquemas grandiosos de transformações completas, mas, sobretudo, mediante aperfeiçoamento e melhorias substantivas incrementais (CAIDEN,
1991: 87)5.
A ênfase no caráter incremental das reformas leva em conta não só a
sua recorrência empírica, como o estudo de Caiden constata para a área
administrativa, mas também pressupõe que este modelo possa conjugar
4
São poucos os estudos que procuram examinar como o desenho institucional afeta os mecanismos
de responsabilização dos governantes. Vale a pena mencionar aqui a importante coletânea organizada por Przeworski, Stokes e Manin (1999), reunindo ensaios teóricos e estudos empíricos sobre o
tema. E ainda o trabalho bastante interessante de Stark e Brustz (1998), sobre as reformas econômicas nos países do Leste Europeu, no pós-socialismo.
5
Mesmo não aderindo completamente às suas formulações teóricas, cabe lembrar que Douglas North
indica que as mudanças institucionais se processam predominantemente de forma incremental (Ver
a respeito, NORTH, 1981 e 1990).
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melhor os ângulos do desempenho e da democratização das políticas. O
incrementalismo pode ser visto como uma contraposição analítica e
normativa em relação à visão totalizadora de mudança, fundada numa
concepção tecnocrática e insulada de reforma. Ao contrário do que supõe
esta concepção, a prática incrementalista, ao incluir mais atores e estender no tempo o processo de transformação, não reduz necessariamente a
coerência e a consistência dos projetos. Na verdade, ao abrir mais espaços
de discussão e fazer as alterações aos poucos, pode-se aprender mais com
os possíveis erros de implementação (variável do desempenho) e tornar as
decisões mais responsivas e responsáveis (variável democrática).
Um bom exemplo dessa argumentação está no trabalho de Stark &
Brustz (1998). Examinando as bases institucionais da coerência das políticas públicas colocadas em prática no Leste Europeu no pós-socialismo,
os autores indicam que a capacidade de elaborar e implementar programas de reforma pode ser aumentada (e não reduzida, como se afirma
mais freqüentemente) quando o Poder Executivo é menos concentrado,
ou seja, é mais constrangido a prestar contas de suas decisões às diversas
forças políticas no Parlamento e na sociedade organizada. Assim, responsabilizando-se politicamente não só no momento eleitoral, mas continuamente ao longo de seu mandato, os governos não se tornam necessariamente mais fracos. E mais: ao debater e negociar suas propostas com
outros atores, eles aumentam a compreensão dos problemas envolvidos,
ampliam a capacidade de obter informações críticas, corrigindo erros de
cálculo que, na ausência deste processo, só apareceriam posteriormente
no momento da implementação e, portanto, com menor possibilidade de
correção. Isto encoraja, ainda, os formuladores a pensar vários passos à
frente nos jogos estratégicos da política de reforma.
Tomando como base esta perspectiva teórico-metodológica e analisando a experiência brasileira, pode-se sintetizar o argumento central do
texto do seguinte modo: observou-se que os pontos bem sucedidos de
transformação das finanças públicas brasileiras, desde a redemocratização,
obedeceram a uma lógica basicamente incrementalista, orientada por avanços e recuos nas propostas inicialmente estabelecidas e por negociações
com diferentes atores políticos. A cada reformulação realizada, ademais,
alterava-se o patamar das discussões posteriores, criando uma relação de
path dependence. Defendemos que este modelo incrementalista é o mais
compatível com democracias de tipo consensual, como o sistema
presidencialista de coalizão existente no Brasil.
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O incrementalismo requer, por um lado, grande capacidade de
governança, ou seja, forte competência técnica e articulação gerencial da
burocracia governamental, tornando-a capaz de implementar de forma
efetiva a agenda do governo. Por outro lado, ele é a expressão de um
arranjo institucional no qual o Executivo é politicamente limitado ou constrangido, sendo forçado institucionalmente a levar em conta e negociar
continuamente com outros atores políticos no legislativo e nos governos
subnacionais, e mesmo com grupos organizados na sociedade.
O enfoque incrementalista do processo decisório é bastante pertinente ao estudo do caso brasileiro, cujo sistema político se caracteriza pelo
consociativismo, para usar expressão de Lipjhart (1999). Presidencialista,
multipartidário, federativo, marcado por uma sociedade bem heterogênea, o sistema de poder no Brasil ganha maior legitimidade quanto mais
consegue lidar democrática e eficazmente com a sua fragmentação intrínseca. Essa visão se diferencia da maioria da literatura sobre o Brasil, que
vê em tais fatores limites à governabilidade e propõe, além do mais, uma
lógica mais majoritária de decisão - ou mais centrípeta. Pretendemos
mostrar, pela análise das reformas fiscais, que é possível - e desejável compatibilizar um Executivo forte do ponto de vista da governança e
capaz de responder às demandas da maioria com formas mais negociadas
e partilhadas de formulação de políticas públicas.
O histórico recente das políticas econômicas brasileiras revela que na
maior parte dos casos nos quais o incrementalismo não fora adotado
como padrão decisório e de implementação, os resultados acabaram por
ser ruins tanto para o desempenho econômico como para a accountability
democrática. Exemplos paradigmáticos são os planos econômicos heterodoxos, como o Cruzado ou o Collor I, que misturavam insulamento burocrático, hiperatividade decisória e, em certos casos, condução presidencial personalista, com conseqüências distantes tanto da responsabilização
política como da eficácia. Exatamente por fugir desse modelo que o
Plano Real deu certo. Sua novidade estava na mistura de policy learning,
pois muitos dos técnicos haviam participado e aprendido com os planos
anteriores, com uma visão antípoda à do choque, já que por cinco meses,
da implantação da URV à respectiva criação da nova moeda, a estabilização monetária foi implantada aos poucos, sem surpresas ou rompimentos
de contratos. Gradualmente os atores sociais adaptavam-se à transformação da realidade econômica e sinalizavam suas preferências ao Governo
Federal, que podia assim testar melhor o desempenho da política e corri61
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gi-la, caso fosse necessário (LOUREIRO, 1997; COUTO & ABRUCIO,
1999).
Por fim, é preciso deixar claro que a ênfase aqui atribuída à perspectiva incrementalista não implica desconsiderar a existência de “conjunturas críticas” que geram pontos de inflexão nos processos de mudança
política (PIERSON, 2000). São momentos históricos decisivos ou
“maquiavelianos”, para utilizar a expressão de Pocock (1975), nos quais a
posição relativa dos atores, em termos de poder e preferências, é modificada. Com isso, novos parâmetros orientadores das ações coletivas são
introduzidos. No caso brasileiro, podemos citar o Plano Real como uma
conjuntura crítica (SOLA & KUGELMAS: 2002), a partir da qual o grupo
liderado por Fernando Henrique Cardoso - primeiro como ministro, depois como presidente - conseguiu aumentar seu poderio e, desse modo,
derrubou alguns obstáculos que impediam a realização de certas reformas, como a variável federativa no caso da renegociação das dívidas
estaduais.
A junção dessas duas perspectivas, a incrementalista e a da “critical
junctures”, é pertinente com o observado na literatura internacional sobre
reforma do Estado. Diferentemente do que pensam autores como Laurence
Whitehead (1993), os dois aspectos não são pólos opostos de uma escala.
Isto porque se referem a questões distintas do processo social e que
podem ser combinadas de diversas formas. A postura incremental diz
respeito às modificações graduais e por “camadas” nas policies, ao passo
que a conjuntura crítica associa-se às alterações nas posições relativas dos
atores, isto é, na dinâmica da politics. A separação delas, de fato, pode
gerar péssimos resultados: a obtenção de maior poder nos momentos
“maquivelianos” não garante a efetividade das reformas, ao passo que o
mero gradualismo pode encontrar pela frente obstáculos duradouros que
impossibilitam o bom desempenho. Assim, a experiência comparada tem
ressaltado que a virtù reformadora é aquela que soma os ganhos de
autoridade com as capacidades negociadora e de aprendizado. No Brasil
não foi diferente, como mostraremos ao longo do artigo.
O presente texto está estruturado em três partes. Na primeira, analisamos inicialmente o sentido da reforma do Estado, mais especificamente
no campo das Finanças Públicas. Na parte II, apresentamos o contexto
econômico e político no qual se processam as transformações na ordem
fiscal no Brasil ao longo das duas últimas décadas e, mais particularmente, como se define o papel central do ajuste fiscal na agenda do governo
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FHC. Na parte III, examinamos o quadro geral de tais mudanças sob o
prisma da problemática da accountability, observando mais especificamente duas áreas relevantes: a que abarca as novas regras relativas ao
endividamento público, criadas pelo Senado Federal, e a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
6
I - O CONTEXTO GERAL DA REFORMA DO ESTADO
O tema da reforma do Estado surge com força ao final da década de 70,
quando entra em crise o modelo estatal montado no pós-guerra, o qual
tinha sido o agente fundamental de uma era de gigantesca prosperidade
das economias capitalistas, centrais e periféricas. Neste primeiro momento, o impulso para a mudança veio da crise fiscal, iniciada com os choques do petróleo e com efeitos por toda a década de 80.
Diante disso, as primeiras propostas de reforma do Estado no mundo
desenvolvido articulavam-se em torno da redução da dimensão e dos
gastos do aparelho estatal. As vitórias dos conservadores na Grã-Bretanha
e nos Estados Unidos iniciaram este processo, mas sua evolução adquiriu
contornos particulares segundo as forças políticas de cada país. Passadas
quase duas décadas de reformas, ao contrário do que muitas vezes se
argumenta, os resultados gerais não apontaram para a constituição de um
Estado mínimo, mas sim para a reconstrução da forma de intervenção e
gestão do aparelho estatal7.
Primeiramente, procurou-se reduzir o escopo de atuação direta do
Estado, por meio de privatizações, concessões ou parcerias. Isto não
significou a criação de um Estado mínimo, mas sim a redefinição do
papel do Estado, reforçando suas funções indutoras e regulatórias, em
detrimento do seu aspecto executor. Outra tendência importante é a
adoção de políticas mais rígidas de controle orçamentário e de medidas
para aumentar a eficiência da administração pública, revelando que a
questão do equilíbrio fiscal transformou-se em preocupação permanente.
Cabe também frisar que a obtenção da eficiência não significou, na
maioria dos casos, a diminuição dos gastos em relação ao PIB, e sim a
otimização dos recursos à disposição dos governos. Se no primeiro mo6
Esta parte do artigo é baseada em Abrucio (1999).
7
Ver o Relatório do Banco Mundial, O Estado num mundo em Transformação (1997), e o artigo de
Flávio Rezende presente neste mesmo livro.
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mento o debate esteve marcado pelo aspecto meramente econômico “administração de cortes” - , a ênfase seguinte foi dada à eficiência
(NUMBERG, 1998). Neste sentido, políticas de downsizing ou baseadas
em programas contínuos de demissão voluntária, como assinalou SchiavoCampo (1996), podem resultar em serviços públicos enxutos, mas não
menos ineficientes, insatisfatórios aos usuários ou até corruptos.
No mundo desenvolvido, os gastos governamentais em relação ao PIB
não foram substancialmente elevados, mas tampouco fortemente reduzidos. Como mostram os dados da tabela abaixo, os países da OCDE, em
média, mesmo depois da reestruturação do setor público ocorrida nas
duas últimas décadas, não diminuíram suas despesas: o gasto público
médio dos países desenvolvidos alcançou algo em torno de 44,5% do PIB
em 1998, próximo à situação da década passada.
Mesmo países que realizaram políticas paradigmáticas para aumentar
a eficiência da máquina administrativa não tiveram, no geral, a redução
drástica dos gastos públicos como norma, como demonstra a análise de
Norman Flynn e Franz Strehl acerca de oito países europeus que realizaram reformas administrativas (Suécia, Grã-Bretanha, Holanda, França,
Alemanha, Áustria e Suíça). De 1989 a 1996, em seis desses casos
houve elevação dos gastos públicos em relação ao PIB, sendo a GrãBretanha e a Holanda as únicas exceções à regra (FLYNN & STREHL,
1996: 2). Tal diagnóstico vale igualmente para a política de diminuição
de funcionários públicos. Em vez de se adotar o receituário radical
proposto no começo dos anos 80, a tendência dominante foi o corte de
pessoal no Poder Central e o crescimento no número de servidores no
nível local, especialmente para a prestação de serviços sociais básicos
(saúde, educação e assistência social). Disto resultou que o número
médio de funcionários públicos no âmbito da OCDE manteve-se em
torno de 8% da população, próximo ao da década anterior (SCHIAVOCAMPO, 1996).
Na verdade, a principal conclusão a respeito do quadro burocrático
está menos no seu tamanho e mais na sua localização dentro das agências
governamentais, isto é, está havendo um enorme processo de
descentralização em todo o mundo, refletindo-se na prestação de serviços e na alocação de pessoal. Nem os países mais centralizados da Europa, como a França, fogem desta regra. Nesta nação, 56,3 % dos servidores públicos trabalhavam para o Poder Central em 1985; praticamente
dez anos depois, em 1994, este número caíra para 48,7%, ocorrendo,
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concomitantemente, uma elevação dos funcionários nos níveis subnacionais
(OCDE, 1997: 37)8.
Estas transformações no aparelho estatal levaram a políticas de
flexibilização e democratização da gestão pública, a fim de torná-la mais
ágil, descentralizada, eficiente e aberta às parcerias e/ou controle da
sociedade. Neste sentido, por exemplo, a prestação dos serviços públicos está sendo cada vez mais orientada ao cidadão-cliente. Para tanto,
não apenas medidas gerenciais foram propostas. O aspecto decisivo aqui
é o aumento da participação dos usuários e da comunidade na avaliação
e mesmo na co-gestão dos serviços públicos, fenômeno observado nào
só nos Estados Unidos (OSBORNE & GAEBLER, 1992) mas também até
em países com burocracia mais rígida, como a França (TROSA, 1995).
Mais do que um mero instrumento administrativo, a gestão pública
orientada pela lógica do cidadão-cliente colocou o tema da accountability
8
Sobre a descentralização no plano internacional, ver o capítulo de Fernando Abrucio neste livro.
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definitivamente na agenda de reformas. Isto foi impulsionado por dois
fatores: o crescimento das demandas por participação e/ou por controle
das políticas públicas e, sobretudo, a necessidade do Estado aumentar sua
legitimidade, já que vem perdendo parte de seu poder, o que o obriga a
aproximar-se mais da sociedade.(OSZLAK, 1998: 9). A reforma do Estado, portanto, deve ultrapassar a concepção calcada apenas e tão-somente
na reordenação administrativa e se enquadrar num contexto de redefinição
do espaço público, das relações entre o Estado e a sociedade9.
Resumindo, as reformas no mundo desenvolvido têm buscado conciliar a atuação regulatória do governo na economia, o equilíbrio fiscal, a
eficiência e efetividade das políticas, a democratização do Poder público
e a redefinição de suas relações com a sociedade, tudo isso ancorado na
mudança do perfil do Estado e não em seu desmantelamento. É bem
verdade que a compatibilização destes objetivos por vezes é tensa, levando cada país a acentuar um ou outro ponto de acordo com suas
peculiaridades históricas, o que inviabiliza a adoção de um blueprint
como paradigma geral de reforma. Nada mais longe, portanto, do modelo
neoliberal ou neo-utilitarista proposto pelos políticos conservadores e
intelectuais vinculados ao Public Choice.
Nos países periféricos, a reforma do Estado levou à risca um receituário mais liberal que, paradoxalmente, não fora adotado pelos países centrais. Na América Latina, a dramaticidade da crise econômica, refletida
nos problemas da dívida e da inflação persistente, também foi outro fator
que impulsionou o processo reformista e o tornou mais intenso, no que
se refere ao número de mudanças e ao tempo em que foi realizado. Há
diferenças nesta região, contudo. Os programas de liberalização e
privatização brasileiros foram bem menos intensos e pró-mercado do que
nas experiências da Argentina e do México. Além do mais, as transformações do Estado no Brasil foram muito mais negociadas e vinculadas à
democratização do que no restante das nações latino-americanas
(PALERMO, 1999).
A seguir, iremos focar a dimensão fiscal da reforma do Estado no
Brasil, analisando-a, como indicado anteriormente, a partir dos vínculos
entre a ótica macroeconômica e a accountability democrática.
9
Para tanto, o desafio atual é encontrar “(...) um espaço virtuoso entre o incremento dos poderes do
Estado e o incremento do controle sobre o Estado, para permitir ao governo que governe e aos
governados que controlem o governo” (PRZEWORSKI, 1998: 36).
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II - CONTEXTO MACROECONÔMICO E POLÍTICO DAS TRANSFORMAÇÕES FISCAIS NO BRASIL: DOS
ANOS 80 ÀS MUDANÇAS DA ERA FHC
1. Antecedentes das mudanças fiscais: da crise dos anos 80 à estabilização
monetária em 1994
Antes de analisarmos as mudanças mais importantes ocorridas na área fiscal
durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, é importante retomar,
ainda que rapidamente, os antecedentes do processo de ordenamento das
finanças governamentais, que se inicia nos anos 1980, no bojo da crise da
dívida externa. A grande crise que atinge as economias capitalistas nos anos
1970 e 1980, desencadeadas pelo choque dos preços do petróleo, repercutiram no Brasil, como em vários outros países periféricos, sob a forma de
uma grave crise de dívida externa que levou ao esgotamento do modelo de
desenvolvimento econômico.
Devido à elevação das taxas de juros internacionais no início dos anos 80
e à moratória do México (setembro de 1982), tornou-se insustentável o
processo de financiamento externo da economia brasileira: o pagamento de
juros atingiu US$ 13 bilhões em 1982, o que eqüivalia a 82% das exportações e o déficit em conta corrente representava mais de 5% do PIB. As
reservas internacionais reduziram-se, os influxos financeiros externos cessaram e os investimentos diretos declinaram. A partir daí iniciou-se um longo e
difícil processo de renegociação da dívida externa que só foi finalizado em
1994. Em 1983, o governo brasileiro também estabeleceu, em conjunto com
o Fundo Monetário Internacional, programa de estabilização que foi bem
sucedido no equilíbrio do balanço de pagamentos, mas fracassou no controle
da inflação (OCDE- Brasil,2001; BRESSER-PEREIRA, 1993).
As pressões dos organismos internacionais e a séria escassez de recursos impulsionaram os primeiros movimentos de ordenamento das finanças públicas no país e de reforma do sistema financeiro nacional. Eles
foram efetuados por um grupo da burocracia governamental organizado
no COMOR (Comitê de Acompanhamento da Execução dos Orçamentos
Públicos), criado em 1983, e posteriormente na Comissão de
Reordenamento das Finanças Públicas, instituída em 1984. As principais
mudanças implantadas em decorrência dos trabalhos destas comissões
foram: fechamento da conta movimento do Banco do Brasil, a extinção
do chamado orçamento monetário e a criação da Secretaria do Tesouro
Nacional, dentro do Ministério da Fazenda, com o objetivo de centralizar
o controle das contas públicas (GOUVEA, 1994).
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A profundidade destas mudanças é melhor compreendida ao se acompanhar o processo político de criação do Banco Central no Brasil (BC ou
BACEN) e os impactos de tal modelo sobre as contas públicas. Quando o
BC foi criado, em 1964, o Banco de Brasil (BB) exercia funções de um
banco central e era agência extremamente forte na estrutura de poder do
país. Detinha uma autoridade que a levava a reter parcela considerável
de atribuições de política econômica, gerando assim uma situação esdrúxula
de duas autoridades monetárias em concorrência (BC versus BB) e de
ausência de controle efetivo da política monetária. E, o mais importante, o
Banco do Brasil passou a ser o titular da chamada “conta-movimento”,
concebida para processar o nivelamento das reservas com o BACEN. Tratava-se de um passivo do BB em relação ao BACEN, inventado para suprir a
ausência de recursos financeiros iniciais, necessários à formação da infraestrutura administrativa e técnica da instituição então recém criada.
Concebida apenas para vigorar no momento de transição institucional,
a “conta-movimento” acabou sendo mantida durante muitos anos. A motivação estava em seu forte impacto político, uma vez que ela facilitava a
liberação de empréstimos e financiamentos sem que estes constassem do
orçamento do governo. Em outras palavras, a “conta-movimento” permitia ao BB sacar sem limites contra o Tesouro, inviabilizando qualquer
controle fiscal. Além disso, na ausência de uma secretaria do Tesouro, o
Executivo não tinha meios de saber, de fato, como andavam suas contas.
Paralelamente a esta situação de dupla autoridade monetária existente
entre BB e BACEN, o poder do Congresso Nacional de legislar sobre
questões financeiras foi transferido, durante o período militar, para um
órgão da burocracia governamental, o Conselho Monetário Nacional (CMN).
Este tinha total poder para administrar a dívida mobiliária sem que as
operações transitassem pelo Orçamento Geral da União (OGU). Como
conseqüência do descrédito do OGU, que não tinha capacidade para
impor limites e restrições à política fiscal, observou-se o surgimento de
orçamentos paralelos que eram submetidos apenas ao Poder Executivo,
como, por exemplo, o Orçamento Monetário. Ao longo da década de
1970, na verdade, as finanças do setor público brasileiro eram norteadas
por uma grande multiplicidade orçamentária. Além do OGU e do Orçamento Monetário, havia a conta da dívida e ainda o Orçamento das empresas estatais.
O Orçamento Monetário funcionava como uma ferramenta de controle
do passivo monetário e não-monetário que era utilizado para a política
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cambial, para autorizar subsídios e linhas de crédito a diferentes setores
de atividade econômica e outros programas. Cada orçamento era aprovado por uma autoridade pública diferente e em momentos também distintos, o que causava total desarticulação entre as políticas econômicas
implementadas pelo governo. O Orçamento Monetário era uma espécie
de ralo por onde vazavam os recursos do Tesouro, tais como crédito
agrícola e às exportações. E ainda, a partir da crise da dívida externa,
abriu-se outro ralo: o do aval da União a qualquer empréstimo externo
aos estados, municípios e empresas estatais, honrados pelo BB, por meio
igualmente do Orçamento Monetário. Depois de 1982, aportes de recursos aos bancos estaduais passaram também a ser supridos pela “contamovimento”.
Como se não bastasse, existia a conta da dívida que, a partir do início
da década de 1970, funcionou de forma autônoma e garantiu a cobertura
dos juros e amortizações (serviço da dívida), sempre pela emissão de
novos títulos. Esse processo ficou conhecido como o “giro da dívida
interna”. Assim, o débito público crescia em função de diversos fatores,
do seu próprio serviço e do financiamento de gastos extra-orçamentários,
nunca se sabendo, ao certo, o quanto era devido a cada fator.
Finalmente, havia ainda a estratégia adotada pelo governo de utilização das autoridades monetárias como bancos de fomento do desenvolvimento econômico, de modo a atender a meta de “crescimento com
endividamento”. Grandes volumes de recursos eram levantados sem elevar a carga tributária, ou seja, sem desestabilizar politicamente o regime
militar vigente. A contrapartida era sempre a expansão monetária ou a
elevação da dívida mobiliária (OCDE, 2001).
Foi neste contexto caótico que o Brasil enfrentou a crise da dívida
externa em 1982. É interessante notar que a desorganização das finanças
públicas brasileiras foi acentuada pelo caráter autoritário do regime militar, dado que não havia controle público democrático das decisões altamente insuladas que eram tomadas pela tecnocracia econômica. Destacamos essa situação histórica para reforçar o argumento central do artigo de
que a qualidade democrática do processo decisório tem efeitos positivos
sobre o desempenho das políticas macroeconômicas. Dito de outro modo:
se a democracia não é condição suficiente para o sucesso econômico, ela
é, porém, condição necessária.
Com a redemocratização, várias pequenas reformas foram feitas, imprimindo um caráter incremental à transformação das finanças públicas. A
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extinção da “conta-movimento” e do Orçamento Monetário, bem como a
criação da Secretaria do Tesouro Nacional, enquadram-se neste processo,
favorecendo não só o ordenamento das contas públicas no país, mas
igualmente a centralização da autoridade monetária no Banco Central.
Os importantes efeitos de tais mudanças institucionais nas finanças públicas foram, no entanto, razoavelmente neutralizadas por dois fatores principais: o processo superinflacionário, que durou até 1994, com a promulgação do Plano Real; e o contexto de relações financeiras predatórias entre
União e governos subnacionais. O quadro a seguir permite visualizar, de
forma sintética, as principais variáveis macroeconômicas deste período.
Do ponto de vista das relações financeiras intergovernamentais, os
governos subnacionais fortaleceram-se ao longo da redemocratização do
país, conquistando uma nova posição quanto à repartição de recursos e à
autonomia tributária (ABRUCIO,1998). A Constituição de 1988 é o corolário
desse processo. Só que essa mudança não foi acompanhada pela criação
de uma responsabilidade federativa no campo fiscal. Estados e municípios endividaram-se com a certeza de que a União socorreria a todos e, de
fato, estes débitos foram sistematicamente renegociados. De 1988 a 1997,
houve sete acordos de negociação das dívidas entre o Governo Federal e
os governos estaduais, os quais, na maioria dos casos, não eram cumpridos. O pior de tudo é que não havia punição para aqueles que
descumpriam tais contratos, muito menos recompensas para os que seguiam à risca as regras (WERNECK, 1998).
Estabeleceu-se, portanto, uma situação de moral hazard no relacionamento entre a União e os governos subnacionais. Três artifícios deram
base a este comportamento por parte de estados e municípios:
a) receitas extraordinárias geradas pelo chamado “imposto inflacioná70
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rio”, oriundo tanto de reajustes da folha de pessoal em níveis inferiores à
taxa de inflação quanto do prolongamento dos prazos de pagamento de
credores10;
b) uso dos bancos estaduais como mecanismo (não legal) de “quaseemissão” de moeda, pela prática reiterada de o governo não saldar as
dívidas contraídas com essas agências financeiras, cujos dirigentes eram
nomeados (e, portanto, controlados) pelos próprios governadores;
c) por fim, a já mencionada renegociação continuada do pagamento
das dívidas com a União, o que na prática significava sua postergação
indefinida. Cabe observar que o uso irregular dos bancos estaduais por
parte dos governadores contou durante muito tempo com a complacência
do Banco Central. Afinal, o Governo Federal várias vezes apelava aos
governadores para pressionarem as bancadas estaduais, a fim de aprovar
certas medidas no Congresso Nacional11.
A transformação deste cenário foi iniciada com o Plano Real (1994) e
seu sucesso na estabilização monetária, que afetou significativamente a
área fiscal no Brasil, em particular no que se refere às relações financeiras intergovernamentais. Primeiro, porque a redução drástica da inflação
praticamente acabou com o floating que os governos subnacionais obtinham antes, bem como com a principal forma de alavancagem dos bancos estaduais. O resultado é que, sem o quadro superinflacionário presente anteriormente, as contas públicas estaduais desnudaram-se, revelando uma situação quase falimentar. A partir dessa fragilidade financeira,
os governadores perderam poder vis-à-vis à União e foram, pouco a
pouco, perdendo as “torneirinhas” financeiras que utilizaram maciçamente desde 1982, em especial as instituições financeiras estaduais12.
A estabilização monetária brasileira, ademais, teve na âncora cambial
um elemento-chave. Para tanto, era necessário atrair capitais externos, no
mais das vezes por meio da elevação da taxa de juros. O efeito perverso
10
Segundo estimativas do Banco Central, o imposto inflacionário representava cerca de 2% a 2.5% do
PIB no período anterior ao Plano Real (ver, no Site do Banco Central, “Dívida Líquida e Necessidade
de Financiamento do Setor Público no Brasil”).
11
Pode-se citar, como exemplo, a ajuda do Governo Federal, em 1994, aos bancos estaduais para
obter apoio no Congresso e facilitar a articulação da candidatura de Fernando Henrique Cardoso à
Presidência da República. Nessa época, a União comprou títulos dos bancos estaduais, considerados
“podres” pelo mercado, no valor de cinco bilhões de dólares, ou seja, mais do que o dobro do que foi
injetado em todas as instituições financeiras nos seis anos anteriores (conforme dados publicados em
O Estado de S. Paulo, 23/10/1994, Apud ABRUCIO & FERREIRA COSTA, 1998: 47).
12
Para uma análise mais aprofundada acerca das mudanças no federalismo brasileiro a partir de 1994,
ver artigo de Abrucio neste mesmo livro e também o trabalho de ABRUCIO & FERREIRA COSTA (1998).
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deste mecanismo é bem conhecido: o crescimento exponencial do
estoque da dívida pública, que passou de cerca de R$60 bilhões de
reais em 1994 para mais de R$624 bilhões no final de 2001. O total da
dívida pública, que representava 35.8% do PIB no início de 1998,
alcançou quase 50% no final de 1999 e girou em torno de 60% ao
longo de 2002.
Para evitar equívocos, cabe lembrar que, se a elevação da taxa de
juros teve impacto enorme no crescimento do estoque da dívida pública,
seus demais componentes são também decisivos. Segundo dados oficiais,
do estoque total de R$ 624 bilhões, cerca de R$ 330 bilhões (portanto,
mais de 50%) referem-se às dívidas refinanciadas e federalizadas dos
estados e municípios. Mais de R$ 87 bilhões são os chamados “esqueletos” (dívidas antigas) reconhecidos pelo governo. Também a depreciação
significativa do real sobre o estoque da dívida mobiliária indexada em
dólares tem respondido pelo aumento da dívida líquida do setor público.
O peso dos juros altos atingiu ainda mais os governos subnacionais,
por conta de sua irresponsabilidade passada e fragilidade financeira atual. Neste cenário, a negociação de um novo modelo de relações
intergovernamentais se tornou questão de vida e morte para os estados,
numa situação de inferioridade para estes, sobretudo com a maior concentração de poder nas mãos da autoridade monetária do Banco Central.
Boa parte do reordenamento das finanças públicas na Era FHC teve este
cenário como pano de fundo.
2. Mudanças pós-94: a estabilização monetária e a construção de novas
instituições fiscais
A estabilização monetária alcançada pelo Plano Real fortaleceu o presidente Fernando Henrique Cardoso, que pôde, principalmente no seu
primeiro mandato, montar uma engenharia institucional que julgava adequada para modificar o cenário macroeconômico. Neste sentido, contaram bastante a efetiva concentração da autoridade monetária no Banco
Central (SOLA, GARMAN e MARQUES, 2002) e o grande poder conferido ao Ministério da Fazenda, especialmente às suas Secretarias da Receita Federal e do Tesouro Nacional (LOUREIRO e ABRUCIO, 1999). Ao
longo dos dois mandatos de FHC, o peso da Secretaria da Receita Federal
foi variável-chave para o aperfeiçoamento da máquina arrecadatória e,
de algum modo, para o crescimento da carga tributária no país, que
passou de 22% do PIB em 1994 para cerca de 34% em 2002, o patamar
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mais elevado da história brasileira, com o reforço da participação da
União no conjunto do bolo tributário.
Para além de sua importância tradicional em qualquer Estado contemporâneo, especialmente em tempos de dificuldades financeiras, o Ministério da Fazenda fortaleceu-se de modo particular no governo Fernando
Henrique. Basicamente, esse poderio foi exercido por meio da liberação
ou retenção de recursos orçamentários por parte da Secretaria do Tesouro
Nacional (STN), que determinava, assim, o ritmo da implementação das
políticas definidas por outros ministérios, de acordo com as necessidades
do ajuste fiscal13. Igualmente por meio dos técnicos do Tesouro, a Fazenda atuou politicamente como mecanismo de controle dos outros ministérios nos quais os titulares foram nomeados como resultado das negociações para obter apoio no Congresso, fazendo com que eles se ajustassem
às necessidades de controle das contas públicas (LOUREIRO & ABRUCIO,
1999)14. Finalmente, a STN, que centraliza a gestão de toda a dívida
pública, também teve papel estratégico no processo de renegociação da
dívida dos governos subnacionais, por conta da federalização desses débitos, detendo conseqüentemente informações sobre a situação das finanças de todos os entes da Federação.
Ainda no que tange ao papel da burocracia econômica, é essencial
destacar que houve um processo de aprendizado incremental em relação
às mudanças e aos erros cometidos ao longo da redemocratização. Muitos
dos integrantes do staff da Fazenda, mesmo os que não eram de carreira,
já tinham tido experiência em governos anteriores, participado de reformas importantes (como a criação da STN) e conhecido os limites políticoeconômicos postos ao reordenamento fiscal do país. Aqui, incrementalismo
tem a ver com gradualismo, mas também com learning organization, traço
distintivo não só dos grupos burocráticos estáveis, mas também dos altos
funcionários que vêm de fora da administração pública.
13
É importante relembrar que no Brasil o orçamento aprovado pelo Legislativo é apenas autorizativo,
cabendo ao Executivo decidir sobre o ritmo e a quantidade de recursos a serem liberados ou não
em cada item aprovado, em função das disposições do caixa e das necessidades de ajuste fiscal.
Portanto, o Poder Executivo, através da STN, detém grande espaço de poder na execução orçamentária e, em inúmeras circunstâncias, o utiliza politicamente para garantir apoio dos congressistas
(GOMES, 1999)
14
No primeiro governo FHC, a orientação fiscalista do ministério da Fazenda foi também difundida
para os demais ministérios de modo informal, por intermédio da influência sobre o processo de
nomeação de grande número de altos funcionários em outros ministérios, especialmente seus secretários executivos (LOUREIRO & ABRUCIO, 1999).
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O reforço do núcleo econômico e sua capacidade de aproveitar os
caminhos abertos anteriormente, a prioridade dada à estabilização monetária e a força política oriunda do sucesso do Plano Real favoreceram o
Governo Federal a realizar várias reformas político institucionais no âmbito das finanças públicas. Destaque inicial para as que atingiram a questão federativa, cuja motivação vinculou-se ainda à crise financeira dos
estados. Uma dessas medidas foi a aprovação de uma ampla renegociação
das dívidas subnacionais, sob um contrato com maiores garantias de
enforcement. Vinte e cinco estados assinaram um novo acordo com a
União, amparado pela Lei 9496. O valor total do refinanciamento foi de
132 bilhões de reais (MORA, 2002: 31). Para tanto, os governos estaduais
tiveram de assumir uma série de compromissos, incluindo a obtenção de
superávit primário, aumento da arrecadação, privatização de empresas e/
ou bancos, além de penalidades mais claras e efetivas, como a retenção
dos recursos do Fundo de Participação dos Estados (FPE) - o que recebeu
o aval constitucional do Supremo Tribunal Federal. Em todo este processo, a Secretaria do Tesouro Nacional, com delegação obtida pela lei
aprovada no Senado, negociou e construiu os contratos de cada estado.
Os bancos estaduais também foram atingidos pelas transformações
federativas. Houve extinções, privatizações e, sobretudo, o fim dos socorros compulsórios que marcaram o período anterior. Como resultado
deste processo, dez bancos estaduais foram liquidados ou extintos,
dezesseis foram transformados em agências de fomento, dez foram
privatizados e quatro estão em processo de privatização. Para financiar
este processo, o PROES (Programa de Incentivo à Redução do Setor
Público na Atividade Bancária) desembolsou, até março de 2002, um
pouco mais de 70 bilhões de reais (MORA, 2002: 53).
Duas mudanças na estrutura financeira da Federação merecem destaque especial: a aprovação de novas regras referentes ao endividamento
público e a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal. Pela sua
importância, vale a pena examiná-las em separado.
3. Restrições mais severas ao endividamento público: o papel do Congresso e
do Senado
O núcleo das mudanças na área fiscal no Brasil originou-se no Poder
Executivo. Mas o Legislativo brasileiro também teve papel decisivo no
processo. Embora este aspecto tenha sido pouco marcado nos estudos
sobre o tema, pode-se observar que, desde o início dos anos 1990, o
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Congresso e, em particular, o Senado Federal - que tem a prerrogativa
constitucional para estabelecer regras e limites ao endividamento público
- vêm criando grande número de leis relativas a esta matéria. Em 1993, a
Emenda Constitucional 3 já restringira o endividamento público, só permitindo emissão de títulos para pagamentos de precatórios judiciais, ou
seja, dívidas de particulares contra o Poder público, decididas em juízo.
Como emitir títulos públicos para pagar precatórios significava, na prática, criar uma dívida nova, essa foi a única brecha deixada pela legislação
para o financiamento dos governos subnacionais. Ela foi usada, ao máximo, como fonte “adicional” de financiamento público. E permitiu, inclusive,
muitas irregularidades, objeto de farta cobertura da imprensa, levando à
instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito(CPI) em novembro de 1996.
Os escândalos acerca da emissão irregular de precatórios mostraram a
profunda crise financeira em que se encontravam muitos governos
subnacionais. Todavia, é preciso reconhecer que estes puderam agir assim porque sabiam que a elevada inflação dificultava sua percepção e
fiscalização, bem como contavam com a conivência das autoridades encarregadas do controle do endividamento. O próprio relatório da CPI
indicou que os Tribunais de Contas dos Estados, o Banco Central e o
Senado não estavam exigindo, como condição prévia para autorizar emissão de um novo título, a comprovação do valor da parcelas efetivamente
pagas de títulos precatórios, e tampouco controlavam o índice de correção monetária aplicados aos mesmos.
Apesar de a CPI não ter resultado, pelo menos até o momento, na
punição judicial dos envolvidos na emissão irregular de títulos precatórios,
ela teve um efeito importante para disciplinar as finanças públicas no
país: gerou a produção de regras cada vez mais restritivas para o controle
do endividamento público. Assim, em setembro de 1997, foi sancionada a
lei 9.496/97, pela qual se estabeleceu um conjunto de critérios rígidos de
refinanciamento da dívida pública mobiliária dos Estados e do Distrito Federal. Em julho de 1998, o Senado baixou a Resolução 78/98, ainda mais
rigorosa, que se tornou um marco de referência na consolidação das condições institucionais para o controle do endividamento público no país.
Dentre as modificações mais importantes trazidas pela resolução 78/
98, cabe destacar:
a) o Banco Central não mais encaminhará ao Senado Federal pedido
de autorização de endividamento de governo que possua resultado primário negativo;
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b) os estados ficam impedidos de conceder isenção fiscal sobre o
ICMS se pretendem pedir autorização para financiamento;
c) ficam proibidas as operações ARO (Antecipação de Receita Orçamentária) no último ano de mandato;
d) também foi vedada a emissão de novos títulos públicos por parte
dos governos subnacionais que tiverem sua dívida mobiliária refinanciada
pela União.
e) foram ainda estabelecidas medidas com objetivo de dar maior transparência às operações de crédito, tais como exigências de leilões eletrônicos na contratação de ARO e ampla divulgação pelo Banco Central dos
leilões para colocação dos títulos estaduais no mercado.
Em dezembro de 2001, o Senado elabora duas novas Resoluções, a
40/01 e a 43/01, que mantêm as condições da anterior (78/98), mas
transferem do Banco Central para a Secretaria do Tesouro Nacional o
poder de decidir sobre os pedidos de endividamento dos governos
subnacionais. Antes de examinarmos o significado político desta delegação de poder e suas implicações para a accountability democrática, é
importante marcar o caráter excessivamente rigoroso destas resoluções
que proíbem, por exemplo, a emissão de títulos públicos por mais de
dez anos (até 2010). Segundo alguns autores, a expansão do mercado
primário de títulos estaduais e municipais, tal como ocorre nos Estados
Unidos, poderia ser uma fonte alternativa importante para o financiamento do setor público, pois não elevaria a já muito onerosa carga tributária
do país (TONETO JR. E GREMAUD, 2000). Mas, apostou-se mais no fato
de que a falta de uma cultura de restrição orçamentária forte inviabiliza,
no curto prazo, uma forma mais competitiva e responsável de os governos subnacionais se financiarem.
Considerando os efeitos das resoluções do Senado, cabe apontar que,
mesmo não havendo uma redução imediata no total de suas autorizações
para endividamento, constata-se que, especialmente a partir de 1997, um
número significativo destas ocorreu como parte do Programa de Apoio à
Reestruturação e ao Ajuste Fiscal dos Estados e no bojo do processo de
negociação das dívidas entre União e estados. Dentro deste programa, o
Senado colaborou com o Executivo federal, autorizando a renegociação
das dívidas antigas dos estados, condicionada à privatização dos bancos
estaduais e das empresas estatais. Como se indicou antes, a privatização
dos bancos estaduais foi prioritária na agenda de ajuste fiscal do Governo
Federal, na medida em que aqueles bancos eram usados como alternativa
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de financiamento dos governos estaduais. Suprimir esta fonte significava,
portanto, preencher uma condição fundamental para o ajuste das contas
públicas.
De acordo com números colhidos na Base de Dados da Legislação
Brasileira, o Senado aprovou 18 autorizações em 1996, dentro do programa mencionado; em 1997, foram 24, representando mais de 30% do
total de autorizações concedidas para os governos estaduais. Em 1998,
houve 16 autorizações que se enquadravam nesta situação,
correspondendo a 28%. Assim, as restrições legais começavam a ser
efetivamente cumpridas, sob condições políticas específicas: a negociação entre a União e os governos estaduais, o que levou à federalização
das dívidas e à imposição de determinadas exigências aos entes
subnacionais.
Para reforçar a argumentação, citamos outro indicador: as restrições
e limites impostos pela Resolução 78 sobre as operações ARO fizeram com que o número delas caísse drasticamente. Conforme dados
do Banco Central, foram autorizadas nos anos de 1996 e de 1997,
respectivamente, 1.330 e 1682 operações ARO para estados e municípios. Só no primeiro semestre de 1998, antes da Resolução 78, o
número chegou a 1.227. A partir do segundo semestre de 1998, sob a
vigência da nova regra, tais operações despencaram para 46 e em
todo o ano de 1999 elas não passaram de 128 (LOUREIRO, 2001).
Estes dados são significativos, pois permitem analisar o comportamento do Congresso, particularmente do Senado, em perspectiva ampliada. Mesmo sensível à pressões vindas dos governos estaduais (politicamente inevitáveis), esta Casa foi se comprometendo cada vez
mais, ao longo do mandato de FHC, com medidas pró ajuste fiscal
(LOUREIRO,2001). Muitos senadores - a maioria, diga-se de passagem
- optou por uma nova “cultura de responsabilidade fiscal”, como se
constatou nos discursos dos representantes estaduais não só do governo como da oposição, em consonância com o que ocorria na opinião
pública.
O apoio à agenda da responsabilidade fiscal não significou mera submissão do Senado ao Executivo, envolvendo relações de negociação e
barganha bem claras entre senadores, governadores estaduais e União. A
delegação de poder ao Banco Central, por exemplo, ocorreu no bojo das
negociações relativas à privatização dos bancos estaduais que criaram o
PROES (Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na
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Atividade Bancária), cujo custo para o Governo Federal já ultrapassou a
casa dos 70 bilhões de reais15.
Parte da literatura mais recente sobre o sistema político brasileiro indica que há condições institucionais que fortalecem o Executivo, gerando
maior governabilidade (FIGUEIREDO e LIMONGI, 1999). Só que este
processo não resulta de uma mera usurpação do poder ou de uma submissão completa do Legislativo; sua dinâmica envolve negociação continuada entre presidente e Congresso, permitindo construir e manter uma
coalizão relativamente forte, necessária à efetivação de sua agenda de
reformas econômicas (LOUREIRO e ABRUCIO, 1999; PALERMO, 2000).
4. Mudanças nas políticas econômicas pós-99 e a Lei de de Responsabilidade
Fiscal (LRF)
A aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) completa o ciclo das
principais mudanças institucionais nas finanças públicas durante a Era FHC.
O sucesso nesta empreitada se deveu a três fatores básicos. O primeiro foi o
fortalecimento da União perante os governos subnacionais, como mostrado
anteriormente, e, neste novo cenário, o Governo Federal comandou as transformações nas relações financeiras federativas tendo como leitmotiv o fim
dos mecanismos predatórios de endividamento dos estados e municípios.
Em segundo lugar, instalou-se uma cultura política de responsabilidade
fiscal tanto na opinião pública como nos atores políticos, como se viu no
caso dos senadores. Por mais que tal clima de opinião dependa de instituições que solidifiquem este novo padrão, é mister dizer que será difícil, nos
próximos anos, a adoção de uma prática populista e irresponsável perante
as contas públicas tal qual ocorrera ao longo da redemocratização.
Alguns fatores podem ter influenciado a formação deste consenso em
torno da responsabilidade fiscal. Além do sucesso inicial do Plano Real e
das pressões do mercado, exigindo maior “confiabilidade” para os investidores externos, também atuaram nesta direção a emergência de uma
maior intolerância em relação à corrupção e de uma consciência mais
clara dos danos que a insolvência dos governos geram à sociedade, tais
quais as conseqüências do não pagamento de salários a funcionários
públicos (médicos, professores, policiais), greves, insegurança nas cidades, deterioração dos serviços públicos etc. Nesta linha contribuíram decisivamente os episódios dos precatórios, com grande repercussão em
15
Descrição bem detalhada destas negociações encontra-se em Abrucio (2000).
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Pernambuco, Santa Catarina, Alagoas e São Paulo, e o da Máfia dos Fiscais, envolvendo a Prefeitura paulistana, os quais revelaram os resultados
da irresponsabilidade fiscal em larga escala.
A pressão externa também teve grande impacto. Ela derivou de um
conjunto de crises financeiras ocorridas neste período - México (1995),
Ásia (1997) e a Rússia (1998) -, como também da turbulenta desvalorização cambial, em janeiro de 1999. A crise russa já tinha levado o Congresso Nacional a aprovar um amplo programa de cortes orçamentários no
final do primeiro período FHC, pois dizia-se que ou se fazia isso, ou o
Brasil entrava em bancarrota. O empréstimo articulado pelo FMI, instituições multilaterais e pelos EUA, na casa dos 40 bilhões de dólares, simbolizava tal pressão. O modo como aconteceu a desvalorização da moeda,
ademais, reforçava a necessidade de aprofundamento do ajuste fiscal.
O ano de 1999 tornou-se, assim, ponto de inflexão importante não só
na política cambial e monetária, mas também na área fiscal, com a adoção
de uma forte restrição orçamentária e busca por superávits primários
crescentes e sucessivos, acordados com o FMI. Em 2001, o superávit
primário chegou à casa dos 3.5% do PIB. Mesmo com esse resultado
expressivo, a vulnerabilidade externa do país, fruto da aventura cambial
e da aposta equivocada de que o mundo nos financiaria ad infinitum,
ainda nos obrigará a muitos anos de sacrifício fiscal.
É neste contexto de grandes constrangimentos externos que a LRF é
apresentada ao Congresso e aprovada, em maio de 2000, com rápida
tramitação e sem grandes modificações no projeto original encaminhado
pelo Executivo. Cabe realçar que ela obteve elevado índice de votos
favoráveis: 385 votos a favor, 86 contra e quatro abstenções.
A LRF procura estabelecer regras claras e precisas aplicadas às finanças de todas as esferas de governo. Trata principalmente da gestão da
receita e da despesa governamentais, do aumento da transparência financeira, obrigando os governantes a prestarem contas regularmente, e procura inculcar, com mais solidez, o planejamento como prática rotineira da
administração fiscal. Entre os principais pontos da Lei de Responsabilidade Fiscal, merecem destaque:
a) Limitação de gastos com pessoal, estabelecendo não somente o
quanto pode ser gasto por cada nível de governo em relação à receita
líquida, mas também - e aí está a sua novidade - o percentual equivalente
a cada um dos Poderes, eliminando assim a distorção existente anteriormente, especialmente nos governos estaduais.
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b) Reafirmação dos limites mais rígidos para o endividamento público
estabelecidos pelo Senado Federal, indicando que o não cumprimento
será punido igualmente com mais rigor. O principal mecanismo de
enforcement não é o judicial, como se destacou na imprensa, mas sim a
retenção de transferências constitucionais e a proibição de obtenção de
empréstimos e de convênios com o Governo Federal.
c) Definição de metas fiscais anuais e a exigência de apresentação de
relatórios trimestrais de acompanhamento. Foram criados também outros
mecanismos de transparência, como o Conselho de Gestão Fiscal - a ser
ainda constituído.
d) Estabelecimento de mecanismos de controle das finanças públicas
em anos eleitorais.
e) Por fim, e mais importante, proibição de socorro financeiro entre os
níveis de governo, reduzindo o risco moral entre agentes públicos e
destes com os privados.
Várias das normas produzidas pelo Senado ao longo dos últimos anos
serviram de base para a LRF, tida como marco no ajuste fiscal do país. Seus
objetivos são prevenir déficits imoderados e reiterados, limitar a dívida
pública a níveis prudentes, preservar o patrimônio líquido, limitar o gasto
público continuado, estabelecer uma administração prudente dos riscos
fiscais e oferecer amplo acesso das informações sobre as contas públicas à
sociedade. Todos estes mecanismos estão atrelados a dois tipos de punição: um de cunho administrativo, limitando a ação do governante quando
não cumprir adequadamente as regras; e outro de natureza político-jurídica, cujo objetivo é punir no âmbito político, com retirada de direitos políticos ou do governante do próprio cargo, procurando também estabelecer
penas cíveis e criminais aos que desrespeitarem à LRF.
Um balanço ainda preliminar de dois anos e meio de vigência da LRF
indica que, em grande medida, ela está sendo cumprida. Segundo informações oficiais, o total das despesas com pessoal dos Executivos estaduais no Brasil reduziu-se em termos reais em torno de 2,6%. Isso ocorreu
em função de um esforço de reestruturação do funcionalismo, do fim do
pagamento de horas extras etc.. Ainda no que se refere aos governos
subnacionais, o esforço de redução de gastos tem permitindo que os
estados apresentem superávits primários crescentes a partir de 1999.
Mesmo com esse esforço fiscal, dados da STN mostram que o crescimento das despesas na área social acompanhou a elevação das receitas (em
média 7% ao ano nos estados), já que tais gastos estão, em sua maioria,
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constitucionalizados. Em outras palavras, não ocorreu uma redução dos
Welfares locais por conta do cumprimento da LRF. Onde houve cortes foi
na rubrica de investimentos, com impacto muito alto em infra-estrutura e
saneamento básico, principalmente.
Indo além do quadro geral da Federação, observa-se que a LRF foi
implementada diferentemente em função de variações regionais, estaduais e partidárias. As tabelas a seguir, construídas com dados sistematizados por Moraes (2002), trazem informações interessantes relativas aos
dois primeiros anos de vigência da LRF.
A distribuição regional dos municípios que apresentaram déficits (tabela III) indica que o Sudeste apresentou o maior número de municípios
com resultado primário negativo (689) em 2000, com destaque para Minas Gerais, com 392 municípios deficitários. Já no ano seguinte, a Região
Nordeste lidera o ranking, com 604 governos municipais em situação de
déficit. O Sul destaca-se pela excelente melhora nas contas públicas
locais, uma vez que 370 prefeituras conseguiram se ajustar no período de
2000/2001.
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A tabela acima nos mostra a situação dos municípios que não têm
conseguido apresentar regulamente os relatórios de gestão fiscal, tal como
exige a LRF. Se somarmos os dados do Norte e Nordeste, podemos
observar que essas Regiões concentram 40% de todos os municípios
brasileiros. Porém, a existência de governos municipais irregulares chega
aí a 89% do total em 2000, caindo um pouco em 2001 (75%). Pior:
constata-se que 88% dessas municipalidades não entregaram os relatórios
nos dois anos consecutivos (2000/2001).
Por outro lado, a Região Sul é a que tem as condições mais positivas.
Mesmo possuindo 21% de todos os municípios brasileiros, apenas 2% em
2000 e 4% em 2001 não encaminharam seus relatórios. Além disso, no
Sul também não houve nenhum caso de governo local que tenha deixado
de apresentar relatórios nos dois anos consecutivos.
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A distribuição por estado revela uma extrema concentração de problemas em quatro deles: Bahia, Maranhão, Pará e Piauí. Se neles há apenas
18% do total de municípios brasileiros, observa-se, por contraste, que a
porcentagem de governos municipais irregulares atinge aí mais de 62%
no ano de 2000. Em 2001 e no conjunto de 2000/2001, esses números
foram de 39,2% e 62,4%, respectivamente.
Os problemas nos municípios destes estados podem ser explicados
por fenômenos administrativos e, sobretudo, políticos - clientelismo e
ausência de controles institucionais, por exemplo -, que se tornam assim
obstáculos à consecução dos objetivos da LRF16. Não será, portanto, a
mera promulgação da lei ou a vontade de técnicos em Brasília que produzirá automaticamente os resultados fiscais esperados no conjunto dos
governos locais. Mudanças na burocracia e no sistema político subnacional
são medidas essenciais para garantir a efetividade mais ampla dessa legislação, tendo em conta a diversidade do país.
No que se refere à dimensão partidária, observa-se na tabela VI que
todos os partidos melhoraram o desempenho fiscal de seus governos,
independentemente da posição em relação ao Governo Federal (situação
versus oposição), em particular no que tange ao cumprimento dos limites
de gastos com pessoal (DP) frente à receita corrente líquida (RCL). Tais
informações dão indícios de que está se formando uma cultura de responsabilidade fiscal entre os políticos no país. Chama a atenção, todavia,
o fato de que o PT, maior partido de oposição, apresentou o maior
crescimento do superávit primário entre 2000 e 2001, superando bastan16
A capacidade de fiscalização e aplicação de sanções por parte dos Tribunais de Contas (TCs) desses
estados revela um grande obstáculo à implantação do novo modelo fiscal. Pesquisa efetuada na
Internet indicou que o site do TC do Pará está inacessível. Os dos demais estados estão desatualizados
ou não disponibilizam as informações sobre as contas municipais. Além da não publicação dos
resultados fiscais dos governos subnacionais, a falta de pessoal qualificado e bem treinado nos
Tribunais de Contas é outro agravante.
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te o desempenho do conjunto dos municípios brasileiros e, inclusive, o
dos governados pelo PSDB, partido do presidente da República.
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Sintetizando o conjunto de transformações político-institucionais ocorridas na área fiscal, pode-se dizer que o Brasil viveu um duplo movimento no campo das finanças públicas ao longo da redemocratização. Por um
lado, a partir do esgotamento do padrão de financiamento do Estado
nacional desenvolvimentista e do início da redemocratização, configurouse uma situação de crise fiscal estrutural, com causas provenientes do
antigo modelo de intervenção estatal, das relações federativas, das dívidas interna e externa e da persistente inflação. Por outro, como processo
pouco percebido, importantes transformações reordenaram e disciplinaram aos poucos as finanças públicas, especialmente no nível federal.
Tais modificações formaram uma nova “camada geológica”, que permitiu
avanços posteriores.
A ênfase no caráter incremental das mudanças não deixa de reconhecer a existência de momentos de inflexão ou conjunturas críticas, como
sublinha o quadro apresentado mais adiante. Apenas ressaltamos que as
alterações não se processam de forma abrupta e total, já que diversas
reformas resultaram de um aprendizado com os erros anteriores e até
mesmo da utilização de estruturas criadas, quase que imperceptivelmente, ao longo da redemocratização. De fato, as conjunturas críticas podem
permitir a abertura de canais que o incrementalismo não teve forças para
tal; não obstante, o sucesso das inovações depende da percepção de que
o reformismo é um processo.
Sob este pano de fundo, ocorreram transformações no front
intergovernamental, com a extinção ou privatização dos bancos estaduais, a renegociação das dívidas dos estados e a instituição de novas regras
relativas ao endividamento público, ações voltadas contra o modelo predatório anterior, além de ter havido um fortalecimento das instituições
econômicas do Executivo, como o Banco Central e o Ministério da Fazenda, as quais puderam coordenar melhor o funcionamento das finanças
públicas federais, segundo os objetivos definidos pelos técnicos e aprovados politicamente pelo presidente da República.
Entretanto, permaneceram ainda obstáculos sérios à sustentabilidade
da política fiscal, tais como a não aprovação de aspectos essenciais da
Reforma Previdenciária, que permitiriam a redução de seu déficit crescente; o aumento da carga tributária sem uma verdadeira racionalização
no campo das despesas; a centralização arrecadatória baseada em tributos
de péssima qualidade, pois oneram demasiadamente a produção (Contribuições Sociais, primordialmente); e, sobretudo, uma política desequili85
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brada de juros, responsável, como já indicado, por parte considerável da
elevação do estoque da dívida pública no país. O quadro a seguir permite visualizar as variáveis que influenciaram o quadro fiscal nos últimos
vinte anos.
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III - MUDANÇAS NAS INSTITUIÇÕES FISCAIS E ACCOUNTABILITY DEMOCRÁTICA
Nesta seção, procuraremos examinar as mudanças institucionais na área
fiscal à luz da problemática de accountability democrática, enfocando em
particular o desenho institucional produzido pelas resoluções do Senado
destinadas a controlar o endividamento público e pela LRF.
1. Regras legais de controle do endividamento público e accountability
democrática
A partir da Resolução 78, de julho de 1998, o Senado criou restrições
mais severas ao endividamento público no país e concedeu ao Banco
Central o poder de emitir parecer conclusivo sobre os pedidos de
endividamento de todos os entes da Federação. Em outras palavras, ele
autorizou o BACEN a não lhe encaminhar os pedidos que não se enquadrem nas exigências legais. Configura-se assim uma clara delegação de
poder, pela qual os senadores abriram mão da prerrogativa que o artigo
52 da Constituição Federal de1998 lhes outorga, de forma exclusiva, de
autorizar operações financeiras para União, estados, municípios e empresas estatais, como também de estabelecer as condições de financiamento
interno e externo e de fixar os limites de endividamento para todos os
níveis de governo.
Em dezembro de 2001, novas resoluções do Senado (40 e 43) transferem esta delegação de poder das mãos do Banco Central para a Secretaria do Tesouro Nacional (STN). Na opinião de alguns técnicos, a transferência para a STN justifica-se pela necessidade de centralizar neste órgão
o controle das finanças públicas e de manter o Banco Central concentrado em suas atribuições específicas de gestor da política monetária, especialmente em uma eventual situação de formalização de sua autonomia
operacional e política17.
Interessa-nos aqui avaliar o significado político desta delegação. Para
se entender sua lógica política, é preciso considerar a complexidade das
relações entre política e economia, ou, no caso específico, entre política
e constrangimentos fiscais. De um lado, na condição de representante de
seu estado na arena política nacional e percorrendo uma carreira que
17
Entende-se por autonomia política do BACEN a capacidade de decidir sobre as metas da política
monetária, enquanto autonomia operacional implica apenas a capacidade de gerir os instrumentos
necessários para se alcançar os objetivos definidos pelas autoridades eleitas (SOLA, KUGELMAS e
WHITEHEAD, 2002).
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passa freqüentemente por cargos executivos estaduais, o senador brasileiro sofre pressões dos governadores, que muitas vezes foram seus
colegas no Senado. Deste prisma político, recusar o endividamento para
governos subnacionais é cortar uma das fontes fundamentais de reprodução política do próprio ator. Por outro lado, ele é membro de um órgão
que tem como função constitucional garantir o equilíbrio financeiro dos
entes federativos.
É possível interpretar esta delegação de poder considerando que os
senadores buscaram criar um mecanismo permanente para evitar pressões “irrecusáveis”, ao mesmo tempo em que acolhem as necessidades
de controle do endividamento18. Por intermédio das regras que dão ao
Banco Central e depois a STN a capacidade de emitir parecer conclusivo
e de rejeitar os pedidos que não preencham as condições legais, não
encaminhando tais pleitos para a Comissão de Assuntos Econômicos, o
Senado transferiu porção considerável de seu poder decisório em matéria
de endividamento para órgãos burocráticos.
Tomando emprestado a analogia utilizada de Jon Ester(1979) com relação à racionalidade limitada de Ulisses diante das sereias, pode-se afirmar que, conhecendo a “fraqueza de sua própria vontade” ou sua própria
incapacidade de resistir a pressões vindas dos governadores e de outros
parlamentares, os senadores como que amarraram suas mãos e taparam
seus ouvidos, pondo fim a um processo altamente politizado, resolvido
caso a caso, e cujos custos tornavam-se cada vez mais elevados, especialmente frente aos constrangimentos externos que exigem o equilíbrio
fiscal. Em outras palavras, a despolitização dos pleitos de crédito e sua
transformação em matéria técnica, de alçada da burocracia, mostra como
a racionalidade política se acomodou com os ditames do ajuste fiscal no
interior do Senado (LOUREIRO, 2001). Ao fim e ao cabo, os senadores
mais do que amarraram suas mãos; eles “lavaram” suas mãos.
Cabe perguntar, todavia: qual é o custo político desta delegação? Ao
despolitizar o processo decisório relativo ao endividamento público na
18
Eis o que diz a respeito um dos senadores entrevistados: “Quando a solicitação do Estado ou
município está no limite do previsto na resolução 65, e agora na 78, ainda assim há pressão dos
governadores, dos secretários e parlamentares. Há exemplos semanais (dessa pressão)”. .São também
expressivas as palavras do secretário da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, encarregada
de examinar os pleitos de endividamento: “Se as matérias sobre endividamento não são remetidas
para o Senado, se são tríadas dentro do BACEN, haverá menos pressões políticas junto aos senadores.
É uma atitude de autodefesa, porque se chega ao Senado um pedido de autorização de endividamento,
é muito difícil resistir politicamente às pressões”.
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suposição de que assim haverá um maior controle, este desenho
institucional tem efeitos consideráveis para a accountability democrática,
na medida em que transfere as decisões para mãos de burocratas sem
responsabilidade política. Na verdade, isto pode ser apenas a reprodução
da velha e desgastada fórmula tecnocrática que predominou na gestão
macroeconômica no Brasil e em outros países latino-americanos, não só
nos regimes autoritários, mas igualmente nos períodos democráticos
(PALERMO E NOVARO, 1996; LOUREIRO, 1997). O discurso que justifica esta prática pode ser assim resumido: “para evitar a interferência
política, que atrapalha a melhor decisão técnica, a solução é o insulamento,
caminho mais adequado para se alcançar maior eficiência e celeridade
nos resultados das políticas ou reformas econômicas”. É reduzido, com
efeito, o espaço democrático do debate, da discordância e, o pior de
tudo, do controle democrático, confinado que fica a uma só arena, exatamente a mais fechada de todas.
As práticas reiteradas no país de clientelismo e de irresponsabilidade
fiscal não podem justificar restrições das formas democráticas de controle
das finanças públicas. Afinal, não seriam os políticos, justamente por
responderem aos cidadãos, os atores fundamentais na criação de uma
cultura capaz de equilibrar os ditames do ajuste fiscal com as necessidades de gerar desenvolvimento, emprego e bem estar social, muito mais
do que os burocratas, por mais competentes e portadores de ethos republicano que sejam? Mais do que comparar a legitimidade desses agentes,
o fundamental é saber que a transformação do modus operandi dos representantes políticos constitui o principal mecanismo de consolidação
das reformas do Estado. Se a burocracia ajudar neste processo, tanto
melhor; o que não deve ocorrer é o alijamento dos políticos das decisões
técnicas, visto que eles seriam, por natureza, “irresponsáveis”.
2. Lei de Responsabilidade Fiscal e Accountability
A aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) foi considerada um
marco no plano das relações intergovernamentais, não apenas porque
objetivou melhorar a gestão fiscal de todos os níveis de governo, mas,
sobretudo em razão de apontar para um novo padrão de responsabilização
mútua entre a União e os governos subnacionais. Em termos de accountability
democrática, ademais, deve-se ressaltar que o processo, embora bastante
ligeiro em sua aprovação, foi marcado por intensa negociação e barganha
ao longo dos últimos dois anos do primeiro governo FHC.
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Não se pode esquecer, no entanto, que a pressão internacional vinculada à mudança do regime cambial foi uma variável exógena que atuou
fortemente sobre o cálculo dos atores - aliás, tal qual ocorrera em outras
modificações fiscais desse período. A variável externa aparece, em maior ou menor medida, nas decisões dos Parlamentos de qualquer país do
mundo hoje, não sendo ilegítima em si, mas muitas vezes ela se coloca
como uma força indiscutível e inegociável que pode afetar negativamente a accountability democrática.
A maior responsabilização entre os entes federativos foi uma conquista
em prol do melhor desempenho econômico, pois evita o endividamento
perverso que ocorria antes. Representou igualmente um avanço da democracia, uma vez que tornou mais transparente e responsiva a decisão dos
governos em relação aos demais, ao estabelecer, por exemplo, a
obrigatoriedade de apresentação de relatórios periódicos e impor sanções
a quem não cumprir as regras. Permitiu, assim, reduzir a chamada “tragédia dos comuns” que pode caracterizar as relações intergovernamentais em
uma Federação.
Ressalte-se, porém, que esse mecanismo básico de accountability federativo está mais preocupado em controlar passo a passo os governos
subnacionais do que em discutir regularmente com os atores envolvidos a
gestão fiscal do país. Tal modelo tem reforçado a concentração do poder
nas mãos da burocracia do Executivo federal, que centraliza o processo de
controle, geralmente deslegitimando os reclamos dos outros entes federativos. Deste modo, há o perigo de que o objetivo de transparência contido
explicitamente na Lei acabe por funcionar mais como instrumento de controle do Governo Federal sobre os governos subnacionais do que se tornar
uma real prestação de contas por parte dos representantes eleitos ao
Legislativo e aos cidadãos.
A accountability democrática ganharia mais força se a LRF colocasse em
funcionamento o mecanismo do Conselho de Gestão Fiscal previsto em
seu arcabouço jurídico, mais precisamente no artigo 67. Seu principal objetivo seria harmonizar e coordenar os entes da Federação, constituindo-se
num fórum que reuniria os diversos atores federativos, da sociedade civil e
representantes dos Poderes, os quais avaliariam e discutiriam a
implementação da Lei, podendo até propor a modificação da legislação,
caso julguem necessário. Em resumo, seria uma arena na qual os principais
agentes negociariam ajustes no processo e compartilhariam decisões.
O funcionamento do Conselho de Gestão Fiscal depende de uma lei
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que o regulamente. É bem verdade que o Executivo Federal enviou
proposta neste sentido ao Congresso - projeto de Lei 3744/2000 -, mas
também está claro que não houve vontade política para que essa legislação avançasse em sua tramitação. Na ausência dessa regulamentação,
todo o poder foi concentrado na Secretaria do Tesouro Nacional (STN),
que vem editando normas gerais de consolidação das contas públicas
(VIGNOLI et alii., 2002: 192-194).
O que explica a posição adotada pelo Governo Federal é o predomínio de uma visão em que a variável democrática da negociação e do
controle é percebida como algo que pode afetar negativamente os resultados da política fiscal. O temor da equipe econômica vincula-se à possibilidade de retorno do antigo modelo federativo, marcado pela
irresponsabilidade predatória dos governantes subnacionais. Trata-se de
uma concepção fiscalista que, no fundo, crê que só uma lei geral, que
ultrapasse mandatos e governos, pode garantir o equilíbrio fiscal. Em
suma, uma forma de sepultar a política, em sua acepção mais ampla, no
terreno das finanças públicas.
A história de irresponsabilidade fiscal do país e o peso da gramática
clientelista são razões que não podem ser negligenciadas. Não obstante,
da maneira como está definida a Lei de Responsabilidade Fiscal, colocase em questão o direito à mudança das políticas governamentais. O que
está em jogo aqui é a relação sempre necessária de equilíbrio entre
governo e Estado, de tal modo que é preciso sim ter regras estáveis no
essencial, mas também deve haver um espaço para negociações e mudanças que exprimam a dinâmica democrática do voto. Reproduz-se aqui
a desconfiança subjacente à certa visão, muito difundida nos meios acadêmicos e mesmo na grande mídia, que supõe ser necessário atar as
mãos dos políticos mediante regras técnicas perfeitas para se alcançar o
bom resultado econômico, como já ocorrera no caso do Senado brasileiro
acima mencionado.
Foi também seguindo esta ótica que, mediante um processo de delegação quase irrestrita de poderes ao Banco Central, o Brasil adotou durante quatro anos (1994-1998) uma política cambial errada que, impermeável às críticas, não pôde ser aperfeiçoada ao longo do caminho. O
resultado foi duplamente ruim: para a economia e para a democracia.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Argumentamos no texto que houve reformas fiscais no país, efetuadas ao
longo de mais de duas décadas, embora algumas dimensões ou problemas ainda não tenham sido tocados. Muitas vezes este processo se deu
de forma incremental, e não por um modo abrupto e linear de mudança.
Houve avanços e recuos nas propostas ou objetivos inicialmente estabelecidos e amplas negociações com diferentes atores políticos.
Argumentamos também que o modelo incrementalista ou gradual é o
mais compatível com democracias de tipo consensual, como o sistema
presidencialista de coalizão existente no Brasil. O incrementalismo requer um Executivo forte do ponto de vista de governança, ou seja, do
ponto de vista da competência da burocracia governamental para
implementar de forma efetiva a agenda do governo. Por outro lado, ele é
a expressão de um arranjo institucional no qual o Executivo é politicamente limitado ou constrangido, ou seja, forçado institucionalmente a
levar em conta e negociar continuamente com outros atores políticos
relevantes e mesmo com grupos organizados na sociedade.
Cabe ressaltar que democracia consensual não significa Executivo fraco e tampouco fragmentação de poderes sem responsabilidade mútua. O
que se requer é um governo forte em termos de capacidade de coordenação, formulação, implementação e avaliação de políticas, mas
institucionalmente constrangido, e um sistema político, especialmente
nas esferas congressual e federativa, com poder de controle, mas responsável perante o processo decisório.
Concordando com a análise de Vicente Palermo (1998) sobre experiência comparada de Brasil e Argentina, as reformas incrementalistas supõem que os projetos de mudanças não sejam elaborados no formato de
“pacotes” orgânicos (blueprint), nos quais os objetivos supostamente só
são alcançados se não ocorrem “desvios” em relação ao que fora inicialmente planejado pelo grupo de policymakers. Qualquer alteração resultante da luta política, para uma visão mais tecnocrática e de cunho puramente majoritário, resulta em descaracterização ou perda de eficácia do
processo de reforma. Ao contrário, reformas gradualistas implicam a construção de projetos de mudanças processados ao longo do tempo, adaptáveis a novas informações e abertos à dinâmica das interações estratégias
de uma pluralidade de atores políticos.
O padrão de reformas econômicas no Brasil correspondeu, em parte,
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ao modelo incrementalista. Isso pôde ser percebido em aspectos tributários e em certos momentos da negociação federativa, em especial. Em
outros momentos, contudo, prevaleceu uma visão majoritária quanto ao
processo decisório, cujo caso exemplar foi a condução da política monetária e cambial pelo Banco Central. Assistiu-se a uma convivência entre
estes dois modelos e, segundo o aferido neste trabalho, quanto mais
consensual o processo, mais efetivas foram as políticas.
No caso das reformas fiscais, constatamos a existência de negociações
continuadas entre os atores políticos no Legislativo e nos governos
subnacionais. No entanto, o resultado final, contido nos desenhos
institucionais que têm servido de base para o controle do endividamento
público e para a LRF, não caminharam na mesma direção. Restabeleceuse, assim, a dicotomia entre a concentração de decisões em fóruns insulados do Executivo e os requisitos democráticos de responsabilidade política estendida.
Contrapondo-se à nossa visão, parte da literatura ressalta que é preciso levar em conta o custo político e financeiro das negociações sobre o
ajuste fiscal. Do nosso ponto de vista, esta é apenas uma possibilidade e
não uma condição necessária. Além do mais, é sempre conveniente lembrar que a falta de negociação pode dificultar a implementação das reformas, gerando, por sua vez, seus próprios custos. A questão está em como
incorporar a negociação nas políticas de reformas de tipo incremental,
considerando sempre que os atores podem mudar suas posições, alterando a relação inicial de custo-benefício deste processo.
A LRF é exemplo bastante significativo de como mudanças substantivas em uma área de política pública, particularmente difícil, como a
fiscal, adveio sim de transformações institucionais, mas igualmente derivou de uma nova coalizão de interesses e foi gestada sob uma nova
cultura política. Em outras palavras, o sucesso da Lei de Responsabilidade
Fiscal, a despeito de seu conteúdo politicamente “amargo”, é resultado
de uma mudança induzida por um grupo no poder que conseguiu alterar,
paulatinamente, as preferências da maioria, num processo que tende a
sedimentar uma nova forma de organizar as finanças públicas brasileiras.
As instituições são necessárias para garantir a continuidade desse movimento, só que elas não podem, sob o ponto de vista democrático, “amarrar” completamente as ações futuras, proibindo que correções de rota e/
ou mais negociações sejam feitas.
O início do próximo governo será um grande teste para as duas con93
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cepções de reforma. No terreno fiscal, a rolagem da dívida dos governos
subnacionais é colocada como o maior fantasma, uma vez que se teme o
retorno do padrão populista e irresponsável que vários governadores e
prefeitos adotaram ao longo da redemocratização. Seria um passo errático
que nos levaria a perder a estabilidade monetária. Argumentos como
estes são fortes para terminar qualquer diálogo. Entretanto, a legitimidade
dos pleitos dos governantes locais, muitos recém ungidos pelas urnas,
deriva de um fato tecnicamente comprovado: o comprometimento com o
pagamento da dívida torna-se cada vez mais insustentável e reduz a
possibilidade de investimentos, sobretudo porque os contratos foram assinados com a perspectiva de um melhor desempenho da economia,
capaz de tornar crível a obediência ao que fora assinado.
O exaustivo estudo de Mônica Mora (2002) analisa a evolução do
endividamento estadual nos últimos anos, mostrando os avanços obtidos,
em especial no que se refere ao superávit primário, e conclui:
“(...) em decorrência do Programa de Reestruturação Fiscal e Financeira [que envolveu a privatização e a adoção de medidas para alcançar
superávits primários], a dívida teve sua trajetória regularizada. Contudo, o
resultado fiscal em muitas UFs [Unidades federativas] foi, em parte, financiado pelos recursos obtidos com a alienação de bens e de receitas
provenientes de operações de crédito e de transferências voluntárias do
Governo Federal. (...) Com o esgotamento dessas fontes de recursos, a
sustentabilidade da dívida dependerá das interações entre o superávit
primário, a taxa de crescimento do PIB e da taxa de juros” (MORA, 2002:
62 - grifo nosso).
Como se vê, o êxito dos governos estaduais em equacionar seus problemas de endividamento depende de três variáveis. A primeira é a taxa
de juros, fator que não é controlado pelos estados. O pior é que ninguém
seriamente supõe uma redução substantiva da taxa de juros no curto
prazo, mesmo os analistas que acreditam ter havido um exagero na elevação recente. A segunda variável é a obtenção de superávit primário,
ponto em que houve bastante avanço, mas há empecilhos decorrentes
dos gastos sociais obrigatórios previstos pela Constituição, da necessidade de não diminuir a atual estrutura de serviços públicos e, sobretudo,
das despesas com inativos. Esta última questão vincula-se à formação de
Fundos Previdenciários do funcionalismo e de recursos para capitalizálos. Em poucos lugares houve construções institucionais neste sentido.
Desde o segundo mandato de FHC, com a mudança no comando do
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Ministério da Previdência, a União vem ajudando e induzindo a conformação de tais Fundos, mas como os recursos que poderiam ter sido
utilizados para a capitalização, provenientes da privatização, foram utilizados para abatimento de dívida e gastos correntes, os governos estaduais têm um longo caminho para resolver este desequilíbrio financeiro.
O reforço do superávit primário vincula-se, ainda, à elevação das
receitas, que pode ser obtida pela modernização da máquina tributária,
algo que já vem sendo feito, com apoio técnico do Governo Federal,
além do fim da guerra fiscal, que depende da reforma tributária. Mas
ganhos substantivos de arrecadação advêm fundamentalmente do crescimento do PIB, última variável citada pelo estudo de Mônica Mora. Só que
aqui também os estados pouco podem fazer. Somente mudanças estruturais na economia, que têm lugar na esfera nacional (no Congresso e/ou
no Executivo), poderão levar à melhora do desempenho econômico do
país.
Por esta razão, é que o trabalho de Mônica Mora conclui o seguinte:
“(...) o crescimento substancial da economia é condição sine qua non
para assegurar a sustentabilidade da dívida estadual no longo prazo. Mesmo com elevadas taxas de crescimento do PIB não é certo que os estados
alcançarão os resultados desejáveis. Simultaneamente, constatou-se que o
controle dos estados sobre o resultado primário não depende exclusivamente do seu esforço fiscal. Ao contrário do que se possa imaginar, os
estados possuem uma pequena margem de manobra sobre as variáveis
da receita” (MORA, 2002: 65).
Estamos, portanto, diante de dois diagnósticos: o primeiro ressalta o
caminho irresponsável dos governos estaduais durante a redemocratização
e afirma a necessidade de restrições orçamentárias fortes para evitar o
retorno ao modelo predatório de relações intergovernamentais; o segundo mostra que, sem crescimento econômico, o padrão vigente de ajustamento estadual é insustentável. Ambos os argumentos estão corretos, por
mais paradoxal que possa parecer. A solução passa, a um só tempo, pela
criação de normas e valores vinculados à responsabilidade fiscal e pelo
estabelecimento de condições políticas e econômicas capazes de viabilizar
tal cenário.
A invenção deste (novo) modelo só pode ocorrer por intermédio de
uma estratégia incremental, que parta de um arcabouço mínimo de regras
de convivência e de arenas democráticas de negociação, a partir das
quais os entes federativos realizem barganhas públicas e transparentes,
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de modo a responsabilizar todos por seus atos; que se utilize das lições
do passado e das instituições existentes, aperfeiçoando-as gradualmente
e com parcimônia; e que seja ainda capaz de compatibilizar os objetivos
de crescimento e ajustamento, uma vez que o fiscalismo não é desejável
e muito menos o populismo orçamentário.
Seguindo esta linha, propomos o seguinte encaminhamento à rolagem
da dívida dos estados e às instituições vinculadas ao controle do
endividamento. É preciso, primeiramente, estabelecer um compromisso
pela restrição orçamentária responsável, tal qual exposto nos principais
pontos da LRF - embora o “crescimento” dessa lei tenha embutido nela
aspectos que vão além do arcabouço mínimo necessário, amarrando questões que não deveriam estar lá. Em segundo lugar, o único meio de
garantir a sustentabilidade das dívidas estaduais é o crescimento econômico, e não a mera permissão de mais gastos públicos. Assim sendo, para
se renovar o pacto federativo no plano fiscal, União e estados devem se
unir a fim de aprovar medidas capazes de melhorar o desempenho econômico no curto e médio prazo. As reformas tributária e previdenciária
são essenciais neste sentido, bem como uma política mais agressiva para
as exportações e medidas capazes de favorecer o aumento da poupança
e do crédito no país. Tais ações são deliberadas e aprovadas em arenas
nacionais, mas como algumas delas dependem da anuência do Congresso
Nacional, os líderes regionais têm de se comprometer a apoiá-las, pois
disso depende o crescimento e, por conseguinte, a sustentabilidade do
endividamento subnacional.
Outras medidas que favoreceriam o crescimento econômico passam
por parcerias intergovernamentais. Destaca-se, aqui, o investimento em
infra-estrutura urbana, especialmente em habitação e saneamento, o que
geraria mais empregos e renda sem afetar a balança comercial. Além
disso, tais parcerias precisam ser mais incentivadas para racionalizar o
gasto público no país e para melhorar o desempenho em áreas nas quais
só a ação conjunta pode resolver, como é o caso da Segurança Pública. A
articulação federativa, com forte apoio do Governo Federal, não implica
menor responsabilidade dos governos estaduais com suas tarefas, particularmente em termos de finanças públicas. É necessário continuar perseguindo o superávit primário no que cabe a estes entes e, para tanto, a
resolução do problema previdenciário do funcionalismo tem de se tornar
prioridade máxima.
Todas estas ações vão exigir uma forma mais articulada e negociada
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de relacionamento federativo. A criação do Conselho de Gestão Fiscal e
o aprimoramento da atuação do Senado são passos importantes para esta
estratégia. O incrementalismo, como dito antes, requer arenas democráticas e sujeitas à responsabilização pública. Isto deve ser feito
concomitantemente ao reforço da governança, isto é, da qualidade da
burocracia, dando-lhe um papel formulador e implementador de destaque, mas sem que ela se torne o único núcleo das decisões. A LRF e as
finanças intergovernamentais, em resumo, precisam ser melhoradas por
decisões técnicas e políticas.
O caminho do incrementalismo talvez seja percebido como mais difícil. Só que ele é o único capaz de evitar tanto o insulamento burocrático
como o clientelismo desbragado. Sua dinâmica passa por um modelo
mais responsável em relação ao desempenho e às demandas dos cidadãos. Foi Max Weber o primeiro a mostrar que o desafio das democracias
contemporâneas encontra-se na integração da lógica da eficiência com a
lógica democrática, e não na sua separação. Decerto que a tensão sempre existirá na relação entre política e técnica e a resolução disso passa
certamente por um trade-off entre elas. A via mais adequada, no entanto,
é procurar estabelecer ganhos mútuos entre democracia e eficiência. É o
que tentamos comprovar neste artigo, tanto do ponto de vista normativo
como, principalmente, pela análise da experiência brasileira recente.
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A TRANSIÇÃO INCOMPLETA:
A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
NO GOVERNO FHC
1
MARCUS ANDRÉ MELO
INTRODUÇÃO
Ao longo da década de 90, a reforma da previdência social ocupou lugar
central na trilha de reformas e permanece um dos issues fundamentais da
agenda pública nacional. Duas razões apontam para esta importância. Em
primeiro lugar, a própria magnitude do déficit do sistema previdenciário
que passou a representar, em 2000, 4,7% do PIB, convertendo-se em
elemento central da estabilidade macroeconômica e da política fiscal. Em
virtude do desequilíbrio dinâmico gerado por variáveis demográficas,
atuariais e pela grande informalização do mercado de trabalho (com redução do número de contribuintes), o déficit do sistema previdenciário
tende a exibir um comportamento crescentemente elevado e potencialmente explosivo. Esta situação deficitária concentra-se, sobretudo, no
regime dos servidores públicos - onde a viabilidade política das mudanças é mais reduzida. Neste regime, o número de ativos igualou-se ao de
pensionistas e inativos (cf. Gráfico 1).
Enquanto o déficit do regime geral dos assalariados representava, em
2000, 0,9% do PIB, o do regime dos servidores federais atingiu, nesse
ano, 2,0%, e os déficits dos regimes dos servidores estaduais e municipais, alcançaram 1,5% e 0,3%, respectivamente. A previdência passou de
um superávit de 16,6 bilhões em 1988, para um déficit de R$ 9,1 bilhões
dez anos depois, em 1998 (cf Gráfico 2).
A longo da década de 90, as despesas da previdência tiveram um
efeito de deslocamento (crowding out) no orçamento público. Em 1987,
25% das despesas não financeiras do Orçamento Federal eram destinadas
1
Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco e
do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPE.
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ao pagamento dos benefícios do INSS e dos inativos e pensionistas da
União. Em 2001, essas transferências alcançaram 61% do total da despesa. No mesmo período, os gastos com custeio e investimentos, que
correspondiam a 51% do Orçamento, reduziram-se para 13%.
Em segundo lugar, há flagrante iniqüidade no sistema previdenciário,
que está assentado em dois regimes diferenciados e embute, no seu
funcionamento global, uma lógica redistributiva perversa e regressiva. O
Regime Geral da Previdência Social (RGPS) e o Regime Especial dos
Servidores Públicos são regidos por regras distintas no que se refere à
taxa de reposição das pensões e critérios de elegibilidade. Enquanto o
RGPS, que se destina aos trabalhadores sob o regime de trabalho da CLT,
opera com um teto de benefício, o regime dos servidores públicos, regidos pelas normas do Regime Jurídico Único, prevê a aposentadoria com
a integralidade dos proventos na ativa. As regras diferenciadas de elegibilidade também são mais favoráveis no Regime Especial dos Servidores.
As décadas de 80 e 90 foram pródigas em propostas de reforma do
sistema previdenciário, apresentadas por parlamentares de vários partidos, entidades sindicais de trabalhadores e patrões, e grupos de interesse. Em março de 1995, o governo do presidente Fernando Henrique
Cardoso apresentou uma proposta de reforma do sistema previdenciário
através da PEC 33, iniciando um ciclo reformista ainda inconcluso. Embora tenha sido aprovada como Emenda Constitucional 20, em dezembro de
1998, e implementada através de duas leis complementares, em novembro de 2002, ainda encontra-se em processo de votação o Projeto de Lei
(PL) complementar 9, de 1999, que dispõe sobre as normas gerais para a
instituição de regime de previdência complementar pela União, pelos
Estados, e pelos Municípios. Por ele seria estabelecida a virtual unificação dos benefícios do sistema público e do INSS. A trajetória deste ciclo
exibe várias características singulares em confronto com outras áreas de
reforma: a elevada taxa de conflito no processo de tramitação legislativa
e no debate público, o grande número de derrotas do Executivo no
processo de aprovação, e sua transformação em um padrão tipicamente
incrementalista de mudanças.
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O texto a seguir está organizado em seis seções. A primeira examina a
reforma brasileira no contexto internacional, com o foco nas transformações da agenda internacional, em termos dos modelos de reforma preconizados, e suas repercussões para o caso brasileiro. As segunda e terceira
seções examinam o conteúdo da reforma e reconstituem sua tramitação
legislativa. A quarta discute, do ponto de vista analítico, os fatores que
influenciaram o conteúdo e o processo da reforma brasileira. A quinta
seção apresenta o saldo do processo, confrontando a proposta com o que
foi aprovado no ciclo longo da reforma: emenda constitucional mais leis
complementares. Ao final, são feitas referências à provável adoção de
uma reforma “à italiana” no futuro governo Luis Inácio Lula da Silva.
I - A REFORMA BRASILEIRA E A AGENDA INTERNACIONAL
A reforma previdenciária brasileira foi produzida e implementada no interior de uma agenda que tem origem internacional. Este processo ocorreu
em ambiente mutante, sujeito a transformações importantes. Mas, não só a
agenda de reformas se alterou, também modelos distintos emergiram no
contexto das experiências implementadas na década de 90.
Embora o núcleo do debate fosse a mudança do regime previdenciário,
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de repartição simples e benefício definido para o regime de capitalização
e contribuição definida, pelo menos três fases distintas podem ser divisadas na evolução dessa agenda.
O primeiro momento corresponde às reformas da década de 80 e está
associado à proposta chilena de 1982. Como amplamente analisado, as
bases desse modelo são a constituição de um pilar único privado e o
regime de capitalização individual. O modelo é financiado inteiramente
pelos trabalhadores, abolindo-se a contribuição patronal. Nele não existe
um pilar universal público, cabendo ao Estado subsidiar as cotas dos contribuintes que não lograrem integralizar um fundo de aposentadoria que
assegure o piso mínimo. Na experiência chilena, o Tesouro Nacional arcou
com os custos de transição de um sistema a outro, mediante aportes que
chegaram a representar 5% do PIB. Este custo representa as aposentadorias
correntes que eram financiadas em regime de repartição pelos contribuintes ativos do sistema.
Cumprindo papel extremamente importante na difusão internacional de
sistemas de capitalização, o modelo chileno não chegou a ser implementado
em outros países. No Brasil, ele informou um conjunto de propostas de
reforma apresentado durante o governo Collor e durante a Revisão Constitucional de 1993-1994. Embora tenha encontrado receptividade no cesarismo
reformista do governo Collor, esse modelo experimentou arrefecimento no
país com a difusão dos estudos setoriais patrocinados pelo Banco Mundial
que culminaram na publicação, em 1994, do seu relatório anual Averting
the Old Age Crisis. Com este relatório, um novo momento na agenda de
reformas emerge. Na realidade seu impacto se deu em dois níveis: a) na
crítica aos modelos previdenciários públicos baseados no regime de repartição, e b) na proposição de um sistema ideal baseado em três pilares.
De acordo com o relatório do Banco Mundial, os programas públicos
são deficientes por várias razões. Primeiramente, eles não conseguem
preservar os valores dos benefícios contra os efeitos da inflação. Como
não há relação entre contribuições e benefícios, esses últimos estão sujeitos à manipulação oportunista. O mecanismo de repartição também assegura certa invisibilidade das distorções no financiamento, porque o ajuste
do sistema se dá de forma gradual via aumento de alíquotas, acumulandose uma “grande dívida previdenciária implícita”.2 Some-se a isto o impac2
O conceito de dívida previdenciária implícita (o valor presente do estoque de compromissos
previdenciários contratados pelo estado com os atuais trabalhadores e pensionistas) foi um dos
componentes centrais da crítica aos modelos de repartição.
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to de alíquotas altas sobre o mercado de trabalho, gerando informalização.
Os sistemas vigentes estimulam igualmente a aposentadoria precoce, na
medida em que contêm desincentivos à permanência, reduzindo a oferta
de trabalhadores mais qualificados no mercado de trabalho. Ademais, os
programas públicos de repartição simples têm um viés distributivo, com
benefícios maiores para os mais ricos. Esses programas excluem a grande
massa de trabalhadores do setor informal, utilizam formas de cálculo de
benefícios extremamente generosas e sem sustentação financeira. E, ainda, por terem benefícios definidos, são facilmente manipulados politicamente, sendo o seu custo socializado pelos trabalhadores ativos (há transferência intergeracional de renda das coortes de segunda e terceira gerações de afiliados para as primeiras)3. Finalmente, tais programas têm um
impacto fiscal extremamente negativo, não contribuindo para a formação
de poupança na economia.
Ao contrário daquele implementado no Chile, o modelo ideal preconizado pelo Banco Mundial está assentado em três pilares. O primeiro pilar
deve ser público e universal, e deve garantir um piso mínimo, que representa um safety net. Ele deve ser financiado pelo Tesouro ou por algum
mecanismo alternativo. Ele pode ser baseado em benefícios uniformes
ou baseado em anos de contribuição, como na Inglaterra e Argentina, ou,
ainda, corresponder a um piso previdenciário, como no Chile. Alternativamente pode ser concedido de forma seletiva, baseado em um means
test, como na Austrália. O segundo pilar deve ser compulsório, baseado
na capitalização individual e, portanto, em um plano de contribuição
definida. E o terceiro representa o sistema de aposentadoria complementar facultativo, privado e em regime de capitalização.
O terceiro estágio na evolução da agenda setorial de reformas tem
início no final da década de 90, à luz das experiências internacionais de
reforma e a partir das críticas ao modelo difundido pelo Banco Mundial.
Um marco importante foi a publicação pelo próprio Banco Mundial de
Rethinking Pension Reform: Ten Myths about Social Security Systems, de
Peter Orszag e J.Stiglitz (ORSZAG e STIGLITZ 1999), apresentado em
simpósio de avaliação das reformas previdenciárias, organizado por aquela
instituição. Pela importância do segundo autor - à época economista chefe do Banco Mundial - as críticas contundentes que fazem no trabalho aos
supostos benefícios macroeconômicos dos sistemas de capitalização tive3
Para uma crítica cf. LoVuolo, 1977.
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ram enorme impacto na comunidade de especialistas. Eles afirmam que,
aos mitos derrubados pelo Averting the Old Age Crisis, seguiram-se outros que o próprio relatório construiu.
Na segunda metade da década, esta agenda pública está balizada por
três questões:
a) a experiência internacional apresenta um mix bastante diferenciado
de experiências;
b) os custos de transição são impeditivos de reformas para regimes de
capitalização;
c) os regimes de repartição puros não são inconsistentes do ponto de
vista macroeconômico, e os modelos de capitalização só são recomendáveis em situações específicas.
Com relação ao primeiro item, pode-se afirmar que embora a década de
90 tenha assistido a um conjunto extremamente importante de reformas em
quase todas as partes do globo, e que muitas experiências tenham convergido para a adoção de mecanismos de capitalização, forjou-se um consenso
de que não há um modelo do tipo “one size fits all”. Na América Latina,
foram implementadas reformas da previdência social na Argentina, México, Uruguai, Peru, El Salvador, Colômbia e Bolívia. Fora da região empreenderam-se reformas na Austrália, França, Holanda, Eslovênia, Alemanha,
Inglaterra, Dinamarca, Itália, Suécia, entre muitos outros países.
No que tange aos novos sistemas de tipo multipilar, pode-se discernir
pelo menos três modelos de reforma. O primeiro é o modelo da OCDE
no qual os empregadores e/ou entidades sindicais escolhem a agência
gestora do investimento para cada empresa ou categoria profissional, ele
foi utilizado na Inglaterra, Suíça, Dinamarca e Austrália (JAMES, 2000).
O segundo modelo é o sueco, de contas escriturais ou “nocionais” um primeiro pilar de repartição simples reformado que pode ser
suplementado por um segundo pilar. Ele foi copiado pela Itália, Polônia,
China, e, como será discutido nesse texto, também adaptado ao Brasil. A
rigor, dificilmente este modelo pode ser considerado de capitalização, a
não ser em termos da rationale de sua adoção, que se assemelha a um
modelo de capitalização virtual.4
4
Um plano escritural de contribuição definida é um plano em que o trabalhador tem uma conta
individual que lhe é creditada com suas contribuições mais os juros. No entanto, a acumulação é
escritural, e não real, devido ao fato de que a contribuição dos trabalhadores é imediatamente paga
aos aposentados, em vez de ser investida. O sistema permanece essencialmente como de repartição
simples. Na aposentadoria, a acumulação escritural é convertida em um fluxo de renda efetiva,
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Há, ainda, o modelo latino-americano, que se baseia na escolha individual pelos trabalhadores das entidades gestoras de seus fundos de aposentadoria. Este foi utilizado no Chile, Argentina, Uruguai, México, Colômbia, e Bolívia5.
Com relação ao segundo ítem citado, houve o reconhecimento efetivo
dos problemas de custos de transição, sobretudo no caso dos sistemas
que apresentavam uma dívida previdenciária implícita de grande magnitude. Esta foi, na realidade, a rationale para a adoção dos modelos de
capitalização escritural. A centralidade dos custos de transição foi reconhecida inclusive na América Latina em relação à adoção do modelo
chileno na região. No caso brasileiro, as evidências são claras de que a
visibilidade deste problema se acentuou bastante ao longo da década de
90 (MELO 2002; CVM 1994). A proposta feita pelo economista André
Lara Rezende, de fundar a dívida previdenciária e de absorvê-la pelo
Tesouro Nacional (com a utilização de recursos da privatização) foi abandonada pela magnitude da dívida previdenciária e por seu impacto no
risco-país. Os custos de transição também ocuparam lugar central na
agenda de reformas nos países europeus.
Embora o Banco Mundial tenha prescrito, no Averting the Old Age
Crisis, como estratégia de reforma, uma seqüência virtuosa de incorporação dos custos de transição ao novo regime, o problema não era tratado
com a importância que passou a ter no final da década de 90. Esta
seqüência proposta consistia nos seguintes passos: O Banco sugere que
o processo de reforma se inicie com ajustes em aspectos específicos dos
Planos de Custeio e de Benefícios. A seguir, devem ocorrer modificações
mais importantes, que se refletem também, na gestão administrativa, além
dos quesitos anteriores, cuja tendência é a efetivação de alterações mais
vigorosas. Por fim, são modificados o regime financeiro e a gestão para
um plano de capitalização individual, gerido pelo setor privado, este
seria a derradeira etapa de todo o processo.
Para enfrentar especificamente o problema dos custos de transição ao
novo regime, dever-se-ia reformar o sistema antigo, mediante enxugamento
supostamente com base em termos atuarialmente mais consistentes. Nesse sentido, a adoção do plano
escritural de contribuições definidas é equivalente a uma reforma dos sistemas públicos de repartição
simples, o qual pode ou não vir a ser acompanhado de um segundo pilar capitalizado (caso da
Suécia) (JAMES 2000; MYLES 1998, 240-241). A introdução do “fator previdenciário” na reforma da
previdência brasileira foi inspirada por esse tipo de modelo.
5
Note-se que países como Peru não criaram um pilar básico, público.
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dos benefícios, elevação da idade de aposentadoria e desincentivo às
aposentadorias precoces, uso de maior rigor quanto aos critérios de elegibilidades para benefícios, mudança do método de cálculo de benefícios
e indexação dos valores, de modo que a dívida implícita fosse reduzida.
Esta estratégia foi adotada no Chile, na Argentina e no Uruguai. As medidas cortaram os benefícios que deviam ser pagos àqueles que permanecessem no sistema antigo, aos que se transferissem para o novo sistema e
aumentaram a probabilidade de migração de um para outro. Em suma, a
estratégia recomendada busca desvalorizar o estoque de promessas de
benefícios previdenciários em regimes que são considerados inconsistentes e/ou iníquos.
Como será analisado a seguir, não resta dúvida de que o Brasil tem
revelado muitos aspectos similares a esse script. A proposta previdenciária
do Governo Fernando Henrique Cardoso foi, em larga medida, uma reforma paramétrica que lançou as bases para a transformação mais estrutural do sistema6. Deve-se ressaltar que o papel das agências multilaterais
na difusão da agenda internacional de reformas foi extremamente importante.7
O terceiro item refere-se ao debate em torno das virtudes dos planos
de capitalização. Um aspecto destacado no debate em torno das reformas
é que esses regimes só são viáveis em países onde haja um mercado de
capitais ativo e maduro. Outro aspecto é que esses modelos só podem
ser implementados em países que tenham criado um marco regulatório
efetivo. A terceira dimensão diz respeito às implicações macroeconômicas
do modelo.8 Para Orszag e Stiglitz o consenso em torno do Averting the
6
Examinando o caso latino-americano, Mesa-Lago (1996) identifica um continuum ideológico entre
as propostas do Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Organização
Internacional do Trabalho e Associação Internacional de Seguridade Social, e assinala a difusão do
paradigma chileno para a previdência.
7
Só recentemente, o BID passou a ter uma atuação na área, concentrando-se na reforma dos
sistemas previdenciários em vários estados da Federação e financiando os custos de montagem de
fundos de pensão para funcionários estaduais. A chancela técnica dessas instituições e o apoio
financeiro têm constituído fortes incentivos para a adesão às reformas por parte de atores extremamente relevantes no sistema político brasileiro, como é o caso dos governadores. Nesse sentido, a
influência do BID tem significado mais que a simples difusão de uma agenda de reforma, mas, antes,
o seu patrocínio ativo.
8
Orszag e Stiglitz (1999) identificam dez mitos em relação aos modelos previdenciários. Dentre os
mitos “macroeconômicos” estão os pressupostos de que: contas individualizadas aumentam a poupança nacional; as taxas de retorno são mais elevadas nas contas individualizadas; as taxas de
retorno decrescentes dos regimes de repartição indicam problemas fundamentais com esses sistemas.
O investimento dos fundos público em títulos do governo não tem efeitos macroeconômicos. Dentre
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Old Age Crisis estava fundamentalmente errado. Dentre os problemas
destacados estão os custos administrativos e de marketing extremamente
elevados, relativos ao pilar compulsório privado dos sistemas
previdenciários que implementaram reformas.
A reforma previdenciária brasileira tem sido marcada fortemente pelas
mudanças na agenda pública internacional. A proposta apresentada pelo
governo Fernando Henrique Cardoso expressou a tensão entre a agenda
doméstica de reformas, sua negociação política e o consenso forjado na
policy community setorial internacionalizada. Este processo ocorreu em
meados da década de 90, envolvendo a necessidade de ajustes paramétricos
e seqüenciados, a discussão em torno dos riscos dos sistemas de capitalização, dos custos de transição e problemas relativos aos regimes de
capitalização escritural.
II - A PROPOSTA DE REFORMA DO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
A reforma da previdência apresentada pelo Governo Fernando Henrique
Cardoso em março de 1995 mantém forte continuidade com a agenda do
início da década 90, marcada pelo impacto que a nova Constituição trouxe sobre a previdência social, sobretudo após a regulamentação desses
dispositivos pela Lei 8213, em 1991. A Constituição de 1988 corrigiu
vieses distributivos do sistema existente, em particular, a deterioração do
valor real de benefícios e o tratamento iníquo dos trabalhadores rurais.
Todavia, criou grande sobrecarga fiscal e aprofundou as distorções do
sistema público.
As propostas de reforma dirigiam-se aos seguintes pontos: Primeiro,
ao impacto dos dispositivos constitucionais sobre a massa de segurados.
Em virtude dos dispositivos da Constituição de 1988, os trabalhadores
celetistas adquiriram o status de estatutários e, assim passaram a ter direito à integralidade do valor dos salários da ativa quando se aposentassem
(ou, na ausência de teto, a valores representando até 150% daquele
valor).
os mitos microeconômicos estão: que os incentivos no mercado de trabalho são melhor sob um
sistema de contas individualizadas; os planos de benefício definido necessariamente produzem
incentivos para a aposentadoria precoce; a competição garante custos administrativos menores em
contas individualizadas. Dentre os mitos relacionados ao que chamam de economia política, os
autores identificam três: a) que a existência de governos corruptos e ineficientes são uma justificativa
para a adoção de planos de capitalização individual; b) que as operações de socorro financeiro de
natureza política são piores nos casos de planos de benefício definido; c) que o investimento de
fundos públicos sempre são ineficientes e corruptos.
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Segundo, a equiparação ocorrida entre benefícios urbanos e rurais.
Com as mudanças, os trabalhadores rurais passaram a desfrutar dos mesmos benefícios dos trabalhadores urbanos (valores reais que representavam metade dos pagos a estes últimos) e tiveram a idade de aposentadoria reduzida de 65 para 60 anos, para homem, e de 60 para 55 anos, para
mulher. Estes benefícios tinham natureza essencialmente não contributiva.
Em 2001, de um conjunto de cerca de vinte milhões de aposentados e
pensionistas do INSS, apenas seis milhões contribuíram durante toda a
sua vida ativa com aportes ao sistema aposentados. Os quatorze milhões
restantes recebem benefícios assistenciais: dois milhões estão inscritos no
programa da Lei Orgânica da Assistência Social; seis milhões são pobres
urbanos que recebem diferentes benefícios para completar a renda mínima e outros seis milhões são aposentados rurais, trabalhadores do campo
que jamais contribuíram para sua aposentadoria.9
Terceiro, o impacto da Constituição sobre o valor real das pensões. Os
benefícios previdenciários foram recompostos - o piso dos benefícios
passou de 50% a 100% do salário mínimo, e o princípio da irredutibilidade
do valor real de pensões foi constitucionalizado. Com essa mudança a
estratégia adotada durante a década de 80 para o ajuste do sistema - a
deterioração do valor real das pensões e benefícios - ficou inviabilizada.
Por fim, o reajuste dos benefícios dos servidores passou a ser atrelado à
remuneração dos ativos, incluídas todas as vantagens. O impacto fiscal
dessas mudanças levou à questão da reforma do sistema ao centro do
debate público.
No Brasil, a reforma da previdência adquiriu grande centralidade na
primeira metade da década de 90 em virtude de dois outros desdobramentos:
a) a difusão do paradigma chileno de reforma e a promoção ativa de
uma agenda proposta pelo Banco Mundial.
b) No âmbito congressual, os trabalhos da CPI da Câmara dos Deputados sobre as aposentadorias especiais (1991), a formação da Comissão
Especial da Reforma da Previdência Social (1992-93), e discussão pública
durante a Revisão Constitucional (1993-94), representaram arenas onde a
agenda política setorial foi discutida.
9
As contribuições das aposentadorias rurais nunca ultrapassaram 13% do gasto com benefícios.
Para estimativa do impacto da Constituição de 1988 no campo da previdência e assistência social ver
Beltrão, Pinheiro e Oliveira 2002. Cf também Brandt (2001, 73.)
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Por estar prevista nas disposições transitórias da Constituição de 1988,
a Revisão Constitucional constituiu-se em uma policy window importante, mas que malogrou em virtude de vários fatores. Neste contexto, propostas de reforma amplas foram apresentadas, as quais implicavam a
fusão dos regimes de servidores públicos e de assalariados do setor
privado, e introdução de um subsistema compulsório privado baseado na
capitalização individual.
A reforma apresentada pelo Executivo através da PEC 21 - posteriormente renumerada como PEC 33 - constituía um ajuste paramétrico no
sistema e não previa nenhuma reestruturação substantiva. A transformação substantiva era apenas uma possibilidade potencial para assegurar
uma aposentadoria superior ao teto de benefício do INSS. Ela estava
associada à constituição de regimes facultativos e complementares no
sistema público. A estratégia global orientava-se pela desconstitucionalização do capítulo da seguridade social. A idéia básica era retirar
do texto constitucional as regras de aposentadoria por tempo de serviço
e por idade e o valor do benefício, deixando-as para as leis complementares que definiriam os regimes previdenciários dos funcionários públicos civis, militares, e o regime geral a ser aplicado aos demais casos. Pela
PEC 33 seria extinta a aposentadoria por tempo de serviço, substituída
pela aposentadoria por tempo de contribuição; seriam eliminadas algumas aposentadorias especiais (professores, parlamentares), e proibida a
acumulação de aposentadorias tanto quanto as remunerações recebidas
em função de cargo, emprego ou função.
A PEC também impedia que novas vantagens concedidas aos servidores públicos fossem estendidas aos inativos. Por fim, limitava-se a contribuição de empresas estatais a seus fundos de pensão, os quais teriam de
ajustar seus benefícios sem reconhecimento de direitos adquiridos. O
salário mínimo era mantido na proposta, como piso de benefício para a
substituição do salário de contribuição ou o rendimento do trabalho, mas
se desvinculava este piso da renda mensal vitalícia destinada aos idosos e
inválidos sem meios de subsistência.
Essa proposta era generalista em relação à previdência complementar
ao fazer referências às possibilidades de sua expansão. Adicionalmente,
centralizava-se na União a competência para legislar sobre previdência
social, permitindo a estados e municípios criarem entidades previdenciárias
em conformidade com a legislação federal. Muitos outros aspectos pontuais foram também incluídos, tais como a equiparação de homens e mu113
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lheres quanto aos critérios de concessão de aposentadorias, o fim da
aposentadoria proporcional, o fim da contagem de tempo fictício (contagem em dobro de licenças não gozadas, idem para tratamento de saúde
superior a dois anos e/ou de familiar enfermo, etc) e a eliminação das
aposentadorias especiais para ocupações não penosas ou insalubres (o
caso de categorias como magistrados, jornalistas, jogadores de futebol,
entre outros).
As questões de base referiam-se, na realidade, a quatro pontos: a) a
substituição da aposentadoria por tempo de serviço pela aposentadoria
por tempo de contribuição; b) a introdução de idade mínima nas aposentadorias do setor público; c) a extinção da integralidade das novas aposentadorias do setor público, aproximando os critérios de pagamento de
benefícios e contribuição do regime dos servidores públicos aos do RGPS
(Regime Geral da Previdência Social) e d) o rompimento da extensão aos
inativos de vantagens concedidas a ativos. Ressalte-se que a questão dos
fundos de pensão do setor público era matéria de grande centralidade,
mas estranha à discussão da estrutura do sistema.
10
III - A TRAMITAÇÃO LEGISLATIVA DA REFORMA: MUITO BARULHO PARA NADA?
A tramitação legislativa da PEC foi marcada pela política de dissimulação
de responsabilidades e de medidas que impunham custos concentrados a
grupos e clientelas. Ao apoiar medidas impopulares os parlamentares
governistas incorriam em custos políticos significativos. Durante a votação da PEC11, os deputados do PFL na Comissão ameaçaram votar contra.
O relator governista declarou inconstitucional a emenda que atribui ao
presidente da República o poder exclusivo de propor leis sobre formas
de financiamento da previdência e saúde. A emenda da quebra de sigilo
bancário foi também rejeitada. Após demoradas negociações - em que a
questão dos direitos adquiridos foi moeda de troca -, a CCJ (Comissão de
10
Para uma análise minuciosa do processo de tramitação legislativa global, na Câmara e no Senado
cf. Melo (2002, 101-133). Para uma análise do processo na Câmara dos Deputados cf. Silva, Melo e
Matijascic 1998: 159-187.
11
O Executivo apresentou inicialmente quatro emendas: Emenda 1 - Altera a previdência, incluindo
as normas de transição, desconstitucionalização das regras atuais de aposentadoria por tempo de
serviço, idade e custeio; Emenda 2 - Dá competência exclusiva ao presidente da República para fazer
leis de custeio da seguridade social; Emenda 3 - Permite quebra do sigilo bancário, fiscal e patrimonial
dos devedores da previdência; Emenda 4 - Tratava da saúde na seguridade social.
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Constituição e Justiça) aprovou o relatório. Isso, não obstante ter rejeitado
a quebra do sigilo bancário e fiscal de pessoas acusadas de sonegação à
previdência; o fim da isenção para entidades filantrópicas e igrejas; e a
proibição de recurso à Justiça, por parte dos aposentados, para garantir
direitos adquiridos.
Durante os trabalhos da Comissão Especial, o governo não logrou
assegurar o relator e o presidente de sua base, o que contribuiu para a
mudança observada na discussão posterior. O cargo crucial de relator da
proposta do governo foi entregue ao deputado Euler Ribeiro (PMDBAM), e a Presidência da Comissão, ao ex-ministro da Previdência do
governo Figueiredo, deputado Jair Soares (PFL- RS). Ambos haviam se
pronunciado contra o projeto, em várias ocasiões, e favoreceram ativamente a obstrução dos trabalhos de instalação da Comissão. O relator
mantinha vínculos históricos com entidades do serviço público, chegando
a ser o parlamentar que apresentou as propostas revisionais da ANFIP
(Associação Nacional dos Fiscais da Previdência) na revisão de 1993.
Na Comissão Especial, a proposta PEC 33-A 95 recebeu oitenta e três
emendas no prazo regimental de dez dias, e ouviu trinta e quatro pessoas
em audiências públicas. A tramitação da proposta na Comissão se caracterizou por conflitos abertos com o Executivo, no contexto de inúmeras
reuniões entre governo, líderes partidários, associações, entidades de
movimentos sociais e centrais sindicais.
A votação na Comissão Especial foi suspensa três vezes, por conta da
obstrução dos trabalhos feita pelos sindicalistas. Dois episódios se destacaram na votação do relatório. O primeiro foi a iniciativa do governo de
incorporar outros atores à arena decisória em virtude das dificuldades
encontradas para conduzir o processo na Comissão. Os sindicalistas se
mobilizaram em torno da idéia de greve geral e apresentaram uma proposta ao governo. Por iniciativa presidencial, o governo convidou as
centrais sindicais para negociar. Em acordo selado no Palácio do Planalto,
a CUT manifestou seu apoio à aposentadoria por tempo de contribuição
em troca das seguintes concessões pelo governo: fim da aposentadoria
especial de professores, desistência de impor idade mínima, e unificação
dos critérios de concessão entre homens e mulheres. O anúncio do acordo produziu forte reação do PT, dos parlamentares que insistiam ser a
arena parlamentar o lugar mais adequado para as negociações e, ainda,
do sindicalismo do serviço público (ANDES, SINDSEP, entre outros). Este
último foi o mais fortemente atingido pelo acordo que restringia as condi115
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ções de elegibilidade à aposentadoria integral pelos servidores. Tais entidades acusaram a CUT de traição. Como resultado a CUT recuou em seu
apoio tático à reforma e se manteve fortemente crítica em relação à
proposta.
O dissenso na Comissão persistiu e envolveu vários pontos: a manutenção da aposentadoria proporcional para servidores do setor privado
(defendida pelos sindicatos dos bancários), a extinção do Instituto de
Previdência dos Congressistas (que o relator propunha, transformando o
dispositivo constitucional em fundo de pensão), e o período de carência
para extinção das aposentadorias proporcionais dos servidores públicos.
O desenlace das negociações ocorreu com a renúncia do presidente
da Comissão, Jair Soares (PFL-RS), devido à insistência do líder de seu
partido em levar adiante a votação na sessão programada. Alegando brecha regimental, já que o número de sessões havia ultrapassado o limite
máximo previsto pelo Regimento, o presidente da Câmara dos Deputados, deputado Luis Eduardo Magalhães (PFL-BA) dissolveu a Comissão, e
levou a questão diretamente ao plenário. A relatoria, no entanto, foi
mantida com o deputado Euler Ribeiro, em contexto de crescente visibilidade de críticas à manutenção do Instituto de Previdência dos Congressistas (IPC). Com efeito, esse ponto polarizou as negociações, tendo levado as lideranças governistas no Congresso a encomendar um projeto de
lei ordinária para a extinção do IPC, a despeito da mobilização consistente e articulada favorável à sua manutenção, por parte dos beneficiários.
O substitutivo do deputado Euler Ribeiro foi derrotado no plenário por
294 votos a favor e 190 contra. Esse resultado, que não parece ter sido
efetivamente antecipado por nenhum dos parlamentares, causou forte comoção no governo. À semelhança das outras votações, a dissidência na
base governista se concentrou no PMDB (trinta e oito votos contra). Vários
parlamentares do PSDB (nove votos), PPB (vinte e sete votos) e PFL (sete
votos) também votaram contra o encaminhamento da liderança. O líder do
partido que concentrou a dissidência, o PMDB, foi indicado para relatar o
projeto original do governo que, por uma interpretação sem amparo regimental, entrou precipitadamente na pauta de votação do plenário.
As lideranças propuseram em seguida uma “superemenda aglutinativa”,
com base no projeto original e nas sessenta e duas emendas apresentadas. A estratégia inicial montada pelo novo relator foi a de prosseguir
com a “desconstitucionalização”, transferindo-se as decisões nãoconsensuais para a legislação complementar e ordinária. Isso ensejou
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forte resistência entre os partidos de oposição. Ademais, propôs-se instituir um período de carência de dois anos para as novas regras para o
setor público, o que provocou, por sua vez, reações nas bases governistas. Durante a votação dos destaques, o governo foi derrotado oito vezes
nas trinta e três votações na Câmara.
Na tramitação nessa Casa, manteve-se no texto constitucional a aposentadoria por idade, a diferença entre homens e mulheres e a aposentadoria proporcional. Em votação extremamente tumultuada, permaneceu a
aposentadoria especial para todo o magistério, inclusive do terceiro grau.
Permaneceu também o conceito da seguridade social, com a garantia do
benefício assistencial não inferior a um salário mínimo.
A Câmara aprovou a recuperação - ainda que momentânea - do valor do
teto de benefícios em dez salários mínimos. Quanto aos fundos de pensão,
permaneceu a regra em que as entidades patrocinadoras podem alocar o
dobro da contribuição dos empregados. Quanto aos servidores, as mudanças aprovadas na Câmara impunham a exigência de tempo de pelo menos
dez anos no serviço público, e cinco anos no cargo, para a aposentadoria
integral. Mas foram mantidos, apesar da resistência do governo, a aposentadoria integral, o direito de iguais reajustes entre ativos e inativos e a
aposentadoria proporcional também para o servidor. O critério para aposentadoria passaria a ser também o do tempo de contribuição.
O Senado representou a instância a partir da qual o governo recompôs
o projeto anterior e em que se procedeu a nova formulação da proposta.
O projeto deu entrada em agosto de 1996 na Casa, mas o relator da CCJ,
Beni Veras (PSDB- CE), apresentou um novo projeto só em abril de 1997,
após manter discussões com a oposição e especialistas. O Relator rejeitou a idéia de que fossem promovidas audiências públicas para debater a
emenda. Seu substitutivo, que sofreu diversas alterações até ser dado
como concluído e aprovado pela CCJ em 23 de julho de 1997, foi divulgado apenas quarenta e oito horas antes da data prevista para a votação
na Comissão, impedindo que a matéria se politizasse à semelhança do
que ocorreu na Câmara.
A demora na divulgação do parecer refletiu o aprendizado político
propiciado pela tramitação da reforma na Câmara, como também os conflitos na base de sustentação do governo em torno da aprovação da
reforma administrativa. O Senador Beni Veras optou pela apresentação
de um substitutivo integral à Proposta de Emenda Constitucional, o qual
recupera vários dos pontos derrotados na votação na Câmara dos Deputa117
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dos e introduz ainda muitos outros.12 A questão do fim da paridade entre
ativos e inativos foi tratada de forma nova no parecer: preservou-se a
paridade de reajustes entre aposentadorias e salários, embora tenha-se
introduzido um redutor nos valores das aposentadorias acima de R$ 1.200,00.
O relatório do Senador Veras recebeu cinqüenta emendas na CCJ, das
quais quarenta e seis foram rejeitadas. O parecer foi aprovado com larga
margem no plenário do Senado, onde o governo desfrutava de grande
maioria. Após aprovação no Senado, instaurou-se uma querela regimental
sobre a prejudicialidade da apreciação, pela Câmara, de um projeto que
apresentava vários pontos novos e reintroduzia outros já derrotados na
Câmara. O deputado Nilson Gibson (PSB-PE) encaminhou requerimento à
mesa da Câmara argumentando que, como a matéria havia sido julgada
pela Casa, só poderia ser apreciada em novo ano legislativo.13
O segundo aspecto regimental importante referia-se à possibilidade
de, se alterada, a proposta ter que voltar mais uma vez para o Senado. O
imbroglio foi resolvido pelo presidente da Câmara, que considerou a
matéria como nova, passando por cima das impugnações, e como tal,
exigiu nova Comissão Especial, além de submetê-la à apreciação pela
CCJ da Câmara. Com isso, o governo pôde reintroduzir pontos já rejeitados, como a contribuição de inativos e a aposentadoria de funcionários
públicos.14
12
. O substitutivo previa a reformulação da aposentadoria por tempo de serviço, condicionando-a a
certa idade mínima; a proibição, salvo algumas exceções, de acumulação de mais de uma aposentadoria ou de percepção simultânea de proventos de aposentadoria e de remuneração de cargo,
emprego ou função pública; a exigência de que, em regimes previdenciários complementares, a
contribuição de órgãos e empresas públicas não exceda a dos filiados a esses regimes; o estabelecimento de critérios similares para os regimes do servidor público e do INSS e a remissão ao artigo que
trata do servidor público para as diversas situações específicas; a proibição de contagem de tempo de
serviço; e o estabelecimento de regras de transição visando a preservar direitos e expectativas de
direitos dos atuais servidores públicos e segurados da Previdência Social. Ver Senador Beni Veras
PARECER à Proposta de Emenda à Constituição n.º 33, de 1996, que “Modifica o sistema de previdência social, estabelece normas de transição e dá outras providências”, COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO,
JUSTIÇA E CIDADANIA, Senado Federal, 1998.
13
Na interpretação mais ortodoxa do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, se a matéria, já
votada em plenário, não fosse caracterizada como nova, essa apreciação só poderia ser feita em uma
legislatura seguinte
14
O governo conseguiu também rejeitar, por trinta e cinco votos contra quatorze, o desmembramento
da proposta. Isso se deu em um quadro no qual a maior preocupação era manter inalterado o
parecer, evitando-se assim que o mesmo retornasse ao Senado. Após cinco tentativas frustradas de
votação, em um prazo de seis semanas, a negociação final envolveu o compromisso por parte do
governo de zerar, através de lei complementar, a contribuição dos inativos, embora mantendo-se no
texto constitucional a referência à cobrança. O texto foi aprovado na CCJ por trinta e cinco deputados de um total de quarenta e oito presentes.
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Na Câmara dos Deputados, a tramitação teve continuidade em período
de convocação extraordinária. As dificuldades de aprovação deviam-se à
questão da contribuição dos inativos, prevista no relatório, e o impasse
referia-se ao fato de que, alterado esse dispositivo, a tramitação sofreria
grande atraso por ter que retornar ao Senado. A votação na Comissão
Especial foi marcada por conflitos e representou uma vitória importante
para o governo, que garantiu unanimidade dos deputados dos partidos de
sua base de sustentação política para a sua aprovação. A proposta foi
aprovada pelos vinte e quatro membros da bancada governista. O mesmo
padrão se repetiu com a aprovação no plenário da Câmara dos Deputados - o governo obteve 346 votos favoráveis e 151 contra -, que contou
com um quorum de 503 deputados. Três parlamentares se abstiveram, e
apenas dois do PFL não compareceram. O destaque que previa a supressão da contribuição dos servidores inativos foi aprovado, viabilizado pelo
apoio de dissidentes do PPB e do PMDB. O bloco de oposição e mais o
PPB apresentaram oito destaques para votação em separado, em um
quadro de intensificação de demandas para liberalização de emendas do
orçamento, já que, em virtude da crise asiática houve corte de 60% destas
emendas por parte da equipe econômica.
A divulgação pela imprensa do processo indica a existência de inúmeras concessões por parte do governo. O Ministro Sérgio Mota comandou
as negociações com os líderes e parlamentares, o que envolveu um
intenso e demorado mecanismo de barganha, incluindo nomeações, liberações de emendas do orçamento, demandas individuais e de bancadas.
A oposição passou a centrar suas críticas no “toma lá, dá cá” instituído
pelo governo: “a barganha foi institucionalizada no governo Fernando
Henrique Cardoso”, denunciou o deputado José Genoíno (PT-SP).
Tal como aprovado nas votações, até o final de maio de 1998, a
reforma propõe a eliminação de privilégios de categorias profissionais
específicas - jornalistas, professores, magistrados, parlamentares, entre
outros. Extingue a aposentadoria por tempo de serviço, introduzindo limites mínimos de idade para a concessão de aposentadorias e o sistema
de tempo de contribuição, além de abolir a aposentadoria proporcional.
A reforma também elimina a aposentadoria integral para aqueles que
ingressarem no serviço público após a aprovação da emenda e estabelece regras de transição para aqueles que já tenham ingressado.
A regra de transição anula distorções existentes como, por exemplo, o
direito à integralidade de proventos após, em alguns casos limites, três
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anos de exercício de cargo ou função pública. As outras distorções eliminadas referem-se à fixação de tetos máximos para valores de aposentadoria e à proibição de acumulação de aposentadorias, ou destas com
remuneração de cargos, emprego ou função. Por fim, a reforma estabelece o fim da paridade entre servidores ativos e inativos. Esta medida e o
estabelecimento de regras de transição para os servidores - prorrogando
de 20 para 40% o tempo requerido para aposentadoria - são as únicas
que potencialmente poderiam ter impacto sobre as contas do setor. O fim
da paridade poderá representar um congelamento do valor real do estoque de benefícios existentes, ou mesmo “arrocho” no pagamento de
pensões e benefícios. Todavia, o texto aprovado em primeiro turno garante o seu valor.
No quadro das votações dos DVS da PEC 133, o governo sofreu duas
derrotas importantes, que implicaram a manutenção dos dispositivos à
idade mínima de aposentadoria e à integralidade dos proventos de aposentadoria acima de R$ 1.2 mil pela utilização de um redutor. A primeira
dessas votações representou verdadeira batalha, na qual o governo foi
derrotado pelo voto, supostamente equivocado, do deputado Antônio
Kandir (PSDB-SP). Com isso foi derrotada a exigência de limite de idade
para os trabalhadores que vierem a ingressar no sistema previdenciário
após a promulgação da emenda. Em votação subseqüente, poucos dias
após as eleições presidenciais, o governo logrou aprovar um DVS que
definia a exigência de idade mínima (53 anos para os homens e 48 para
as mulheres) para os trabalhadores que já contribuem para o INSS, criando-se uma situação anômala de limite de idade apenas para a regra
transitória e não para a regra geral.
Submetido ao primeiro teste no Congresso, após as eleições presidenciais de 1998, o governo sofreu duas derrotas adicionais no plenário na
votação da reforma fiscal. A primeira foi relativa à derrota da Medida
Provisória 1720, que aumentava a contribuição previdenciária dos servidores públicos ativos e taxava aposentados e pensionistas. Após essa
derrota, o Executivo propôs nova medida para introduzir a contribuição
de inativos, dessa vez através de um projeto de lei. O projeto foi aprovado na Câmara por 335 votos a favor e 147 contra. Vários fatores contribuíram para este sucesso do Executivo. O primeiro foi a fortíssima mobilização
dos governadores recém- eleitos pela sua aprovação. O segundo foi a
conjuntura de emergência nacional criada pela crise cambial de fevereiro
de 1998. A mídia e a opinião pública passaram a caracterizar os opositores
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das medidas de emergências como traidores da Nação. O terceiro foi o
fato de que o governo recorreu a seus poderes de agenda, requerendo
urgência presidencial para a provação da lei, que exigia, para isso, maioria absoluta dos votos.15
Essa vitória do governo em sua quarta tentativa para taxar os inativos
teve curta duração. Uma batalha legal desenvolveu-se no Judiciário através de 1050 ações individuais e 16 ações civis públicas. O PT, a OAB e
a Confederação Nacional de Servidores Públicos também impetraram
ADINS contra a medida. Agindo como veto player, o Judiciário declarou a
medida inconstitucional. 16
A última batalha do governo envolveu a votação da idade mínima nas
aposentadorias através da introdução do chamado fator previdenciário. O
Executivo havia sido derrotado em Plenário na votação de um DVS sobre
a questão, e logrou reintroduzir a idade mínima através de um procedimento técnico. O fator representa, na realidade, um redutor a ser aplicado à taxa de reposição das aposentadorias, em função de três variáveis (a
expectativa de vida da coorte dos pensionistas, a média de remuneração
no passado, e a idade). Esse esquema penaliza as aposentadorias precoces e beneficia os que permanecem mais tempo na ativa. A idade mínima de aposentadoria converte-se, então, em uma escolha individual sob
condições bastante restritas. O Executivo logrou atingir os mesmos objetivos através da adoção de um mecanismo de baixa visibilidade - o fator e que foi introduzido nos países que não instituíram regimes de capitalização, tais como a Itália, França e Suécia (WEAVER 1998; MYLES 1998).
O governo não encontrou dificuldades para a aprovação do fator
15
É curioso que a nova medida tenha sido aprovada durante a convocação extraordinária do
Congresso anterior, e com a participação de muitos parlamentares não-reeleitos.
16
A decisão do STJ foi um forte golpe para os governadores recém-eleitos, que enfrentavam fortíssima
crise fiscal devido à explosão dos gastos com pessoal, sobretudo com inativos. Na realidade, a maioria
dos governadores determinou a cobranças das contribuições logo após a sua aprovação, e a medida
do Judiciário ocorreu oito meses depois da promulgação da lei. Motivados pela perspectiva de incorrer
em grandes perdas, em um quadro político pós-eleitoral, no qual os custos de decisões impopulares
são baixos, os governadores mobilizaram-se ativamente pelas contribuições. O Fórum Nacional dos
Secretários Estaduais de Administração circulou uma moção de apoio à medida. Com o suporte dos
governadores, o Executivo propôs, pela quinta vez, a medida, só que agora, através de uma proposta
de emenda constitucional, que foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça por 27 votos a
favor e 18 contra. O apoio dos governadores à medida, sendo muitos deles da oposição, é surpreendente tendo em vista a visibilidade que o tema havia adquirido no passado. Esse apoio, no entanto,
arrefeceu ao longo do tempo, a despeito de apelos individuais de alguns governantes. Deve-se
ressaltar que ministros do STF se manifestaram reiteradamente na imprensa contra essa nova
tentativa.
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previdenciário porque ele foi proposto através de um Projeto de Lei (PL
1527). Nesta situação, o Executivo pode recorrer a suas prerrogativas
institucionais. O PL foi proposto em regime de urgência, mas a relatoria
da proposta coube a Jandira Feghali (PC do B/RJ), o que provocou atrasos na tramitação. O relatório da deputada foi derrotado na Comissão de
Seguridade Social e Família por 29 votos contra e 12 a favor. Antecipando uma possível derrota, o Executivo procedeu à substituição de deputados do PMDB que se manifestaram contra a proposta17. O novo relatório
introduziu uma fase de transição, na qual os trabalhadores poderiam optar
pelo redutor ou pelas novas regras, estendeu sua duração para cinco anos
e garantiu um bônus para as mulheres trabalhadoras (para assegurar o
direito constitucional), sendo aprovado por 305 votos a favor e 157 contra,
no plenário da Câmara. Como argumentou corretamente a deputada Feghali
“o governo quer restabelecer a idade mínima que já foi derrotada no plenário da Câmara porque a base governista não reuniu 308 votos”.
À semelhança da proposta dos inativos, uma nova batalha judicial se
seguiu no STF, a partir de ADINs propostas pelo PC do B, PSB e PDT, as
quais alegavam que a Lei reduzia de fato a idade mínima. Ademais, havendo sido alterada no Senado, essa lei teria que retornar à Câmara dos Deputados. O STF, no entanto, votou pela constitucionalidade da regra. Uma das
principais mudanças ocorridas com a aprovação da lei refere-se a fórmula
de cálculo das aposentadorias, que passaram gradativamente de um período de 53 para 336 meses, ou seja, cerca de 80% do tempo equivalente a
35 anos de contribuição, e não na média dos últimos 36 meses (PINHEIRO
e VIEIRA 1999). As implicações fiscais da introdução do fator previdenciário
foram consideradas como bastante significativas: o déficit da seguridade
social seria reduzido em 2% do PIB, passando de 5% para 3%.
IV - A DINÂMICA POLÍTICA DA REFORMA: CUSTOS CONCENTRADOS, PATH DEPENDENCY E A
POLÍTICA DA INVISIBILIDADE.
Este ítem considera, do ponto de vista analítico, os fatores que explicam
o longo e errático processo de reforma, suas características e conteúdo
17
Após a derrubada do relatório, o governo divulgou uma nota anunciando que o novo relator seria
o deputado Darcísio Perondi, e que o novo relatório iria diretamente a plenário para apreciação. O
presidente da Comissão de Seguridade, da base governista, reagiu indignado e nomeou um relator
diferente. Este episódio revela o nível de controle do Executivo sobre a agenda dos trabalhos legislativos
e a reação do Legislativo a esse controle.
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paramétrico e, ainda, a adoção da estratégia de tornar invisíveis seus
custos políticos. Na realidade vários fatores se conjugaram, a saber: a
natureza da reforma (que impõe custos a grupos da população); a estratégia de desconstitucionalização perseguida; a natureza de seu desenho; e
a inércia tendencial do sistema em virtude de sua maturidade (path
dependency).
Com relação ao primeiro aspecto - a natureza da reforma -, uma das
características da reforma da previdência é que ela obriga a perdas concentradas enquanto seus benefícios são difusos. Essa reforma constituiuse em um conjunto articulado de decisões que impõem custos expressivos e concentrados a constituencies com grande capacidade de mobilização.
A dinâmica específica que reformas desse tipo assume foi denominada
por Pierson e Weaver como a “política da imposição de perdas”. À visibilidade das perdas corresponde estratégias de “dissimulação de responsabilidades” - nos termos desses autores, estratégias de blame avoidance”.
Ou seja, os atores sociais buscam dissimular através de estratégias variadas, delegando poder, descaracterizando decisões políticas que são tidas
como decisões técnicas, atribuindo a outros atores os resultados obtidos
em negociações, etc.
No Brasil, o processo de agenda setting da reforma previdenciária foi
fortemente marcado pela denúncia de privilégios existentes no sistema,
de forma a viabilizar politicamente a imposição de perdas a esses grupos. Porém, o caso brasileiro é distinto do analisado por Pierson e Weaver
porque os custos não são lineares devido à maior segmentação dos benefícios18. Aqui, os principais “perdedores” que vão arcar com os custos da
reforma são os assalariados, sobretudo, os servidores públicos, os aposentados e pensionistas. Ainda no grupo de perdedores - na forma em
que a reforma foi inicialmente formulada - estão determinadas categorias
ocupacionais que desfrutam de aposentadorias especiais, tais como parlamentares, magistrados (procuradores, juízes, etc) e professores. O grupo mais articulado e vocal de perdedores é o dos servidores públicos,
18
A política da previdência é fundamentalmente a política da transferência de riscos atuariais entre
grupos. Nesse sentido, é uma política eminentemente redistributiva. Ela redistribui riscos horizontalmente (entre grupos com perfis atuariais distintos) e verticalmente (entre gerações). Em sistemas
segmentados, como o brasileiro, ela não só redistribui riscos, mas também renda de forma desproporcional porque certas categorias têm elegibilidades distintas e privilegiadas. Ou seja, os riscos não são
socializados (o que seria neutro do ponto de vista redistributivo), mas sim os privilégios. Certos grupos
logram concentrar benefícios e transferir seus custos para toda a população.
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que constituem o extrato ocupacional com maior taxa de sindicalização
do país.
Como tal dinâmica política impactou o processo político da reforma?
Inicialmente, ela está associada às dificuldades de o governo sustentar
apoio nas votações nominais de emendas e de destaques para votação
em separado (DVS). Os parlamentares não queriam arcar com o ônus
político de medidas impopulares. Com efeito, a base parlamentar de
apoio se fragmentou, e partidos importantes dessa base se dividiram em
dois grupos.
Ademais, a estratégia perseguida pelo governo de desconstitucionalização de dispositivos pode ser explicada, em grande medida,
pela necessidade de conferir baixa visibilidade aos custos arcados pelos
setores mais afetados. No entanto, essa estratégia se mostrou ineficaz
devido às características institucionais dos trabalhos congressuais. As mudanças previstas, inicialmente, visavam desconstitucionalizar as regras
previdenciárias e, através de legislação ordinária, remover os privilégios
e distorções. Seria rebaixado o teto de benefícios do sistema e também
seriam equiparados virtualmente os dois regimes, o dos servidores públicos e o geral, através de lei complementar. Toda a negociação inicial em
torno da PEC 33 envolvia a retórica de que a Constituição Brasileira
incluía dispositivos que, além de injustos, não tinham caráter constitucional.
O ministro Reinhold Stephanes buscou, muitas vezes, dar conteúdo
substantivo à regulamentação: “o teto de previdência deverá ficar em
torno de 5 a 10 salários”, “a idade mínima deverá ficar em 60 anos para
mulher e 65 anos para homem”, etc. Essas promessas, no entanto, não
eram críveis. A interação entre o Executivo e o Legislativo, nesses
casos, caracteriza-se por uma estratégia dominante, por parte de muitos
atores, pelo status quo, uma vez que passam a preferí-lo à qualquer
proposta de alteração que remeta a definição substantiva, via legislação
ordinária. Este fato se deve às especificidades das regras congressuais
que conferem grande poder de agenda e iniciativa legislativa ao Executivo. Mesmo que os atores concordem com o conteúdo de uma proposta
específica de regulamentação anunciada pelo Executivo, eles resistem
à desconstitucionalização pela incerteza em relação aos atos do Executivo no futuro.
O problema de fundo relaciona-se à credibilidade de promessas
intertemporais do Executivo. Nas entrevistas realizadas, a afirmação de
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que o Executivo poderia alterar radicalmente o que estava anunciando
através de Medida Provisória foi reiterada muitas vezes.19 Vale assinalar,
no entanto, que analisada em uma perspectiva ampla, esta estratégia foi
exitosa na medida em que foi a desconstitucionalização que permitiu ao
governo aprovar, em um segundo momento, o “fator previdenciário”.
Embora estivesse disponível no cardápio internacional de medidas
recomendadas, no final da década, para os regimes com grande dívida
previdenciária implícita, a adoção do fator previdenciário representou
estratégia politicamente ótima. De fato, sua adoção permitiu dissimular a introdução da idade mínima de aposentadoria, convertendo-a em
uma questão técnica. Em outras palavras, a visibilidade política da
medida foi minimizada em virtude das “tecnicalidades” do próprio
mecanismo.20
Um terceiro fator refere-se ao desenho do pacote de reforma. Como
assinalado, uma das características centrais da reforma é sua
multidimensionalidade. A reforma implicava mudanças nos fundos de
pensão, no regime geral da previdência social, e no modelo dos servidores públicos. Ao fundir essas várias dimensões, o governo permitiu que
se forjasse uma ampla coalizão contra a reforma. Este fato foi percebido
tardiamente pelo Executivo. Nas palavras de um assessor da Presidência
da República:
“mexer com os dois regimes na mesma PEC ajuda os adversários da
reforma no setor público a usarem os trabalhadores do setor privado
como tropa de choque”21.
Concretamente, isso se manifestou no malogro de uma “concertação”
neocorporativista em torno da reforma. A principal central sindical governista, a Força Sindical, retirou seu apoio desde o anúncio das medidas em
janeiro de 1995. A CUT também teve que recuar em sua disposição de
negociar após a reação indignada dos sindicatos do setor público.
Pode-se afirmar, portanto, que a conjunção da multidimensionalidade
e da questão da credibilidade de decisões intertemporais tornou difícil a
negociação da reforma. A credibilidade das promessas do Executivo rela19
Cf Melo (2002, cap. 6). Cf entrevistas citadas com os seguintes parlamentares: José Genoíno,
Eduardo Jorge, Luis Gushiken, Humberto Costa.
20
A ‘ginástica’ legal para compatibilizar o fator com ausência de idade mínima pode ser observada no
parecer legal que o especialista Wladimir Martinez , preparou a pedido do MPAS, cf (Martinez 2000).
21
Eduardo Graeff, memorando interno ao Presidente F.H.Cardoso, 19/12/95.
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cionava-se também às incertezas sobre os efeitos das medidas e sobre a
situação das contas da seguridade social. Dessa forma, o debate público
tornou-se um debate sobre os números.
O último fator que marcou a reforma brasileira e limitou o conjunto de
opções abertas refere-se ao legado de política (policy legacy) herdado
por seus formuladores. Como assinalado, o sistema previdenciário brasileiro apresenta alta dívida implícita, o que circunscreve o conjunto de
alternativas viáveis. Em outras palavras, um mecanismo de path
dependency parece estar operando. A dívida previdenciária implícita no
país foi estimada em 187% do PIB - valor só encontrado em regimes
maduros da Europa (cf. Tabela 1). Uma analogia com a discussão de
Pierson (1994) sobre a reforma britânica sob Thatcher é instrutiva neste
ponto. O autor argumenta que foi a ‘imaturidade’ do sistema público de
fundos de pensão (SERPS) que facilitou a criação de um sistema privado
desses fundos. Como o SERPS era recente, e havia muito poucos pensionistas, foi possível “comprar barato” (termos do autor) o apoio dos participantes do sistema e incentivar sua migração para o novo esquema.
Myles e Pierson (1997) e Myles (1998) estendem essa análise, persuasivamente, ao conjunto de reformas praticadas nos paises da OECD.
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Brooks e James (1999) estimam a probabilidade de reforma da previdência
em função do tamanho da dívida previdenciária implícita.22 Esses autores identificam uma relação positiva e alta entre as chances de reforma e essa dívida.
No caso brasileiro, a operação desses fatores na formulação das propostas
pode ser aferida no testemunho do autor da proposta do fator previdenciário:
“Inicialmente, quando estudávamos a reforma previdenciária, várias
alternativas foram analisadas. Estudamos os modelos de privatização na
América Latina, estudamos os modelos das contas nacionais da Suécia e
outros modelos mistos, como o da Argentina e do Uruguai, e analisamos
estudos feitos pela Cepal. Esses estudos nos mostraram que, em primeiro
lugar, a transição para um regime de capitalização, a privatização do
sistema não era uma alternativa viável. Temos vários estudos que mostram que o custo de transição de um sistema para outro, caso fosse
adotado um sistema puramente de capitalização, seria da ordem de 200%
do PIB. Há vários estudos do Banco Mundial que calcularam 205% em
1998; a Cepal calculou 201,6% em 1999; a FIP/USP calculou 255% do
PIB; IBGE/IPEA, 218%; FGV, 250%, Banco Mundial, em estimativa anterior, 188%, e a própria Cepal calculou um custo que poderia ser diferido
no tempo de 6% do PIB em 40 anos.” (PINHEIRO 2001, p. 31).
A situação fiscal do país contribuiu para descartar efetivamente qualquer mudança que implicasse aumento do déficit público:
“Então, essa alternativa se mostrou inviável do ponto de vista financeiro. ... claro que nessa discussão houve um debate acerca das melhores
22
Como assinalam esses autores: “a large implicit pension debt (IPD—the present value of the pension
obligations of the government to contributors under the old PAYG system) helps put pension reform on
the political agenda but then constrains the degree of funding and privatization that can be achievedevidence of path dependency” (BROOKS and JAMES 1999, p. 1).
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formas de organização, seu impacto sobre o mercado de trabalho, seu
impacto sobre a poupança mas o que realmente pesou na decisão sobre
que tipo de reforma adotar foi justamente o custo de transição. Isso
ocorreu em momento de vulnerabilidade das nossas contas externas e
internas, pois tínhamos acabado de passar pelo furacão da crise da Rússia
e não poderíamos adotar qualquer tipo de medida que abrisse
endividamento interno ou reduzisse superávit primário. Então, esse caminho de reforma foi, de imediato, descartado.” (ibid)
“Passamos, assim, a estudar o sistema sueco, adotado também em
alguns países do Leste, como a Polônia e a Lituânia, além da Itália. ... um
sistema em que cada pessoa tem sua conta individual, onde são creditadas as suas contribuições e, ao final da vida laboral, os segurados têm
direito a requerer uma anuidade calculada com base nesse esforço
contributivo.” (ibid. p. 32)
Vale registrar que a única região do mundo a implementar reformas da
previdência social baseadas em regimes de capitalização (mistos ou puros)
é a América Latina. A viabilidade política das reformas desse tipo na região
pode ser explicada, por alguns autores, pelo papel de variáveis externas:
as agências internacionais e a dinâmica da globalização que minam a capacidade de resistência das constituencies beneficiárias do antigo regime.
Deve-se lembrar também a falta de legitimidade dos sistemas nacionais de
proteção social, especialmente porque eles não pareciam diminuir a pobreza e as desigualdades, sendo de alcance limitado para o exercício pleno
da cidadania. Em muitos dos países, a erosão do valor dos benefícios
colocou em xeque a credibilidade dos sistemas, o que, associado aos problemas gerenciais e administrativos, acabou por tornar a opinião pública
conivente com as propostas de reforma de cunho privatizante.
O caso brasileiro parece ser bastante distinto dos outros países latinoamericanos porque a legitimidade da previdência nunca foi contestada
radicalmente. Por outro lado, a erosão do valor real das pensões jamais
alcançou os níveis extremamente baixos de alguns países da região. Este
é um dos fatores que ajudam explicar o processo da reforma no Brasil,
mas a eles deve-se agregar os outros já referidos: a agenda internacional
e os modelo existentes em outros países.
V - O SALDO DA REFORMA
Após quatro anos de promulgação da emenda 20, de dezembro de 1998,
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e dos dispositivos legais que a regulamentaram (MPs e Leis), é possível
avaliar a extensão das mudanças ocorridas. Embora elas tenham se processado em vários planos, iremos considerar, em particular, aquelas relativas aos benefícios. O confronto entre o que foi proposto e o que foi
efetivamente implementado permite concluir que o Executivo logrou
aprovar, em larga medida, sua agenda. Se os objetivos eram uma reforma
paramétrica, na qual fossem eliminadas as distorções do Plano de Benefícios e do financiamento, a reforma foi exitosa. Permanecem ainda em
tramitação pontos importantes como, por exemplo, a instituição do teto
de benefícios no regime dos servidores igual aos pagos pelo INSS.
Os pontos principais da PEC 33 referiam-se, como já analisado, aos
pontos discutidos a seguir. Após Emenda 20/1998 a decisiva mudança na
Previdência Social com relação ao regime do setor privado, foi a
desconstitucionalização da regra de cálculo dos benefícios. No que se
refere ao setor público, foram as seguintes:
• manutenção do valor da aposentadoria igual à última remuneração,
mas sem incorporação de vantagens;
• unificação das regras de concessão de benefícios para os diferentes
níveis de governo (União, Estados, Distrito Federal e Municípios);
• manutenção do reajuste das aposentadorias igual aos mesmos índices concedidos aos servidores ativos, incluindo todas as vantagens;
• manutenção do valor da pensão igual ao valor da aposentadoria;
• instituição de previdência complementar de caráter privado, capitalizada, para novos integrantes no serviço público, oportunidade em que a
União, Estado, Distrito Federal ou Município, poderá adotar como valor
das aposentadorias de seus regimes o valor-teto do regime geral dos
trabalhadores assalariados;
• instituição de fundos de ativos, com aporte de bens de propriedade
do ente público e administração distinta das demais atividades, para assegurar o pagamento dos benefícios já concedidos;
• manutenção de regime próprio de previdência para a União, Estados,
Distrito Federal e Municípios, desde que observado equilíbrio financeiro e atuarial.
Para ambos os regimes a reforma implicou as seguintes mudanças:
• substituiu o conceito de tempo de serviço por tempo de contribuição, com limite de idade, eliminando-se os tempos fictícios, para os quais
não tenha havido contribuições;
• extinguiu a aposentadoria proporcional por tempo de serviço/contribuição para novos segurados;
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• extinguiu a aposentadoria especial do professor de nível superior;
• estabelecimento, para os atuais segurados, de regras de transição
para a concessão de aposentadoria, com exigência de adicional de tempo
de contribuição (pedágio) e idade mínima, mas com limites bastante flexíveis; no caso do serviço público, passou a exigir ainda tempo mínimo
de serviço no cargo onde se dará a aposentadoria.
Contrastando-se essas mudanças com a proposta de emenda constitucional enviada pelo governo, pode-se afirmar que em larga medida, a
reforma foi bem sucedida (cf. Quadros 1 e 2). Em primeiro lugar, substitui-se a aposentadoria por tempo de serviço pela aposentadoria por tempo de contribuição. A reforma também introduziu a noção de regime
previdenciário como conceito constitucional de seguro social de caráter
contributivo. E, nesse ponto, a proposta foi plenamente implementada.
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A modificação constitucional que institui a obrigatoriedade da contribuição dos servidores já havia
ocorrido em 1993, com a Emenda Constitucional nº 3.
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Em segundo lugar, a reforma foi bem sucedida ao introduzir a idade
mínima de aposentadoria. Para as aposentadorias do setor público, foi
estabelecido um limite de idade de 60 anos para homens e 55 anos para
mulheres. Para as aposentadorias do INSS, não foi aprovado limite de
idade na regra permanente. A regra transitória válida para ambos os
regimes, no entanto, limita a idade de aposentadoria (53 e 48 anos), que
inclui ainda um mecanismo de pedágio, desenhado para retardar as aposentadorias precoces.24 A desconstitucionalização da regra de cálculo do
valor do benefício abriu também a possibilidade de restringir-se o valor
real das pensões precoces. O texto aprovado remeteu a matéria para a
Lei Ordinária, e estabeleceu a exigência de respeito a critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial. A regulamentação do dispositivo foi feita através da Lei n° 9876/99, de 29/11/00, que modificou a
regra, ampliando gradualmente sua base de cálculo: este deve corresponder
aos 80% maiores salários-de-contribuição dos segurados. Foi também instituído o fator previdenciário, que incide sobre a aposentadoria por idade
24
Pela regra de transição o servidor público deve ter 53 ou 48 anos de idade, para homem e mulher,
respectivamente; e ainda, 5 anos de efetivo exercício no cargo, contar tempo de contribuição igual,
no mínimo, à soma de 35 anos, se homem, e 30 anos, se mulher e período adicional de contribuição
equivalente a 20% do tempo que faltava para atingir o tempo de contribuição de 35 e 30 anos
(homens e mulheres, respectivamente).
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(nesse caso é facultativo) e tempo de contribuição (compulsório) e leva
em conta o tempo de contribuição, a alíquota e a expectativa de sobrevida.
O fator previdenciário representa uma nova estrutura de incentivos que
induz ao deferimento dos pedidos de aposentadorias no tempo.
Em terceiro lugar, cabe destaque para a extinção da integralidade das
novas aposentadorias do setor público. A possibilidade de limitação das
aposentadorias do setor público ao teto de benefícios do RGPS
(R$1.200,00), desde que instituído um sistema de capitalização privado
ou público para a complementação das aposentadorias representa uma
derrota do executivo. Na verdade, esta é uma parte inconclusa da reforma. O projeto de lei complementar 9, de 1999, o qual dispõe sobre as
normas gerais para a instituição de regime de previdência complementar
pela União, pelos Estados, e pelos Municípios encontra-se em tramitação
no Congresso Nacional.
Para os novos trabalhadores existe a possibilidade concreta de
equalização do teto de benefícios. Uma questão adicional é que com a
aprovação da reforma administrativa (Emenda Constitucional 19, de dezembro de 1998, e a Lei do Emprego Público, Lei 9962), o regime
jurídico único foi extinto, permitindo-se a generalização de contratos
CLT no serviço público, cujas aposentadorias estão sujeitas ao teto de
benefícios do INSS. Setores técnicos do MPAS estimam que 75% dos
novos servidores sejam contratados pela CLT, o que terá impactos efetivos sobre o estoque de aposentadorias integrais, ao longo da próxima
década.
No que se refere à extensão para inativos de vantagens concedidas a
ativos, a reforma foi igualmente mal sucedida. Persiste, neste ponto, a
maior distorção do sistema previdenciário brasileiro O mesmo também
ocorreu com relação à taxação de inativos, que foi derrubada pelo STF.
Em quinto lugar, menciona-se a eliminação das distorções nas aposentadorias especiais. Isso foi feito, sobretudo, no plano infraconstitucional.
A Lei 9032, de 28/04/95 estabeleceu a exigência de exposição a condições prejudiciais à saúde ou à integridade física para concessão de aposentadoria especial, revertendo a possibilidade de conversão desse tempo de serviço fictício em comum. Na mesma linha, a Lei 9528, de 10/12/
97 estabeleceu a exigência de laudo técnico para comprovação dos casos
anteriores e revogou a aposentadoria especial de jogadores de futebol,
juízes classistas, jornalistas e telefonistas.
No plano do financiamento, foi aprovada a Lei 9732, de 11/12/98
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estabelecendo que as empresas que expõem seus trabalhadores a condições especiais (penosas e insalubres), ensejando aposentadoria especial,
contribuíssem com um adicional de 6, 9, ou 12%, conforme o caso.
Em sexto lugar, a proposta buscava disciplinar os fundos de pensão
fechados, fixando a paridade de contribuições entre trabalhadores e
entidades patrocinadoras. Ressalte-se que a questão dos fundos de pensão do setor público era matéria de grande centralidade, mas estranha à
discussão da estrutura do sistema. A reforma logrou estabelecer um
marco regulatório novo que assegurou consistência nos planos atuariais
e corrigiu distorções. A implementação dessas mudanças, porém, não
ocorreu sem traumas. Com efeito, em fins de maio de 1998 houve a
aprovação, no Congresso, das Leis Complementares no 108 e no 109,
que regulamentam a reforma constitucional da Previdência e cujos
projetos encontravam-se em tramitação há aproximadamente dois anos.
Com a LC 109, o setor passou a ter nova lei geral, em substituição à
Lei no 6.435, datada de 1977. A LC 108, por sua vez, regula as relações entre as entidades públicas e os fundos de pensão por elas
patrocinadas.
Por outro lado, em janeiro de 2001, por meio do Decreto no 3.271,
elevou-se a idade mínima para aposentadoria nos fundos de pensão fechados, estipulada em 55 anos. O decreto sofreu inúmeras contestações
judiciais, e é elemento importante para se visualizar como o governo
logrou introduzir o princípio da contribuição definida. Por este princípio,
a aposentadoria resultante depende, sobretudo, da rentabilidade da carteira de investimentos, da regularidade e do valor das contribuições
efetuadas, e não de planos estruturados pelo princípio do benefício definido (em que a aposentadoria guarda relação com o rendimento pregresso
do segurado).
A alta taxa de conflito neste setor pode ser inferida pela forte reação
tanto dos fundos, quanto dos segurados, às diversas medidas implementadas
desde dezembro de 2000. Isso resultou em grande pressão política sobre
a Secretaria de Previdência Complementar e na demissão da sua titular
em junho de 2001. Pela Emenda Constitucional 20, de dezembro de
1998, os fundos de pensão supervisionados pela Secretaria de Previdência Complementar (SPC) no Ministério da Previdência e Assistência Social
(MPAS) deveriam implementar no período de 24 meses diversas medidas. Entre as quais destaca-se a paridade de contribuição entre empregador e empregado, no caso dos fundos de pensão patrocinados por em135
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presas e entidades públicas de empregados regidos pela CLT. O conflito
aberto levou à intervenção no maior fundo de pensão do país - o PREVI,
dos funcionários do Banco do Brasil.25
Mesmo assim, pode-se afirmar que a taxa de conflito político nessa
área foi muito menor da que poderia ter sido antecipada. E isso em
virtude de vários desenvolvimentos. Como resultado do programa de
privatização, um grande conjunto de fundos de pensão do setor público,
como o Valia e o Sistel, tornaram-se entidades de caráter privado e suas
distorções passaram a ser problemas de gestão corporativa de seus
controladores.
Por último, indica-se que a reforma visava equacionar a questão
previdenciária nos níveis subnacionais de governo (MORAES 2001;
RABELO 2001). Nesse sentido a reforma também foi bem sucedida. A
União recuperou o monopólio legal de emitir normas gerais sobre a
seguridade social, e foi ainda aprovada a Lei Geral da Previdência do
Setor Público nº 9.717/98, que estabelece regras gerais para organização
e funcionamento dos regimes próprios de previdência dos servidores
públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. É
vedada, por essa Lei, a instituição de regime próprio para os municípios
cuja receita diretamente arrecadada seja menor que a receita proveniente
de transferências constitucionais da União. Neste caso, o município deve
contribuir para o INSS na condição de empregador. Com a Lei de Responsabilidade Fiscal, de maio de 2000, as restrições tornam-se ainda mais
severas (MORAES, 2001).
VI - O DESAFIO À FRENTE: O GOVERNO LULA E A REFORMA À ITALIANA?
A avaliação freqüente das mudanças na previdência efetuadas no Governo Fernando Henrique Cardoso é que se trata de mero ajuste e não de
uma reforma propriamente dita. Na realidade, tais transformações são
substanciais, embora não suficientes para enfrentar o desequilíbrio atuarial
do sistema. A magnitude desse desequilíbrio está expressa na dívida
previdenciária implícita do sistema, por conta das promessas de benefícios previdenciários dos aposentados e dos trabalhadores do regime anteri25
Outra mudança importante diz respeito ao tratamento tributário dos fundos de pensão que perdem
o status fiscal de entidades filantrópicas, e a alteração das regras que regulam a composição de
portfolios de investimentos dos fundos.
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or. Uma parte desse estoque tem origem nos encargos previdenciários da
União, nos benefícios não contributivos, e a outra parte, mais significativa, nas promessas geradas sem base atuarial.
O alto volume de renúncias fiscais de contribuições, às pequenas e
médias empresas, pelo Simples, e às entidades filantrópicas, também
contribui decisivamente. Segundo as estimativas, a desconexão entre contribuições e benefícios parece estar, parcialmente equacionada após as
reformas. É a magnitude do estoque dos direitos adquiridos que, na realidade, representa o problema. Existem duas alternativas para reduzir esse
estoque. Uma é sua desvalorização - que foi levada a cabo, na década 80
no Brasil, pelos gestores macroeconômicos, principalmente através da
inflação. Nessa mesma linha de redução do estoque da dívida está a
estratégia de cobrar contribuições dos atuais aposentados. Essa alternativa
fere direitos adquiridos e mostrou-se politicamente inviável no país.
Outra alternativa é a de fundar essa dívida, recorrendo-se a ativos
públicos ou receitas de privatização etc. Com isso isola-se a dívida
previdenciária antiga e dirige-se o fluxo de contribuições para um sistema de capitalização. No entanto, há forte dissenso sobre as vantagens de
se capitalizar uma dívida. Além do mais, os custos de transição, como
assinalado, são proibitivos.
A reforma da previdência implementada no país representa, em larga
medida, os limites do possível. Não só no sentido já utilizado neste trabalho, relativo aos limites políticos de reformas que atingem direitos, expectativas de direitos e impõem custos a grupos, mas no sentido de
voltar-se fundamentalmente para reduzir o fluxo de novos entrantes no
sistema, com promessas de benefícios inconsistentes atuarialmente. Estimativas atuais com base no efeito das mudanças prevêem uma estabilização do déficit a partir de 2030 (BRANDT 2001).
Um paralelo entre nossa reforma previdenciária e a italiana dos anos
90 permite iluminar possibilidades importantes de mudança. Esse paralelo é pertinente por várias razões. Uma delas é que o regime italiano préreforma apresentava grande similitude com o brasileiro. Ele estava fragmentado em diversos regimes, com benefícios diferenciados. O plano de
benefício apresentava distorções e privilégios muito semelhantes aos
existentes no Brasil. No regime antigo havia, como no Brasil, aposentadoria por tempo de serviço e forte viés em favor dos servidores públicos.
Dentre as distorções atuariais destacavam-se o estímulo às aposentadorias
precoces e inconsistência entre benefícios e contribuições. Era possível
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no sistema a acumulação de proventos e pensões, e outras distorções.
Outra razão que justifica a comparação é que o processo de reforma
naquele país guarda forte semelhança com o processo ocorrido no Brasil.
Ele foi marcado pelo gradualismo, incrementalismo e assumiu o formato,
no primeiro momento, também de reforma paramétrica. O passo fundamental, no entanto, só ocorreu na chamada reforma Dini, quando teve
lugar um esforço neocorporativista de “concertação” nacional que contou
com ampla participação das centrais sindicais. Ainda, a mudança mais
importante - a utilização da capitalização escritural ou nocional - também
foi adotada, em seus princípios gerais, no Brasil.
A reforma ocorreu em dois momentos diferenciados. O primeiro consistiu na Reforma Amato de 1992. O leitmotif dessa reforma foi a crise
cambial italiana de 1991-92, a qual teve como um dos seus elementos
propulsores a crise de confiança gerada pelo déficit fiscal da previdência
(BRUGIAVINI 2002). Esta reforma introduziu mudanças paramétricas muito
semelhantes à brasileira, tais como:
1. A idade mínima de aposentadoria foi elevada (ao longo de dez
anos) de 55 para 60, para mulheres, e de 60 para 65, para homens, no
caso das pensões do setor privado.
2. O tempo de referência para o cálculo de pensões foi estendido (ao
longo de dez anos) de 5 para dez anos. Para os trabalhadores mais jovens
(com menos de 15 anos de contribuições) esse período foi ampliado para
toda a vida laboral. Os rendimentos no passado seriam corrigidos por
uma taxa igual à elevação do custo de vida mais um ponto percentual.
3. O número de anos de contribuição para concessão de pensão por
idade passou de 15 para 20 anos (durante um período de dez anos).
4. O índice de referência para a indexação dos benefícios
previdenciários deixou de ser os salários e passou a ser um índice de
preços. O governo poderia conceder ajustes discricionários adicionais em
função da existência de recursos do orçamento.
5. O número mínimo de anos de contribuição exigido para a concessão de aposentadorias de servidor público foi aumentado para 35, igualando-se, portanto, às aposentadorias do setor privado (FRANCO 2000).
A reforma Dini (1995), por sua vez, consistiu nas seguintes mudanças:
1. Os valores das aposentadorias são capitalizados e passaram a ter
como base as contribuições pagas ao longo de toda a vida laboral e à
idade de aposentadoria. Cada trabalhador detém uma conta escritural.
Durante a aposentadoria a pensão é determinada pela multiplicação do
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saldo acumulado pelo coeficiente de conversão que leva em conta as
mudanças da expectativa de vida e uma comparação com crescimento do
PIB e rendimentos.
2. Os trabalhadores podem escolher se aposentar entre 57 e 65 anos.
As pensões são ajustadas por um fator ou coeficiente que leva em conta
as expectativas de vida. As aposentadorias por tempo de serviço são
abolidas.
3. O número mínimo de anos de contribuição requerido para uma
pensão por idade é reduzido para 5. A pensão mínima é abolida, e as
pensões assistenciais reformadas (FRANCO, 2000)
A reforma Amato (1992) pode ser considerada um ajuste paramétrico
para as transformações que foram implementadas com a reforma Dini
(1995) (cf FRANCO 2000; MARE e PENNISI 2001). Uma das questões
que permanece na agenda, no entanto, é o fortalecimento do pilar complementar, sendo que uma das alternativas na agenda atual é a possibilidade de utilização da cota capitalizada por tempo de serviço (equivalente
ao FGTS brasileiro), contanto com isenções fiscais, como contribuição ao
fundo de pensão privada (ibid.).
Neste sentido, a reforma implementada pelo governo Fernando
Henrique Cardoso cumpriu o papel da primeira fase e lançou as bases
para a segunda. Esta se completaria com a aprovação da PL 9, de 1999, e
a adoção plena de um modelo escritural e unificação dos regimes. Embora o programa de governo do candidato do PT seja generalista e não
contenha nenhuma referência substantiva ao modelo de reforma a ser
perseguido, há evidências de que os passos serão dados nessa direção.
No entanto, há também referências ambíguas no texto.
Conforme o programa de governo,
“a reformulação deve ter como objetivo a criação de um sistema
previdenciário básico universal, público, compulsório, para todos os trabalhadores brasileiros, do setor público e privado. O sistema deve ter caráter
contributivo, com benefícios claramente estipulados e o valor do piso e do
teto de benefícios de aposentadoria claramente definido” (p. 18) 26.
Em outras palavras trata-se de um regime contributivo, mas de benefício definido. Não está claro se se trata apenas de um pilar básico. Há
referências também a um terceiro pilar:
“Quanto ao terceiro pilar do atual sistema previdenciário brasileiro, a
26
Cf Programa de Governo de Luis Inácio Lula da Silva,. São Paulo, Partido dos Trabalhadores.
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previdência complementar”... que poderia “ ser exercida através de fundos de pensão, patrocinados por empresas ou instituídos por sindicatos
(conforme a Lei Complementar 109), voltada para aqueles trabalhadores
que querem renda adicional, além da garantida pelos regimes básicos”
(p. 21)
No entanto o texto é ambíguo em relação “ao segundo pilar”, pois
afirma que ele será facultativo. A afirmação é que “em complemento ao
sistema público universalizado, aos trabalhadores tanto do setor público
como do privado, que almejam valores de aposentadoria superiores ao
oferecido pelo teto da previdência pública, haverá o sistema de planos
complementares de aposentadorias, com ou sem fins lucrativos, de caráter facultativo e sustentado por empregados e empregadores”. (p. 18).
A interpretação mais provável é que o modelo divisado é de apenas
dois pilares: uma previdência pública, com benefício definido, e um
regime complementar. No entanto, há referência a um teto único da
previdência pública, o que abre a possibilidade de um sistema com contribuição definida (uma vez que o texto é omisso).
Como assinalado, o processo de discussão da proposta de reforma no
Brasil envolveu não só os partidos, mas também as centrais sindicais em
um experimento neocorporativista fugaz e malogrado. A experiência brasileira contrasta marcadamente com a italiana de reforma radical do sistema previdenciário, patrocinada pelo governo Dini, em 1995, em um
quadro de intensa crise política e econômica. O impasse nas negociações
só foi rompido após as negociações tripartites com as três confederações
sindicais. O governo fez várias concessões aos sindicatos em troca de
apoio para uma reforma que estava fadada ao malogro pelo nível de
resistência que encontrou no Parlamento, onde 3.500 emendas foram
apresentadas ao projeto. O governo negociou três sucessivos votos de
confiança para a aprovação de um pacote completo de reforma, que
incluía muitos privilégios semelhantes ao caso brasileiro (WEAVER 1998;
BACCARO 2000; BACCARO E LOCKE 1997).
A chegada do PT à Presidência da República parece abrir a possibilidade de um modelo de reforma à italiana, não só em termos da adoção
de um modelo escritural pleno, mas também no formato de negociação
neocorporativista. Só que o desenlace da reforma irá depender fundamentalmente da interação estratégica entre os atores sociais e políticos.
Como assinala Baccaro (2000), a chave da questão está nas condições
que poderiam levar as entidades sindicais a cooperar com o governo.
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DESCENTRALIZAÇÃO E COORDENAÇÃO
FEDERATIVA NO BRASIL:
LIÇÕES DOS ANOS FHC
1
Fernando Luiz Abrucio
O Estado sofreu intensa transformação nas últimas duas décadas em várias partes do mundo. Entre os aspectos mais importantes desse processo,
está a descentralização, pela enorme abrangência de países atingidos,
pelos impactos que causou na organização estatal e pela mudança que
trouxe às relações entre os governos e a sociedade, aumentando a preocupação com a accountability democrática. Tal importância é destacada
pelo estudo de Elaine Kamarck. Analisando 123 nações, a autora constatou que a descentralização foi a segunda forma inovadora mais utilizada
nos processos de reforma do Estado, aparecendo em 40% dos casos, e
tendo sido ultrapassada apenas pela privatização (KAMARCK, 2000).
O tema da descentralização também ganha destaque especial porque
é, entre os tópicos de reforma do Estado, o que mais questões abarca.
Autonomia local, formas de democracia participativa, racionalização da
provisão de serviços, maior liberdade e responsabilidade dos gestores
públicos, desigualdades regionais, entre os principais, são aspectos que
fazem da descentralização um verdadeiro caleidoscópio. Por conta deste
caráter, ela deve intrinsecamente lidar, a um só tempo, com as variáveis
do desempenho e da democratização da gestão pública.
Nos países onde a organização político territorial foi bastante alterada,
a descentralização tornou-se ainda mais relevante. O Brasil está entre
estes casos. O processo descentralizador, aqui, foi não só intenso e
avassalador, como também influenciou a redemocratização do país, o
redesenho da rede de proteção social e a reforma do Estado. A análise
1
Doutor em Ciência Política pela USP e professor da PUC (SP) e da FGV (SP).
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dos os caminhos da descentralização, portanto, é um ângulo privilegiado
para se compreender a história brasileira recente.
O objetivo do artigo é estudar a descentralização adotando uma perspectiva diferenciada da maioria da literatura, que explora tal tema pelo
ângulo dos governos subnacionais e seus atores. Sem negligenciar este
prisma, o foco principal concentra-se na análise do papel do Governo
Federal na coordenação federativa ao longo dos dois mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso. Em termos metodológicos, a compreensão da singularidade dos anos FHC passa, primeiro, por uma discussão teórica formulada a partir da experiência internacional e, em segundo lugar e mais importante, pelo estudo da trajetória do federalismo e
das relações intergovernamentais no Brasil, buscando compreender quais
são os legados deste processo histórico. Este referencial permite entender a especificidade do governo Fernando Henrique e descobrir quais
são as lições deste período.
Para tanto, o trabalho organiza-se da seguinte forma. Na primeira parte, o fenômeno da descentralização é definido, buscando compreender
sua evolução recente e as suas implicações no processo de reforma do
Estado. Na segunda, o objetivo é mostrar que a descentralização ganha
um sentido bastante peculiar num contexto federativo, uma vez que a
coordenação intergovernamental torna-se peça-chave. A partir desta argumentação, o processo descentralizador brasileiro é compreendido como
um eixo derivado da trajetória do federalismo. Por esta razão, neste ponto
do trabalho, traça-se uma breve história da Federação, desde suas origens
até o ocaso do regime militar.
O entendimento do funcionamento do federalismo brasileiro montado
na redemocratização é feito na quarta parte. As características federativas
deste período e a continuidade de seus efeitos são centrais neste artigo.
Na quinta seção, o foco se concentra nas mudanças realizadas na estrutura básica da Federação a partir do Plano Real. Trata-se de uma “conjuntura crítica”, no sentido formulado por Paul Pierson (2000), na qual a posição relativa dos atores e os seus recursos foram alterados, levando ao
redesenho de parte do arcabouço institucional. Ainda no bojo desta discussão, é traçado um mapa de várias ações do Governo Federal no terreno da coordenação federativa.
Destaque é dado, a seguir, ao processo de coordenação federativa nas
áreas financeira e administrativa, que ganharam importância nos anos
FHC, no bojo de seu modelo de reforma do Estado. Depois são analisadas
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as políticas sociais de Saúde, Educação e Assistência Social, mostrando os
avanços e problemas encontrados sob o prisma das relações
intergovernamentais. E, mais adiante, o artigo trata dos dois principais fracassos da União no período: as políticas urbanas e de desenvolvimento.
Além de ressaltar as principais características dos caminhos da
descentralização na Era FHC, a conclusão arrola alguns desafios de coordenação federativa que certamente serão enfrentados pelo próximo presidente .
I - O FENÔMENO DA DESCENTRALIZAÇÃO
Descentralização é uma palavra muito utilizada nos dias que correm,
quase sempre com um sentido positivo. Só que, no mais das vezes, a
quantidade de elogios que recebe é proporcional à sua imprecisão
conceitual. Para tornar mais claro o debate, definimos descentralização
como um processo nitidamente político, circunscrito a um Estado nacional, que resulta da conquista ou transferência efetiva de poder decisório
a governos subnacionais, os quais adquirem autonomia para escolher
seus governantes e legisladores (1), para comandar diretamente sua administração (2), para elaborar uma legislação referente às competências
que lhes cabem (3) e, por fim, para cuidar de sua estrutura tributária e
financeira (4).
Obviamente que há graus diferenciados de autonomia nas diversas
experiências nacionais, sendo que, geralmente, os governos subnacionais
têm maior poderio nas Federações, por razões que veremos mais adiante. Também existe uma diversidade no que tange a cada um dos quatro
aspectos citados acima, com experiências mais voltadas às liberdades
política e jurídica e outras direcionadas mais firmemente a questões tributárias ou administrativas. De qualquer modo, tem-se aqui uma definição
mínima de descentralização, no mesmo sentido da delimitação minimalista
de democracia, e a partir da qual é possível compreender melhor o
fenômeno.
A definição mínima de descentralização é tanto mais necessária por
conta desse termo designar correntemente outros três fenômenos. Um
deles envolve o aspecto administrativo. Trata-se da delegação de funções de órgãos centrais para agências mais autônomas, o que na verdade
é um processo de desconcentração administrativa, ou ainda então a
horizontalização das estruturas organizacionais públicas, com o repasse
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de maior responsabilidade da cúpula aos gerentes e funcionários da ponta. Além dessa caracterização, a descentralização é igualmente utilizada
para denominar a transferência de atribuições do Estado à iniciativa privada - privatização ou concessão de serviços públicos - e do governo
para a comunidade ou ONGs. Estes três processos não podem ser simplesmente equiparados à descentralização no seu sentido estrito, embora
possam conviver com ela ou mesmo serem impulsionados por mudanças
políticas descentralizadoras.
Tentar distinguir claramente tais termos não é uma preocupação
nomológica, mas sim uma precaução contra maneiras indevidas de se
manejar os conceitos. Exemplo nesta linha foi o discurso de Margareth
Thatcher e de boa parte do receituário neoliberal da década de 80, que
defendia uma descentralização cujo objetivo era mais limitado. Significava o repasse de funções para governos locais sem garantir a autonomia e
o financiamento, a desconcentração de atribuições da administração central para agências e, dentro destas, da cúpula para os gerentes, e ainda a
privatização de empresas públicas. Essas ações buscavam diminuir custos
e melhorar o desempenho da gestão pública, só que propositadamente
negligenciavam o cerne de qualquer processo descentralizador: a democratização do Estado2.
Com base nesta discussão conceitual, pode-se dizer que o processo
descentralizador, no seu sentido essencialmente político, é um fenômeno
bastante recente, que ganhou maior impulso, num maior número de países, somente nas últimas décadas do século XX. Decerto que há um
debate intelectual sobre a questão desde o século XIX, em pensadores
tão distintos como Proudhon e Tocqueville, além de pelo menos uma
experiência precursora em larga escala, que foi o modelo norte-americano. A precocidade dos Estados Unidos é perceptível na tradição de autonomia local e no conjunto complexo de instituições e mecanismos de
relacionamentos entre os níveis de governo, algo ainda poucas vezes
encontrado.
A formação dos modernos Estados nacionais, na verdade, foi um processo de centralização do poder e de tentativa de construir uma soberania una e indivisível, nos termos de Jean Bodin. O objetivo maior era
estabelecer a ordem mínima hobbesiana, concentrando poder numa autoridade que desse conta dos perigos da fragmentação local e da invasão
2
Sobre a descentralização na era Thatcher, ver B. Guy Peters (1992).
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externa. O Governo Central tornou-se o eixo estruturador de toda a política, com um poderio praticamente inquestionável.
O fortalecimento do poder nacional não foi abrupto, mas sim, uma
construção que durou séculos. Neste longo processo centralizador, a
descentralização do poder era normalmente vista de modo negativo, com
a grande exceção da experiência norte-americana. Com a consolidação
das independências na América e com o novo colonialismo europeu na
África e Ásia, ademais, o poderio do Estado nacional transformou-se em
arma fundamental no jogos geopolítico e econômico, especialmente para
os que disputavam mercados no contexto imperialista, entre o final do
século XIX e o começo do XX. Mais adiante, a crise da ideologia do
laissez faire e a formulação do pensamento keynesiano, no bojo da depressão da década de 30, legitimaram o reforço do papel da intervenção
estatal centralizada.
A expansão do Estado atingiu seu auge depois da Segunda Guerra
Mundial. O aumento da intervenção governamental foi estruturado sob
três pilares: o keynesiano, correspondente ao aspecto econômico, o
Welfare State, ligado ao social, e o burocrático weberiano, modelo administrativo que dava suporte às ações dos outros dois pilares. Todos os três
foram engendrados pelo Governo Central. Nos países desenvolvidos,
ademais, esta engenharia institucional foi construída num contexto de
ampliação da democracia no plano nacional. O fato é que, entre 1950 e
1980, era de grande prosperidade do capitalismo (por alguns chamada
de “anos dourados”), o Estado nacional foi o motor do desenvolvimento
e, em alguns casos, da cidadania.
Paradoxalmente, o avanço e o sucesso da intervenção estatal centralizada e da nacionalização da política no pós Guerra impulsionaram, mais
adiante, o processo de descentralização. Dito de outro modo, a expansão
do Welfare State e da democracia, frutos do período de grande nacionalização da política, favoreceram a constituição de demandas
descentralizadoras.
No caso dos Welfares, cabe assinalar que eles foram instituídos pelos
Governos Centrais, que agiram com maior ênfase a partir da década de
50. No começo, a administração centralizada geralmente implantava sozinha as políticas de bem estar social, contudo, ao longo do tempo, ela
aumentou as ações de financiamento e/ou as parcerias com os governos
subnacionais. Em outras palavras, a ampliação da oferta de serviços públicos, por parte do Poder Nacional, redundou na criação de estruturas
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administrativas no plano local. Um exemplo neste sentido é o da experiência norte-americana. Conforme John Donahue, houve lá uma maior
centralização desde os anos 30, mas as burocracias estaduais foram se
aperfeiçoando para receber e utilizar melhor os grants do Governo Federal, criados desde o período Roosevelt e ampliados ainda mais pelo
governo Lyndon Johnson, por meio do programa Great Society. Este
processo, por si só, gerou mais adiante demandas pelo repasse integral
das funções aos estados (DONAHUE, 1997: 12).
O crescimento e a complexificação da estrutura administrativa do
sistema de proteção social resultou em dilemas de eficiência e democratização. No que se refere ao primeiro aspecto, quanto mais atividades o
Governo Central concentrava em suas mãos, mais perdia o controle sobre
o desempenho e a qualidade das políticas. Um bom exemplo disso era o
programa de merenda escolar do Governo Federal brasileiro. Seu alcance
e recursos elevaram-se deveras ao longo do tempo e, até meados da
década de 90, a União comprava os alimentos, muitas vezes trazia-os até
Brasília e depois os distribuía para o restante do país. Daí resultavam os
seguintes problemas: os bens em questão eram perecíveis e muitos estragavam por conta dessa logística centralizadora; os hábitos alimentícios
regionais eram desprezados; e a compra centralizada normalmente aumentava os custos. Trocando em miúdos, o excesso de centralização
levava à ineficiência.
A centralização excessiva muitas vezes provinha das ações da burocracia nacional e dos políticos, os quais, ao concentrarem os recursos no
nível central, fortaleciam seu poder decisório (burocratas) ou de chantagem perante as bases locais (líderes políticos clientelistas). A maior democratização do sistema político tem sido o melhor instrumento contra
esta situação. Tal processo democratizador foi inicialmente construído
mais por processos nacionais do que locais, ao contrário do que supõe
visões mais românticas. Até no caso norte-americano, fundado pelo conceito de self-government e onde de fato a autonomia republicana dos
governos locais prosperou em boa parcela do território, a nacionalização
da política foi fundamental para a democratização do sistema, atacando
os focos de corrupção no Sul e em grandes centros urbanos (como Chicago), além de garantir os direitos civis dos negros.
Em vários países desenvolvidos, a nacionalização do processo democrático ampliou espaços de participação que, gradativamente, estabeleceram-se nos níveis locais de governo. Cabe lembrar que o longo cami148
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nho da centralização do poder havia sufocado uma série de demandas
por autogoverno regional, e a democratização do pós Guerra permitiu
colocar em xeque essa estrutura política, embora a transformação do
modelo não tenha ocorrido de uma hora para outra. O caso italiano reflete bem esse fenômeno, pois, como mostrou Robert Putnam, entre a promulgação da Constituição, em 1948, e o início da década de 70, ocorreu
uma intricada batalha pela autonomia dos governos locais (cf. PUTNAM,
1996: 35-38).
O modelo centralizador entrou em crise no começo da década de 80.
Para tanto, contribuíram fatores como a internacionalização econômica,
que reduziu parcela significativa do poder de intervenção estatal no plano nacional, especialmente na área financeira; a crise fiscal dos Governos Centrais, vinculada à perda de dinamismo econômico que marcara os
“anos dourados”; a defesa de reformas inspiradas por uma concepção
minimalista de Estado, iniciada com as vitórias de Thatcher e Reagan; o
fortalecimento de organizações com modus operandi transnacional, como
empresas multinacionais, ONGs, instituições multilaterais, blocos regionais e até máfias internacionais; a maior demanda por participação no
nível local; e o aumento da integração econômica entre os capitais e os
governos subnacionais, processo chamado por alguns autores de
“glocalization” (WATTS, 1994).
Sobre este processo, ficou famosa a frase de Daniel Bell: “the nationstate is becoming too small for the big problems of life and too big for the
small problems of life” (BELL, 1988).
Em boa medida, o discurso e a prática descentralizadoras derivaram
dessa crise do modelo centralizador de intervenção estatal. No entanto,
vale ressalvar que o balanço dos últimos vinte anos não revela uma
redução significativa do tamanho do Estado ou o esvaziamento do Governo Central. Houve, sim, mudanças na estrutura centralizada anterior, com
novas formas de provisão e atuação do aparato estatal, só que o resultado
disso está levando a repensar o papel do Poder Nacional, em vez de
destrui-lo.
Em resumo, os resultados paradoxais da expansão e complexificação
do Welfare State e da nacionalização da democracia, somados aos fatores
recentes que enfraqueceram o Governo Central, pavimentaram o terreno
onde a descentralização foi inicialmente construída. Mais outras quatro
causas influenciaram este processo: a urbanização acelerada, que tornou
os problemas locais e seus governos cada vez mais importantes para um
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maior número de pessoas; a irrupção de conflitos étnicos, os quais, quando não levaram à secessão, demandaram novas relações do Poder Nacional com os grupos regionais, como na experiência espanhola; o surgimento
das democracias de Terceira Onda (HUNTINGTON,1994), nas quais houve,
por diversas vezes, um imbricamento entre a democratização e o processo de descentralização; e, por fim, a força do discurso político
descentralizador, cada vez mais aceito e proposto em larga escala, inclusive por instituições multilaterais, como o Banco Mundial, que o defendem como uma das melhores soluções aos países menos desenvolvidos.
O contexto atual pode ser classificado como uma era de
descentralização, dada a desconcentração sem precedentes do poder
político nacional. Os seus primeiros passos foram dados nos anos 50,
mas o grande impulso se deu na década de 70, com a inclusão de um
número crescente de países, num processo ainda hoje em expansão.
Entre os desenvolvidos, houve grandes mudanças na organização
territorial em lugares como a Bélgica (que passou por um processo de
federalização nos últimos trinta anos), a Espanha e a Itália - ambas
criadoras de uma estrutura regional ou quase federal (LARSSON,
NOMDEN & PETITEVILLE, 1999: 400). Em todos estes casos, os governos subnacionais conquistaram uma forte autonomia. Destaca-se,
ainda, a consolidação dos federalismos alemão, australiano e canadense, cada vez mais preocupados em aperfeiçoar seus mecanismos
intergovernamentais para garantir o princípio da subsidiariedade, segundo o qual as políticas devem ser conduzidas, o máximo possível,
pelas autoridades mais próximas dos cidadãos. É igualmente relevante
a influência do viés federativo no debate acerca da União Européia.
Soma-se a tudo isso, de forma inédita e até inesperada, o repasse de
poder ao plano local em duas das nações mais centralizadas da Europa, a Grã-Bretanha e a França, como assinala Rudolf Hrbek:
“Recentemente, se vislumbram importantes alterações da estrutura
territorial na Grã-Bretanha. Sob o lema da ‘devolução’, o governo de
Westminster transferiu direitos de autonomia abrangentes, embora diferentes, para a Escócia e o País de Gales. Vários observadores consideram essa evolução como início de uma profunda mudança da organização estatal do Reino Unido, que poderia chegar a um ‘Estado de
Autonomia’ ou ainda uma construção federativa. (....) Na França, considerada há muito tempo exemplo clássico de um sistema centralizador,
também se iniciou uma política de descentralização a partir de 1982.
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Sua expressão mais nítida é a criação de regiões com novas entidades
territoriais, ao lado dos tradicionais municípios e departamentos. Embora a competência e os recursos à disposição das regiões pareçam
modestos, são nítidas as mudanças no Estado francês, bem como o fato
da descentralização já significar mais do que mera transferência de
atribuições administrativas para um nível mais baixo. As regiões desenvolvem autoconfiança, procuram tomar posições em relação à capital e ao governo central e, ocasionalmente, já são consideradas atores respeitados num sistema que se desenvolve passo a passo” (HRBEK,
2001: 111-112).
Nos Estados Unidos, país com maior tradição federativa do mundo,
houve uma renovação do discurso em prol da descentralização. Do
“novo federalismo” de Nixon até o modelo mais recente do devolution
powers, aconteceu um repasse de funções aos estados, que para alguns
significou o retorno às “liberdades originais da Federação”. Ademais, a
concepção de que os governos subnacionais são “laboratórios de democracia”, isto é, capazes de criar políticas inovadoras quanto mais contato
direto tiverem com os cidadãos, foi um dos principais eixos da política
norte-americana na década de 90 (CONLAN, 1998; OSBORNE &
GAEBLER, 1994).
A descentralização também avançou celeremente em outras partes do
globo. Num estudo citado por Marta Arretche, constatou-se que entre 75
países em desenvolvimento analisados, 63 tinham realizado reformas
descentralizadoras (apud ARRETCHE, 1996: 63). A América Latina destaca-se neste contexto. Nela, são eleitos atualmente 13 mil governos locais,
contra menos de 3 mil no final dos anos 70 (BANCO MUNDIAL, 1997:
112). Países como Colômbia, Peru e Venezuela aumentaram, em maior
ou menor grau, a autonomia dos governos locais. Federações mais antigas, porém tolhidas em sua liberdade por décadas de autoritarismo, como
o México e a Argentina, reforçaram o poder de suas províncias ou estados - no caso mexicano, foi do plano subnacional que, em grande medida, saiu o processo de democratização recente do país (cf. RODRÍGUEZ
& WARD, 1995). E o Brasil não ficou atrás, pois reconstruiu sua estrutura
federativa por meio do reforço do poder das esferas estaduais e municipais, como mostraremos mais adiante.
O fascínio causado pela descentralização baseia-se não apenas na
crise do modelo centralizador e no surgimento de novas realidades, mas
também na força política adquirida por esse conceito, cujo sinal é quase
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sempre positivo. Agregando uma ampla e heterogênea coalizão de interesses, o discurso descentralizador teria suas principais qualidades associadas à democratização do Poder público e à melhora do desempenho
governamental.
Descentralização e democratização do Estado andam juntas no argumento político desde pelo menos o livro clássico de Alexis de Tocqueville,
A Democracia na América. Processos históricos mais recentes, como a
conquista de governos locais pelos comunistas italianos, na década de 60,
ou o crescimento do municipalismo no Brasil nos anos 80, com seu viés
democratizador sendo perceptível em políticas como o Orçamento
Participativo, são dois entre vários dos exemplos que ajudariam a corroborar esse relacionamento virtuoso.
O pressuposto que orienta essa concepção é o de que a maior proximidade dos governos em relação aos cidadãos possibilita o aumento da
accountability do sistema político. De fato, o controle sobre os governantes
pode ser facilitado pela descentralização, já que com ela há maior probabilidade de disseminação das informações, de criação de canais de debates e mesmo de se instituir mecanismos mais efetivos de fiscalização
governamental, para citar três dos elementos básicos do processo de
responsabilização democrática do Estado (PRZEWORSKI, 1998). Formas
de democracia semi-direta também têm muito mais chances de se realizar
no plano local.
O aumento da eficiência e da efetividade é citado igualmente como
outra qualidade intrínseca da descentralização. Isto porque a centralização completa das políticas resultaria, tecnicamente, em maior irracionalidade
administrativa, e, politicamente, na criação de “superagências” monopolistas
que dificilmente seriam controláveis, com efeitos não só para a
accountability democrática, como também para o desempenho da ação
estatal. Inversamente, a descentralização, ao aproximar os formuladores
dos implementadores, e, principalmente, estes dois dos cidadãos, melhoraria o fluxo de informações e a possibilidade de avaliação da qualidade
da gestão pública.
Nesta mesma linha de raciocínio, supõe-se que a uniformização
subjacente ao modelo mais centralizador diminuiria os incentivos à inovação, ao passo que a existência de múltiplos governos seria um estímulo
para a busca de novas soluções administrativas, pois os governantes locais teriam a necessidade, por conta maior da cobrança da população, e a
possibilidade, por conta da maior autonomia decisória, de encontrar saí152
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das criativas e vinculadas às peculiaridades de cada circunscrição política. Esta posição é bastante difundida no debate norte-americano e vem
ganhando adeptos em outros países3.
Muitos defendem que pode haver, sob certas condições, uma relação
de mão dupla entre a democratização e busca da eficiência no plano
local, tal qual argumentam Abrucio e Soares:
“Por um lado, a participação e a cobrança da população obrigam os
governantes, muito mais próximos, a melhorar seu desempenho administrativo. Por outro, as condições para que os cidadãos atuem [democraticamente] de forma mais eficaz estão ligadas à qualidade da gestão pública,
responsável pela informação e pela adequação dos instrumentos de controle” (ABRUCIO & SOARES, 2001: 28).
A descentralização, no entanto, não tem qualidades intrínsecas e
tampouco está isenta de aspectos negativos. A força política deste discurso e muitos resultados satisfatórios que daí se originaram nublam os problemas que se colocam, em muitas ocasiões, para a implantação de um
processo descentralizador. Há cinco questões fundamentais que devem
ser equacionadas em qualquer modelo de descentralização: a constituição
de um sólido pacto nacional, o ataque às desigualdades regionais, a criação de um ambiente contrário à competição predatória entre os entes
governamentais, a montagem de boas estruturas administrativas no plano
subnacional e a democratização dos governos locais.
A primeira se refere à relação dos governos locais com a nação. Uma
fragmentação excessiva pode levar à guerra civil, à desorganização econômica ou à secessão. É claro que esta última pode ser até desejável em
certas circunstancias, nas quais grupos étnicos foram sufocados pelo Governo Central e/ou por uma etnia dominante. Não obstante, o fortalecimento de uma série de nacionalismos desde a segunda metade da década
de 80 tem grandes chances de produzir países com frágeis condições de
sobrevivência - e, neste caso, os vetores da globalização assimétrica na
qual vivemos tendem a ser implacáveis, favorecendo os que mantiveram
mais território e população. Talvez tenhamos, na década que ora se
desenvolve ou no mais tardar na próxima, que refletir novamente sobre
3
Nos EUA, um dos maiores best sellers da década de 90 foi o livro Reinventando o Governo, que
analisa uma série de exemplos de experiências bem sucedidas no plano subnacional, os quais são
classificados como verdadeiros laboratórios de gestão pública (OSBORNE & GAEBLER, 1994). Esta
linha argumentativa, entretanto, é bem mais antiga nas literaturas de Ciência Política e Economia
produzida nos Estados Unidos, bem como no debate político.
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formas de organização política do espaço que respondam às demandas
econômicas e geopolíticas de centralização, mas acentuando necessariamente o caráter democratizador desse processo.
Supondo que um país resolva seus dilemas básicos de ordem e haja
um sentimento nacional razoavelmente consolidado, é preciso evitar o
crescimento das desigualdades entre as regiões. Algumas experiências
recentes de descentralização não foram acompanhadas pela criação de
políticas redistributivas - ou ao menos compensatórias - para as localidades mais pobres ou carentes de infra-estrutura, o que contribuiu para
acentuar as diferença socioeconômicas. Nestes casos, a descentralização
torna-se, na precisa definição de Remy Prud’Homme, “na mãe da segregação” (PRUD’HOMME, 1995), uma vez que as disparidades entre as
partes prejudicam o desenvolvimento de muitas delas e, ao fim e ao
cabo, do próprio conjunto, pois há uma piora do desempenho econômico
global, um aumento do conflito distributivo e, no extremo, a luta política
assume proporções preocupantes à ordem nacional. Os impactos desse
processo negativo são ainda maiores em grandes nações marcadas pela
desigualdade regional, como a Índia, o Brasil e a Rússia. Para solucionar
este problema, faz-se necessária a atuação coordenadora do Governo
Central, sem a qual não é possível uma descentralização efetiva e justa.
O acirramento dos conflitos entre os níveis de governo é outra questão que pode prejudicar a descentralização. Em razão de o processo
desconcentrador de poder ser normalmente recente, dois fenômenos aparecem com freqüência. Em uma ponta, muitos Governos Centrais não têm
conseguido lidar com a nova realidade e querem evitar a perda de autoridade e competências, criando incertezas quanto aos passos seguintes
do processo e mesmo em relação à manutenção dos que já foram dados,
tal qual ocorreu na Inglaterra nos tempos de Thatcher; noutra ponta, a
ausência de experiência anterior de autogoverno e o enfraquecimento do
Poder Nacional têm gerado, em certos casos, estímulos à irresponsabilidade
fiscal das unidades subnacionais, como na Argentina, ou a uma disputa
tributária predatória, como na guerra fiscal à brasileira4. O fato é que a
fragilidade dos instrumentos de cooperação e coordenação entre as esferas de poder constitui um grande obstáculo ao sucesso da descentralização.
4
Para uma visão geral do processo de descentralização, tratando sobretudo das resistências a ele e a
manifestação de comportamentos fiscais irresponsáveis por parte dos governos subnacionais, ver
BURKI, PERRY & DILLINGER, 1999.
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É necessário, também, desenvolver as capacidades administrativas e
financeiras dos entes subnacionais para que a descentralização ajude a
melhorar o desempenho da gestão pública. Os possíveis ganhos de
eficiência resultantes da desconcentração das atribuições não são alcançados caso faltem recursos suficientes às administrações locais, ou se
estas deixarem de exercer sua autoridade tributária. O repasse das funções antes centralizadas só alcança plenamente seus objetivos quando
acoplado à existência ou à montagem gradativa de boas estruturas
gerenciais nos níveis inferiores. Obviamente que a grande concentração de tarefas nas mãos do Governo Central é prejudicial à eficiência,
porém, a manutenção de padrões arcaicos de governança no plano
local, além de reduzir a efetividade da ação estatal, desmoraliza a
descentralização, podendo até incentivar propostas demagógicas de
(re)centralização e paternalismo. Logo, a modernização administrativa
dos governos subnacionais é condição sine qua non de um ciclo virtuoso descentralizador.
A relação entre descentralização e democracia não é linear. Ela depende das condições sociais, econômicas e políticas existentes em determinado país e tempo histórico. Trata-se, em suma, de uma construção
político-institucional. É neste sentido que, analisando a associação entre
democratização e descentralização, Marta Arretche argumenta:
“A concretização dos ideais democráticos depende menos da escala
ou nível de governo encarregado da gestão das políticas e mais da natureza das instituições que, em cada nível de governo, devem processar as
decisões” (ARRETCHE, 1996: 45).
Em diversos momentos da história, formas oligárquicas predominaram
no plano local. Exemplos: o Brasil da Primeira República, o Sul dos
Estados Unidos na primeira metade do século XX - realidade tão bem
descrita por V.O.Key Jr. (1949) -, os governos subnacionais mexicanos
durante o domínio do PRI e, até hoje, a administração das Províncias mais
pobres e suas municipalidades na Argentina. A lista é bem mais extensa,
mas ficamos por aqui. Ora, isto quer dizer que existe uma outra “relação
linear”, agora entre descentralização e oligarquia? Esta ilação é tão falsa
quanto a primeira. Basta observar a progressiva democratização de governos subnacionais em várias partes do mundo: em países federativos
(como a Alemanha, os EUA, o Canadá) em Estados Unitários (Itália e
Espanha), além dos grandes avanços ocorridos em nações em desenvolvimento, como o Brasil e a Índia. A continuidade desse processo vincula155
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se à construção de certas condições institucionais, culturais e
socioeconômicas.
Para responder a estas cinco questões, é preciso adotar três pressupostos gerais que balizam qualquer processo de descentralização:
1) A opção não deve ser centralização ou descentralização. O segredo
do sucesso está no relacionamento entre elas. Num extenso e detalhado
trabalho que envolveu o estudo das relações intergovernamentais de
todos os países da OCDE, a então presidente dessa organização, Alice
Rivlin, concluiu que:
“Há tempos ocorrem debates sobre centralização ou descentralização.
Nós precisamos agora estar dispostos a mover em ambas as direções descentralizando algumas funções e ao mesmo tempo centralizando outras responsabilidades cruciais na formulação de políticas. Tais mudanças
estão a caminho em todos os países” (OCDE, 1997: 13).
2) A descentralização envolve um projeto nacional e vários processos
ou rodadas de negociação. Em relação ao primeiro aspecto, cabe ressaltar
que não basta criticar os problemas do antigo modelo centralizador; é
fundamental estabelecer uma estratégia nacional que oriente, minimamente, o processo descentralizador (FIORI, 1995). Assim sendo, as lideranças políticas e administrativas de todo o país precisam ter em mente o
sentido geral da descentralização. No entanto, este projeto geral é
rediscutido e repensado ao longo do tempo. Ademais, a desconcentração
de funções ocorre em diversas áreas, às vezes muito distintas entre si,
por conta da peculiaridade de cada política pública. É por esta razão que
concordamos com o argumento de Maria Hermínia Tavares de Almeida: a
descentralização é um processo composto por várias rodadas (ALMEIDA,
2000: 7), muito embora o histórico específico das políticas afeta seu
destino posterior. Qualquer avaliação da descentralização em um determinado país, portanto, deve analisar o projeto nacional e os processos
descentralizadores, bem como a relação entre eles.
3) A descentralização exige a construção de capacidades políticoinstitucionais tanto do Poder Central como dos governos subnacionais.
Ambos devem ser preparar especificamente para este processo. O Governo Central deve habilitar-se para o repasse de funções e para a coordenação das ações mais gerais, atuando em prol do equilíbrio entre as
regiões, fornecendo auxílio técnico e financeiro aos níveis inferiores e
avaliando as políticas de cunho nacional. Os entes subnacionais, por sua
vez, precisam aprimorar sua estrutura administrativa e seus mecanismos
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de accountability democrática. Uma competência comum é essencial:
todas as esferas de poder devem desenvolver instrumentos e mesmo
uma cultura política vinculados às relações intergovernamentais, em particular no caso do Governo Central, em razão de seu papel necessariamente coordenador.
O caso brasileiro enfrenta todo este universo de questões atinentes à
descentralização. Só que há uma particularidade: o Brasil é uma Federação, característica que dá um molde especial ao processo descentralizador.
II - FEDERAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO: O SIGNIFICADO DESSA RELAÇÃO
As formas de organização territorial do poder podem ser divididas em
quatro tipos: a Associação de Estados, a Confederação, a Federação e o
Estado Unitário. Alguns países têm adotado características de mais de um
modelo, seja porque a era da descentralização trouxe mais preocupações
federativas a nações unitárias, seja porque a temática dos blocos regionais impulsionou experiências com inspiração confederativa, como a União
Européia, ou que procuram constituir alianças econômicas, como as uniões aduaneiras e áreas de livre comércio. De qualquer modo, há sim
diferenças entre tais categorias, que dizem respeito, em especial, à maior
ou menor concentração/dispersão de poder e soberania entre os entes,
fazendo com que haja organizações territoriais do poder mais centrífugas
ou mais centrípetas. O quadro abaixo configura esta classificação:
Resumidamente, podemos diferenciar cada uma dessas formas de organização político-territorial do poder5. A Associação de Estados estabelece uma parceria voluntária entre nações que não perdem sua soberania
original e constituem uma cooperação com fins culturais, políticos e/ou
econômicos, sem que isto implique um maior compromisso de
compartilhamento de poder ou centralização decisória. Portanto, são membros que não abdicam de sua condição de país e, enquanto tais, podem
5
Essa conceituação baseia-se em ABRUCIO, 2000.
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sair dessa organização a qualquer momento. Ademais, a Associação entre
Estados pode ocorrer entre Estados nacionais que não tenham contiguidade
territorial, uma vez que os objetivos podem ser de cooperação econômica ou de intercâmbio cultural - tal como ocorre no Commonwealth.
A Confederação, por sua vez, é a junção de unidades independentes,
que podem ser Estados nacionais ou não - o início da história dos Estados
Unidos representa esta segunda possibilidade. Busca-se um maior compromisso pelo compartilhamento do poder do que na Associação entre
Estados, mas se evita a criação de um Governo Central. Diferentemente
da Associação entre Estados, a Confederação pressupõe sempre uma
contiguidade territorial.
O que motiva a criação do modelo confederativo é a existência de
problemas e necessidades comuns em uma mesma área territorial. Para
tanto, os participantes desse acordo estabelecem políticas integradas.
Contudo, ao contrário da Federação, não é constituído um Governo Central, embora possa até existir uma estrutura que funcione como pólo
aglutinador da Confederação, porém sem um estatuto de legitimidade por
si só. Mais do que isso, há uma superioridade do arcabouço constitucional
de cada um dos membros sobre o conjunto de regras que orienta essa
união. É por esta razão que as principais decisões válidas para todos os
integrantes precisam da aprovação unânime deles ou, então, certas decisões não são vinculantes a todos os participantes - a questão da moeda
comum na União Européia é tipicamente uma questão confederativa.
O modelo confederativo foi o inicialmente praticado nos Estados Unidos após a independência, em 1776. Pode-se dizer que hoje a União
Européia é o que há de mais próximo de uma Confederação6. Observando a história das experiências confederativas, percebe-se uma a baixa
capacidade de sobrevivência dessa forma de organização político-territorial
do poder. Nos EUA, durou pouco mais de dez anos, enquanto o caso
recente da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), composta pelas partes daquilo que fora a União Soviética, redundou em maior divisão
6
A experiência da União Européia tem características mais próximas da Confederação, porém alguns
de seus membros e ideólogos defendem uma maior federalização de sua estrutura. Propostas como o
fortalecimento do Parlamento Europeu, do Direito Comunitário e do Banco Central Europeu, retirando grande parcela do poder macroeconômico dos Estados nacionais, caminham numa linha
mais federativa. Contudo, a capacidade de países pertencentes à essa união de não compartilhar de
todas as regras do ordenamento comum, como o Reino Unido repetidamente tem feito, e a ausência
de políticas externa e de segurança para todo o bloco constituem enormes obstáculos à federalização
da União Européia.
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entre estes povos, levando os analistas a afirmar que a saída para essa
região era manter a Federação Russa e esta fazer Associações com os
demais Estados nacionais (SEROKA, 1994)7.
Como ponto mais centrípeto da escala exposta acima, temos o Estado
Unitário, onde a soberania está toda concentrada no Governo Central e é,
por tal motivo, una e indivisível. O poder dos entes subnacionais deriva
da ação voluntária da esfera nacional, que delega funções e graus de
autoridade. Todavia, há variações cada vez maiores na forma como esta
organização territorial se estrutura, sobretudo por conta dos efeitos da era
da descentralização. Países de tradição centralizadora como a França e a
Inglaterra, tal qual mostrado anteriormente, modificaram bastante sua distribuição espacial do poder político nos últimos vinte anos.
Mesmo com tais mudanças, um aspecto diferencia claramente o Estado
unitário das formas confederativas ou federativas: a distribuição de poder
obedece a uma hierarquia e a uma assimetria entre o Governo Central e
as unidades subnacionais. Exemplo: no Reino Unido, o primeiro-ministro
trabalhista, Tony Blair, cumpriu sua promessa de campanha e criou um
Parlamento regional na Escócia. Houve pressões do plano local, mas a
decisão veio do âmbito nacional. Mais importante: a continuidade desse
processo de desconcentração de poder vai depender da aprovação em
instâncias do nível central, sobretudo o Parlamento, o qual é formado
exclusivamente por representantes que, embora eleitos em distritos, têm
um mandato nacional, não vinculado à proteção dos direitos de tal ou
qual região.
É este o limite da descentralização nos Estados unitários: o poderio dos
governos subnacionais é inferior constitucionalmente ao do Governo Nacional. A ausência de estruturas capazes de defender especificamente os
interesses regionais corrobora isto. Não há porque construir uma enge7
Três fatores explicam o fracasso do modelo confederativo. O primeiro é a pouca efetividade dos
mecanismos que arbitram os conflitos numa Confederação, dado que o poder vinculante das decisões é mais tênue. Além disso, o processo decisório é bastante intrincado, já que o poder de veto de
apenas um membro é muito amplo, e o custo desse veto é baixíssimo para o ente individual, ao passo
que o preço pela unanimidade normalmente é bastante alto. E, por fim, o maior problema do modelo
confederativo refere-se à proteção diante de inimigos externos ou mesmo de guerras internas. A
União Européia não tem até hoje uma política de defesa comum e por isso depende dos Estados
Unidos - que resguardam suas ações no “biombo” da OTAN. A importância da questão da segurança
pode ser constatada pelo lugar estratégico e pela quantidade de espaço que ocupou em O Federalista:
do segundo ao décimo artigo, parte que dá início e prepara o terreno para o restante da argumentação. Foi essa fragilidade do modelo confederativo que convenceu figuras históricas fundamentais
para a independência, como George Washington e Benjamin Franklin, a ficarem do lado dos founding
fathers norte-americanos na defesa do ideal federativo na Convenção de 1787.
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nharia institucional para defender as unidades subnacionais se elas não
são reconhecidas como portadoras de direitos originários que devem ser
defendidos. Em suma, não são soberanas e a soberania nacional é fruto
de um contrato entre todos os indivíduos da nação, e não de um acordo
entre entes territoriais8.
O Estado Federal é uma forma inovadora de se lidar com a organização político territorial do poder, na qual há um compartilhamento matricial
da soberania, e não piramidal, mantendo-se a estrutura nacional (ELAZAR,
1987: 37). Hoje há vinte e duas nações que adotam formalmente o sistema federativo, afora outras, como a Espanha e a África do Sul, que
embora não tenham constitucionalmente este status, na prática funcionam
cada vez mais enquanto tais (WATTS, 1999: 10). Além destas, muitas
outras nações vêm adotando instrumentos federativos para resolver seus
problemas intergovernamentais. Mesmo tendo um pouco mais de 10%
dos países utilizando esse modelo de organização político territorial, o
fato é que a importância geopolítica, econômica e cultural dos que adotam a forma federal é evidente, em todos os cantos do mundo, dos EUA à
Rússia, da Índia à Alemanha, do Canadá à Nigéria, da Suíça à Argentina,
do México ao Brasil, para ficar nos casos mais relevantes.
O entendimento da especificidade do federalismo passa pela análise
de sua natureza, de seu significado e de sua dinâmica. Primeiramente,
toda Federação deriva de uma situação federalista (BURGESS, 1993).
Duas condições conformam este cenário. Uma é a existência de
heterogeneidades que dividem uma determinada nação, de cunho territorial
(grande extensão e/ou enorme diversidade física), étnico, lingüístico,
socioeconômico (desigualdades regionais), cultural e político (diferenças
no processo de formação das elites dentro de um país e/ou uma forte
rivalidade entre elas). Qualquer país federativo foi assim instituído para
dar conta de uma ou mais heterogeneidades. Se um país deste tipo não
constituir uma estrutura federativa, dificilmente a unidade nacional man8
O caso italiano é interessante pois, além de ter aumentado fortemente o poder dos entes locais desde
pelo menos a década de 70, define em sua Constituição promulgada no pós Guerra (1948) uma série
de instâncias de defesa do interesse das unidades subnacionais. Um exemplo disto é o Senado,
composto por 315 parlamentares eleitos pelas Regiões - afora os senadores vitalícios, que são designados pelo presidente, e os ex-presidentes. Outro é a eleição para presidente, na qual participam, além
dos membros do Parlamento, delegados das Regiões do país. Apesar da existência destes mecanismos
de representação regional, a autoridade nacional é reconhecida constitucionalmente como superior,
ao passo que os governos subnacionais, segundo a lei, participam por uma via concorrente e
secundária do exercício da atividade governamental (Cf. SPREAFICO, 1992: 372).
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terá a estabilidade social ou, no limite, a própria nação corre risco de
fragmentação9.
Outra condição federalista é a existência de um discurso e de uma
prática defensores da unidade na diversidade, resguardando a autonomia
local, mas procurando formas de manter a integridade territorial num país
marcado por heterogeneidades. Trata-se do princípio filosófico da Federação, na definição de Burgess:
“O gênio da Federação está em sua infinita capacidade de acomodar a
competição e o conflito em torno de diversidades que têm relevância
política dentro de um Estado. Tolerância, respeito, compromisso, barganha e reconhecimento mútuos são suas palavras-chave, e ‘união’ combinada com ‘autonomia’ é sua marca autêntica” (BURGESS, 1993: 7).
As coexistência destas duas condições é essencial para se montar um
pacto federativo. Mas, o que é uma Federação? Segundo Daniel Elazar,
“O termo ‘federal’ é derivado do latim foedus, o qual (...) significa
pacto. Em essência, um arranjo federal é uma parceria, estabelecida e
regulada por um pacto, cujas conexões internas refletem um tipo especial de divisão de poder entre os parceiros, baseada no reconhecimento
mútuo da integridade de cada um e no esforço de favorecer uma unidade
especial entre eles” (ELAZAR, 1987: 5).
Em outras palavras, a Federação é um pacto entre unidades territoriais
que escolhem estabelecer uma parceria, conformando uma nação, sem
que a soberania seja concentrada num só ente, como no Estado Unitário,
ou então em cada uma das partes, como na Associação entre Estados e
mesmo nas Confederações. A especificidade do Estado Federal, em termos de distribuição territorial do poder, é o compartilhamento da soberania entre o Governo Central - chamado de União ou Governo Federal - e
os governos subnacionais.
O princípio da soberania compartilhada deve garantir a autonomia dos
governos e a interdependência entre eles. Trata-se da fórmula classicamente enunciada por Daniel Elazar: self-rule plus shared rule. Quanto ao
primeiro aspecto, é importante ressaltar que os níveis intermediários e
9
Exemplos de heterogeneidade são os mais variados: o Canadá (heterogeneidades lingüísticas), a
Índia (diversidades étnicas, lingüísticas e socioeconômicas), Brasil e Argentina (diferenças econômicas regionais e entre as elites políticas locais), para ficar em alguns casos. Ademais, todo país grande
tem a questão federalista batendo à sua porta - Estados Unidos, Canadá, Brasil, Índia, Indonésia,
Paquistão, Austrália, Rússia e mesmo a China, que embora não seja (ainda) uma Federação, contém
uma diversidade de situações sociais misturada com a complexidade geográfica, o que cria um
ambiente marcado por heterogeneidades explosivas.
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locais detêm a capacidade de autogoverno como em qualquer processo
de descentralização, com grande raio de poder nos terrenos político,
legal, administrativo e financeiro, mas sua força política vai além disso. A
peculiaridade da Federação reside exatamente na existência de direitos
originários pertencentes aos pactuantes subnacionais - sejam estados, províncias, cantões ou até municípios, como no Brasil. Tais direitos não
podem ser arbitrariamente retirados pela União e são, além do mais,
garantidos por uma Constituição escrita, o principal contrato fiador do
pacto político-territorial. Ressalte-se que o Poder Nacional deriva de um
acordo entre as partes, ao invés de constitui-las. Assim, a descentralização
em Estados Unitários pode até repassar um efetivo poder político, mas
este processo sempre provém do Centro e não institui direitos de soberania aos entes subnacionais.
Os governos subnacionais também têm instrumentos políticos para
defender seus interesses e direitos originários, quais sejam, a existência
de Cortes constitucionais, que garantem a integridade contratual do pacto
originário; uma Segunda Casa Legislativa representante dos interesses
regionais (Senado ou correlato); a representação desproporcional dos
estados/províncias menos populosos (e muitas vezes mais pobres) na
Câmara baixa; e o grande poder de limitar mudanças na Constituição,
criando um processo decisório mais intrincado, que exige maiorias qualificadas, e em muitos casos se faz necessária a aprovação dos Legislativos
estaduais ou provinciais. E mais: alguns princípios básicos da Federação
não podem ser emendados em hipótese alguma. Sobre este último ponto,
é interessante notar que no Brasil o federalismo é considerado cláusula
pétrea (artigo 60, parágrafo 4), isto é, não pode ser objeto de Emenda
constitucional, o que igualmente acontece na Alemanha, uma vez que o
artigo 79, alínea 3 da Lei Fundamental torna a Federação um princípio
inatingível e inalterável. Nos EUA, o contrato federativo representado
pela Constituição cria uma estrutura na qual os estados e a União são
“indestrutíveis”.
Como bem constatou Alfred Stepan, toda Federação restringe o poder
da maioria (demos constraining), consubstanciado na esfera nacional. Porém, o federalismo precisa igualmente responder à questão da
interdependência entre os níveis de governo. A exacerbação de tendências centrífugas, da competição entre os entes e do repasse de custos do
plano local ao nacional são formas que devem ser atacadas em qualquer
experiência federativa, sob o risco de se enfraquecer a unidade político162
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territorial ou de torná-la ineficaz para resolver a “tragédia dos comuns”
típica do federalismo, vinculada a problemas de heterogeneidade. O fato
é que a soberania compartilhada só pode ser mantida ao longo do tempo
caso se estabeleça uma relação de equilíbrio entre a autonomia dos pactuantes e a interdependência entre eles.
A busca da interdependência é uma tarefa que enfrenta pelo menos
cinco desafios: o caráter matricial das Federações, a dupla cidadania presente no federalismo democrático, o pluralismo intrínseco a essa forma
de organização político-territorial do poder, a necessidade dos checks
and balances entre os níveis de governo e o problema da coordenação
federativa.
Em primeiro lugar, a interdependência federativa não pode ser alcançada
pela mera ação impositiva e piramidal de um Governo Central, tal qual
num Estado Unitário, pois uma Federação supõe uma estrutura mais
matricial, sustentada por uma soberania compartilhada - aliás, como dito
antes, é por isso que no federalismo há União (ou o Governo Federal) e
não Governo Central. É claro que as esferas superiores de poder estabelecem relações hierárquicas frente às demais, seja em termos legais, seja
por conta do auxílio e financiamento às outras unidades governamentais.
O Governo Federal tem prerrogativas específicas para manter o equilíbrio federativo, e os governos intermediários igualmente detêm forte
grau de autoridade sobre as instâncias locais ou comunais. Só que a
singularidade do modelo federal está na maior horizontalidade entre os
entes, devido aos direitos originários dos pactuantes subnacionais e à sua
capacidade política de proteger-se. Em poucas palavras, processos de
barganha afetam decisivamente as relações verticais num sistema federal.
Em segundo lugar, a população de uma democracia federativa possui
uma dupla cidadania: a individual e a territorial, cada qual representada
por mecanismos políticos distintos. Vale ressalvar que, citando novamente Stepan, “em uma Federação democrática os cidadãos deve ter identidades políticas duplas, mas complementares” (STEPAN, 1999: 202). Criar
uma relação de complementaridade entre os interesses e direitos locais e
a perspectiva nacional é outro desafio que todo Estado Federal deve
enfrentar.
As Federações, ademais, são marcadas intrinsecamente pela diversidade e pelo conflito. A obtenção de padrões de interdependência não pode
ser resultado da eliminação do pluralismo que é subjacente ao modelo
federativo. De modo que as parcerias intergovernamentais não podem
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ser frutos do domínio de uma instância contra a autonomia de outra ou
das demais. Destacam-se aqui o respeito mútuo e, novamente, o papel
da barganha nas relações entre os níveis de governo.
Desde a invenção do federalismo moderno nos Estados Unidos, esta
forma de organização político-territorial do poder pressupõe a existência
de controles mútuos entre os níveis de governo - trata-se de um dos
checks and balances da democracia madisoniana. O objetivo deste mecanismo é a fiscalização recíproca entre os entes federativos para que
nenhum deles concentre indevidamente poder e, desse modo, acabe
com a autonomia dos demais. Assim sendo, a busca da interdependência
numa Federação democrática tem de ser feita conjuntamente com o controle mútuo.
O desenvolvimento recente dos Estados modernos levou ao crescimento do papel dos Governos Centrais, especialmente no que se refere
à expansão das políticas sociais. No caso dos sistemas federais, onde
vigora uma soberania compartilhada, constituiu-se um processo negociado e extenso de shared decision making, ou seja, de compartilhamento
de decisões e responsabilidades. A interdependência enfrenta aqui o
problema da coordenação das ações de níveis de governo autônomos,
aspecto chave para entender a produção de políticas públicas numa estrutura federativa contemporânea.
Em seu trabalho sobre os Estados de Bem Estar Social em países
unitários e federativos, Paul Pierson (1995) revela que no federalismo as
ações governamentais são divididas entre unidades políticas autônomas,
as quais, porém, têm cada vez mais interconexão, por conta da nacionalização dos programas e mesmo da fragilidade financeira ou administrativa
de governos locais e/ou regiões. O dilema do shared decision making
surge porque é preciso compartilhar políticas entre entes federativos
que, por natureza, só entram neste esquema conjunto se assim o desejarem. Desse modo, a montagem dos Welfare States nos países federativos
é bem mais complexa, envolvendo jogos de cooperação e competição,
acordos, vetos e decisões conjuntas entre os níveis de governo. O desafio posto por esta questão foi bem resumido por Pierson:
“No federalismo, dada a divisão de poderes entre os entes, as iniciativas políticas são altamente interdependentes, mas são, de forma freqüente, modestamente coordenadas” (PIERSON, 1995: 451).
Para garantir a coordenação entre os níveis de governo, as Federações
devem, primeiramente, equilibrar as formas de cooperação e competição
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existentes. Antes que um mal entendido se estabeleça, partimos da premissa, já enunciada anteriormente, de que o federalismo é intrinsecamente conflitivo. Concordamos, neste sentido, com Deil Wright, segundo o
qual o conflito não é um estado patológico de uma estrutura federal; mais
do que isso, o autor ressalta que a cooperação e a competição não são
pólos opostos de uma escala, já que a presença do primeiro não significa
a ausência do segundo, e vice-versa (WRIGHT, 1997: 27).
Seguindo esta linha argumentativa, Paul Pierson assim define o funcionamento das relações intergovernamentais no federalismo:
“Mais do que um simples cabo de guerra, as relações intergovernamentais requerem uma complexa mistura de competição, cooperação e
acomodação” (PIERSON, 1995: 458).
Daí toda Federação ter de combinar formas benignas de cooperação e
competição. No caso da primeira, não se trata de impor formas de participação conjunta, mas de instaurar mecanismos de parceria que sejam
aprovados pelos entes federativos. O modus operandi cooperativo é
fundamental para otimizar a utilização de recursos comuns, como nas
questões ambientais ou problemas de ação coletiva que cobrem mais de
uma jurisdição (caso dos transportes metropolitanos); para auxiliar governos menos capacitados ou mais pobres a realizarem determinadas tarefas;
para integrar melhor o conjunto de políticas públicas compartilhadas,
evitando o jogo de empurra entre os entes - como no episódio da dengue, quando União, estados e municípios procuravam definir o(s) outro(s)
como culpado(s) em relação a esta questão. Ainda é peça-chave no ataque a comportamentos financeiros predatórios, que repassam custos de
um ente à nação, como também na distribuição de informação sobre as
fórmulas administrativas bem sucedidas, incentivando o associativismo
intergovernamental10.
Não se pode esquecer, também, que o modelo cooperativo contribui
para elevar a esperança quanto à simetria entre os entes territoriais, fator
fundamental para o equilíbrio de uma Federação. No entanto, fórmulas
cooperativas mal dosadas trazem problemas. Isto ocorre quando a coope10
Neste aspecto, cabe lembrar a experiência dos EUA. O crescimento da intervenção estatal impulsionado pela Era Roosevelt aconteceu num momento em que as máquinas locais estavam infestadas de
clientelismo e corrupção e careciam de capacidades institucionais para realizar a contento políticas
públicas mais amplas. Em tal contexto, as associações horizontais entre os níveis de governos tiveram
um papel essencial na transformação do federalismo norte-americano, repassando informações sobre
como alguns governos subnacionais tinham modificado sua antiga estrutura (ZIMMERMAN, 1996).
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ração confunde-se com a verticalização, resultando mais em subordinação do que em parceria, como muitas vezes já aconteceu na realidade
latino-americana, de forte tradição centralizadora. É também perigosa a
montagem daquilo que Fritz Scharpf (1988) denomina joint decision trap
(armadilha da decisão conjunta), bastante visível no caso alemão, mas
que se repete igualmente em outras experiências. Nesta estrutura, todas
as decisões são o máximo possível compartilhadas e dependem da anuência
de praticamente todos os atores federativos. Sem desmerecer os ganhos
de racionalidade administrativa, tende-se à uniformização das políticas,
processo que pode diminuir o ímpeto inovador dos níveis de governo,
enfraquecer os checks and balances intergovernamentais e dificultar a
responsabilização da administração pública.
As Federações requerem determinadas formas de competição entre os
níveis de governo. Primeiro, por conta da importância dos controles mútuos como instrumento contra a dominância (ou tirania, nos termos de
Madison) de um nível de governo sobre os demais. Além disso, a competição federativa pode favorecer a busca pela inovação e melhor desempenho das gestões locais, já que os eleitores podem comparar a
performance dos vários governantes, uma das vantagens de se ter uma
multiplicidade de governos. A concorrência e a independência dos níveis
de governo, por fim, tendem a evitar os excessos contidos na “armadilha
da decisão conjunta”, bem como o paternalismo e o parasitismo causados
por certa dependência em relação às esferas superiores de poder.
Há uma série de problemas advindos de competições desmedidas. O
primeiro se refere ao excesso de concorrência, que afeta a solidariedade
entre as partes, ponto fulcral do equilíbrio federativo. Quanto mais heterogêneo é um país, em termos socioculturais ou socioeconômicos, mais
complicada é a adoção única e exclusiva da visão competitiva do federalismo. Países como a Índia, o Brasil ou a Rússia devem por sua natureza
evitar uma disputa desregrada entre os entes.
A competição em prol da inovação também pode ter efeitos negativos, mais particularmente no terreno das políticas sociais, como demonstrou o livro de Paul Peterson (The Price of Federalism,1995) sobre a
experiência recente dos governos estaduais norte-americanos. O autor
percebeu o fortalecimento de uma visão acerca do federalismo: a de que
os cidadãos “votam com os pés”11, ou seja, podem escolher o lugar que
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Esta visão foi formulada originalmente por Charles Tiebout (1956).
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otimize melhor a relação entre carga tributária e políticas públicas. Diante
disso, os estados ficaram entre duas opções: ou forneciam um cardápio
amplo de proteção social, tendo como efeito um Welfare magnets, isto é,
mais pessoas, sobretudo as mais pobres, iriam morar nestes lugares, aumentando os gastos públicos e, em tese, diminuindo a competitividade
econômica daquele lugar; ou, ao contrário, os governadores deveriam
constituir uma estrutura mínima de prestação de serviços públicos e baixar os impostos, reduzindo com isso a afluência dos mais pobres àquela
região e, novamente em tese, elevando a competitividade econômica e a
oferta de emprego do ente federativo que optasse por esta via - é o que
Peterson denomina race to the bottom. Entre o efeito de Welfare magnets
e o race to the bottom, muitos governadores nos EUA estão escolhendo a
segunda opção, de modo que o aumento da competição vem acompanhado da redução de políticas de combate à desigualdade. Em suma, o
modelo competitivo levado ao extremo piora a questão redistributiva.
O federalismo puramente competitivo vem estimulando, ainda, a guerra
fiscal entre os níveis de governo. Trata-se de um leilão que exige mais e
mais isenções às empresas, em que cada governo subnacional procura
oferecer mais do que o outro, geralmente sem se preocupar com a forma
de custear este processo. Ao fim e ao cabo, a resolução financeira desta
questão toma rumos predatórios, seja acumulando dívidas para as próximas gerações, seja repassando tais custos ao nível federal e, por tabela, à
nação como um todo.
A diminuição da solidariedade entre os entes federativos, a menor
preocupação com a eqüidade e a realização de disputas predatórias são
defeitos de certos comportamentos competitivos no federalismo. Os laços que unem os pactuantes afrouxam-se, colocando a autonomia individual - especialmente a dos mais fortes - contra a interdependência.
O desafio é encontrar caminhos que permitam a melhor adequação
entre competição e cooperação, procurando ressaltar seus aspectos positivos em detrimento dos negativos. Recorrendo mais uma vez à argumentação precisa de Daniel Elazar:
“(...) todo sistema federal, para ser bem sucedido, deve desenvolver
um equilíbrio adequado entre cooperação e competição, e entre o governo central e seus componentes” (ELAZAR, 1993: 193 - grifo meu).
A coordenação federativa, por fim, depende muito do papel dos níveis superiores de governo frente à descentralização, especialmente da
ação do Governo Federal. Por um lado, porque em vários países os
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governos subnacionais têm problemas financeiros e administrativos que
dificultam a desconcentração de atribuições. Por outro, porque a União e
outras instâncias federativas precisam arbitrar conflitos políticos e de jurisdição, além de incentivar a atuação conjunta e articulada entre os níveis de governo no terreno das políticas públicas.
Parafraseando o conceito elaborado por Flávio Rezende para analisar
reformas administrativas12, pode-se dizer que a descentralização numa
Federação pode padecer de “falhas seqüenciais”. Ou seja, se não houver
ações coordenadoras, particularmente da União mas também dos estados,
o processo descentralizador tende a ter piores resultados na prestação
dos serviços públicos. O ponto essencial desta questão é que o Governo
Federal precisa reforçar seu papel coordenador ante estas “falhas
seqüenciais”, porém não pode fazê-lo contra os princípios básicos do
federalismo, como a autonomia e os direitos originários dos governos
subnacionais, a barganha e o pluralismo associados ao relacionamento
intergovernamental e os controles mútuos. A resposta para este dilema,
em síntese, está na criação de redes federativas, e não de hierarquias
centralizadoras.
A partir da definição histórico-conceitual de descentralização e de
federalismo, faremos a seguir a análise do caso brasileiro. Sabendo que
não há um modelo único de relações intergovernamentais, pois as Federações são bastante “elásticas” (ELAZAR, 1987: 11), tentaremos entender
a singularidade do Brasil. Mais especificamente, após uma discussão das
trajetórias de nossa estrutura federativa, o objetivo primordial é mostrar
como o Governo Federal, na Era FHC, lidou com a questão da coordenação entre os níveis de governo, tendo em conta, principalmente, o tema
da descentralização.
III - A TRAJETÓRIA DA FEDERAÇÃO BRASILEIRA: DA FUNDAÇÃO AO OCASO DO REGIME MILITAR
“Tivemos União antes de ter estados, tivemos o todo antes das partes”
(Rui Barbosa)
O objetivo desta seção é analisar brevemente a evolução do federalismo
brasileiro até o golpe de 1964, procurando traçar seus caminhos básicos.
Para tanto, partimos da seguinte hipótese: há dois momentos importantes
12
Conforme REZENDE, 2002.
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para a estruturação da nossa estrutura federativa até a recente democratização do país, o da formação inicial (1) e o da criação e evolução do
chamado Estado varguista (2). Cada um destes episódios estabeleceu
aspectos que influenciam os passos das trajetórias posteriores - ou seja,
uma relação de path dependence (PIERSON, 2000).
A questão federativa teve um papel fundamental na formação do Estado brasileiro. Antes mesmo de o país tornar-se uma Federação, o conflito
entre o Poder Central e as elites regionais tinha sido um dos pontos
cruciais na definição dos parâmetros da construção nacional. Mesmo tendo alcançado um inegável sucesso em sua conquista ultramarina, a colonização portuguesa não logrou criar uma centralização político-administrativa capaz de aglutinar e ordenar a ação dos grupos privados instalados
ao longo do território brasileiro (CARVALHO, 1993:54). O poder público
era, no mais das vezes, o domínio das oligarquias locais, poucas vezes
atingidas por medidas centralizadoras e autoritárias da Metrópole, predominando o modus operandi localista. Nascia aqui um dos ingredientes da
situação federalista brasileiro: o sentimento de autonomia. O outro foi o
crescimento da desigualdade entre as regiões do país ao longo da história.
Nossos pais fundadores sabiam da existência de uma situação federalista
no Brasil, mas temiam que ela gerasse desunião - as duas revoltas
pernambucanas, em 1817 e 1824, eram o retrato desta possibilidade.
Como remédio, optou-se pela via do Estado Unitário e monárquico. Esse
arranjo institucional foi escolhido pela elite central em razão de seu temor quanto a uma possível repetição aqui da fragmentação territorial
ocorrida na América hispânica. Cabe lembrar que havia quatro vice-reinados na América espanhola, dos quais se originaram dezessete países.
Após as sangrentas lutas do período regencial, conformou-se um modelo
centralizador que vigorou, firmemente, por quase cinqüenta anos13.
O paulatino enfraquecimento de Dom Pedro II, a perda do apoio de
importantes setores políticos desde o final da Guerra do Paraguai e, como
pá de cal, a abolição da escravatura, foram fatores que solaparam as
bases políticas do Império. Além destes, a insatisfação crescente das
elites locais com o excesso de centralização teve um peso histórico muito
13
O longo período centralizador não significou o fim da discussão a respeito de nossa organização
político-territorial do poder. O célebre debate entre Visconde do Uruguai, defensor da centralização
política e da descentralização administrativa, e Tavares Bastos, entusiasta do modelo norte-americano, teve um impacto enorme, mostrando que a situação federalista ainda se fazia presente (NUNES
FERREIRA, 2000).
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grande. Os governantes das províncias eram indicados pela cúpula do
Poder central, que normalmente não só escolhia pessoas de outras regiões como estabeleceu uma alta rotatividade no cargo. Por isso, a luta pelo
fim da monarquia respondeu, em grande medida, mais aos anseios por
descentralização de poder do que por uma republicanização da vida
política. Deste modo, a república brasileira não só nasceu colada a um
certo ideal federativo como a ele foi subordinada.
A criação da Federação teve sua inspiração no modelo norte-americano, mas sua conformação foi bastante diferente. Primeiro porque no momento de constituição do federalismo brasileiro partiu-se de um Estado
Unitário fortemente centralizado para um modelo descentralizador de
poder. A partir desta característica, nossa experiência estaria mais para o
modelo do hold together, em que uma união anterior desconcentra poder,
tal qual a construção federativa da Índia, do que para o do come together,
a junção entre partes antes separadas que distinguiu o protótipo
estadunidense, segundo a terminologia utilizada por Alfred Stepan (1999).
É neste sentido que Rui Barbosa, ao comparar nossa realidade com a
norte-americana, afirmou:
“Não somos uma Federação de povos até ontem separados e reunidos
de ontem para hoje. Pelo contrário, é da União que partimos. Na União
nascemos” (apud TORRES, 1961: 22).
O caso brasileiro, no entanto, também diferencia-se dos modelos de
hold together, os quais buscavam descentralizar poder e concomitantemente
fortalecer a unidade nacional, como também do protótipo norte-americano, porque neste era igualmente essencial a idéia hamiltoniana de União,
isto é, da criação de um nova estrutura que assegurasse a associação
entre as partes. No nascedouro da República Velha, Os líderes locais
lutaram pela Federação para aumentarem seu poderio interno e, sobretudo, para escolher autonomamente o governador de Estado. Como bem
percebeu João Camilo de Oliveira Torres:
“Afinal, federalismo entre nós quer dizer apego ao espírito de autonomia; nos Estados Unidos, associação de estados para defesa comum. (...)
A federação [brasileira] era o nome, a figura e o rótulo ideológico para
esta aspiração concreta e objetiva: a eleição dos presidentes de província
“ (TORRES, 1961: 153).
Neste projeto federativo, portanto, só cabia a busca do autogoverno e
pouco espaço sobrava para a interdependência. Isto se agravou por conta da forte assimetria e hierarquização existente entre os estados, com
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São Paulo e Minas Gerais detendo um poder e uma riqueza muitos maiores do que a grande maioria das unidades, o que dificultava o equilíbrio
horizontal na Federação. Além disso, as oligarquias dominavam a política
local na República Velha, enfraquecendo qualquer ideal republicano e
democratizador do sistema político.
O governador de estado tornou-se o centro deste sistema oligárquico,
no qual imperava o unipartidarismo, as eleições irregulares, a fragilidade dos governos locais em relação à máquina estadual, a ausência de
espaço para a oposição, a falta de mecanismos de fiscalização governamental e uma sociedade basicamente rural e com pouquíssima autonomia e capacidade para controlar de fato os governantes (LEAL, 1986;
LESSA, 1988; ABRUCIO, 1998). Tratava-se, no Brasil, de um modelo
muito distante do republicanismo proposto pelos founding fathers norte-americanos, de modo que a fundação da Federação descolou-se aqui
do ideal republicano.
O caráter centrífugo (1), o federalismo assimétrico e hierárquico (2) e
a oligarquização do sistema político no plano subnacional, com o respectivo fortalecimento dos governadores e de suas máquinas estaduais (3),
constituem as três características básicas do modelo federativo brasileiro
em seu nascedouro. Esta configuração estruturou caminhos que influenciaram o desenvolvimento político e econômico posterior. O peso dos
“caciques regionais”, a desigualdade regional e a criação de um modelo
político refratário à republicanização nos níveis estadual e municipal são
as maiores conseqüências do modo como a Federação foi fundada no
Brasil.
O ideário da Revolução de 30 posicionava-se firmemente contra o
modelo da política dos governadores e do federalismo oligárquico. Suas
origens, no tocante à temática político-territorial, estavam na nacionalização do discurso político desde os anos ‘1920, principalmente por parte
das Forças Armadas, e na crise da aliança do “café com leite”, com o
questionamento do predomínio paulista. A partir destas pressões, o
varguismo anunciava-se como um momento disruptivo e fundador de
uma nova ordem federativa brasileira; em resumo, um verdadeiro momento “maquiaveliano” (POCOCK, 1975). Entretanto, é preciso ressaltar
que as mudanças foram gradativas, não rompendo de imediato e por
completo com as bases iniciais da Federação, além de sua evolução não
ter ocorrido de maneira linear e completamente coerente. Soma-se a isso
a necessidade de se constituir um Estado de compromisso (DRAIBE,
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1985), a partir do qual vários grupos conviveram no condomínio do
poder.
O modelo varguista transformou o Estado nacional, em especial as
estruturas do Executivo Federal, no articulador de um projeto de desenvolvimento capitalista industrial, sob a égide da ideologia do nacionaldesenvolvimentismo, e no principal organizador das demandas sociais, a
partir de um tipo de corporativismo (nas relações capital/trabalho) e de
clientelismo (nas relações governantes e governados), os quais serviram
como instrumentos de uma “modernização conservadora”. Conformou-se,
por esta via, o processo de state and national building do Brasil moderno.
Este modelo estatal perpassou governos e regimes diferentes. Como bem
notou Aspásia Camargo,
“(...) tivemos uma Era de Vargas com Vargas, uma Era de Vargas sem
Vargas e, finalmente, uma Era de Vargas contra Vargas, na medida em
que a hostilidade do regime de 1964 à sua herança populista não os
impediu de reeditar estrutura semelhante ao modelo autoritário que ele
havia implantado, com os mesmos objetivos nacional-desenvolvimentistas”
(CAMARGO, 1993: 309).
Como este modelo varguista, alicerce de regimes e períodos distintos
e que sobreviveu algo em torno de cinqüenta anos, afetou e foi afetado
pelo federalismo? Há quatro importantes aspectos que devem ser observados na relação entre o varguismo e o federalismo até o golpe de 64: a)
a centralização do poder e a consolidação do Estado nacional (state and
national building); b) a nova dinâmica regional do poder; c) as mudanças
ocorridas no período 46-64; d) os padrões de relações intergovernamentais
verticais e horizontais que foram construídos.
A primeira tendência importante foi a da centralização do poder. Pelo
lado econômico deste projeto, a ação centralizada no Executivo Federal
procurou sustentar o desenvolvimento por instrumentos estatais de fomento e atuação direta no mercado, via empresas públicas. Pelo lado
social, procurou constituir gradativamente uma estrutura de políticas públicas, na maioria sustentadas e executadas pela União. E, por fim, pelo
lado administrativo, criou bolsões de meritocracia a partir do DASP, os
quais, apesar de conviveram com núcleos cartoriais e clientelistas, foram
essenciais na modernização do país.
Estes três aspectos tiveram relações conflituosas com os governos
subnacionais e suas elites. No que tange à intervenção econômica, a
atuação direta do Governo Federal foi crescendo ao longo do período,
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mas teve em alguns casos de ser compatibilizada com as estruturas estaduais, o que gerou uma dificuldade de coordenação federativa que pode
ser resumida na seguinte frase: ou se estabeleceu um modelo fragmentado e sem comunicação entre as esferas de governo - como no caso do
setor elétrico - ou a União, de cima para baixo e geralmente de forma
autoritária, montou um modelo vertical e hierárquico de atuação no plano
subnacional. No aspecto social, as primeiras políticas de Welfare, com
algumas exceções, foram não só financiadas pela União mas normalmente por ela executadas. Na verdade, a temática social presente no varguismo
do período de 30 a 64 esteve mais vinculada ao corporativismo e à sua
concepção de cidadania regulada do que a um padrão orgânico de políticas sociais. Mas é na questão político-administrativa que houve os maiores problemas. Por um lado, porque certo grau de patrimonialismo permaneceu no plano federal, e, por outro, pois não houve a modernização
da estrutura administrativa dos estados.
Utilizando novamente a perspectiva comparada, é interessante analisar o processo de centralização e construção do state and national building
nas Federações brasileira e norte-americana. Nos EUA, o chamado modelo rooseveltiano aumentou o poder do Governo Federal de forma democrática, consultando e negociando com os outros Poderes (SCHLESINGER,
1958). No caso brasileiro, por sua vez, a centralização do poder ocorreu
em pleno autoritarismo do Estado Novo e, com o fim deste, o período 4664 foi marcado pela dificuldade de estabelecer padrões mais cooperativos nas relações intergovernamentais e entre os Poderes. Ainda no que
se refere à experiência estadunidense, lá foram criadas Comissões Nacionais de Reforma das estruturas político-administrativas dos estados, que
num primeiro momento (década de 30) atingiram o Poder Executivo,
para mais adiante serem implementadas modificações no Legislativo (década de 50) e no Judiciário (década de 70) (BOWMAN & KEARNEY,
1986). No Brasil, ao contrário, o varguismo não procurou alterar substancialmente o sistema político-administrativo subnacional. Em vez disso, a
redemocratização de 45 foi construída em parte sob as bases da estrutura
oligárquica dos estados e, noutra parte, com a burocracia federal instituída no Estado Novo assumindo nichos fundamentais do sistema decisório,
em detrimento dos partidos (CAMPELLO DE SOUZA, 1976).
O modelo varguista também trouxe a questão regional à tona. A crítica
ao domínio da matriz do “café com leite”, em especial à hegemonia
paulista, foi o que impulsionou a proposição de medidas para, em tese,
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aumentar a igualdade numa Federação fundada sob o signo da hierarquia
e assimetria entre os estados e regiões. Duas proposições se destacaram
neste sentido: a elevação da desproporcionalidade de representação na
Câmara Federal, em proveito dos entes mais pobres e estancando o
crescimento das cadeiras parlamentares à disposição principalmente de
São Paulo; e a criação de instrumentos que estabeleceram formas de
transferências de recursos inter-regionais. Na década de 50, com a criação da Sudene, o discurso em prol dessas políticas fortaleceu-se mais
ainda (COHN, 1976).
Um balanço dessas medidas destinadas a aumentar a simetria federativa deve ressaltar dois pontos. O primeiro é o aumento da multipolaridade
da Federação durante a evolução do Estado varguista, de modo que houve um crescimento do número de estados médios em termos de poder,
dando maior equilíbrio ao jogo federativo (ABRUCIO, 1998). O segundo
ponto, contudo, revela que as políticas de compensação regional, bem
como a distorção representativa, não mudaram a extrema concentração
do desenvolvimento capitalista brasileiro na Região Sudeste e mais especificamente em São Paulo. Ao contrário, o grande salto econômico verificado da década de 50 até o final da de 70 resultou numa das Federações
mais desiguais do mundo.
O terceiro aspecto que devemos observar na relação entre o varguismo
e o federalismo são as mudanças ocorridas no período 46-64. A Constituição de 46 restituiu e ampliou a autonomia e as liberdades dos estados,
além de ter dado um raio de poder inédito aos municípios. Estas modificações não foram realizadas, no entanto, retornando-se ao padrão da
estrutura federativa da Primeira República. A Segunda República inaugurava um modelo mais equilibrado, já que dava à União a capacidade que
lhe faltara no auge da política dos governadores e, ao mesmo tempo, não
reduzia os níveis de governo subnacionais a meros agentes administrativos, como tinha acontecido no Estado Novo14.
O período 46-64 é marcado pela convivência da nacionalização
dos mecanismos de intervenção estatal com a manutenção da importância da política subnacional para o sistema de poder. Neste sentido,
é certo dizer que houve um processo descentralizador na passagem
14
É interessante notar que a literatura comparada sobre federalismo somente classifica o caso brasileiro como uma Federação a partir da Constituição de 1946, quando são garantidos princípios mais
democráticos de convivência intergovernamental. (Cf. ELAZAR, 1987 e WATTS, 1994).
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do Estado Novo para a Segunda República, mas é errado afirmar que
isso se fez em detrimento do Governo Federal. Isto mostra que a
tradicional classificação de sístoles e diástoles, formulada originalmente por Golbery do Couto e Silva, e segundo a qual o Brasil viveria
ciclos de centralização sucedidos por outros de descentralização e
assim por diante, explica muito pouco as mudanças históricas realizadas na dinâmica intergovernamental do país. Compartilho aqui da argumentação exposta por Kugelmas & Sola (1999) a respeito do conceito das sístoles e diástoles:
“A tão sedutora metáfora [das sístoles e diástoles] atribuída ao general
Golbery do Couto e Silva e que tem sua origem no pensamento de
Vilfredo Pareto é excessivamente simplista e pode conduzir a erros. (...)
Ficam na sombra alguns aspectos de continuidade nestes processos que
são essenciais para a melhor compreensão da evolução do regime federativo e da oscilação entre centralização e descentralização. Se há um
movimento pendular, não há simetria neste movimento. Nem o Estado
Novo chega a destruir a estrutura federativa, nem a Constituição de 1946
abala o reforço do governo central e sua ampliação de atribuições”
(KUGELMAS & SOLA: 1999: 64 - grifo meu).
O estudo do impacto do modelo varguista no federalismo completa-se
com a análise das relações intergovernamentais no período. Constata-se
primeiramente a criação de uma Federação mais multipolarizada no plano horizontal, beneficiada pelas políticas regionais e pela
desproporcionalidade congressual, apesar de São Paulo ainda concentrar
a maior parte do desenvolvimento econômico. Tal modificação não será
acompanhada de uma transformação radical dos sistemas políticos dos
estados menos desenvolvidos, o que criará um jogo federativo de barganha e autoproteção entre as elites dos lugares mais ricos com a dos mais
pobres. Em suma, a equação resultante da soma da multipolaridade com a
não-republicanização dos sistemas estaduais gerará, por muitas vezes,
uma parceria entre o moderno e o atraso.
As relações entre a União e os estados também ficaram mais equilibradas, o que levará o Governo Federal a buscar apoios nas elites regionais
para a aplicação de seus projetos nacionais, especialmente naquelas vinculadas aos estados mais pobres. Como contrapartida, o Executivo Federal tinha de distribuir verbas e cargos, num processo bastante fragmentado e marcado pela irracionalidade. Em resumo, conviviam o insulamento
burocrático e o clientelismo, só que a capacidade de conjugar as duas
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coisas, com um padrão de governabilidade mínimo, foi sendo minada ao
longo do tempo (GEDDES, 1994).
O modelo varguista não resolveu, em suma, dois dilemas básicos que
marcaram as relações intergovernamentais: a dificuldade em estabelecer
caminhos institucionais capazes de compatibilizar as demandas das elites
regionais com uma visão nacional dos problemas do país e o descompasso
entre a modernização (ainda que incompleta) das estruturas estatais do
Governo Federal e a permanência de padrões patrimonialistas em quase
todos os estados e municípios. Percebe-se, aqui, a força de alguns elementos presentes na fundação do federalismo, evidenciando que o
varguismo foi um corte sim na estrutura federativa da Primeira República
- sobretudo com o crescimento do poder da União -, mas não teve capacidade de destruir por completo o antigo modelo, convivendo com ele
ou o modificando em parte, conforme o seu sucesso na negociação com
as elites regionais.
O golpe de 64 refletiu num primeiro momento dois fenômenos
antinômicos no que se refere ao federalismo: a força dos poderes estaduais e a reação dos militares, principais “atores nacionais” durante o
varguismo, contra a antiga ordem constitucional, que para eles reforçara
demais a descentralização em detrimento do Governo Federal. Em relação ao primeiro, constata-se que os governadores dos estados mais importantes - São Paulo, Minas Gerais e Guanabara - foram decisivos no
apoio à derrubada de Goulart, na suposição de as Forças Armadas seriam
um “Poder Moderador” temporário até a nova eleição à Presidência da
República. Essa ilusão foi dissipada pela paulatina assunção do poder
pelos militares, que foram constituindo um projeto próprio. Um dos expoentes mais fortes do novo regime, o general Golbery do Couto e Silva,
tinha inclusive um diagnóstico claro dos efeitos do federalismo no período anterior:
“(...) a Constituição de 1946 viria a consagrar os velhos ideais
descentralizadores e autonomistas, com drástico cerceamento do poder
executivo em face do legislativo e redução do poder central da União, o
que acabaria, muitos outros fatores contribuindo largamente, ao mesmo
tempo, na quase anomia de 1963-64” (COUTO E SILVA, 1981: 12).
Na verdade, os militares localizavam na Federação a maior fonte de
provável oposição ao regime. Não por acaso a alteração da estrutura
federativa era um objetivo explícito e fundamental da cúpula governante.
Buscava-se aumentar a capacidade decisória do Executivo Federal e evi176
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tar a articulação oposicionista da elite civil nos estados, especialmente a
que pertencesse aos quadros dos partidos do período anterior ao golpe
de 64. Como bem notou Brasílio Sallum Júnior:
“Dentre os mecanismos que cumpriram o papel de homogeneizar a
vontade política da camada dirigente, a nova forma de Federação, com
estados e municípios menos autônomos em relação à União, desempenhou o papel mais relevante. Muito mais do que o novo sistema partidário, apesar da atenção muito maior que esse tem recebido da pesquisa
acadêmica” (SALLUM JÚNIOR, 1994: 3).
A ação dos militares para controlar a Federação também foi fruto da
consolidação desse grupo como principal ator nacional, em aliança com a
tecnoburocracia federal. O projeto deles constituiu uma nova combinação
entre o varguismo e o autoritarismo. Como mostrei em outro trabalho:
“O regime autoritário tinha como diretriz básica a maior centralização
do poder político e das decisões econômicas e administrativas na esfera
do Governo Federal, e dentro deste nas mãos do presidente da República. Dessa maneira, o regime militar seguia o padrão varguista de organização do poder, caracterizado pela hipertrofia do Poder Executivo Federal e pelo fortalecimento da Presidência da República como o centro
político do sistema, acentuando mais o seu caráter autoritário” (ABRUCIO,
1998: 63).
Este projeto fica claro na estrutura federativa montada pelo regime
militar, o chamado modelo unionista-autoritário (ABRUCIO, 1998). Em
linhas gerais, este modelo tinha, no plano político, o objetivo de cercear
o poder das elites estaduais mediante a adoção da eleição indireta para o
cargo de governador; no âmbito financeiro, várias mudanças tributárias
implementadas entre 1965 e 1968 redundaram numa forte centralização
da receita; e, por fim, no plano administrativo, procurava-se impor um
padrão uniforme e obrigatório às administrações estaduais em termos de
políticas públicas. Em suma, o modelo unionista-autoritário procurava
acabar com os contrapesos advindos da estrutura federativa.
O modelo de relações intergovernamentais no regime militar ficou
marcado, portanto, por uma concepção autoritária e vertical. Nele, havia
espaço para uma “cooperação” de mão única: os governos subnacionais
tinham de obedecer e colaborar com os planos da União. Para tanto,
foram utilizados os convênios, que repassavam recursos e assistência
técnica, e uma série de ações conjuntas entre as estatais federais e estaduais, pois com o Decreto Lei 200 (1967) descentralizou-se à administra177
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ção indireta a realização da maioria dos programas de desenvolvimento e
de intervenção no setor de infra-estrutura. Obviamente, caso estados e
municípios se recusassem a participar deste jogo, ficariam sem o bônus
das verbas e do apoio burocrático, e estariam alijados do processo de
state building realizado pelo varguismo em seu período militar. Antonio
Carlos Medeiros define precisamente este federalismo cooperativo à brasileira:
“As relações entre estados e municípios com o governo central eram
análogas a de um cliente com um banqueiro: o último está sempre em
uma posição de poder. Parceria não é um conceito adequado para descrevêlas” (MEDEIROS, 1986: 175).
O efeito desse modelo autoritário e verticalizado de relações
intergovernamentais é ainda mais profundo caso levemos em conta o papel do regime militar nas áreas econômica e social. Na primeira, especialmente na gestão de Ernesto Geisel, houve um aprofundamento do nacional-desenvolvimentismo, por intermédio das estratégias de substituição de
importações e de expansão das estatais. Como mostra José Luiz Fiori:
“Até os anos 30, o Brasil dispunha de apenas 14 empresas estatais.
Entre 1930 e 1954, na Era Vargas, o Estado gerou 15 novas empresas; nos
cinco anos de governo Kubitschek, 23; com Goulart foram criadas 33; e
durante os 20 anos de regime militar, 302” (FIORI, 1995: 58).
Além do intervencionismo no terreno econômico, o regime militar
instituiu de fato o moderno Welfare State brasileiro, uma vez que houve
uma ampliação enorme das diversas políticas públicas, que atingiram
uma parcela crescente de pessoas (DRAIBE, 1996). Porém, o nosso
incipiente Estado de Bem Estar Social era muito menos universalista do
que o padrão europeu e desenvolveu-se num contexto marcado por
restrições democráticas. Entre as suas principais peculiaridades, destacavam-se o alto grau de centralização financeira, a concentração das principais decisões na burocracia federal, a implementação de programas que
privilegiaram mais os grupos organizados e a classe média ascendente, a
expansão dos serviços sem uma profunda transformação da estrutura
administrativa subnacional que lhe dava suporte, a falta de mecanismos
de participação da sociedade no controle e discussão da elaboração das
políticas governamentais e, por fim, a ausência de estruturas que dessem
conta do problema do shared decision making, isto é, de instrumentos
políticos e burocráticos que fizessem a intermediação entre os níveis de
governo.
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O modelo unionista-autoritário, contudo, não acabou com os conflitos
intergovernamentais, havendo constantes negociações, concessões e mudanças de rumo que ocorreram no período. Um aspecto nodal determinou isso: a cúpula governante nunca pôde prescindir do apoio da elite
civil para permanecer no poder e, para tanto, manteve algumas eleições
para determinados cargos, todas com base no plano subnacional. Os
efeitos desta engenharia política ficaram mais claros em 1974, quando o
regime perdeu a disputa ao Senado em vários estados, a primeira grande
derrota desde a formação do sistema bipartidário. Ao aspecto político
somaram-se a crise econômica, o aumento das dissensões na corporação
militar e a pressão cada vez maior dos setores urbanos por políticas
públicas, conformado uma situação que resultou em intensas barganhas
federativas.
Uma primeira ação neste sentido foi o II PND. Concebido e implantado pelo presidente Geisel e sua equipe do Ministério do Planejamento,
este projeto efetuou ou induziu investimentos para desconcentrar o desenvolvimento para além da Região Sudeste, favorecendo a criação de
pólos industriais em estados médios, como Rio Grande do Sul e Bahia, e
tendo grande amplitude no setor de infra-estrutura em várias áreas do
país. Em poucas palavras, buscava-se o apoio das elites de regiões menos desenvolvidas, para contrabalançar o enfraquecimento político do
regime nos grandes centros e nas unidades estaduais mais fortes, especialmente em São Paulo e, em menor medida, no Rio de Janeiro.
Foram elevadas também as transferências federais obrigatórias e voluntárias para estados e municípios, além de o Governo Federal ter afrouxado os limites de endividamento e ampliado as linhas de crédito. Mais
do que isso, houve um paulatino restabelecimento da autonomia financeira que os governos subnacionais praticamente haviam perdido. É neste ponto que o movimento deixa de ser uma mera barganha e transformase em recuo ou mesmo perda de controle dos governos militares sobre o
processo. Em 1978, os governos estaduais recuperaram a capacidade de
definir as alíquotas do então ICM, antes decididas pelo Senado. Dali para
diante, o avanço descentralizador continuou em linha ascendente até sua
consolidação na Constituição de 1988.
O caminho mais difícil para os governos subnacionais passava então
pela recuperação da autonomia política e administrativa. O desenrolar do
regime militar foi solapando a legitimidade do poder da cúpula governante,
sobretudo com a diminuição do ímpeto econômico. Isso se fez presente,
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primeiramente, na divisão interna ao próprio partido governista, a Arena.
Por várias vezes, ocorreu um conflito entre o que poderíamos chamar de
Arena I, vinculada ao Poder Central e/ou aos governadores escolhidos
pelo Planalto, e a Arena II, constituída por boa parte da elite política
governista que se sentia alijada do poder. Quanto mais o Governo Federal enfraquecia-se no plano econômico e/ou tentava enfiar “goela abaixo” seus candidatos aos cargos estaduais, mais a Arena II se fortalecia e
reagia, inclusive contrariamente aos interesses do regime. Como se vê, o
corte regional afetou profundamente o projeto do militares (ABRUCIO &
SAMUELS, 1997).
Mas a autonomia política e administrativa só poderia ser recuperada
com o fim das eleições indiretas a governador, o que ocorreu na eleição
de 1982, fato que mudou a Federação e, ao mesmo tempo, abriu as
portas para a transição democrática.
IV - REDEMOCRATIZAÇÃO
E O
NOVO FEDERALISMO BRASILEIRO
As eleições diretas a governador, em 1982, contribuíram significativamente para o ocaso do regime militar e de seu modelo unionista-autoritário. Mais do que isso, a vitória da oposição modificou a história política
do país, fazendo com que a transição democrática brasileira se iniciasse
pelo plano estadual e não por um pleito nacional, tornando nossa experiência quase única nos processos de Terceira Onda de redemocratização
(LINZ & STEPAN, 1996).
As oposições conquistaram 10 dos então 22 governos estaduais, administrando estados que representavam 56% das população do país, 75% do
PIB e cerca de 75% do ICM, principal imposto subnacional de então
(FERREIRA FILHO, 1983: 181-182). Esse resultado eleitoral criou aquilo
que Juan Linz e Alfred Stepan chamaram de diarquia (LINZ & STEPAN,
1992: 61-62). Ou seja, havia duas estruturas de poder competindo entre
si: uma era a do Governo Federal, comandada pelos militares, e a outra
formada pelos governadores de estado, principalmente os da oposição,
mas não só, porque até os da situação aproveitaram-se do momento para
barganhar e angariar mais recursos e autonomia.
A partir dessa diarquia, os governadores constituíram-se em peçaschave da redemocratização, atuando em episódios decisivos. Primeiro na
campanha das Diretas, maior movimento de oposição ao regime militar.
Neste caso, foi fundamental a ação do governador paulista, Franco Montoro,
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somada depois a de outros da oposição. Isto porque o controle dos recursos dos governos estaduais, dentre os quais estavam o uso de prédios e
transportes públicos e o efetivo da Polícia Militar, garantiram a logística
básica para o sucesso das manifestações (Cf. SALLUM JÚNIOR, 1996:
102; ABRUCIO & SAMUELS, 1997; 155).
Outra influência decisiva dos estados foi na eleição indireta de
Tancredo Neves, então governador de Minas, à Presidência da República. Neste episódio, os governadores de oposição articularam-se inicialmente entre si e depois com a maioria dos vinculados ao PDS, a fim de
vencer a candidatura oficial de Paulo Maluf. É bom recordar que cada
estado tinha o direito de escolher seis delegados para o Colégio Eleitoral,
eleitos pelas Assembléias Legislativas, todas praticamente controladas pelos
governadores. Por isso, o “voto” dos governadores situacionistas era fundamental, e a articulação de Tancredo angariou o apoio integral de nove
desses doze governadores (DIMENSTEIN et alii, 1985).
A vitória de Tancredo Neves conformou um tipo específico de transição democrática, que pode ser resumida do seguinte modo;
“(...) a negociação da transição não foi feita só entre os moderados de
ambos os lados, mas também foi articulada e selada por meio de um
pacto entre governadores em ascensão no cenário político nacional e
elites regionais que sempre tiveram influência no jogo político federativo
- Marco Maciel, Antônio Carlos Magalhães, e Jorge Bornhaunsen eram
exemplos típicos dessas elites. A transição passou muito mais pela dinâmica da Federação do que por negociações partidárias definidoras do
conteúdo e da forma do governo que se instalaria. Não por acaso o pacto
entre a dissidência do PDS - a Frente Liberal - com a oposição, iniciado
efetivamente em uma reunião no Palácio dos Jaburus entre Aureliano
Chaves e Tancredo Neves, foi apelidado de ‘Acordo Mineiro’”(ABRUCIO,
1998: 101).
O papel dos governadores continuou destacado mesmo depois de
completada a passagem do poder aos civis. Isto se deveu basicamente à
evolução institucional do sistema político brasileiro ao longo da
redemocratização. O elemento chave, aqui, foi a coincidência entre os
pleitos estaduais majoritários com todas as eleições proporcionais, nacionais e estaduais, do período que vai de 1982 até 1994, num total de três
disputas sob esta lógica, ao passo que só houve uma eleição presidencial, e esta foi “solteira”. Ademais, o “caráter fundador” das eleições a
governador, que inauguraram um novo período competitivo, teve efeito
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sobre a dinâmica seguinte da transição reforçando um comportamento
mais estadualista na classe política - o contrário (comportamento mais
nacional) teria ocorrido se iniciássemos redemocratização escolhendo o
presidente ou uma Assembléia Constituinte.
Essa coincidência eleitoral, somada à legitimidade e ao poder político
dos governadores, fez com que eles fossem decisivos na elaboração da
Constituição, exercendo grande influência sobre importantes regras que
definiram o funcionamento do novo regime democrático e a organização
do Estado, especialmente no que diz respeito à descentralização tributária e isenções fiscais, distribuição de competências e estruturação do
poder político-administrativo no nível estadual.
Os prefeitos também aumentaram o seu poderio na Federação, numa
dimensão inédita em nossa história. Com a ampliação das eleições municipais, aumentando os cargos do mercado político brasileiro, e por conta
do impacto que as bases locais têm no comportamento da classe política,
em especial a do ramo legislativo, os governantes locais tornaram-se
peças-chave do sistema. Aos prefeitos, ademais, juntaram-se vários atores que começaram a defender um discurso municipalista. Entre estes,
destacavam-se acadêmicos, movimentos populares urbanos e, sobretudo,
grupos profissionais das diversas áreas de políticas públicas, tais como
saúde, educação, habitação, assistência social e meio ambiente, para ficar
nas principais.
Um novo federalismo estava nascendo no Brasil. Ele foi resultado da
união entre forças descentralizadoras democráticas com grupos regionais
tradicionais, que se aproveitaram do enfraquecimento do Governo Federal
num contexto de esgotamento do modelo varguista e do Estado nacionaldesenvolvimentista a ele subjacente. O seu projeto básico era fortalecer os
governos subnacionais e, para uma parte destes atores, democratizar o
plano local. Preocupações com a fragilidade dos instrumentos nacionais de
atuação e com coordenação federativa ficaram em segundo plano.
Dois fenômenos destacam-se neste novo federalismo brasileiro: o estabelecimento de um amplo processo de descentralização, tanto em termos financeiros e políticos, como também no que se refere à criação de
novas formas de relação entre os governos locais e a sociedade; e a
criação de um modelo predatório e não-cooperativo de relações
intergovernamentais, com predomínio para o componente estadualista.
Grupos técnicos e, em menor medida, políticos alojados no Governo
Federal reagiram a este processo, produzindo também outro componente
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das relações intergovernamentais nos anos 80' e 90': a concepção
centralizadora tecnocrática, com outra roupagem em relação ao regime
militar, mas com características e defeitos similares.
Comecemos pela formação do federalismo estadualista e predatório,
visto que ele teve um impacto enorme também no outro processo (a
descentralização). De 1982 a 1994, vigorou um federalismo estadualista,
não-cooperativo e muitas vezes predatório (ABRUCIO, 1998). Essa reviravolta na Federação brasileira só pôde se efetivar, em primeiro lugar,
porque a União e a própria Presidência da República entraram numa
séria crise, que perdurou por pelo menos dez anos. A crise abarcava o
modelo de financiamento estatal do desenvolvimento, o equilíbrio das
contas públicas nacionais, a burocracia federal, enfim, os instrumentos de
poder do Executivo Federal.
Além do enfraquecimento do pólo nacional, outras quatro características do sistema político também contribuíram para aumentar o poderio
dos estados e seus governadores. São elas:
a) o sistema ultrapresidencial que vigorou - e em grande medida ainda
vigora - nos estados, o qual fortaleceu sobremaneira os governadores no
processo decisório e praticamente eliminou o controle institucional e
social sobre o seu poder (ABRUCIO, 1998);
b) a lógica da carreira política brasileira, cuja reprodução se dá pela
lealdade às base locais e pela obtenção de cargos executivos no plano
subnacional ou então aqueles no nível nacional que possam trazer recursos aos “distritos” dos políticos. Em ambos os casos, o Executivo estadual
é peça fundamental, seja no monitoramento das bases para os deputados,
seja para ajudá-los na conquista de fatias estratégicas da administração
pública federal (ABRUCIO & SAMUELS, 1997);
c) os caciques regionais ocuparam ocupado posição destacada de liderança no Congresso Nacional ao longo da redemocratização, por vezes a
despeito dos partidos, por outras, tornando-se grandes proprietários de
parcelas dos condomínios partidários. E para se chegar a tal “posto”,
quase sempre era necessário ter ocupado uma governadoria e continuar
sendo influente na gestão do atual governador - melhor que seja o controlando, como bem mostra a experiência de maior cacique regional do
período, Antonio Carlos Magalhães.
d) Os governadores possuíam instrumentos financeiros e administrativos que os fortaleciam no sistema de poder. Os Bancos estaduais, um
número considerável de cargos na administração direta e indireta, o tribu183
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to que mais recursos recolhe no país - o ICMS, que abarca cerca de 30%
da arrecadação total - e, até então, um contingente considerável de empresas estatais em áreas estratégicos, como o setor elétrico.
O fortalecimento dos governos estaduais resultou na configuração de
um federalismo estadualista e predatório. Estadualista porque o pêndulo
federativo esteve a favor das unidades estaduais em termos políticos e
financeiros. Este aspecto estava igualmente presente no comportamento
atomizado e individualista dos governadores, cujo fortalecimento não resultou numa coalizão nacional em torno de um projeto de hegemonia
nacional, mas sim em coalizões pontuais e defensivas para manter o
status quo. Assim, cada “barão” estadual se preocupava apenas com a
manutenção do poder que a estrutura federativa lhe proporcionava.
O caráter predatório do federalismo brasileiro resultou do padrão de
competição não-cooperativa que predominava nas relações dos estados
com a União e deles entre si. Desde o final do regime militar, as relações
intergovernamentais verticais tinham sido marcadas pela capacidade dos
estados repassarem seus custos e dívidas ao Governo Federal e, ainda
por cima, não se responsabilizarem por este processo, mesmo quando
assinavam contratos federativos. Caso clássico disso foram os Bancos
Estaduais. A partir de 1982, as instituições financeiras estaduais foram
utilizadas pelos governadores como instrumento de atuação política. Foram criadas verdadeiras máquinas de produzir moedas, com efeitos deletérios para a inflação e para o endividamento global. O principal efeito
desta relação predatória era que, como aponta Sérgio Werlang, “todos os
bancos estaduais [tinham] potencial de transferência do déficit fiscal do
Estado para a União, não de direito mas de fato. Dessa forma, a política
macroeconômica do Governo Federal passava a depender dos Governos
Estaduais”15.
Não por acaso as dívidas vinculadas aos Bancos estaduais quadruplicaram no período que vai de 1983 a 1995. Pior: além de não controlálos, o Governo Federal regularmente cobria seus déficits, socorrendo os
estados com dinheiro que não seria recuperado. Exemplos disso foram
as ajudas às instituições financeiras subnacionais após as eleições de
1982, 1986 e 1990. Em todas estas vezes, a União, por meio do Banco
Central, intervinha, cobria seus rombos, saneava suas contas e depois
os devolvia para os governadores, sem nenhum prejuízo aos cofres
15
Apud BANCO CENTRAL DO BRASIL, 1992: 181.
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públicos dos estados - e tudo isso era repassado, em forma de dívida,
para toda a nação.
No plano das relações entre os estados, o aspecto predatório teve
lugar na guerra fiscal, que começou a ganhar força após a Constituição de
1988 e ainda continua vigorosa nas práticas federativas. O fato é que o
estadualismo predatório acabará sendo ele próprio um dos elementos
geradores de sua crise, em 1994, como veremos mais adiante.
Este contexto estadualista tem algo em comum com a descentralização:
o intento de reforçar os governos subnacionais, obtendo-se uma autonomia inédita. A Federação tornou-se uma cláusula pétrea, e sua extinção ou
medidas que alterem profundamente seus princípios não podem ser objetos de Emenda constitucional (artigo 60, parágrafo 4). Os estados ganharam
maior capacidade de auto-organização e novos instrumentos de atuação no
plano intergovernamental, como as Ações Diretas de Inconstitucionalidade
(Adins), extensamente utilizadas pelos governadores (WERNECK VIANNA,
1999: 55). A liberdade dada às Constituintes estaduais também forneceu
um terreno fértil para a independência federativa.
Pela primeira vez na história brasileira e sem paralelo na experiência
internacional, os municípios transformaram-se em entes federativos, constitucionalmente com o mesmo status jurídico dos estados e da União16.
Hely Lopes Meirelles, um dos maiores especialistas em Direito Administrativo no Brasil, afirma que a nova Constituição deu ao município a
condição de “entidade estatal, político-administrativa, com personalidade
jurídica, governo próprio e competência normativa” (MEIRELLES, 1993:
116). Não obstante esta autonomia, os governos locais respeitam uma
linha hierárquica quanto à sua capacidade jurídica - a Lei Orgânica, por
exemplo, não pode contrariar frontalmente a Constituição estadual -, e
são, no mais das vezes, muito dependentes dos níveis superiores de
governo no que tange às questões políticas, financeiras e administrativas.
A nova autonomia dos governos subnacionais deriva em boa medida
das conquistas tributárias, iniciadas com a Emenda Passos Porto, em 1983,
e consolidadas na Constituição de 1988, o que faz do Brasil o país em
desenvolvimento com maior grau de descentralização fiscal (SOUZA,
1998: 8). Cabe ressaltar que os municípios tiveram a maior elevação
relativa na participação do bolo tributário, apesar de grande parte deles
16
Já no seu artigo 1, a Constituição define que “a República Federativa do Brasil, [é] formada pela
união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal (...)”.
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depender muito dos recursos econômicos e administrativos das demais
esferas de governo. O fato é que os constituintes reverteram a lógica
centralizadora do modelo unionista-autoritário, e mesmo as recentes alterações que beneficiaram a União não modificaram a essência
descentralizadora das finanças públicas brasileiras.
A descentralização foi acompanhada igualmente pela tentativa de se
democratizar o plano local. Embora este processo seja desigual na sua
distribuição pelo país e tenha um longo caminho pela frente, ele redundou numa pressão sobre as antigas estruturas oligárquicas, conformando
um fenômeno sem par em nossa história federativa. Daí surgiram novos
atores, como os conselheiros em políticas públicas e líderes políticos que
não tinham acesso real à competição pelo poder - o crescimento gradativo
da esquerda nas eleições municipais, em particular o PT, demonstra isso.
Também surgiram formas inovadoras de gestão, como o Orçamento
participativo e a Bolsa Escola, para ficar em dois casos famosos. Tais
exemplos nos remetem às idéias norte-americanas do “Laboratório de
Democracia” e do “Reinventando o Governo”17.
As conquistas da descentralização não apagam os problemas dos governos locais brasileiros. Em especial, cinco são as questões que colocam
obstáculos ao bom desempenho dos municípios do país: a desigualdade
de condições econômicas e administrativas; o discurso do “municipalismo
autárquico”; a metropolitanização acelerada; os resquícios ainda existentes tanto de uma cultura política como de instituições que dificultam a
accountability democrática e o padrão de relações intergovernamentais.
Desde a fundação da Federação, o Brasil é historicamente marcado
por fortes desigualdades regionais. Em termos comparados, o Brasil está
em terceiro lugar na lista dos países com alto índice de desigualdade
regional, numa situação pior do que a da Índia, protótipo de Federação
marcada por disparidades econômicas, e melhor apenas do que, respectivamente, a Rússia e a China (SHAH, 2000).
É bem verdade que o Brasil vem atacando as desigualdades regionais
desde o período varguista e tais medidas foram ampliadas pela Constituição de 1988, por meio de transferências tributárias, incentivos fiscais e
medidas redistributivas na área social. Embora tenha havido uma mudança na assimetria federativa existente no momento da fundação da Federa17
Entre os diversos livros que tratam da temática da inovação municipal no Brasil, podemos citar os
de SPINK & CLEMENTE, 1997; e o de PAULICS, 2000.
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ção, estamos bem longe dos ideais que mobilizaram Celso Furtado e
outros homens públicos brasileiros. As duas tabelas a seguir, elaboradas
por Clélio Campolina Diniz (2000), retratam as diferenças inter-regionais
sob dois aspectos: o econômico e o social.
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A disparidade de condições econômicas é reforçada pela existência
de um contingente enorme de municípios pequenos, com baixa capacidade de sobreviver apenas com recursos próprios. A média por Região é
de 75% dos municípios com até 50 mil habitantes, ao passo que no
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universo total há 91% dos poderes locais com este contingente
populacional (RESENDE, 2000; ARRETCHE, 2000: 247). Além do mais,
argumenta Marta Arretche:
“O porte populacional dos municípios tem uma relação direta com sua
capacidade de gasto: nos Estados do Nordeste, a receita corrente própria
per capita dos municípios com população inferior a 50 mil habitantes é
inferior a R$ 10,00; nos Estados do Sul, esta cifra é inferior a R$ 53,00 e,
nos Estados do Sudeste, inferior a R$ 77,00” (ARRETCHE, 2000: 247).
A baixa capacidade tributária dos municípios brasileiros é ainda maior
sob o ponto de vista comparado. Segundo estudo realizado por José
Roberto Afonso e Érica Araújo (2000: 48), os governos locais brasileiros
estavam em décimo quinto lugar em termos de base de arrecadação
própria num universo de dezenove países. Mas além da fragilidade financeira, a maior parcela das municipalidades detém uma máquina administrativa precária - embora o Governo Federal durante os anos FHC
tenha atuado para minorar este problema, como veremos depois. Problemas de capacidade burocrática constituem elemento que cria uma “falha
seqüencial” na descentralização. O sucesso do processo descentralizador,
diante dessa realidade, vai depender muito das ações dos níveis superiores de governo e do desenho das políticas públicas, os quais devem
oferecer auxílio intergovernamental mas também incentivos para que as
próprias gestões locais alterem sua estrutura. Caso contrário, essa “falha
seqüencial” criará uma eterna dependência dos municípios em relação
aos estados e à União.
Somado ao obstáculo financeiro e administrativo, o bom andamento da
descentralização no Brasil foi prejudicado exatamente pelo discurso que
a defendia: a argumentação em prol da municipalização. Por um lado, a
postura municipalista foi essencial para modificarmos o padrão centralista
de produção e implementação de políticas públicas que vigorou ao longo
do período varguista, particularmente no regime militar. Ademais, foi
igualmente a partir dela que diversos avanços democratizadores e novas
posturas em relação à gestão pública surgiram no cenário federativo
brasileiro. Porém, conformou-se uma ideologia segundo a qual os governos locais poderiam sozinhos resolver todos os dilemas de ação coletiva
colocados às suas populações. Trata-se de um municipalismo autárquico,
como bem definiu certa vez Celso Daniel, ex-prefeito de Santo André. É
interessante reforçar que Celso foi um defensor da bandeira municipalista,
além de um inovador administrativo e um democratizador das relações
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entre Estado e sociedade, mas também sabia dos limites do poder local
no país.
O municipalismo autárquico incentiva, em primeiro lugar, a
“prefeiturização”, tornando os prefeitos atores por excelência do jogo
local e intergovernamental. Cada qual defende seu município como uma
unidade legítima e separada das demais, o que é uma miopia em relação
aos problemas comuns em termos micro e macroregionais. Numa hipótese que constata maior perversidade neste fenômeno, o municipalismo
autárquico se transforma numa plataforma de poder e ascensão a lideranças locais.
O quadro institucional favorece o municipalismo autárquico. Primeiro
porque não há incentivos para que os municípios se consorciem, dado
que não existe nenhuma figura jurídica de direito público que dê segurança política para os governos locais que buscam criar mecanismos de
cooperação. Mesmo assim, em algumas áreas os consórcios desenvolveram-se mais, como em meio ambiente e na saúde, mas ainda numa proporção insuficiente para a dinâmica dos problemas intermunicipais. Ao
invés de uma visão cooperativa, predomina um jogo no qual os municípios concorrem entre si pelo dinheiro público de outros níveis de governo,
lutam predatoriamente por investimentos privados e, ainda, muitas vezes
repassam custos a outros entes, como é o caso de muitas prefeituras que
compram ambulâncias para que seus moradores utilizem os hospitais de
outros municípios, sem que seja feita uma cotização para pagar as despesas. Neste aspecto, a questão da coordenação federativa é chave.
Em segundo lugar, a estrutura tributária baseada em transferências
intergovernamentais, não obstante ser essencial numa Federação desigual, não estabelece no caso brasileiro, ao contrário de outros países
federativos, qualquer tipo de estímulo para aumentar a arrecadação tributária ou então para compartilhar despesas de forma horizontal. A distribuição dos recursos tornou-se ainda mais irracional com a multiplicação
de municípios, que ganhou força após a promulgação da Constituição de
1988. O impulso para isso adveio de quatro fatores: a) o recebimento
automático de dinheiro provindo do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) para todo distrito que se emancipar; b) a criação de novos
municípios pode servir ao desejo dos governadores de redesenhar o
mapa eleitoral em regiões cuja competição política seja baixa o suficiente
para permitir a entrada de um novo líder - mais uma demonstração da
força do estadualismo; c) a ausência de um nível intermediário entre o
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governo estadual e o municipal exacerba o conflito entre os líderes locais
por verbas públicas, tornando irracional os resultados regionais das políticas (ABRUCIO, 2000: 327-328).
A partir destes fatores, houve uma grande multiplicação de
municipalidades no Brasil, como mostra a tabela abaixo:
O processo de multiplicação de municípios tornou-se efetivamente
predatório porque beneficiou mais as pequenas municipalidades, onde
há menor população e menos problemas coletivos, levando-se em conta
sua magnitude e complexidade. Por tabela, foram prejudicados os governos locais de médio para grande porte, com maior população e onde a
demanda por recursos públicos é mais necessária e premente. Ao se
observar os resultados da enorme emancipação de distritos pelo pais,
conclui-se o seguinte:
a) Primeiro, mais da metade dos municípios criados até 2002 tinham
até cinco mil habitantes e mais de 95% tem, no máximo, 20 mil habitantes
(GOMES & MAC DOWELL: 2000). Criou-se um terreno para a fragmentação do país, ao contrário da tendência internacional. Para dar um exemplo, em 14 dos 15 países da União Européia houve diminuição do número de comunas e agregação de poderes locais;
b) Os municípios criados têm a menor porcentagem de receita própria
dentro da receita total e são os que têm, disparado, a maior receita per
capita dentro do total (GOMES & MAC DOWELL: 2000).. Assim, a multi191
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plicação de municípios significou, de um lado, um estímulo a
irresponsabilidade fiscal e a dependência em relação às transferências
intergovernamentais e, de outro, retirou recursos dos maiores para os
menores
c) Por fim, a maioria dos municípios criados, além de representarem
uma parcela ínfima da população brasileira, está gastando a maior parte
dos recursos apenas para pagar suas contas mínimas, sendo os que mais
gastam com os três Poderes (GOMES & MAC DOWELL: 2000). Ao invés
de significar um repasse de gastos para a área social, resolvendo melhor
os problemas que estariam sendo prejudicadas pelo município-mãe, o
desmembramento concentrou renda nas mãos da elite política local.
Outro fenômeno que marcou o processo de descentralização foi a
intensa metropolitanização do país. Não só houve um crescimento das
áreas metropolitanas, em número de pessoas e de organizações administrativas, como também os problemas sociais cresceram gigantescamente
nestes lugares. No entanto, a estrutura financeira e político-jurídica instituída pela Constituição de 1988 não favorece o equacionamento desta
questão. No que se refere ao primeiro aspecto, a opção dos constituintes
foi por um sistema de repartição de rendas intergovernamentais com viés
fortemente anti-metropolitano (REZENDE, 2001). No que tange ao segundo ponto, o fato é que as Regiões Metropolitanas (RMs) enfraqueceram-se institucionalmente em comparação à dimensão que tinham no
regime militar. Prevaleceu o municipalismo em detrimento das formas
compartilhadas de gestão territorial. É dessa concepção que se originou a
explosão dos problemas dos grandes centros urbanos brasileiros, como
veremos mais adiante.
A quarta característica da descentralização é a sobrevivência de resquícios culturais e políticos anti-republicanos no plano local. A despeito
dos avanços que houve, que foram muitos se os enxergarmos por uma
perspectiva histórica, diversas municipalidades do país ainda são governadas sob o registro oligárquico, em oposição ao modo poliárquico que é
fundamental para a combinação entre descentralização e democracia.
Escândalos como o dos precatórios e o da “Máfia dos Fiscais”, ambos em
São Paulo, mostram que nem as grandes cidades estão imunes - no caso
em questão, o órgão montado para fiscalizar o Poder público, o Tribunal
de Contas do Município (TCM), era totalmente controlado pelo malufismo,
num estilo não muito diferente do vigente na política da República Velha.
Ao estudar como vários municípios vêm sendo governados, Joffre Neto
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(2001) revelou o domínio do executivismo ou prefeiturização do Poder
público, com os vereadores almejando ser “miniprefeitos” e não legisladores ou fiscalizadores do Poder público, além de a população entrevistada afirmar que a Câmara Municipal “fazia parte da Prefeitura” e desejar
que os parlamentares atuassem, prioritariamente, em prol de políticas
assistenciais. Uma outra pesquisa, realizada por Lúcia Avelar e Fernão
Dias de Lima (2000), constatou outra face desse problema: os piores
resultados no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) são encontrados nos municípios pequenos e governados pelo modo político tradicional - neste quesito, destaca-se o PFL.
É claro que a única maneira de democratizar e republicanizar o poder
local é continuar na trilha da descentralização. Porém, se não houver
reformas das instituições políticas subnacionais, além de uma mudança da
postura da sociedade em relação aos governantes, cria-se uma nova “falha seqüencial” no processo descentralizador.
No plano intergovernamental, não se constituiu uma coordenação capaz de potencializar a descentralização ao longo da redemocratização.
Na relação dos municípios com os estados, predominava a lógica de
cooptação das elites locais, típica do ultrapresidencialismo estadual. Adicionalmente, as unidades estaduais ficaram, com a Constituição de 1988,
num quadro de indefinição de suas competências e da maneira como se
relacionariam com os outros níveis de governo. Este vazio institucional
favoreceu uma posição “flexível” dos governos estaduais: quando as políticas tinham financiamento da União, eles procuravam participar; caso
contrário, eximiam-se de atuar ou repassavam as atribuições para os governos locais.
O avanço da descentralização encontrou a União numa postura defensiva. Ao perder recursos tributários na Constituição e se responsabilizar
integralmente, num primeiro momento, pela estabilidade econômica, o
Governo Federal procurou transformar a descentralização num jogo de
mero repasse de funções, intitulado à época de “operação desmonte”.
Daí se originam dois problemas. O primeiro é que, dada a desigualdade
federativa, muitas políticas terão de ser necessariamente financiadas, pelo
menos em parte, por recursos federais. Além disso, a coordenação nacional é essencial para induzir, auxiliar e avaliar a implementação de diversos programas.
Ao contrário do que o ideário centralista defendeu junto à opinião
pública, grande parcela dos encargos foi sim assumida pelos municípios.
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Só que isso aconteceu de forma desorganizada na maioria das políticas - a
grande exceção foi a área de Saúde. Ademais, a inflação crônica tornava
mais instável o repasse de recursos, dificultando uma assunção programada das atribuições por parte dos governos locais. Criou-se, em suma,
uma situação de incerteza, de decisões e transferências de verbas em
ritmos inconstantes e de ausência de mecanismos que garantissem a cooperação e a confiança mútua. Neste sentido, argumenta Maria Hermínia
Tavares de Almeida:
“Sendo a descentralização um processo e não um jogo de uma rodada
só, a confiança em sua continuidade é essencial para que os governos
subnacionais se disponham a entrar no jogo. Em outros termos, a
descentralização bem sucedida requer que o centro[em especial numa
situação de grande desigualdade, como a da Federação brasileira] seja
capaz de dar incentivos e garantias críveis de continuidade aos destinatários da transferência” (TAVARES DE ALMEIDA, 2000a: 7).
Aqui se encontra a nova questão resultante do federalismo conformado na redemocratização: a descentralização depende agora, diversamente do que ocorria regime centralizador e autoritário, da adesão dos níveis
de governo estaduais e municipais. Por isso, o jogo federativo depende
hoje de barganhas, negociações, coalizões e induções das esferas superiores de poder, como é natural numa Federação democrática. Em suma,
seu sucesso associa-se à coordenação intergovernamental.
A falta de uma coordenação do processo descentralizador fez com que
ele dependesse de duas variáveis para ser bem sucedido. A primeira é o
desenho específico de cada política pública. A área em que havia uma
estrutura institucional mais adequada à descentralização era a da Saúde,
por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), e foi nela em que houve
maior sucesso. No restante das atribuições governamentais, o cenário
inicial foi caótico e sua melhora foi normalmente condicionada à implantação de medidas coordenadoras no plano geral das políticas, algo que
ganhou força em determinados setores a partir do governo FHC.
A segunda variável relaciona-se à estratégia de indução federativa. Em
extensa análise de quatro áreas de políticas públicas (desenvolvimento
urbano, educação, assistência social e saúde) em seis unidades estaduais,
Marta Arretche comprovou que “devido à debilidade fiscal de uma grande proporção de municípios em cada Estado (...) a existência e a natureza
de estratégias federais e estaduais são um requisito fundamental do processo de descentralização das políticas sociais” (ARRETCHE, 2000: 247).
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Por isso, o sucesso dos programas vincula-se à ação coordenada entre os
níveis de governo.
O principal problema da descentralização ao longo da redemocratização
foi a conformação de um federalismo compartimentalizado, em que cada
nível de governo procurava encontrar o seu papel específico e não havia
incentivos para o compartilhamento de tarefas e a atuação consorciada.
Daí decorre também um jogo de empurra entre as esferas de governo. O
federalismo compartimentalizado é mais perverso no terreno das políticas públicas, já que numa Federação, como bem mostrou Paul Pierson, o
entrelaçamento dos níveis de governo é a regra básica na produção e
gerenciamento de programas públicos, especialmente na área social. A
experiência internacional caminha neste sentido.
Problemas vinculados ao estadualismo predatório e à falta de coordenação da descentralização foram atacados pelo governo Fernando Henrique
Cardoso, com sucessos diferenciados, maiores na primeira questão, mais
irregulares, na segunda. Mas antes de analisar as políticas em si, é preciso compreender as condições que permitiram as mudanças, bem como as
que ainda criam obstáculos para a melhoria da coordenação federativa.
V - A ERA
DO
REAL:
UMA
“CONJUNTURA
CRÍTICA” E UM
“MOMENTO
18
MAQUIAVELIANO” NO FEDERALISMO BRASILEIRO
A “era do Real” marca o início da crise do federalismo estadualista, embora não tenha conseguido eliminar todas suas características predatórias
- uma delas, a guerra fiscal, até aumentou de intensidade. Entende-se
aqui o Real de uma forma mais ampla do que um plano de estabilização:
o contexto que o proporcionou e os seus diversos resultados foram fundamentais para fortalecer o Governo Federal e enfraquecer os governos
estaduais, mudando a dinâmica intergovernamental.
Neste sentido, a “era do Real” nasce antes da promulgação do plano
de estabilização. A partir de 1993, e mais especificamente da indicação
do ministro Fernando Henrique Cardoso para o Ministério da Fazenda, o
Governo Federal fortaleceu-se em razão dos seguintes fatores:
a) O primeiro é a mudança no cenário externo. Depois de uma década
em que se combinaram, perversamente, a redução drástica de emprésti18
A análise desta seção baseia-se no desenvolvimento do argumento primeiramente defendido em
Abrucio & Ferreira Costa (1998).
195
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mos e refinanciamento externos com uma enorme transferência líquida
de recursos para o estrangeiro (SALLUM JÚNIOR, 1999: 25), a partir de
1991 começa a ocorrer uma reversão deste processo. Entre 1992 e 1997,
ocorre o auge do fluxo de capitais para a América Latina. De acordo com
dados da Cepal, somente o montante de investimento estrangeiro direto
passa de 10 bilhões de dólares, em 1990, para 68 bilhões de dólares, em
199719. Soma-se a isso a bem sucedida renegociação da dívida externa
realizada em 1993 e chegamos a uma situação extremamente favorável
ao Executivo Federal no plano internacional, antítese do que fora a década de 80.
b) Um segundo ponto importante foi a melhora das condições das
contas públicas federais. Aqui, verdade seja dita, a “era do Real” recebeu
de bandeja algumas conquistas dos períodos anteriores, como a modernização orçamentária feita no governo Sarney e o crescimento das reservas
cambiais obtido pelo ministro Marcílio Marques Moreira. Além disso, desde o governo Itamar Franco houve um aumento progressivo da arrecadação federal. Diretamente, Fernando Henrique Cardoso, então Ministro da
Fazenda, atuou de forma decisiva para a aprovação do Fundo Social de
Emergência (FSE), que aumentou os recursos “livres” da União, constituindo a primeira grande vitória federativa da União no campo financeiro
desde a aprovação da Emenda Passos Porto, em 1983, quando se iniciou
o aprofundamento da descentralização.
Grandes melhoras no plano externo e algumas importantes mudanças
para o equilíbrio interno das contas públicas, eis dois passos importantes
para o fortalecimento do Governo Federal;
c) O impeachment do presidente Collor e a possibilidade da vitória de
Lula nas eleições presidenciais de 1994 levaram a um realinhamento do
establishment, em sua dimensão política, social e econômica. Os principais caciques regionais e os partidos ou frações partidárias que comandavam, importantes setores empresariais e a maioria dos meios de comunicação de massas não estavam dispostos a ter de engolir o “sapo barbudo”
nem um novo aventureiro solitário à direita. Havia, então, os primeiros
sinais do fortalecimento do Governo Federal, creditado à atuação de
Fernando Henrique, que, aliás, pouco a pouco se transformava informalmente em “primeiro-ministro” do presidente Itamar Franco. Com este
cacife e sua virtú na montagem da coligação eleitoral, Fernando Henrique
19
Gazeta Mercantil, 9 de fevereiro de 2000, página A-20.
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conseguiu formar uma grande aliança, a qual se reforçou com o sucesso
do Real.
d) Houve também a consolidação de uma mudança ideológica que há
anos estava, paulatinamente, ganhando força na sociedade brasileira. As
pesquisas de opinião em geral e as feitas junto às elites por Bolívar
Lamounier e Amaury de Souza mostraram que um discurso favorável às
reformas do Estado, tomadas de uma maneira genérica, obtiveram uma
aprovação inédita, revertendo o ideário que predominara na década de
80 (LAMOUNIER & SOUZA, 1991; LAMOUNIER & SOUZA, 1995;
LAMOUNIER & SOUZA, 1995 a). Os principais formadores de opinião, a
classe média, a mídia e importantes setores empresariais adotaram a idéia
de reformas constitucionais como a salvação do país, e foi isso que,
somado à estabilização monetária, uniu fortemente o presidente à sociedade no primeiro mandato, dando grande popularidade a Fernando
Henrique;
e) Pela primeira vez desde o início da redemocratização, as eleições
presidenciais de 1994 ocorreram concomitantemente ao pleito estadual e
à disputa para o Congresso Nacional. Essa “eleição casada” vinculou os
congressistas e o presidente, e mesmo os governadores, ao mesmo manto de legitimidade, ao contrário do que ocorrera antes, quando a Presidência da República era definida num pleito “solteiro” e os parlamentares elegiam-se tendo como carro-chefe a eleição à governadoria - o que
contava a favor da atuação dos chefes dos Executivos estaduais junto às
bancadas de seus estados. Decorreu, daí, um dos fatores do fortalecimento da Presidência da República vis à vis aos governos estaduais;
f) Ainda no plano eleitoral, não foi apenas o caráter concomitante da
eleição que favoreceu a União no seu relacionamento com os estados. A
eleição de 1994 foi marcada por uma outra peculiaridade: em unidades
estaduais estratégicas da Federação, foram eleitos governadores fiéis ao
presidente e cujas vitórias derivaram do apoio ao Plano Real. Entre estes
destacam-se Marcello Alencar (Rio de Janeiro), Eduardo Azeredo (Minas
Gerais), Antonio Britto (Rio Grande do Sul) e mesmo Mário Covas (São
Paulo), embora este tinha maior independência partidária e calibre político. Apesar de ainda existirem importantes conflitos e FHC ter tido sempre de negociar com os governos estaduais, estes últimos atuaram bastante afinados com o Palácio do Planalto, concordância federativa que não
era obtida desde o governo Geisel;
g) Por fim, o fortalecimento do Governo Federal completa-se e se
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estrutura no estupendo êxito inicial do Plano Real, que conseguiu se
sustentar por mais tempo do que qualquer outro e, ademais, estabeleceu
alguns aspectos estruturais bem sucedidos que provavelmente acompanharão o próximo governo. Sua legitimidade garantiu a eleição e a reeleição do presidente Fernando Henrique, bem como um grande apoio de
importantes setores da sociedade, dos governadores e da comunidade
internacional. Além da legitimidade, a arquitetura do Plano Real derrubou
o aspecto inercial da inflação e, o que é mais interessante aos nossos
propósitos, praticamente liqüidou os mecanismos que os estados detinham anteriormente para produzir, autônoma e predatoriamente, recursos financeiros.
A estabilidade monetária foi garantida não apenas pelo instrumento
engenhoso da URV, mas também graças ao novo cenário externo. Foi
esse fator que possibilitou a utilização da chamada âncora cambial como
variável chave no combate à inflação. A “aposta” no fluxo de capital
externo como elemento que, simultaneamente, garantiria os baixos índices inflacionários e fecharia as contas do balanço de conta corrente, foi a
tônica no primeiro mandato. Pode se dizer que se, por um lado, essa
aposta foi perigosa pois criou uma dependência que por fim levaria à
desvalorização do Real em janeiro de 1999 e a um desastre financeiro
que acompanhou o segundo mandato, por outro lado, foi também ela que
estabeleceu uma ameaça exógena constante aos congressistas, já que a
cada crise internacional, desde da do México à da Rússia, o presidente os
pressionava a aprovar reformas para garantir a estabilidade do Real.
O êxito inicial do Plano Real teve grande impacto sobre a
descentralização. A drástica redução da inflação tornou mais estáveis as
transferências intergovernamentais, favorecendo à condução do processo
descentralizador. Com isso, a União obteve o instrumento que lhe faltava
para poder barganhar a passagem de encargos e funções de uma forma
mais racional e programada para os governos subnacionais. Foi esta situação que permitiu a formulação de políticas públicas coordenadas como
o Fundef, que analisaremos adiante.
A “era do Real” teve o significado de uma “conjuntura crítica”, isto é,
de uma grande mudança na posição relativa dos atores políticos e sociais
em relação aos instrumentos de poder e às preferências (PIERSON, 2000).
A esta modificação na situação dos agentes somou-se a capacidade do
presidente Fernando Henrique de montar e manter por um bom tempo
uma coalizão capaz de fazer alterações na antiga estrutura, segundo os
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objetivos determinados por FHC. Neste sentido, trata-se, também, de um
“momento maquiaveliano” (POCOCK,1975), no qual a mudança da “fortuna” (condições objetivas, no sentido marxista) realiza seu potencial na
virtù do condutor da mudança, que cria uma nova ordem institucional20.
Deste modo, houve uma conjunção entre as alterações situacionais e a
capacidade do presidente Fernando Henrique Cardoso de montar sua
estrutura de poder, pelo menos em seu primeiro mandato. Para tanto,
FHC soube combinar habilmente os aspectos majoritários com os
consociativos do sistema político brasileiro. Em termos legislativos, ele
definiu o processo constitucional, com apoio de grande parte da sociedade, como a agenda prioritária do Congresso Nacional, utilizando-se das
Medidas Provisórias para suas tarefas rotineiras de governo ou para impulsionar o andamento de votações importantes, inclusive constitucionais, que estavam paradas por conta de vetos na própria base governista.
Mas foi na montagem do governo que o presidente Fernando Henrique
teve seu maior mérito em lidar com as peculiaridades de nosso sistema
político. Ele se aproveitou da legitimidade das urnas e do sucesso do
Real não para impor um mandato bonapartista; ao invés disso, costurou o
apoio de partidos e de lideranças de estados importantes, só que resguardando um espaço maior de poder para algumas agências insuladas - com
destaque para o Ministério da Fazenda - e para técnicos vinculados diretamente à Presidência da República - aqui, o instrumento utilizado foi o
da influência direta na escolha de Secretários Executivos, segundo cargo
na hierarquia ministerial, os quais fizeram o papel de controladores da
delegação presidencial aos ministros escolhidos segundo as variáveis partidárias e federativas (LOUREIRO & ABRUCIO, 1999). No presidencialismo de coalizão brasileiro, o primeiro mandato de FHC foi o mais bem
sucedido na montagem ministerial desde o retorno da democracia.
Ao mesmo tempo em que se fortalecia o Governo Federal, os estados
entravam numa seríssima crise financeira. O estopim disso, sem dúvida
alguma, foi o Plano Real. Em primeiro lugar, porque com o fim da inflação os governos estaduais deixaram de ganhar a receita provinda do
floating, que permitia o adiamento dos pagamentos e o investimento do
dinheiro arrecadado no mercado financeiro, possibilitando assim uma ele20
Os conceitos de “conjuntura crítica” e “momento maquiaveliano” foi primeiramente utilizado
para o caso brasileiro por Lourdes Sola & Eduardo Kugelmas (2002) e, depois, por Maria Rita Loureiro
& Fernando Luiz Abrucio (2002).
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vação artificial dos recursos e uma diminuição igualmente artificial de
boa parte das despesas dos governadores. Ao tomarem posse, os novos
governadores perceberam a mudança ocorrida com o fim do floating,
como bem resumiu Mário Covas;
“Varia de estado para estado, mas a maioria [dos governadores] se defronta
com este fato: as despesas ainda correm em regime inflacionário e as receitas
já atuam em regime de estabilidade” (PADRÃO & CAETANO, 1997: 23).
O Plano Real produziu outro grande impacto nas finanças estaduais
com a elevação das taxas de juros, que atingiram em cheio as dívidas
estaduais, sobretudo no que se refere aos títulos e dívidas dos Bancos
estaduais (SOLA, GARMAN & MARQUES, 1997: 28). Depois de terem
sido o grande instrumento financeiro dos governadores, especialmente
na fase áurea do federalismo estadualista, os Bancos estaduais entraram
em verdadeira bancarrota. Sofreram mais os grandes estados, sendo os
casos mais graves o do Banerj e, principalmente, o do Banespa. Neste
último, estava em sua carteira a própria dívida do Estado de São Paulo, a
maior dentre as unidades estaduais.
A crise dos Bancos estaduais ocorreu também porque eram essas as
instituições financeiras que mais retiravam seus recursos do jogo inflacionário. Com a elevação de suas dívidas e por vezes do passivo dos estados
que estavam em suas carteiras, o fim da inflação e a reestruturação do
sistema financeiro, aumentando a competitividade, o sistema bancário dos
estados praticamente se inviabilizou. Além do mais, o presidente tinha
aliados em importantes estados, os quais não reagiram fortemente à intervenção do Banco Central como teriam feito os antigos governadores21.
Contou ainda para a crise financeira dos estados a adoção de medidas
tributárias centralizadoras. Primeiro, aumentando-se a participação das
Contribuições Sociais no bolo de recursos do Governo Federal, as quais
não entram na partilha constitucional de recursos, ficando somente nos
cofres do Tesouro Nacional. Além disso, a centralização da receita esteve
presente em outra medida importante, já citada, que foi o Fundo Social
de Emergência (FSE). Sua validade seria provisória, mas foi posteriormente prorrogado e alterado o seu nome para Fundo de Estabilização
Fiscal (FEF), mostrando que o Executivo Federal não precisava mais esconder o verdadeiro propósito desta medida.
21
A respeito do colapso dos Bancos estaduais após o Real, ver o minucioso trabalho de GARMAN,
LEITE & MARQUES, 1998.
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Mais do que a alocação em si dos recursos, a aprovação do Fundo
Social de Emergência teve uma importância simbólica reveladora: foi a
primeira vez que a União teve uma vitória tributária contra os estados
desde o início da redemocratização. Isso abriu politicamente as portas
para outras alterações federativas no plano tributário, como a Lei Kandir,
que mesmo sendo resultado de uma intensa negociação entre o Executivo Federal e os governadores, atingiu parcela substantiva do principal
tributo estadual, o ICMS, naquilo que incidia sobre parte considerável das
exportações. A tabela abaixo mostra as perdas iniciais dos estados com a
Lei Kandir, bastante substantivas, diga-se de passagem.
O resultado final destas mudanças no plano tributário foi uma nova
recentralização de receitas. Ainda que o Brasil seja um dos países com
maior descentralização fiscal em comparação aos países em desenvolvimento e mesmo perante as Federações mais consolidadas do mundo, o
movimento concentrador foi de fato considerável, por intermédio da elevação das receitas advindas das Contribuições Sociais e do represamento
de parcela dos recursos para transferência aos governos subnacionais.
Os efeitos e o esgotamento do modelo predatório constituíram-se tam201
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bém em elementos decisivos para a crise financeira dos estados. Não se
pode, portanto, creditar as causas do desequilíbrios das contas públicas
estaduais apenas às ações e ao fortalecimento do Governo Federal. Os
juros, medidas tributárias centralizadoras, o fim da inflação e a intervenção nos Bancos estaduais, sem dúvida, foram fundamentais; porém, são
os próprios governos estaduais que têm a maior parcela de culpa em sua
atual crise.
As dívidas estaduais e o descalabro criado pelos Bancos estaduais
foram primeiramente obra das próprias elites estaduais. E a despeito do
aperto financeiro e da elevação dos juros, os governos estaduais continuaram a optar pela obtenção de empréstimos de curto prazo, mesmo
sabendo do maior risco dessas operações, fato devidamente comprovado
pelo Relatório da CPI dos Precatórios. Antes da crise, os governadores
não efetuaram esforços relevantes para aumentar suas receitas. Mesmo
havendo uma elevação da arrecadação dos estados de 36,65 % entre
1993 e 1996, também houve uma elevação, ainda maior proporcionalmente, das despesas (ABRUCIO & FERREIRA COSTA, 1998: 78-79).
Outro grave problema dos governos estaduais que ajudou a minar suas
contas públicas foi o do excessivo gasto com pessoal. Esse padrão administrativo foi reforçado pelos estados ao longo da redemocratização, particularmente com a promulgação das Constituições estaduais. Caso analisemos mais pormenorizadamente o período mais recente, concentrandose na comparação União versus estados, fica ainda mais evidente a elevação dos gastos dos governos estaduais com funcionalismo. Tomando
como base somente as despesas com o pessoal ativo em relação à receita
total, constata-se que do período 1990-1993 para o de 1994-1995 ocorreu uma pequena redução de 18,8% para 17,7% na União ao passo que,
em média, os estados elevaram os seus gastos de 46% para 50,2%
(BELTRÃO, ABRUCIO & LOUREIRO, 1998: 11).
A aceleração do aumento dos gastos com servidores públicos derivou,
em parte, das regras estabelecidas pelas Constituições estaduais. Guerzoni
Filho (1996) mostrou como vários estados criaram normas que flagrantemente contrariavam a Constituição Federal no que se refere à concessão
de estabilidade. Na Bahia, Rio Grande do Norte, Maranhão e Ceará foram
estabilizados os empregados das empresas públicas e sociedades de economia mista; em Santa Catarina, tornaram-se estáveis servidores admitidos em caráter transitório, enquanto no Piauí todos aqueles admitidos até
seis meses antes da promulgação da Constituição estadual, inclusive a
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título de prestação de serviços, ganharam estabilidade. É bem verdade
que alguns governos estaduais posteriores conseguiram reverter estes
dispositivos constitucionais, mas o custo deste processo já havia se instalado nos montante de dívidas dos estados (GUERZONI FILHO, 1996: 55).
Outros dois fatores também contribuíam para esta situação: o crescimento
das despesas com os Poderes Legislativo e Judiciário, além do Tribunal
de Contas dos estados, e a existência de categorias privilegiadas que
representam um pequeno contingente da burocracia, mas que abocanham
uma parcela enorme da folha salarial.
Mas o fator principal no aumento dos gastos com pessoal advém da
Previdência pública. A elevação das despesas com inativos tem sido
crescente em todos os níveis de governos, mas de uma forma mais
preocupante no âmbito estadual. Este diagnóstico demorou para ser feito
tanto pelos governadores como pela União, com efeitos deletérios para a
reforma do Estado planejada pelo governo Fernando Henrique.
Os governadores que tomaram posse em 1995 receberam ainda um
passivo inesperado: o aumento de gastos com a folha de salários ao
apagar das luzes dos antigos governos. Para dar um exemplo recorrente,
no Mato Grosso o governador Dante de Oliveira constatou que a folha de
salários do Executivo havia passado de R$ 27 milhões/mês em 1994 para
R$48 milhões/mês em 1995, levando o governo estadual a gastar 80% da
receita do governo com funcionalismo (PADRÃO & CAETANO, 1997:
24). É bom lembrar que esta mudança ocorreu exatamente quando os
estados perderam a capacidade de manipular o floating vigente no período inflacionário, o qual permitia uma certa margem de manobra aos
governadores.
Como se vê, é muito grande a importância dos governos estaduais em
impulsionar a sua própria crise. O resultado não foi só a derrocada financeira, mas também uma grande deterioração dos serviços públicos. As
greves das Polícias Militares talvez tenham sido a sinalização clara de que
ou se fazia uma reforma das máquinas públicas estaduais ou se entraria
num caos social.
O modelo estadualista e predatório enfraqueceu-se sobremaneira com
a Presidência de Fernando Henrique Cardoso, estabelecendo-se uma “conjuntura crítica” na Federação brasileira. Mesmo com a corrosão gradativa
da coalizão governista no segundo mandato, não houve uma reviravolta
na Federação e, ao contrário, a adoção de um novo modelo financeiro
ganhou força com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF),
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com apoio considerável dos congressistas, da sociedade e dos governantes
locais.
Um balanço dos anos FHC mostra que, em parte, ele conseguiu constituir um “momento maquiaveliano” no jogo federativo, tendo a virtù para
criar uma nova ordem; em outros aspectos, todavia, isso não foi feito,
permanecendo o legado do federalismo desenvolvido durante a
redemocratização, e ainda com algumas influências da trajetória histórica
das relações intergovernamentais do país. É por esta ótica que analisaremos a coordenação federativa no período 1995-2002, procurando entender a especificidade deste período e suas lições.
VI - A COORDENAÇÃO FEDERATIVA SOB FHC: AVANÇOS E PROBLEMAS
O objetivo desta seção é analisar o processo de coordenação federativa
nos anos FHC num plano mais geral e em políticas mais específicas. No
caso destas últimas, o capítulo não tem como finalidade fazer uma avaliação dos resultados dos programas, mas sim, estudá-los do ponto de vista
da descentralização e do papel do Governo Federal nesta questão.
Durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, podemos
destacar sete mecanismos gerais adotados pelo Governo Federal no plano da descentralização. O primeira deles se refere ao fato de que o Brasil
tinha iniciado o processo descentralizador antes de estabilizar a economia, o que tornou mais difícil a constituição de jogos mais coordenados e
efetivos de divisão de atribuições, sobretudo porque a inconstância da
transferência das verbas constitui um obstáculo numa Federação desigual
como a brasileira (AFONSO, 1996). Ao reduzir a inflação, houve um
impacto positivo para a regularização dos repasses de recursos aos governos subnacionais. Isto permitiu a abertura de uma nova rodada de
negociação para (re)pactuar a descentralização em diversas políticas públicas.
Um segundo mecanismo foi a associação entre a descentralização e os
objetivos de reformulação do Estado. Neste sentido, o Governo Federal
procurou, em primeiro lugar, reduzir todos os focos de criação de déficit
público nos governos subnacionais, especialmente os de cunho predatório - isto é, que repassavam custos para a União. Para alcançar estas
metas fiscais, houve uma atuação conjunta em prol da modernização da
estrutura fazendária em vários estados - com recursos de instituições
internacionais - e, no segundo mandato, a aprovação de uma regra fede204
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rativa de restrição orçamentária - a Lei de Responsabilidade Fiscal - e a
adoção de medidas de auxílio na área previdenciária.
O modelo de coordenação federativa no campo da reformulação estatal, ademais, incluiu a proposição de Programas de Demissão Voluntária
aos estados, com financiamento federal. Num sentido mais institucional, o
Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE) procurou ativar
o Fórum dos Secretários Estaduais de Administração, realizando reuniões
mais constantes e cujo tema de debate era a modernização das máquinas
públicas - isso durou apenas os primeiros quatro anos do período FHC.
Por fim, destaca-se aqui o processo de privatização das empresas estaduais, no qual o BNDES teve um papel decisivo.
O repasse de recursos condicionado à participação e fiscalização da
sociedade local foi um terceiro mecanismo marcante dos anos FHC. De
certo modo, houve uma continuidade da estratégia já prevista pela Constituição de 1988, particularmente na criação e ampliação do escopo dos
Conselhos de Políticas Públicas. Aprofundou-se esta concepção com a
determinação de que certas transferências só seriam recebidas se existissem os Conselhos da área em questão. Além disso, o Comunidade Solidária optou pela produção de programas intrinsecamente vinculados à montagem de parcerias entre o Estado e a sociedade. O caráter democrático
da descentralização, mais do que o aspecto fiscal, foi a tônica nesta
política.
A coordenação de políticas públicas foi muito importante nas áreas de
Saúde e Educação, com o PAB (Piso de Atenção Básica) e o Fundef
(Fundo de Manutenção do Ensino Fundamental), respectivamente. Os
mecanismos coordenadores aqui utilizados passaram pela combinação de
repasse de recursos com o cumprimento de metas preestabelecidas ou a
adoção de programas formulados para todo o território nacional. Trata-se
de um modelo indutivo, mas que transfere verbas segundo metas ou
políticas-padrão estipuladas nacionalmente, procurando assim dar um perfil
mais programado e uniforme à descentralização, sem retirar a autonomia
dos governos subnacionais em termos de gestão pública. No caso do
Fundef, ocorreu ainda uma redistribuição horizontal de recursos, experiência inédita na Federação brasileira.
A partir do final do primeiro mandato e início do segundo, foram
adotadas políticas de distribuição de renda direta à população. O primeiro deles foi o PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), depois veio o Programa Renda Mínima e, mais adiante o Programa Bolsa
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Escola, ao qual se juntaram o Bolsa Alimentação e o Vale Gás. Buscou-se,
com tais medidas, atacar diretamente a pobreza por meio de políticas
nacionais, as quais podem ser realizadas em parceria com outros instrumentos de gestão local, mas com a garantia de uma verba federal padronizada. O pressuposto destas ações é que em problemas de origem
redistributiva, particularmente numa Federação, é necessária a atuação
do Governo Federal para evitar o agravamento das desigualdades.
A este mecanismo redistributivo foi acoplada uma novidade: a tentativa de coordenar melhor os programas do Governo Federal num só local,
com o Projeto Alvorada. A despeito da importância desta medida, há
ainda muita descoordenação e fragmentação no terreno das políticas sociais, inclusive nas ações de distribuição direta de renda.
A aprovação de leis ou mudanças constitucionais atinentes à temática
federativa foi outro mecanismo bastante utilizado nos anos FHC. Com tais
ações, ficou claro que o objetivo era fazer uma reforma institucional no
federalismo brasileiro, mais do que implementar políticas de governo,
embora o padrão de implementação dessas medidas não seja completamente coerente, além de responder a pressões políticas diferenciadas
dentro do Executivo Federal. Das 34 Emendas Constitucionais aprovadas
de 1995 até junho de 2002, 15 delas afetavam diretamente o pacto federativo. Isto ocorreu nos seguintes terrenos:
a) no tributário, com a aprovação duas vezes do Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e sua renovação posterior pela Desvinculação de Receitas da União (DRU), como também pelas mudanças nas Contribuições
Sociais, especialmente aquelas vinculadas à criação e prorrogação da
CPMF. Foi por meio das Contribuições Sociais que a União aumentou suas
receitas, sem precisar reparti-las com os outros níveis de governo. Também foram feitas modificações constitucionais que atingiram o IPTU, garantindo sua progressividade, e no ISS, procurando efetuar aqui uma
harmonização tributária entre os municípios;
b) na organização político-administrativa, com a aprovação da “Emenda Jobim” (Emenda 15), que tornou mais difícil a criação de municípios,
com a aprovação de novos limites de gastos dos Legislativos locais (Emenda
25) e mesmo com a instituição da reeleição (Emenda 16). Pouco se
comentou acerca do impacto federativo da reeleição, mas o fato é que
ela alterou o mercado político brasileiro e provavelmente terá um grande
impacto sobre os padrões de carreira tradicionais da classe política, que
antes passavam pela utilização dos Legislativos, sobretudo a Assembléia
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Legislativa, como trampolim para postos executivos. Como a tendência é
aumentar a estabilidade dos grupos políticos que estão no Executivo,
deverá haver uma maior aposta nos cargos legislativos;
c) na reforma do Estado, com a abertura à competição e à privatização
nas áreas do gás canalizado e das Telecomunicações, e a reformulação de
vários artigos referentes à Administração Pública (Emenda 19) e à Previdência (Emenda 20), com impacto enorme sobre a gestão governamental
dos estados e municípios. Não por acaso, todas esta medidas passaram
por intensas negociações com prefeitos e, sobretudo, governadores (Cf.
ABRUCIO & FERREIRA COSTA, 1998; MELO, 2002).
d) na área social, com a aprovação do Fundef (Emenda 14), da chamada “PEC da Saúde” (Emenda 29) e do Fundo de Combate e Erradicação da
Pobreza (Emenda 31), a qual ajudou a modificar o padrão das políticas de
distribuição de renda direta à população, tal como referido anteriormente. É interessante notar que tais reformulações constitucionais criam obrigações válidas não só para os próximos presidentes, mas também para os
futuros governantes de estados e municípios.
Além das alterações constitucionais, várias Leis Complementares e
ordinárias com impacto federativo foram aprovadas. Destacam-se a Lei
de Responsabilidade Fiscal (LRF) e a Lei Kandir, que transformaram regras básicas das finanças públicas. Na verdade, esta nova legislação
reordenou os parâmetros de ação dos entes subnacionais, criando as
condições para que as relações intergovernamentais ganhem um sentido
diferente do constituído na redemocratização, especificamente no que
tange à convivência mais responsável entre os níveis de governo.
A avaliação de políticas descentralizadas também entrou na agenda de
coordenação federativa do governo Fernando Henrique. O Ministério da
Educação (MEC) constituiu-se no principal agente dessa mudança, criando sistemas avaliadores que apresentam regularmente os resultados alcançados por esta política. O mesmo mecanismo também está sendo
desenvolvido em outros ministérios e órgãos públicos, embora num estágio ainda preliminar.
Em resumo, o governo FHC usou principalmente sete mecanismos de
ação na ordem federativa: 1) o combate à inflação e a respectiva regularização dos repasses, permitindo uma negociação mais estável e planejada com os outros entes; 2) a associação entre os objetivos da reforma do
Estado, como o ajuste fiscal e a modernização administrativa, e a
descentralização; 3) condicionou a transferência de recursos à participa207
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ção da sociedade na gestão local; 4) criou formas de coordenação nacional das políticas sociais, baseadas na indução dos governos subnacionais
a assumirem encargos, mediante distribuição de verbas, cumprimento de
metas e medidas de punição, também normalmente vinculadas à questão
financeira, além de utilizar instrumentos de redistribuição horizontal no
Fundef; 5) adoção de políticas de distribuição de renda direta à população, partindo do pressuposto de que o problema redistributivo não se
resolve apenas com ações dos governos locais, dependendo do aporte
da União; 6) aprovou um conjunto enorme de leis e Emendas Constitucionais, institucionalizando as mudanças feitas na Federação, e assim dando-lhes maior força em relação às pressões conjunturais; 7) estabeleceu
instrumentos de avaliação das políticas realizadas no nível descentralizado, especialmente na área educacional.
Entretanto, o modelo federativo adotado pelo governo Fernando
Henrique também teve problemas gerais de funcionamento. Entre eles,
estão a fragmentação de uma mesma política em vários órgãos e ministérios, como é o caso do Saneamento básico; a pulverização das políticas
de renda, a despeito da ação coordenadora do Projeto Alvorada; a falta de
uma avaliação consistente na maior parte das áreas decentralizadas; a
existência de poucos ou fracos fóruns intergovernamentais, a partir dos
quais as políticas nacionais poderiam ser melhor controladas e legitimadas; a adoção de uma visão tributária perversa do ponto de vista federativo, seja pela recentralização de recursos, seja pela negligência em relação à harmonização tributária do ICMS; a deterioração das políticas regionais, levada às últimas conseqüências com o fim da Sudam e da Sudene;
e o fracasso das políticas urbanas, afetando setores como Habitação, Saneamento, Segurança Pública e Transportes Metropolitanos.
Pretende-se, a seguir, fazer um breve relato de algumas políticas de
coordenação federativa efetuadas nos anos FHC. O propósito não é avaliar substantivamente tais ações; o intuito desta parte do trabalho é entender do papel do Governo Federal em tais questões ou setores.
1) Reforma do Estado: questões financeiras e administrativas
O tema central da agenda federativa de FHC foi a questão financeirofiscal. Suas ações nortearam-se pelos objetivos de acabar com os mecanismos que os governos subnacionais tinham de repassar custos à União,
pela criação de condições para que os estados conseguissem ajustar suas
contas, produzindo superávits - estratégia utilizada sobretudo no segundo
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mandato - e pelo programa de privatização da empresas estaduais, pelo
qual procuram, ao mesmo tempo, remodelar setores econômicos segundo o modelo de Estado defendido por Brasília e obter recursos para
quitar dívida pública. Além disso, o segundo período governamental concentrou-se, movido ainda pela ótica econômica, na questão previdenciária.
Em menor medida, houve a preocupação de modernizar a gestão das
governadorias, em especial no período áureo do Fórum dos Secretários
Estaduais de Administração, quando o ministro Bresser-Pereira propôs
parcerias mais efetivas entre as esferas de poder.
No plano financeiro-fiscal, o Governo Federal aproveitou a enorme
crise que assolou os governos estaduais e a legitimidade da “era do Real”
para, primeiramente, reestruturar o sistema bancário estadual. O resultado final apontou para o fim das formas de repasse de custos ao Banco
Central, por meio da extinção, privatização e federalização da grande
maioria dos Bancos estaduais. Se, por um lado, este processo pôs fim a
um mecanismo estrutural de produção de déficit, por outro, ele teve um
preço para os cofres da União, causado por dois fatores: pela dificuldade
em resolver a situação do Banespa, que postergou a resolução dos problemas de todo o sistema, e pela necessidade de se criar um instrumento
financeiro de transição, o Proes (Programa de Incentivo à Redução do
Setor Público Estadual na Atividade Bancária), cujo custo final, em valores
de março de 2002, foi de R$ 70 bilhões (MORA, 2000). Não obstante,
este modelo permitiu uma mudança crucial na lógica das relações
intergovernamentais.
O Governo Federal, por meio principalmente do BNDES, também
atuou fortemente no programa de privatizações dos estados. O objetivo,
como dito acima, era reestruturar a ação do Estado em áreas estratégicas
e obter recursos para quitar dívida pública. No primeiro mandato de FHC,
foram privatizadas 24 empresas estaduais e em mais 13 houve venda de
participação acionária, o que significou a obtenção de 37% dos quase
US$ 70 bilhões movimentados por todas as privatizações e concessões
realizadas no período, excluídas as transferências de dívidas (ABRUCIO
& FERREIRA COSTA, 1998: 101). Um balanço de todo o período revela
que os estados obtiveram R 38 bilhões de reais com a venda de suas
empresas (MORA, 2002: 51). Segundo Fábio Giambiagi,
“O fato é que a venda de empresas estaduais representou uma fonte
de ajuste primário de 0,45 do PIB entre 1995 e 1998 e de 0,3% do PIB
adicionais entre 1998 e 2000. Trata-se de um benefício inequívoco, es209
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pecialmente quando se leva em conta a situação de total descalabro em
que muitas dessas empresas se encontravam há alguns anos. Sem dúvida
nenhuma, mesmo que em alguns casos isolados possam ter se verificado
problemas - naturais, pois afinal de contas foram vendidas em torno de
duas dezenas de empresas - pode-se dizer que o setor público ficou
menos vulnerável e que o país ficou mais eficiente do que antes desse
processo de privatização estadual começar” (GIAMBIAGI, 2000: A-11).
O êxito financeiro e programático alcançado pelo Executivo Federal
nas privatizações nos estados não respondeu a todos os problemas envolvidos neste tema. Primeiro porque muitos estados usaram parte das receitas obtidas não para o pagamento de suas dívidas com a União, mas para
gastos correntes. É claro que houve um ganho importante em termos de
abatimento de débito, sem no entanto levar a maioria dos estados à realização de um verdadeiro ajuste estrutural das contas públicas - os que conseguiram fazê-lo, como o Ceará, Bahia, São Paulo e Maranhão, precisaram
fazer cortes e racionalização dos gastos, bem como aumentar a receita.
Mais do que isso: a política macroeconômica adotada no primeiro
mandato de FHC dificultou qualquer ajuste provindo apenas dos recursos
de privatização. Isto porque o modelo da sobrevalorização cambial e sua
aposta no financiamento por poupança externa vinculou-se a uma alta
taxa de juros que, ao fim e ao cabo, elevava ainda mais a dívida pública,
de modo que os recursos obtidos com a venda das empresas (estaduais e
federais) acabavam, em boa medida, indo “para o ralo”. Em termos estruturais, os governadores teriam feito melhor se utilizassem a receita da
privatização para capitalização de Fundos de Pensão do funcionalismo
estadual, com efeitos benéficos maiores no curto e longo prazos. Mas,
naquele momento, os governos estaduais e o Governo Federal, no seu
papel de coordenação federativa, não tinham idéia do impacto estrutural
dos gastos previdenciários às contas públicas subnacionais.
Obviamente que as privatizações são fundamentais para diminuir redes
clientelistas estabelecidas entre as empresas estatais, a classe política e as
empresas privadas, constituindo-se assim num aspecto essencial para mudar a gramática política brasileira (NUNES, 1997). Ademais, sem as empresas estatais, os estados tendem a não fazer determinados gastos que levariam ao aumento de seu déficit. Colocados estes aspectos positivos à mesa,
deve-se ter cuidado para não transformar o programa de privatizações em
uma ação a partir da qual o Estado sai dessas esferas econômicas.
E aqui encontra-se o maior problema do programa de privatizações
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dos estados sob a coordenação federativa da União: não se propôs, na
grande maioria dos casos, um modelo regulatório consistente para o dia
seguinte da reforma do Estado. Do mesmo modo que o BNDES prestou
adequada assessoria financeira para a venda das empresas estaduais,
também seria necessária a ajuda na criação de agências regulatórias montadas depois em alguns estados, e com perfis bastantes diferenciados
em termos de funções e qualificação22. Porém, neste aspecto, pesou mais
o lado da primeira onda de reformas voltadas para o mercado, do que o
aspecto essencial da segunda rodada de reformas, de criação de novas
instituições estatais voltadas à regulação econômica (BANCO MUNDIAL,
1997). O interessante é notar que, mesmo no Governo Federal, a constituição de um marco regulatório obedeceu mais às peculiaridades políticas de cada setor do que a um plano geral de ação.
A renegociação das dívidas dos estados, por meio da Lei 9.496/97, foi
um passo importante para disciplinar as relações federativas, rompendo
com o antigo modelo predatório. Em primeiro lugar, o acordo contemplou quase a totalidade das unidades estaduais, evitando-se assim a existência de free riders. No total, ela refinanciou um montante de R$ 132
bilhões. Segundo, embora os estados reclamem hoje da porcentagem da
receita líquida que têm de disponibilizar, o fato é que receberam um
grande subsídio da União, a partir do qual houve uma redução substantiva das taxas de juros que vinham pagando antes. Este novo contrato,
ademais, é bem diferente dos efetuados ao longo da redemocratização,
particularmente pela sua capacidade de fazer com que seja de fato cumprido, incluindo a retenção de transferências federais - o único estado
que tentou burlar esta regra, Minas Gerais (na gestão de Itamar Franco),
teve verbas bloqueadas e logo a seguir regularizou seu pagamento. O
último aspecto relevante dessa nova legislação diz respeito às medidas
de ajuste fiscal que ela estabeleceu no compromisso que foi firmado
entre as partes da Federação, pontuando uma série de questões que
deveriam pautar as preocupações fiscais e financeiras das governadorias23.
Para equacionar o problema do déficit público e cumprir o contrato de
23
Conforme mostra o trabalho de Mônica Mora (2002: 22), as questões que os estados deveriam
equacionar para cumprir o contrato de refinanciamento seriam as seguintes: a) dívida em relação à
receita líquida real (RLR); b) resultado primário; c) despesas com funcionalismo público; d) arrecadação de receitas próprias e) privatização, permissão ou concessão de serviços públicos; f) reforma
administrativa e patrimonial; g) despesas de investimento em relação à RLR
22
Sobre as Agências Regulatórias estaduais, ver o capítulo escrito por Marcus Melo para este livro.
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refinanciamento, três questões estruturais precisam ser resolvidas. A primeira se refere às despesas com pessoal. No início de 1995, constatou-se
um elevado gasto com pessoal nos estados. À época, das 27 unidades
estaduais (contando o Distrito Federal), apenas 6 despendiam menos de
60% da receita líquida com o funcionalismo, sendo que em três delas
(Roraima, Amapá e Tocantins) a maior parte dos servidores ainda era
paga pela união, já que a sua condição de estado é bastante recente. A
continuidade deste problema dificultaria a resolução dos déficits financeiros da Federação.
Por isso, o Governo federal resolver atuar nesta questão, basicamente
de duas maneiras. A primeira, de caráter estrutural e de mais longo
prazo, por intermédio da Reforma Administrativa; e a segunda, vinculada
a ações mais imediatas. O auxílio em algumas áreas técnicas foi importante para melhorar o gerenciamento das folha de pagamento. No entanto, a medida de maior impacto inicial foram os Planos de Demissão
Voluntária (PDVs). Com financiamento da Caixa Econômica Federal, os
PDVs resultaram na demissão de 100 mil funcionários públicos estaduais,
mas tiveram pequeno impacto na redução de custos, de apenas 4,5% do
que se gastava com pessoal ativo - os estados com maior contingente de
servidores, ademais, foram os menos afetados (BELTRÃO, ABRUCIO &
LOUREIRO, 1998).
Foram constatados dois grandes problemas na aplicação dos PDVs. O
primeiro é que os servidores que aderiam a estes programas de dispensas normalmente tinham uma melhor qualificação profissional, ficando os
com menor capacidade gerencial. Além disso, em muitos estados não
havia um mapa preciso do perfil do funcionalismo e, desse modo, não se
sabia exatamente quais eram os gargalos burocráticos. No entanto, faltou
aqui uma ação mais coordenada entre o Governo Federal e as Administrações subnacionais, ao estilo dos Planos Nacionais de Reforma, realizados nos EUA ao longo do século XX. Isto porque, em razão da maior
fragilidade das burocracias estaduais, a União teria um papel coordenador para resolver esta “falha seqüencial”.
A falta de uma coordenação federativa levou a um diagnóstico equivocado quanto aos gastos com pessoal. O governo FHC insistiu, por boa
parte do primeiro mandato, em um argumento: a resolução do problema
se daria com a permissão de dispensa de funcionários quando um nível
de governo gastasse mais do que 60% da receita líquida com folha de
pagamento. Foi esta visão que guiou a ação do Governo federal, embora
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o próprio ministro da Administração, Bresser-Pereira, dissesse, com razão, que a dispensa por insuficiência de desempenho fosse mais importante estruturalmente para a reforma do Estado, em contraposição à visão
da equipe econômica, enfim vencedora no jogo político.
Há, no entanto, dois problemas neste diagnóstico. O primeiro deles
foi depositar a responsabilidade toda na conta dos Executivos estaduais.
Ao não discriminar os gastos entre os Poderes, a então Lei Camata colocou para o governador uma tarefa que em parte ele não pode atuar. Isto
porque cresciam, cada vez mais, os gastos com pessoal do Legislativo e,
sobretudo, do Judiciário. Mas o maior erro foi outro: não perceber que o
maior problema do excesso de gastos com pessoal provinha do pagamento de inativos. Novamente, isto não foi detectado porque faltava uma
burocracia competente nos estados e uma ação coordenadora do Governo Federal para corrigir esta “falha seqüencial” da descentralização. Somente no final de 1997 é que os governos estaduais e a União se deram
conta da magnitude deste problema. Não só os gastos eram altos como
acelerava o crescimento dessa conta. Na tabela abaixo, relacionamos a
despesa com inativos dos estados no ano 1998.
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Além de demorarem a detectar este problema, os governos estaduais
e o Governo Federal não constituíram a resposta adequada a ele, que
seria a constituição de Fundos Previdenciários. A dificuldade maior estaria na capitalização de tais Fundos, o que poderia ter sido feito com os
recursos da privatização. Poucos estados trilharam este caminho - a exceção digna de nota é a Bahia. Sem este instrumento, a maioria se viu
obrigada a aumentar o valor das contribuições dos ativos e, em alguns
casos, cobrar também dos inativos. Não há problema neste caminho, só
que ele pode ser insuficiente.
Mesmo tendo adquirido poder no pêndulo federativo no primeiro mandato, a União não se preparou adequadamente para atuar como agente
coordenador no plano intergovernamental. Deveria haver orientação e
capacitação da burocracia federal para recolher informações dos governos subnacionais ou então, numa via mais pertinente com o federalismo,
precisaria auxiliar os estados e municípios na criação de capacidades
institucionais. Em vez disso, o primeiro governo FHC procurou “vender”
uma receita de reforma do Estado sem estabelecer uma rede entre as
burocracias de ambas as esferas de poder.
Houve neste caso um grande avanço no segundo mandato. O Ministério da Previdência e Assistência Social assumiu uma importante função
coordenadora e atuou decisivamente na assessoria e indução dos estados
e municípios. O resultado é que mais e mais governos subnacionais estão
constituindo Fundos Previdenciários, com cálculos atuariais mais precisos, só que a tarefa teria sido mais fácil, repito, se o dinheiro da privatização
fosse usado na capitalização deste sistemas. O aprendizado federativo
também foi constatado na definição de gastos com pessoal e nos instrumentos de controle com a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), em maio de 2000.
Como tal assunto é tratado em outro capítulo deste volume24, faço
24
Ver capítulo 8, escrito por Maria Rita Loureiro e Fernando Luiz Abrucio.
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quatro comentários breves. O primeiro é que a LRF definiu melhor os
mecanismos de restrição orçamentária, responsabilizando mais claramente todos os Poderes. Adicionalmente, suas regras estabeleceram instrumentos de enforcement mais efetivos, que dificultam uma postura contrária à nova regulamentação, por conta das penalidades. E, ainda, o Governo Federal exerceu um papel coordenador ativo por intermédio do BNDES,
que assessorou governos locais, disseminou as noções básicas da LRF por
todo o país e deu incentivos para a modernização da máquina administrativa dos governos subnacionais, com vistas a cumprir os requisitos
fiscais básicos. Talvez esta tenha sido uma das experiências mais bem
sucedidas de coordenação federativa nos anos FHC. Falta, no entanto, a
criação de um fórum de discussão entre os vários níveis de governo, tal
como estabelecido no artigo 67 da LRF, que estipula a instituição de um
Conselho de Gestão Fiscal. O governo FHC não se mobilizou politicamente para regulamentar tal Conselho, causando prejuízo para a democratização da Federação. No fundo, prevalece aqui a visão da equipe
econômica, que supõe, seguindo certas versões do federalismo fiscal,
que deve haver uma hierarquização entre os entes governamentais, com
o Governo Federal - que neste caso poderia se chamar Governo Central comandando linearmente as finanças públicas. Nada mais distante da
soberania compartilhada que marca o federalismo.
A segunda questão estrutural diz respeito às ações em prol da reforma
administrativa estadual. A melhor atuação conjunta foi a modernização
das receitas estaduais. Desta vez, o ângulo financeiro esteve alicerçado
em reformas institucionais, dando um fôlego maior ao ajuste fiscal, pois é
o aprimoramento da burocracia que sedimenta transformações profundas.
Não por acaso os estados que tiveram maior êxito foram os que realizaram as maiores transformações no modus operandi da administração pública, como no Estado de São Paulo, por meio dos instrumentos de governo eletrônico, de racionalização da máquina e de gestão voltada ao atendimento do cidadão.
O maior problema neste quesito foi a descontinuidade da política
realizada junto ao Fórum dos Secretários Estaduais de Administração,
conduzida pelo então Ministério da Reforma do Estado (Mare). No primeiro mandato, o ministro Bresser-Pereira conseguiu levar toda a discussão da reforma do Estado, com conceitos vinculados à economia, à eficiência, à efetividade e à democratização dos serviços públicos para o
plano subnacional. Experiências bem sucedidas e problemas de difícil
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solução eram compartilhados, estabelecendo aí um tipo de associativismo
intergovernamental. O resultado recorrente foi o aperfeiçoamento da estrutura de informação dos governos estaduais, e num menor número de
casos, ocorreu a implantação de políticas públicas extremamente inovadoras. Infelizmente, no segundo período ocorreu um refluxo enorme
dessa atividade, com o Governo Federal abandonando um importante
papel de coordenação federativa.
Em termos estruturais, por fim, a melhora das condições fiscais de
longo prazo tem a ver com duas outras variáveis: a realização de reformas institucionais e a construção de um novo modelo de desenvolvimento. No primeiro aspecto, é importante que sejam realizadas mudanças no
relacionamento entre a sociedade e o Estado e das instituições políticas
subnacionais, especialmente do Tribunal de Contas e do Judiciário, para
aumentar a accountability democrática. Além disso, a burocracia dos níveis subnacionais precisa ser continuamente aperfeiçoada.
A construção de um novo modelo de desenvolvimento que melhore a
situação dos estados depende basicamente de ações nacionais. Por um
lado, é preciso atacar as desigualdades regionais, que impedem a obtenção
de resultados satisfatórios em várias partes do país. Por outro, a guerra
fiscal não pode mais continuar, pois ela cria déficits futuros aos governos
estaduais e, efetivamente, não resolve o problema do desenvolvimento; ao
invés disso, acirra o conflito horizontal entre as unidades federativas.
Os governos estaduais têm obtido resultados fiscais positivos seguidos
desde 1999 e a LRF vem sendo um instrumento importante para pressionálos nesta direção. E mais: dos 4,13% do PIB de superávit primário obtidos
até outubro de 2002, 1% ou um quarto deste esforço advém das unidades
subnacionais. Antes que se dê a questão por resolvida, é bom lembrar o
tamanho do rombo: em dezembro de 2002, a dívida dos estados alcançou
a cifra de R$ 250 bilhões25. O que se conseguiu até agora foi às custas de
uma redução brutal dos investimentos, afora vários estados estarem, novamente, caminhando para uma crise financeira. De modo que a resolução federativa desta questão passa sim pela continuidade da trilha aberta
pela Lei de Responsabilidade Fiscal, com a ativação de um fórum federativo que a gerencie mais democraticamente, mas também depende de
reformas estruturais - criação ou fortalecimento dos Fundos Previdenciários,
25
Dados retirados de artigo de Ricardo Amaral, intitulado “O novo perfil fiscal dos governadores”.
Valor Econômico, 10/12/2002, página A7.
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modernização das burocracia estaduais, democratização das instituições
políticas subnacionais e novo modelo de desenvolvimento - para as quais
o fiscalismo reinante nos anos FHC deu pouca atenção.
2) Coordenação Federativa na Área Social: alguns exemplos
A área de proteção social é bastante abrangente e difícil de ser mapeada
no espaço deste capítulo. Por esta razão, escolhemos três de suas políticas,
analisando como se deu a relação entre descentralização e coordenação
federativa, sem fazer uma avaliação substantiva dos resultados alcançados.
A Saúde é, sem dúvida alguma, a política pública de maior destaque
no quadro federativo desde a Constituição de 1988. O modelo de
descentralização proposto fora construído por muitos anos de lutas contra
a centralização dos programas e da gestão dos recursos, com destaque
para a atuação de sanitaristas e profissionais da área médica que constituíram, junto com lideranças locais e movimentos sociais, aquilo que alguns
denominam de “Partido da Saúde” - ao qual hoje se somam a burocracia
setorial e diversos políticos, muitos com origem na área. Na década de
80, o debate se acirrou, obrigando a mudanças paulatinas da postura do
Ministério da Saúde e na própria legislação, cujo marco foi a criação do
SUDS (Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde, em 1987), “principal instrumento de descentralização operacional, administrativa e financeira dos programas de saúde entre 1987 e 1989” (MEDICI, 1996: 306).
O SUDS tinha como objetivo a descentralização de recursos físicos,
humanos e financeiros da máquina previdenciária para os estados, a fim
de racionalizar a gestão e o uso dos recursos, e a reestruturação dos
órgãos federais responsáveis pela gestão de serviços de saúde, que deveriam passar a se concentrar no planejamento, na coordenação, no controle e na avaliação das ações de toda a rede. No entanto, também o
SUDS não demonstrou ser uma política eficaz no processo de
descentralização - cuja conclusão dependia da transferência dos serviços
de saúde para os municípios. Os gestores estaduais, que saíram fortalecidos pelo repasse dos recursos e poder, comandaram o processo
descentralizador segundo uma lógica baseada em interesses políticoclientelistas (ABRUCIO & COSTA, 1999).
A reforma deste setor aprofundou-se com a Constituição de 1988 e o
estabelecimento do Sistema Único de Saúde, o SUS. Seus critérios básicos
são a universalidade, a integralidade e a igualdade de assistência garantidas a todos os brasileiros; preconizava ainda a descentralização da gestão
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do sistema e a participação da comunidade. As Leis Orgânicas da Saúde
8080 e 8142, por sua vez, foram os instrumentos legais mais importantes
para o avanço desse processo descentralizador, uma vez que regulamentavam o SUS26. Destaca-se, ainda, a criação de vários mecanismos
colegiados de gestão, envolvendo todos os níveis de governo, que têm
uma efetividade grande comparada à presente nas outras políticas públicas. Ademais, seu sentido era fortemente municipalista.
Na década de 90, surgiram também as NOBs (Normas Operativas
Básicas), as quais representaram um esforço de racionalização dos repasses de recursos e dos gastos pelos estados e municípios, além da criação
de instrumentos de fiscalização e avaliação das políticas de saúde. Elas
tentavam definir, com a maior clareza possível, os custos e benefícios
resultantes do cumprimentos ou não das regras e critérios de repasse de
recursos (principalmente no que se refere às condições necessárias e
suficientes ao repasse de recursos financeiros entre União, estados e
municípios), prestação de contas e acompanhamentos das ações de saúde (ABRUCIO & COSTA, 1999). Três foram as NOBs elaboradas nos
anos ’90: a 91, a 93 e a 96.
A palavra-chave do modelo instaurado pela NOB-96 é a
responsabilização de cada instância de governo. O desempenho dos papéis que cabem aos gestores concretiza-se mediante um conjunto de
responsabilidades bem detalhadas na NOB-96. A NOB-96 define como
imprescindível a cooperação técnica e financeira dos poderes públicos
estadual e federal, com responsabilidade conjunta na gestão do SUS. Seu
objetivo principal é “promover e consolidar o pleno exercício, por parte
do poder público municipal e do Distrito Federal, da função de gestor da
atenção à saúde dos seus munícipes” (MS, 1996; apud ABRUCIO, 2000).
O sistema municipal de saúde - SUS-municipal - é concebido como um
subsistema do SUS e composto pelo conjunto de estabelecimentos, organizados em rede regionalizada e hierarquizada.
A NOB 96 estabelece que os gestores federal e estadual são os promotores da harmonização, modernização e integração do SUS. Essa tarefa
acontece, especialmente, na Comissão Intergestores Bipartite (CIB), no
âmbito estadual, e na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) no âmbito
26
A primeira regula os princípios constitucionais correspondentes à saúde; a segunda vincula
descentralização à municipalização e dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS
e sobre as transferências intergovernamentais.
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nacional. A NOB-96 estimula as parcerias entre municípios, mas não cria
incentivos financeiros específicos (ABRUCIO & COSTA, 1999). A NOB96 também simplifica o processo de responsabilização pela política, reduzindo a duas as categorias de gestão municipal e estadual: gestão
plena da atenção básica e gestão plena do sistema municipal. Os estados,
por sua vez, podem habilitar-se às condições avançada do sistema estadual e plena do sistema estadual (MS, 1996).
A quase totalidade dos municípios brasileiros encontra-se habilitada
segundo uma das condições de gestão definidas na NOB 96. Entretanto,
conforme afirmam Costa, Silva & Ribeiro (1999:46) em avaliação recente
do processo de descentralização do sistema de saúde no Brasil, “ao contrário do que se tem verificado para os municípios, ainda é pouco significativa a adesão dos estados ao novo papel que lhes foi reservado no
SUS”. Segundo os autores, o processo de habilitação dos estados é retardatário e desigual devido às “dificuldades dos estados em definirem um papel
claro na estrutura do sistema público de saúde brasileiro, dominada ainda, na
década de 90, pelas demandas e orientações localistas” (idem:. 48).
Foi neste contexto de maior consistência da descentralização que o
governo FHC estabeleceu suas políticas de Saúde. Os problemas iniciais
estavam vinculados mais à regularidade dos repasses e à garantia de
fonte seguras e permanentes de recursos. Com a resolução destes, a
partir do fim da inflação e da aprovação da CPMF com recursos “carimbados” à Saúde, a descentralização se aprofundou ainda mais. Dados de Sol
Garson e Érica Araújo (2001) demonstram o impacto da ação federal
nesta política. Entre 1995 e 1999, sem contabilizar as transferências, os
gastos dos níveis de governo eram de 58% para a União, 16% para os
estados e 26% aos municípios; após contabilizarmos as transferências, as
cifras mudam substancialmente: 23% para a União, 25% para os estados e
52% aos municípios. Além disso, segundo dados de dezembro de 2001,
99% dos municípios estavam habilitados a uma das condições de gestão,
sendo 89% em gestão Plena da Atenção Básica, e 10,1% na Gestão Plena
do Sistema Municipal (MELO, 2002: 4).
Para o que importa a este trabalho, a descentralização esteve presente
em quatro questões. A primeiro se refere ao fortalecimento dos Conselhos. Apesar de ser bastante representativo, muitos criticam tanto seu
caráter corporativo como sua “governamentalização”, isto é, a força dos
representantes de governos em detrimento dos usuários, especialmente
tendo em conta os problemas de organização nos municípios menores,
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mais pobres e/ou com baixo capital social. A discussão permanece e,
quanto mais a intervenção na Saúde aproximar-se dos cidadãos, a tendência é a contínua democratização e o debate sobre melhoras formas de
accountability. Os anos FHC permaneceram nesta trilha aberta pela Constituição de 1988, apostando aqui acertadamente no incrementalismo.
Outro aspecto importante diz respeito ao fortalecimento das atividades intrinsecamente nacionais. A primeira delas é a organização administrativa do Ministério da Saúde, que se reforçou com a melhoria dos sistemas de informação, em especial o DATASUS. Houve também uma reorganização administrativa, com aperfeiçoamento de pessoal e constituição
de duas Agências Reguladoras essenciais: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Cabe reforçar que a coordenação federativa associa-se claramente à capacidade burocrática do Governo Federal.
A política de Saúde do governo FHC adotou iniciativas para reforçar as
funções redistributivas do SUS, orientando recursos para as regiões mais
pobres e menos populosas (RIBEIRO & COSTA, 1999). A principal medida neste sentido foi a criação, em dezembro de 1997, do Piso de Atenção
Básica (PAB). Ao mesmo tempo em que procura reduzir as desigualdades
de recursos, o PAB também funciona como incentivo à municipalização,
pois somente os governos locais habilitados podem receber tais recursos.
O PAB é composto de uma parte fixa e outra variável. A primeira
destina-se à atenção básica da saúde e garante a transferência automática,
fundo a fundo, de um mínimo de R$ 10 por habitante/ano para todos os
municípios brasileiros. A idéia é reduzir as desigualdades existentes entre
as municipalidades, uma vez que aquelas com maior “capacidade produtiva” tendiam a receber mais recursos, ao passo que as pequenas, com rede
incipiente ou nenhuma rede de atenção à saúde, pouco recebiam. A parte
variável do PAB é uma das invenções mais frutíferas do federalismo nos
anos FHC. Sua distribuição de recursos só ocorre se os governos locais
aderirem aos programas nacionais definidos como prioritários. Além disso,
para receber tais recursos é preciso passar por todo o sistema de Conselhos, que procura fiscalizar o uso adequado dos recursos públicos.
São seis os programas nacionais incluídos no PAB variável: Saúde da
Família/Agentes Comunitários de Saúde, Saúde Bucal, Assistência Financeira Básica, Combate às Carências Nutricionais, Combate a Endemias e
Vigilância Sanitária. A característica básica destas políticas é a ênfase na
prevenção e não na cura, lema histórico do movimento sanitarista O
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município pode aderir a quantos quiser, e recebe os recursos de acordo
com o estipulado em cada programa. Tais ações governamentais, ademais, envolvem capacitação dos gestores locais e a avaliação dos resultados, seja pelo sistema federal, seja pelo controle social ligado aos mecanismos de accountability intrínsecos ao SUS. Os resultados têm sido bastante satisfatórios no que se refere à adesão e, consequentemente, ao
número de pessoas atingidas. No caso do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), por exemplo, houve um aumento de 30% na
população coberta entre 1994 e 1998 (SINGER, 2002: 517).
A quarta medida foi a aprovação da chamada “PEC da Saúde” (Emenda
Constitucional 29), que determinou a elevação gradativa da porcentagem
de recursos destinados a esta área nos três níveis de governo. Com isso, o
problema que o governo Fernando Henrique encontrou no início do seu
primeiro mandato de instabilidade nos gastos com Saúde foi, em boa
medida, resolvido. Muitos criticam o modelo da vinculação, pois ele
“engessa” mais o Orçamento e os próprios governantes, que devem
subordinar sua agenda eleitoral vencedora a tais dispositivos constitucionais. Talvez tivéssemos de combinar melhor as regras intertemporais que
orientam a ação dos entes federativos com mecanismos de negociação
contínua de metas e resultados - e neste sentido, o Fundef está mais
adequado ao padrão federalista de políticas públicas, uma vez que tem
metas e prazo para se esgotar, ao mesmo tempo que ultrapassa o período
de mais de um governante.
Não foram equacionadas todas as questões federativas ligadas à Saúde. A coordenação intergovernamental, a despeito da força integradora
do SUS e do “Partido da Saúde”, vez ou outra revela sua fragilidade,
como ficou bem claro no episódio da dengue, em que a briga dos
governantes era para saber se o mosquito era municipal, estadual ou
federal. A maior lacuna desse sistema é a indefinição do papel das unidades estaduais. Neste tópico, o Governo Federal precisa criar formas de
indução à participação e à cooperação da mesma maneira que o PAB o
fez em relação aos municípios.
O Ministério da Saúde também tentou incentivar a formação de consórcios entre os municípios, como forma de melhorar a prestação do
serviço segundo problemas que são regionais e/ou porque a maioria dos
governos locais não tem condições de resolver todos os seus problemas
nesta área. Documento do Ministério, de 1997, assim defende o modelo
dos consórcios:
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“A implantação e a operacionalização de serviços de saúde que contemplem integralmente as demandas de uma população representam,
para a maioria dos municípios, encargos superiores à sua capacidade
financeira. A manutenção de um hospital, por mais básico que seja, requer equipamentos, um quadro permanente de profissionais e despesas
de custeio que significam gastar, anualmente, o que foi investido na
construção e em equipamentos. A necessidade de melhoria na infraestrutura, a contratação de recursos humanos especializados e a aquisição
de equipamentos, para oferecer serviços de saúde em todos os níveis de
atenção implicam montante significativo de recursos que, quase sempre,
não chegam a ser plenamente utilizados por apenas um município, gerando aumento de custos operacionais e impossibilitando, por outro lado,
o investimento em ações básicas de promoção e proteção. Assim, a prestação de serviços de forma regionalizada pelos consórcios evita a sobrecarga do município na construção de novas unidades, na aquisição de
equipamentos de custos elevados e na contratação de recursos humanos
especializados” (ABRUCIO, 2000).
O fato é que a Saúde é uma das áreas com maior número de consórcios. Em 2000, havia 141 consórcios de saúde, em 13 estados, 1.168 municípios e abrangendo uma população de 25.362.735 habitantes, segundo
estudo da Organização Pan-americana de Saúde e do Ministério da Saúde.
Trata-se de um dado impressionante comparado ao que acontece nas
outras políticas públicas Porém, os mesmos números mostravam que no
bloco das municipalidades que têm entre 10 mil a 20 mil pessoas a
porcentagem de consórcios era de 23,5%, enquanto no estrato que vai de
20 mil a 50 mi, o contingente atingido era de 12,4 %. Além do mais,
nenhuma capital tinha consórcio, o que é um absurdo sabendo que as
Regiões Metropolitanas sofrem freqüentemente do problema do “carona”
- habitantes da cidade vizinha que se utilizam dos equipamentos sociais e
não pagam nada por isso.
Este retrato revela que é preciso igualmente ter uma política de indução
à criação dos consórcios, na mesma linha do PAB. Só que neste caso há
um problema estrutural, revelado anteriormente: o federalismo
compartimentalizado, o municipalismo autárquico e a fragilidade jurídica
deste instrumento dificultam a adesão à essa união intermunicipal.
Na área de educação, duas políticas se destacaram nos anos FHC
como formas de coordenação federativa. A primeira é a criação de um
sistema amplo de avaliação dos Ensinos Fundamental e Médio. Como tais
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políticas estão majoritariamente nas mãos dos governos subnacionais, cabendo à União papel suplementar, uma maneira de garantir a qualidade
nacional é avaliar os resultados obtidos e, a partir disso, propor medidas
que possam minorar os problemas. A questão da evasão escolar, por
exemplo foi bem resolvida graças à articulação federativa entre os níveis
de governo, baseada na conjunção entre avaliação e propostas de solução - no caso, envolvendo capacitação e recursos orçamentários.
A política impulsionada pelo governo Fernando Henrique que mais se
aproximou de um modelo de coordenação federativa foi o Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização
do Magistério (Fundef). Aprovado pelo Congresso Nacional em 1997, o
Fundef obriga os governos a aplicarem 25% dos recursos resultantes da
receita de impostos e transferências na educação, sendo que não menos
de 60% deverão ser destinados ao Ensino Fundamental. Sua implantação,
em nível nacional, iniciou-se em 1o de janeiro de 1998.
Dos recursos do Fundef, pelo menos 60% devem ser aplicados na
remuneração dos profissionais do magistério em efetivo exercício de
suas atividades no Ensino Fundamental público - incluem-se aqui professores (inclusive os leigos) e os profissionais que exercem atividades de
suporte pedagógico, tais como direção, administração, planejamento, inspeção, supervisão e orientação educacional. Ademais, são colocadas metas que balizam a ação dos gestores locais. Entre elas, podemos citar que
os estados, o Distrito Federal e os municípios devem dispor de um novo
Plano de Carreira e Remuneração do Magistério, que regulamente as
condições e o processo de movimentação na carreira, estabelecendo a
evolução funcional (por categorias, níveis, classes), adicionais, incentivos
e gratificações devidos, além dos correspondentes critérios e escalas de
evolução de remuneração.
O rateio do Fundef é proporcional ao número de alunos matriculados
na respectiva rede de ensino. Com isso, a distribuição de recursos obedece a um critério mais justo, vinculado à real assunção de encargos. Ocorre aqui uma melhor adequação entre transferências e atribuições, algo
fundamental numa Federação, especialmente a nossa, em que a desigualdade e a politização dos critérios foram regularmente empecilhos à
efetividade das políticas.
O objetivo do Governo Federal com o Fundef foi corrigir a má distribuição de recursos entre as diversas Regiões e dentro dos próprios estados, diminuindo as desigualdades presentes na rede pública de ensino.
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Trata-se neste sentido de uma política vertical e horizontal de redistribuição
de recursos, o que a faz única no federalismo brasileiro.
Para assegurar o seu cumprimento, a lei exige a criação dos Conselhos
de Acompanhamento e Controle Social do Fundef, instituídos em cada
esfera de governo, que têm por atribuição acompanhar e controlar a
repartição, a transferência e a aplicação dos recursos do Fundo. O Conselho Municipal de Acompanhamento e Controle Social do Fundef deve ser
composto de, pelo menos, quatro membros, representando a Secretaria
Municipal de Educação ou órgão equivalente; dos professores e diretores
das escolas públicas de ensino fundamental; dos pais de alunos; e dos
servidores das escolas públicas de ensino fundamental. No caso do município contar com o Conselho Municipal de Educação, representantes deste órgão também deverão fazer parte do Conselho Municipal de Acompanhamento e Controle Social do Fundef.
Em comparação à Saúde, na qual o papel do Governo Federal sempre
foi muito forte, a ação da União na Educação foi prejudicada pela forma
confusa e movediça de distribuição de responsabilidades e competências
neste setor. De acordo com um dos responsáveis pela reforma da educação fundamental no Estado de Minas Gerais:
“No caso da educação básica, temos uma torre de Babel protegida sob
o conceito politicamente conveniente de “regime de colaboração”. Segundo esse conceito, as três instâncias podem operar (ou não) redes de
ensino; podem financiar (ou não) a educação; e podem escolher onde
desejam (ou não desejam) atuar. Resultado: não existe uma instância do
poder público que seja responsável (e responsabilizável) pela oferta (ou
não) de ensino fundamental. Cada instância faz o que pode e o que quer,
supostamente em regime de colaboração.” (OLIVEIRA, 1998).
Nesta “torre de Babel”, o Governo Federal cumpria as tarefas mais
variadas, em todos os níveis educacionais, mas não conseguia direcionar
a contento seus esforços para o Ensino Fundamental. Desse modo, seu
comprometimento era mais voluntarista ou discricionário do que fruto de
um plano ou sistemática de cooperação federativa na área educacional.
Isto apesar da Constituição definir expressamente a missão da União: esta
deve promover prioritariamente a universalização e a eqüidade no ensino público, incentivando, financiando e fornecendo assistência técnica a
estados e municípios. O Fundef conseguiu reorganizar com sucesso a
ação federal.
Os resultados do Fundef revelam o crescimento tanto do número de
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alunos matriculados como da municipalização do Ensino Fundamental,
tarefas que não avançavam satisfatoriamente no período anterior. Em
1996, antes da implantação do Fundo, 63% das matrículas estavam na
rede estadual, enquanto 37% estavam no âmbito municipal. Um ano depois de iniciado este programa, já houve uma reversão significativa: 51%
dos alunos pertenciam ao sistema estadual e 49%, ao municipal. Outro
dado revelador da mudança: em 1998 os governos municipais detinham
38,2% das verbas do Fundef e, em 2000, passaram a reter 43,2% (GARSON
& ARAÚJO, 2001: 2-3).
Em resumo, o Fundef foi bem sucedido no que se refere à questão
federativa por ter melhorado a redistribuição de recursos (em termos
verticais e horizontais), aumentado a esperança por simetria entre os
níveis de governo, além de impulsionar uma municipalização mais planejada e a colaboração intergovernamental. Contudo, existem três dilemas federativos não equacionados. O primeiro é o da fragilidade do
controle, perceptível pelo enorme crescimento das denúncias de corrupção
em vários estados. Para tanto, é necessário estabelecer formas articuladas
de fiscalização institucional entre o TCU, os Tribunais de Contas do plano
subnacional, o Conselho vinculado à política e o Poder Legislativo.
A falta de interligação entre o Fundef e o sistema de mais geral de
avaliação escolar, o SAEB, constitui outro problema federativo, uma vez
que, sem uma comunicação adequada entre estes programas, fica mais
difícil para União planejar e supervisionar a implementação descentralizada do Ensino Fundamental. O Fundef, por fim, não foi montado sob um
aparato institucional capaz de discutir e revisar sua implantação tal qual
há na área de Saúde, onde a rede federativa é mais forte e legitimadora.
Em termos democráticos, é essa rede que permite a continuidade e as
alterações da política ao longo do tempo.
Finalizando a discussão de algumas políticas sociais, destacam-se duas
ações na área de Assistência Social com impactos federativos importantes. A Comunidade Solidária constituiu-se numa experiência inovadora no
que se refere à articulação com a sociedade local. Criou uma novo modelo de parceria junto à comunidade, às empresas, aos governos locais e ao
Terceiro Setor. Programas como o Universidade Solidária e o Alfabetização Solidária, o estabelecimento de redes de voluntários, entre outros,
aprofundaram uma característica já prevista na Constituição de 1988 e
implantada pelos governos municipais mais progressistas do país, qual
seja, a execução de políticas com participação ativa da população. Esta
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concepção visa a atacar o clientelismo local e, embora não acabe com
ele, torna-se uma educação para a cidadania.
A distribuição direta de renda à população foi outro movimento central desta área. Iniciado com o PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), passando pelo mal definido Programa de renda Mínima até
chegar ao Bolsa Escola, o governo FHC gastou sete anos de seu mandato
para construir uma forma mais efetiva de atacar a pobreza. Na verdade,
ao longo deste aprendizado, percebeu-se - conscientemente ou não que problemas redistributivos numa Federação, como já apontaram Paul
Peterson (1995) e Paul Pierson (1995), só podem ser resolvidos com a
intervenção ativa de políticas nacionais. A maior novidade em termos
substantivos é a vinculação da transferência de dinheiro a certos objetivos, como a manutenção da criança na escola e a redução da evasão
escolar, o que, por sua vez, derivou da transferência de experiências
subnacionais ao Governo Federal. Aconteceu aqui uma das qualidades do
modelo competitivo de federalismo: a noção de governos rivais como
uma forma incentivadora da inovação.
A soma de recursos aí direcionada cresceu bastante, graças à aprovação do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza e o percentual de
municípios atingidos é impressionante: 99,7%. Além disso, a partir de
2001, esta distribuição de renda direta à população foi coordenada melhor pelo Projeto Alvorada, o qual também estabeleceu uma focalização
melhor de quem seriam os beneficiados, mediante um critério criativo de
utilização do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos municípios.
O Programa Bolsa Escola federal, ademais, estabeleceu mecanismos interessantes para direcionar melhor o processo de descentralização. Segundo Elaine Lício (2002), foram três estes mecanismos:
“a) A suspensão dos repasses do FPM no caso de cadastramento fraudulento por parte do município;
b) a institucionalização do controle social via obrigatoriedade de um
Conselho Municipal, já existente ou criado para este fim, composto por
pelo menos 50% de representantes da sociedade civil, cuja atribuição é
acompanhar a implementação do programa;
c) a vinculação do recebimento do cadastramento das famílias pelo MEC
à sua respectiva aprovação pelo Conselho Municipal” (LÍCIO, 2002: 122).
Apesar da melhora na coordenação e focalização dessas políticas ao
final de seu período governamental, paradoxalmente o presidente Fernando
Henrique também permitiu a proliferação de “Bolsas” ou “Vales” por
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vários Ministérios, de modo que mais programas dividiram o bolo, muitas
vezes com ausência de comunicação entre eles, o que pode levar ao
desperdício e à dificuldade de se avaliar os resultados. É preciso ressaltar
que já há fragmentação demais nas políticas sociais, fato que cria competições predatórias na implementação e na coordenação do Governo Federal.
3) Retumbantes Fracassos: as políticas urbanas e de desenvolvimento
Várias ações do governo Fernando Henrique poderiam ser criticadas sob
o prisma federativo, mas duas delas precisam ser comentadas por conta
do enorme impacto que têm. A primeira diz respeito às políticas de
desenvolvimento, analisadas pelo viés do federalismo. Por esta via, uma
das áreas mais problemáticas é a do ataque às disparidades regionais.
Decerto que alguns avanços foram feitos aqui, como as reformas da infraestrutura voltada ao turismo no Nordeste - particularmente nos aeroportos
-, as ações de reformas agrária nas localidades mais pobres, a distribuição
dos recursos da previdência rural, que beneficiam fortemente a população idosa do interior nordestino e, sobretudo, as ações do Avança Brasil,
particularmente no Norte e Centro Oeste. Todavia, a estrutura institucional
federal montada para tratar desse problemas foi bastante débil. O Ministério da Integração Regional constituiu-se, apenas, num lugar para o
fisiologismo político da pior espécie, afora ter tido uma grande instabilidade no seu comando, com trocas freqüentes, muitas delas derivadas de
algum escândalo.
Triste sina tiveram as instituições de coordenação do desenvolvimento
regional, a Sudam e a Sudene. O presidente Fernando Henrique Cardoso
poderá dizer que foi ele quem desvelou toda uma estrutura profunda,
construída por décadas, de corrupção. É óbvio que esta obra deve ser
creditada ao avanço democrático ocorrido nos últimos anos, com intensa
participação da imprensa e das instituições de controle, em particular
aqui o Ministério Público Federal. Mas o fato cabal é que o governo FHC
não teve um projeto claro de desenvolvimento regional. Ao contrário,
desmantelou os órgãos incumbidos de tal tarefa, fragmentou políticas
para esta área e não propôs uma alternativa ao modelo anterior. Faltou
um planejamento estratégico para os lugares menos desenvolvidas do
país, que foram atingidos positivamente pelas macropolíticas sociais nos
setores previdenciário, educacional, de saúde e assistência social e por
medidas ad hoc, porém não se discutiu e nem foram tomadas medidas
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para reposicionar as Regiões Nordeste e Norte, em especial, no campo
do desenvolvimento econômico.
Em poucas palavras, as políticas sociais dos anos FHC reduziram desigualdades, mas não houve a construção de instrumentos para alavancar o
desenvolvimento regional, tornando tais Regiões dependentes dos recursos federais sem que se tenha uma perspectiva de melhora endógena
desses lugares. Cabe relembrar que o federalismo depende, para seu
bom funcionamento, de medidas que aumentem a esperança quanto à
simetria entre os entes. Ações nacionais redistributivas são bem vindas,
só que conjuntamente e com maior prioridade de longo prazo deve-se
estabelecer um planejamento estratégico e se construir instituições capazes de mudar o perfil da economia local. Para isso, é preciso repensar a
Sudam e a Sudene, e não extingui-las, além de definir o que estas Regiões podem fazer para nutrir seu próprio desenvolvimento.
Os anos FHC não tiveram uma estratégia de desenvolvimento nacional
que, especificamente, organizasse a dinâmica federativa. Isto é, não constituíram formas mais pactuadas de relacionamento econômico entre os
estados, as partir das quais se pudesse ter maior integração e cooperação
na busca dos objetivos. É claro que numa Federação, como argumentado
na segunda parte do capítulo, formas competitivas podem trazer estímulos para o melhor desempenho das unidades subnacionais, inclusive do
ponto de vista econômico. No entanto, no governo Fernando Henrique
prevaleceram jogos federativos horizontais (interestaduais e intermunicipais)
de competição predatória, nos quais o Governo Federal teve sua responsabilidade, por ausência, anuência ou mesmo com algumas ações diretas.
O acirramento da guerra fiscal tornou-se uma marca negativa da era
FHC em termos de estratégia de desenvolvimento econômico. Sem dúvida, há fatores que fogem da alçada da União, como o comportamento
estadualista das governadorias e os elementos da crise financeira dos
estados causados pelos próprios, resultantes do uso indiscriminado dos
instrumentos predatórios ao longo da redemocratização, o que os levou
a procurar atrair empresas para angariar empregos e impostos futuros.
Nesta mesma linha, inclui-se a dinâmica dos capitais internacionais, que
têm, em várias partes do mundo, atuado para incentivar um verdadeiro
leilão entre os governos - especialmente os subnacionais - com o objetivo de melhorar “o clima de negócios” (sic). Em tal leilão, o aspecto
tributário vem ganhando importância. Para não ficar numa visão
reducionista, basta lembrar que nos EUA também cresceu, nos últimos
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vinte anos, a batalha interjurisdicional por investimentos. Entre 1991 e
1995, 56 mil empresas moveram-se de um estado para outro em território norte-americano, envolvendo algo em torno de 1 milhão de empregos. Mas para que não se tenha uma percepção benigna desse processo, vale citar a frase do senador Charles Horn, de Ohio:
“A competição interestadual [nos Estados Unidos] é um jogo de somazero sem nenhuma criação de riqueza” (DONAHUE, 1997: 106).
O jogo predatório da guerra fiscal teve efeitos piores no Brasil
porque não havia, até a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal
(2000), instrumentos de restrição orçamentária forte nos governos
subnacionais. Assim, possíveis déficits poderiam ser repassados para
o Governo Federal - e parcela da dívida estadual de R$ 250 bilhões
adveio disso - ou então para gerações futuras. Calcula-se que há um
passivo de mais de R$ 20 bilhões resultante da disputa fiscal - o que
levou alguns governos estaduais a proporem a constituição de um
fundo federal para ressarcir àqueles que deram incentivos fiscais,
medida que chegou a ser aprovada pelo Confaz em maio de 2000
(Valor Econômico, 22 de maio de 2002: A-3).
Os resultados econômicos da guerra fiscal, ademais, são comprovadamente
inócuos. Isto porque a adoção dessas medidas não tem alterado a
redistribuição regional dos recursos e, como mostrou o estudo de Sérgio
Ferreira (2000), do BNDES, dos sete estados que mais utilizaram os instrumentos de incentivo tributário (Rio Grande do Sul, Ceará, Paraná, Espírito
Santo, Goiás, Bahia, Pernambuco), somente o Ceará teve aumento na sua
participação no PIB nacional entre 1985 e 199827.
Fica a pergunta: como o Governo Federal poderia ter atuado nesta
questão? Primeiro, realizando políticas de desenvolvimento, a partir de
decisões que sejam tomadas em fóruns nacionais, em nome da transparência, da justiça redistributiva e da igualdade entre os pactuantes. E, em
segundo lugar, faltou uma ação mais efetiva em prol da reforma tributária. Sempre se poderá dizer que há muitos interesses em jogo e por isso
não é fácil realizar tal reforma. Porém, os anos FHC foram pródigos na
aprovação de medidas no campo federativo tão difíceis quanto às altera27
Os resultados dos estados que utilizaram intensamente a guerra fiscal foram os seguintes: Goiás teve
um decréscimo de 2% para 1,9%; no Rio Grande do Sul houve uma queda de 7,9% para 7%; na
Bahia, de 5,1% para 4,1%; em Pernambuco, de 2,5% para 2,3%; no Paraná, de 6,3% para 5,8%; no
Espírito Santo, de 1,7% para 1,5%; e, a grande exceção, o Ceará, teve um crescimento de 1,6% para
1,8%. (FERREIRA, 2000: 6)
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ções na estrutura tributária. Mais do que isso, o custo de não se fazer esta
modificação é muito alto para o equilíbrio horizontal entre os estados e,
consequentemente, para toda a Federação. Partindo da hipótese de que a
reforma tributária seja quase impossível de ser realizada, o papel do
presidente Fernando Henrique deveria ter sido o de colocar no debate
público este problema e condená-lo. Em vez disso, concedeu empréstimo do BNDES para a Ford, intercedendo, sem critérios, numa batalha
entre a Bahia e o Rio Grande do Sul, favorecendo o governo baiano em
razão da pressão do grande cacique regional, Antonio Carlos Magalhães.
Neste caso, FHC perdeu para o legado oligárquico e patrimonialista do
federalismo brasileiro.
A maior fragilidade dos anos FHC foi a ausência de políticas urbanas.
É bem verdade que desde o governo Sarney elas não são prioritárias e
na era Collor houve um desmantelamento daquilo que havia. Mas o fato
é que o Brasil dos anos ’90 assistiu a um processo de metropolitanização
dos problemas, com a elevação do desemprego urbano, a piora no
sistema de transporte nas grandes cidades, o crescimento da desigualdade e da pobreza metropolitanas (fenômeno bem mais complexo do
que o vivido no meio rural) e o aumento da violência nas periferias não é por acaso o sucesso do filme Cidade de Deus. Tudo isso ganha
esta visibilidade porque 82% da população brasileira vive em áreas
urbanas e um pouco mais de 50% mora nas Regiões Metropolitanas
tradicionais, nas recém instituídas e naquelas áreas em processo acelerado de metropolitanização. Como bem notou Regina Pacheco:
“As metrópoles brasileiras constituem hoje um dos grandes desafios à
governabilidade do país. Concentrando população, riqueza, demandas sociais, influindo na formação da opinião pública nacional, conectando-se
com cidades globais, as metrópoles são também um imenso patrimônio
coletivo a demandar políticas de revitalização e revalorização, cujo sucesso
depende de novas formas de governo e gestão” (PACHECO, 1995: 91).
O crescimento dos problemas metropolitanos ocorreu no mesmo momento em que não há políticas ou instituições capazes de dar conta
desta questão. Primeiro em razão do fortalecimento da concepção
autárquica de municipalismo, como descrito anteriormente. Isto é, os
governos locais têm poucos incentivos à cooperação e atuam geralmente de forma individualizada. Só que em áreas metropolitanizadas, em
particular, os problemas de ação coletiva são intermunicipais por natureza, de modo que é necessária a ação conjunta (ABRUCIO & SOARES,
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2001). Infelizmente, não existe ainda esta consciência na maioria dos
atores políticos locais28.
Além disso, a Constituição de 1988 foi movida por uma concepção
descentralizadora municipalista, por um modelo federativo
compartimentalizado e por uma aversão ao centralismo, justificável pelo
impacto negativo que teve o “unionismo-autoritário” desenvolvido pelo
regime militar. Quando os problemas não podem ser resolvidos sozinhos
pelo poder local, envolvem mais de um ente governamental e precisam
também da intervenção ativa de uma política nacional, o desenho
institucional e a cultura política federalista predominante não têm respostas adequadas.
O resultado disso fica claro no modelo de Região Metropolitana (RM)
que foi concebido na Constituição de 1988. Na verdade, as RMs foram
esvaziadas e sua conformação legal, transferida para os estados, os quais,
conforme trabalho realizado por Sérgio Azevedo e Virgínia Guia (2000),
não priorizaram esta questão no seu desenho político-administrativo. Sem
uma instância metropolitana e/ou formas que levem à formação de
colegiados metropolitanos - com os municípios envolvidos, mais os governos estadual e federal, além da sociedade civil local -, será muito
difícil resolver os dilemas dos grandes centros urbanos.
Uma ação nacional passaria pela revisão da legislação sobre as Regiões Metropolitanas, o que depende de revisão constitucional. O Governo
Federal não tratou deste assunto nos anos FHC. Para além da questão
mais geral, o fato é que a União não constituiu políticas adequadas para a
grande maioria dos problemas metropolitanos. Isto fica claro ao observarmos o desenho institucional do Executivo Federal em relação a esta
temática. Primeiro, repassou tal preocupação à Secretária de Políticas
Urbanas, fraca institucionalmente e politicamente, sendo destinada para
obter apoios clientelistas no Congresso Nacional. Soma-se a isso o fato de
que a maioria das políticas urbanas se dividia por vários Ministérios - só o
Saneamento estava presente em sete deles, mais a Secretária de Políticas
Urbanas. A fragmentação excessiva inviabiliza atingir resultados
satisfatórias.
28
Como apontam Sérgio Azevedo e Virgínia Guia, “a inexistência de uma consciência metropolitana
em boa parte dos municípios que fazem parte dessas regiões. Prevalece , ainda, entre muitos prefeitos
e vereadores uma visão tradicional de cunho essencialmente local, que, muitas vezes, dificulta ou se
opõe à visão regional” (AZEVEDO & GUIA, 2000: 530).
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É interessante notar que no período Fernando Henrique foi aprovada
uma legislação importante sobre este tema, o Estatuto da Cidade, discutido no Congresso por mais de uma década. No entanto, afora esta Lei ter
uma visão excessivamente municipalista, com os defeitos provindos desse exagero autárquico, ela não teve impactos significativos na agenda do
Governo Federal, até porque foi aprovada no apagar das luzes do governo FHC (10 de julho de 2001).
As principais políticas de cunho urbano-metropolitano fracassaram. Poderíamos citar a Segurança Pública, na qual o Governo Federal descobriu
tarde seu papel, reduzido ao financiamento dos estados, quando deveria
atuar em rede na coordenação das Polícias. No caso do Saneamento, houve
um problema regulatório, com a crise das empresas do setor e a errática (e
equivocada) trajetória de privatização, e, em termos de investimento, embora tenham se elevado no período 1995-1998, não puderem crescer mais
no momento seguinte por conta das restrições do acordo com o FMI.
Segundo Marcus Melo, a Caixa Econômica Federal, principal financiadora
de infra-estrutura urbana, não firmou nenhum contrato de financiamento na
área de Saneamento entre 1999 e 2000 (MELO, 2002: 8).
Aí está um dos grandes problemas da atuação federal em políticas urbanas: a crise dos mecanismos de crédito, fundamentais para alguns destes
programas. Em especial, a área de Habitação foi bastante prejudicada, sobretudo no que tange ao público de baixa renda, e só não houve um colapso
maior porque os governos subnacionais também investem na construção de
moradias populares, embora numa proporção insuficiente para o tamanho
do déficit do setor. Seria preciso, neste caso, resolver o problema estrutural
do financiamento nacional e estabelecer uma rede intergovernamental para
potencializar os gastos das três esferas de governo.
Como a área de desenvolvimento urbano envolve competências e
atribuições dos três níveis de governo, a coordenação federativa teria
que passar, como foi feito na Saúde e com o Fundef, pela elaboração de
políticas federais indutoras, a partir das quais os governos subnacionais
fossem incentivados a cooperar e a buscar determinadas metas e resultados. Além disso, como bem nota Marcus Melo, o sucesso das políticas
públicas tem sido maior conquanto consigam potencializar suas características intersetoriais, como ocorre no Bolsa Escola, por exemplo. Isso é
válido para vários setores do desenvolvimento urbano, em particular o
Saneamento, que poderia se articular mais com a Saúde, fortalecendo os
programas desta área (MELO, 2002: 25).
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O presidente Fernando Henrique Cardoso percebeu, na passagem de
um mandato a outro, que sua política urbana ia de mal a pior. Por isso
cogitou de criar um Ministério específico e forte para esta área, mas não
teve êxito em seu intento. Ainda que longa, vale a pena citar a descrição
de Caco de Paula a respeito deste processo:
“Durante sua campanha pela reeleição, Fernando Henrique Cardoso
chegou a anunciar a criação do Ministério do Desenvolvimento Urbano,
uma superpasta que contaria com R$ 40 bilhões, provenientes do Orçamento da União, de recursos da Caixa Econômica Federal e que, com
acordos com a iniciativa privada, se dedicaria a combater os grandes
déficits das áreas de habitação e saneamento. Saudado tanto por técnicos
em urbanismo como por empresários do setor imobiliário esse ‘Ministério
da Moradia’ - ou ‘Ministério da Cidade’ - passou a ser visto como uma
possibilidade de, finalmente, o governo enfeixar as políticas de desenvolvimento urbano de forma mais integrada. Como já acontecera outras
vezes, desde os tempos do regime militar, a superpasta foi motivo de
muitos comentários, discussões e disputas entre os políticos aliados do
Palácio do Planalto. Mas na hora em que teve de articular o xadrez
ministerial para o seu segundo mandato, Fernando Henrique Cardoso
abandonou a idéia. E o antigo projeto, tentado desde o fim dos governos
militares, de fazer da questão urbana a grande prioridade da ação federal,
novamente, ficou para o futuro” (PAULA, 2002: 419).
A lição fica para o próximo governo: um Ministério das Cidades é
prioridade neste país com grandes problemas metropolitanos, fragilidade
e fragmentação nas políticas urbanas e uma articulação intergovernamental
incipiente.
VII - CONCLUSÃO: LIÇÕES
E
DESAFIOS
Os anos FHC foram marcados por grandes mudanças, orientadas normalmente pelo eixo da reforma do Estado. Em boa parte de suas ações, o
presidente Fernando Henrique Cardoso poderia adotar como sua a concepção expressa por Aspásia Camargo, citada abaixo:
“A Federação é a coluna vertebral que pode ou não dar consistência e
viabilidade ao conjunto de reformas econômicas sociais e políticas que o
Brasil pretende realizar” (CAMARGO, 1994: 93).
Neste sentido, um balanço do período Fernando Henrique ressaltaria,
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primeiramente, as transformações positivas que conseguiu realizar. A partir
da “conjuntura crítica” conformada sob a “era do Real”, o governo FHC
foi maquiaveliano ao destruir praticamente todas os mecanismos predatórios presentes no estadualismo que vigorou na redemocratização. O fim
dos Bancos estaduais e de outras “torneirinhas” dos governadores - a
última foi a dos precatórios, ainda usada durante os primeiros anos FHC , a renegociação da dívida dos estados e, sobretudo, a aprovação da Lei
de Responsabilidade Fiscal foram modificações profundas no federalismo. A criação de uma ordem intergovernamental mais responsável, pelo
menos do ponto de vista financeiro, também esteve presente na aprovação da “Emenda Jobim”, que dificultou a proliferação de municípios, na
mudança da legislação acerca do endividamento subnacional, efetivada
pelo Senado e pelo Banco Central, e na modernização da estrutura
fazendária na União e nos estados (além de algumas capitais). O maior
ganho é a criação de uma cultura de responsabilidade fiscal que vai além
da própria legislação.
O Governo Federal teve ações bem sucedidas também no campo da
coordenação administrativa. A experiência da parceria MARE/Fórum dos
Secretários Estaduais de Administração foi uma inovação que juntou colaboração vertical com estímulos ao associativismo intergovernamental. O
erro foi ter paralisado este processo, embora ela tenha germinado um
modelo de relacionamento entre os entes que se repetiu no segundo
mandato no campo previdenciário, exatamente aquele em que tinha havido um fracasso retumbante de coordenação federativa. O BNDES é
outra instituição que se destacou muito no auxílio e indução de políticas
públicas para os estados e municípios, além de ter criado uma base de
dados excepcional em seu site, com o chamado Banco Federativo. Aliás,
a melhora do tratamento da informação no Executivo Federal ajuda tanto
na sua atividade coordenadora como também na obtenção de dados pelos
outras esferas de poder. Aqui, os Ministérios da Saúde, da Fazenda, da
Previdência, da Educação, do Planejamento e a própria Presidência da
República merecem elogios.
Na descentralização de políticas sociais, o governo FHC apresentou
alguns resultados bastante satisfatórios. Alguns vieram de uma prática
incremental, ou seja, de continuar o que já estava no caminho certo,
aperfeiçoando certos aspectos, como é o caso dos Conselhos de Políticas
Públicas e do modelo do SUS. Alvissareira foi a aposta num novo relacionamento entre Estado e sociedade no plano local, algo que estava inscrito
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na Constituição, mas que ganhou mais vida em determinadas áreas, entre
as quais citaríamos aquelas associadas ao Comunidade Solidária. Infelizmente, neste tópico, o Governo Federal fracassou na implementação das
Organizações Sociais, que poderiam ter sido um outro meio de reformular
a relação entre os serviços públicos e os cidadãos.
A criação de mecanismos de coordenativa federativa na Saúde, com o
PAB, e na Educação, com o Fundef, foi a maior novidade no campo das
relações intergovernamentais. Em ambos há instrumentos indutores, seja
pela via do financiamento seja pelo controle social, os quais fortaleceram
uma descentralização orientada por resultados padronizados nacionalmente
e que não desvirtuam o caráter autônomo dos governos subnacionais.
Entre os dois, o mais sofisticado é o Fundef, uma vez que prevê
redistribuição horizontal entre os entes, a única em nossa Federação;
metas quantitativas e qualitativas; e, ademais, ao estipular um prazo de
validade para além do período FHC, consegue responder, ao mesmo
tempo, aos desafios da lógica do Estado - regras mais estáveis para além
das intempéries conjunturais - e da lógica do governo, já que não engessará
a gestão de todos os próximos presidentes, o que obrigaria, a cada mudança democrática de governante, a realização de reformas constitucionais, defeito estrutural de nosso sistema político.
Políticas nacionais de combate à pobreza mais articuladas com propósitos intersetoriais, voltadas à emancipação dos cidadãos (renda mais educação) e mais focadas constituem outro avanço do período. Pena que
tenham se consolidado nos dois últimos anos de governo, algo absurdo
para um presidente cujo partido intitula-se social-democrata. Os programas estratégicos de investimento contidos no PPA também tiveram um
efeito importante em algumas Regiões do país, mormente no Centro-Oeste. De resto, há outros sucessos federativos dispersos em decisões ad hoc
ou sem uma maior importância e visibilidade no conjunto do governo.
Os erros e as insuficiências do governo Fernando Henrique no front
federativo decorrem de questões mais estruturais presentes na trajetória
do federalismo brasileiro e de opções governamentais equivocadas. No
que se refere ao primeiro aspecto, a fragilidade republicana dos níveis
subnacionais, presente desde a fundação da Federação, vem se modificando, mas ainda constitui obstáculo às ações do Governo Federal. Tanto
melhor seria se o presidente FHC e sua coalizão percebessem o quanto a
reforma do sistema político, em especial das instituições responsáveis
pela accountability do plano local, é essencial para o sucesso de qual235
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quer governante que assume o posto nacional. Não se pode negar, por
outro lado, que houve avanços nos costumes políticos, afinal dois dos
maiores caciques regionais brasileiros, ACM e Jáder Barbalho, perderam
seus mandatos num processo inimaginável a alguns anos. Mas voltaram
novamente para Brasília, porque o republicanismo é uma obra ainda em
construção nos estados e municípios.
Outros três legados federativos que influenciaram negativamente os
anos FHC advêm da redemocratização. O primeiro é o federalismo
compartimentalizado, em que cada nível de governo é uma “caixinha”
separada da outra. A busca pela autonomia governamental depois do
centralismo autoritário explica em parte este processo, mas a lógica da
competição política à brasileira é igualmente um elemento que ressalta
essa divisão estanque do poder. Por vezes, este obstáculo foi ultrapassado,
normalmente pela mudança no desenho das políticas públicas, mas sua
superação vai depender da conscientização da gravidade desse problema
por parte da sociedade brasileira. A trajetória da redemocratização nos
legou, também, uma concepção autárquica do municipalismo, que precisa
ser modificada. Aqui, a ação da União e dos estados para incentivar uma
visão consorciada são fundamentais, porém a alteração deste quadro talvez
só ocorra com novas regras, como a refundação do conceito de Região
Metropolitana. Por fim, o estadualismo predatório persistiu na guerra fiscal.
Este aspecto é anterior e mais profundo do que o projeto do presidente
Fernando Henrique, mas ele poderia ter ao menos levado mais adiante a
discussão sobre a reforma tributária no Congresso Nacional e na sociedade.
O governo FHC não avançou em certas áreas federativas por seus
próprios equívocos. Um deles foi a predominância exacerbada do
fiscalismo, que prejudicou uma visão mais acurada do processo de reforma do Estado nos governos estaduais. Além disso, os comandantes de
Brasília erraram em alguns diagnósticos porque não estabeleceram uma
rede federativa mais forte com as Administrações subnacionais - é o
velho vício do insulamento. O exemplo mais gritante, aqui, é o do problema dos inativos nos estados. Se tivessem detectado mais cedo a fonte
verdadeira do desequilíbrio das conta públicas estaduais, poderiam ter
utilizado melhor os recursos de privatização para capitalizar Fundos de
pensão. Como a história é sempre melhor compreendida depois dos
fatos, é preciso elogiar os técnicos do Ministério da Previdência que, no
segundo mandato, tentaram corrigir, com competência, os erros cometidos antes.
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A fragmentação das políticas sociais foi outro problema do período
FHC. Não obstante algumas ações coordenadoras ao final do período,
como o Projeto Alvorada, o balanço geral revela um alto grau de dispersão em determinadas áreas, como o Saneamento Básico. Mas os maiores
erros aconteceram nas políticas de desenvolvimento e urbanas. Nas primeiras, faltou ao país políticas nacionais para aumentar a simetria federativa. Já as ações para a questão urbano-metropolitana foram as mais mal
sucedidas destes oito anos. Ao próximo governo fica a lição de que a
Segurança Pública, o Saneamento, a Habitação, o Transporte das grandes
cidades e certos temas ambientais precisam, urgentemente, de programas federais devidamente articulados com os outros níveis de governo,
como deve ocorrer numa Federação democrática.
Para concluir, coloco quatro desafios para o próximo governo29. O
primeiro é aprofundar a análise sobre o que ocorreu nos anos FHC,
preservando a memória administrativa do período, que foi bastante rico
em inovações de políticas públicas, mas também aprendendo com os
erros, porque eles costumam se repetir mais do que se imagina. Além
disso, seria interessante conhecer mais a experiência de descentralização
de outras Federações, num trabalho de benchmarking, não para copiar, e
sim para descobrir caminhos que possam servir de inspiração.
Um segundo desafio está na articulação maior entre a os funcionários
públicos federais e os subnacionais, em todos os níveis de gerência. Isso
facilitaria o processo de coordenação das políticas descentralizadas. Os
servidores das carreiras estratégicas da União, em especial, deveriam ter
um estágio de pelo menos três meses em algum município do Brasil,
para conhecer melhor nossa realidade.
O ataque ao modelo compartimentalizado de federalismo é o terceiro
desafio. Para tanto, é preciso incentivar a ações consorciadas no plano
local; recriar, com mais mecanismos de poder, as Regiões Metropolitanas;
reconstruir a Sudam e a Sudene, para atuar sobre o problema do desenvolvimento regional e reforçar a solidariedade federativa; repensar os
fóruns de debates e negociação federativos, como o Confaz e o Conselho
de Gestão Fiscal, e instituir novos instrumentos neste sentido, como uma
Agência de Estudos e Debate Federativo, nos moldes da ACIR norteamericana. É preciso, ademais, encontrar um maior equilíbrio entre cooperação e competição em nossa Federação, para nos livrarmos dos lega29
Esta parte final, referente aos desafios, é baseada em Abrucio, 2002.
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dos negativos da trajetória de nosso federalismo.
Por fim, o grande desafio do próximo governo é aumentar a capacidade de coordenação do Governo Federal ante o processo de
descentralização. Medidas para tanto deverão ser tomadas em cada política específica e, fundamentalmente, precisa ser criada uma forma de
coordenar as ações entre todos os programas que tenham interseção,
para evitar o desperdício ou mesmo a competição predatória por recursos públicos.
Enfrentar estes quatro desafios é lutar contra a visão dicotômica que
contrapõe centralização à descentralização. É descobrir que o Governo
Federal tem um papel essencial no processo descentralizador e não é
seu inimigo.
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AS AGÊNCIAS REGULATÓRIAS :
GÊNESE, DESENHO INSTITUCIONAL E
GOVERNANÇA
1
Marcus André Melo
INTRODUÇÃO
As Agências Regulatórias independentes representam uma das principais
inovações organizacionais do Estado brasileiro nos anos 90. Na realidade,
o seu significado é ainda mais amplo: elas inauguram um novo padrão de
intervenção estatal com relação à economia e à sociedade.
Construiu-se uma nova face do Estado pós-desenvolvimentista, no qual
a ação estatal assume um caráter eminentemente regulatório e facilitador,
abandonando suas funções produtivas e prescindindo do controle direto
de empresas e firmas (Boschi e Lima 2002). Esse pelo menos foi o
projeto que se buscou consolidar no país durante o governo Fernando
Henrique Cardoso, e cujo grau de institucionalização torna-o irreversível
a curto e médio prazo.
Este projeto implicou uma dupla transformação: por um lado, esteve
ancorado em uma reforma patrimonial de largas proporções, representada pela transferência de ativos públicos para agentes privados, as chamadas privatizações. Por outro, esteve associado a uma reforma administrativa que definia um núcleo de atividades exclusivas de Estado, no qual
estão concentradas as funções de regulamentação, fiscalização, fomento,
segurança e seguridade social.
A criação das Agências Regulatórias não constitui fenômeno isolado,
mas, na realidade, representou um movimento fortemente marcado pela
difusão internacional de um paradigma institucional. As agências multilaterais, empresas de consultoria internacional, elites técnicas e outros ato1
Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco e
do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPE
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res no plano doméstico se constituíram em personagens privilegiados de
um processo complexo em que se conjugam mecanismos de aprendizagem social, formação de policy communities, além de mecanismos
reforçadores de um certo isomorfismo organizacional.2
Este texto analisa o desenvolvimento das Agências Regulatórias brasileiras, apresentando um balanço sumário de seu desenho institucional e
avaliando, ainda que bastante tentativamente, como seus impactos sobre
os resultados. A curta experiência das Agências Regulatórias no país
ainda não permite que se faça uma avaliação de sua atuação, nem é este
o objetivo deste trabalho. No entanto, já se pode identificar algumas
questões críticas relativas ao seu funcionamento, além dos desafios à sua
implementação. Essas questões são discutidas tanto no plano federal quanto
no estadual.
O texto está estruturado em sete seções. A primeira discute a transição
do modelo endógeno de regulação centrado na auto-regulação por departamentos de ministérios gestores (no caso da infraestrutura, órgãos aos
quais as empresas estatais estão subordinadas) para o modelo de regulação
por agência independente. As distintas rationales para a transição nas
áreas de infraestrutura e da regulação social são também discutidas. A
segunda seção analisa como as estratégias regulatórias variam
setorialmente, enquanto a terceira explora a questão da especificidade
do desenho institucional das agências - voltado para garantir autonomia,
independência e transparência - e descreve os diferentes formatos das
oito Agências Regulatórias federais3.
A quarta seção faz um balanço das questões e fatores relevantes para
analisar a experiência das Agências (capacidade institucional, capacidade
de enforcement, fragilidade a crise exógena, conflito jurisdicional, trade
offs entre objetivos, e o papel da seqüência). A quinta seção discute o
federalismo regulatório e o desenho institucional das onze Agências estaduais existentes. Na sexta parte, discute-se a questão da contestação
política à autonomia das Agências estaduais, enquanto a seção final propõe algumas conclusões preliminares. Ressalte-se que o foco do capítulo
é a nova forma institucional e não a atividade regulatória enquanto tal.
2
Sobre o processo de difusão de policy reforms cf Melo e Costa (1995). Sobre a onda de criação de
agências regulatórias internacionais cf. Melo (2001). Para uma revisão da literatura, ver Melo
(2000).
3
Por estar em implantação, não será analisada a Agência Nacional de Aviação Civil. Encontra-se em
tramitação o PL 1491, que cria a Agência Nacional de Serviços de Correios.
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Como destacou Nunes (2001), existiam, só no plano federal, 319 órgãos
em 1998 com funções de normatizar, regular, fiscalizar, planejar, propor
políticas, estabelecer critérios e diretrizes.
I - O NOVO ESTADO: DA REGULAÇÃO ENDÓGENA À REGULAÇÃO POR AGÊNCIA INDEPENDENTE
As Agências Regulatórias independentes representam uma nova forma
de regulação pública de setores econômicos, substituindo o exercício de
atividades de regulação diretamente por departamentos ou órgãos da
burocracia executiva. Nesse tipo de regulação endógena ou implícita, os
órgãos estavam sob o comando direto dos governos, que também detinham a propriedade de empresas monopolistas. A regulação pela propriedade pública foi durante décadas o principal meio de regulação na área
de infra-estrutura: gás, eletricidade, indústria de água, ferrovias, telégrafos, e serviços telefônicos. Essas indústrias exibiam as características de
monopólios naturais4.
O argumento avançado em prol das Agências Regulatórias não se
centra fundamentalmente em vantagens ou desvantagens do regime de
propriedade - se pública ou privada -, mas sim na qualidade da estrutura
de incentivos que determina se as empresas vão ser competitivas e/ou se
a universalização de serviços será atingida mais rapidamente. A regulação
endógena apresenta falhas regulatórias importantes: não há separação
entre as atividades de gestão e regulação; as ações de defesa da concorrência não são exercidas, pois há a condição de ente monopolista; e o
controle de qualidade dos serviços é deficiente na medida que é exercido pelo próprio provedor (MAJONE 1996; MAJONE 1999).
O argumento que suporta a nova onda de criação de Agências no
Brasil é que ao confundir os papéis regulatórios e de gerenciamento, a
regulação por propriedade pública promoveu rigidez organizacional, baixa capacidade de responder a mudanças tecnológicas e, sobretudo, pouca capacidade de promover o interesse de consumidores pelo escasso
controle público sobre as empresas. As transformações tecnológicas tive4
Tecnicamente, verifica-se economias de escala tais que fazem com que apenas uma única empresa
seja capaz de suprir a demanda pelo produto ou serviço, com custos inferiores aos que ocorreriam se
houvesse mais de uma empresa atuando no mercado. Se os serviços ou produtos forem fornecidos por
mais de uma empresa, o custo médio para cada uma delas poderá ser superior ao verificado para
apenas uma. Este fato implica custos decrescentes (economias de escala) e na impossibilidade física
de existir mais de uma empresa na prestação do serviço.
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ram papel central na mudança dos regimes regulatórios porque permitiram que surgisse competição em setores que até então não admitiam
mais de uma firma operando (como telecomunicações).
Antes das privatizações, os setores de infra-estrutura eram organizados
na forma de holdings de capital aberto (empresas de economia mista), e
a propriedade da maioria do capital votante das empresas era do Estado.
As pertencentes às áreas de telecomunicações, energia e petróleo eram
reguladas por departamentos vinculados aos ministérios correspondentes: o Departamento Nacional de Telecomunicações (Dentel), o Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (Dnaee) e o Departamento
Nacional de Combustíveis (DNC). No caso do petróleo, até 1990, o órgão
responsável era o Conselho Nacional do Petróleo.
No setor de telecomunicações, a Telebrás controlava a operadora de
chamadas de longa distância (Embratel) e todas as operadoras regionais,
exceto quatro operadoras independentes. No setor elétrico, a Eletrobrás
era responsável por apenas cerca de metade da geração total (mediante
suas subsidiárias Furnas, Chesf, Eletronorte e Eletrosul, e a participação
brasileira no complexo hidroelétrico de Itaipu) e por uma parcela pequena da distribuição. O resto da distribuição cabia às concessionárias estaduais, tanto na geração (36%) como na distribuição (quase 85%) (PIRES
1999).
O setor de petróleo e gás natural estava organizado sob o forte predomínio de uma grande empresa verticalmente integrada, a Petrobrás. O
segmento de gás natural ainda é bastante embrionário no país. A Petrobrás
ainda controla todos os segmentos da cadeia, exceto no segmento
downstream, no qual as empresas estaduais, muitas com a participação
acionária da Petrobras, detêm o monopólio regional de distribuição.
O processo de privatização no país teve início com o Programa Nacional de Desestatização, em 1991. Entre 1991-2000, foram vendidos ativos totalizando mais de U$90 bilhões, caracterizando o processo de
privatização no país como um dos maiores já realizados no plano internacional. Só no setor de telefonia, foram investidos (com a inclusão de
dívidas transferidas) U$ 29 bilhões. No setor elétrico, as privatizações
concentraram-se nas distribuidoras de energia controladas pelos governos estaduais. Em 1999, 2/3 da distribuição já havia sido privatizada. Na
área do petróleo, a ANP já fez quatro rodadas de licitação de concessões
(blocos para exploração e produção), em 1999, 2000, 2001 e 2002.
A primeira Agência Regulatória independente no plano federal foi a
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Aneel, criada em 1997, no âmbito do processo de privatização do setor
elétrico, ao que se seguiu a Anatel e a ANP. As origens da Aneel estão
associadas à modelagem do setor feita em 1997 pela empresa de
consultoria Coopers & Lybrand (COOPER & LYBRAND 1997), e não
remetem à reforma administrativa do Governo. No entanto, afora as Agências citadas, outras foram criadas na esfera nacional em áreas nas quais os
provedores já eram privados - como no caso de transportes intermunicipais
e interestaduais - ou quando a regulação tinha uma função distinta - o
caso de recursos hídricos, vigilância sanitária e saúde complementar.
Neste último caso, a regulação volta-se para corrigir falhas de mercado de outro tipo que não as associadas aos monopólios naturais: os casos
de informação assimétrica (vigilância sanitária, saúde complementar, legislação prudencial), presença de externalidades e coordination failures
(meio ambiente, recursos hídricos), ou defesa da concorrência onde se
observa abuso de poder de mercado (vigilância sanitária, saúde complementar).
A opção pelo formato agência autônoma, nestes casos, está mais associada à questão da chamada “lógica da delegação congressual” do que à
redução do risco regulatório, como é o caso da infra-estrutura (analisado a
seguir). Segundo esse argumento, a divisão de trabalho que se estabelece
entre os governantes (entendidos como a coalizão composta pelo Executivo e sua base parlamentar) e agências autônomas são determinadas
pelo balanço subjetivo de custos e benefícios vinculados às decisões que
os mandatários tomam. Os governantes tendem a transferir para agências
autônomas decisões que, numa avaliação dos atores dessa coalizão, envolvem tecnicalidades excessivas e/ou onde os custos políticos de arcar
com ações freqüentemente impopulares ou resultantes de equívocos técnicos excedem os ganhos políticos que potencialmente poderiam auferir
se eles mesmos tomassem as decisões. As Agências são parte integral de
uma estratégia de blame shifting por parte dessa coalizão (MELO 2001;
MELO 2002). A área da regulação social representaria uma dessas áreas.
A lógica que preside a criação de Agências na área de infraestrutura é
inteiramente distinta. Nesse caso, elas se inscrevem numa estratégia de
busca de credibilidade e redução do risco regulatório para os investidores
dos processos de privatização. Esse risco resulta da própria natureza dos
setores de infra-estrutura, que apresentam custos irrecuperáveis altos (high
sunk costs) e ativos fixos que não são facilmente transferíveis para outras
atividades por apresentarem asset specificity.
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Já a questão básica da credibilidade regulatória refere-se à necessidade e capacidade das autoridades governamentais de assegurar que contratos serão honrados no futuro e de que não haverá mudanças no jogo
ou, no limite, “expropriação administrativa” de rendas, nas várias formas
que isso pode assumir: congelamento de preços, re-estatização, manipulação de tarifas, entre outras.
A estabilidade das regras do jogo é determinada pela estrutura de
governança regulatória - o conjunto de mecanismos que uma sociedade
utiliza para restringir o escopo da ação discricionária dos governantes e
para resolver os conflitos que tais restrições produzem na área da regulação.
As agências autônomas representam um componente central nesse sentido. Todavia, como assinalam Levy e Spiller (1996), a estrutura de
governança é fundamentalmente constrangida pela estrutura institucional
de um país - as instituições do Legislativo, Executivo e Judiciário -, as
regras informais que são tacitamente aceitas pelos atores sociais e pela
capacidade de um país de fazer valer as regras.
O Judiciário independente constitui um componente essencial. Ademais, as instituições políticas influenciam a estrutura de governança
regulatória pelos limites que estabelecem para a ação discriminatória dos
governantes. Tais limites são estabelecidos por uma variedade de mecanismos com a separação de Poderes; regras constitucionais limitando o
poder legislativo de presidentes; o federalismo (que estabelece competências distintas para níveis específicos de poder); além do presidencialismo e legislativos bicamerais5. A credibilidade regulatória é, portanto,
maior em países que apresentam fortes restrições à discrição por parte
do Legislativo e Executivo, além de um Judiciário independente (MUELLLER
2000; MUELLER E PEREIRA 2000).
Deve-se enfatizar que a onda de criação das agências nas várias áreas
de atuação não pode ser inteiramente explicada em função de dois argumentos, de redução do risco regulatório e de blame shifting. A difusão de
idéias do chamado novo gerencialismo público também cumpriu um papel não trivial: ele levou a um certo isomorfismo organizacional no setor
público. Estas idéias estão na base do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, proposto pelo Governo Fernando Henrique Cardoso, em
1995, e idealizado pelo Ministério de Administração e Reforma do Estado
5
Sobre o impacto dessas variáveis nas reformas do Governo Fernando Henrique Cardoso no Brasil cf.
Melo (2002); e sobre a privatização do setor de telecomunicações cf. Kingstone e Amaral (2002).
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(MARE). Embora não constem explicitamente do Plano, a formação das
agências foi discutida nas primeiras reuniões do Conselho da Reforma do
Estado e foi objeto de recomendações específicas6.
De acordo com o Plano Diretor, é importante distinguir três níveis de
atividades do Estado: o núcleo estratégico, ao qual incube a formulação
das políticas públicas; as atividades exclusivas do Estado desempenhadas
pelas agências autônomas; e os serviços não exclusivos, realizados organizações sociais. A idéia de agências autônomas pressupunha dois tipos
diferentes de entes públicos: as Agências Executivas e as regulatórias. As
primeiras são referentes a uma estratégia de flexibilização da gestão de
organismos que realizam funções exclusivas do Estado, ao passo que as
segundas vinculam-se a uma ação estatal mais efetiva na regulação dos
serviços públicos concedidos e de áreas econômicas importantes para o
país, como no caso do petróleo. Bresser-Pereira (1997) assinala que as
Agências Reguladoras devem ser mais autônomas do que as Executivas,
porque não existem para realizar políticas de governo, mas para dar
conta de uma função mais permanente: garantir mercados competitivos e
qualidade de serviços.
II - ESTRATÉGIAS REGULATÓRIAS: OBJETIVOS MÚLTIPLOS E CONFLITANTES
As estratégias gerais dos instrumentos de regulação das agências variam
amplamente de acordo com as especificidades setoriais. De forma geral,
elas referem-se aos seguintes aspectos: a) defesa da concorrência e garantia de mercados competitivos; b)definição de preços e tarifas; c) controle de qualidade e padrões de serviços ou produtos.
Com relação à defesa da concorrência e garantia de mercados competitivos, o problema assume características específicas nas áreas de
infraestrutura, tais como telecomunicações, gás natural e energia. O objetivo é garantir concorrência como forma de se assegurar qualidade e
eficiência em benefícios de consumidores. Essas áreas apresentam uma
organização industrial centrada em redes e o controle destas (pela empresa monopolista anterior à privatização) constitui o principal obstáculo
à entrada de novos concorrentes nos mercados desses serviços. O principal objetivo dos reguladores é garantir o acesso às redes de forma que
possa ocorrer competição entre provedores de serviço.
6
Cf a Segunda reunião do Conselho. Cf. (Conselho da Reforma do Estado 1997, p. 21)
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O acesso pode assumir a forma de separação (unbundling) nas estruturas verticalmente integradas das empresas monopolistas anteriores (“empresas incumbentes”), atribuindo-se a diferentes agentes a propriedade
da rede e sua exploração ou, alternativamente, garantindo o acesso à
rede por parte de empresas novas (“empresas entrantes”). O modelo das
privatizações brasileiras adotou a segunda opção, que consiste em garantir às empresas situadas downstream, usuárias do serviço, o acesso às
instalações essenciais das empresas incumbentes situadas upstream7.
Assim, na área de telecomunicações garantiu-se às novas empresas
operadoras de telefonia à distância o acesso às redes fixas das operadoras de telefonia local, cuja propriedade passou da Telebrás para as três
empresas controladoras das áreas de concessão em que o país foi dividido pelo Plano Geral de Outorgas (1998). Na área de energia, a estratégia
competitiva consiste em assegurar o acesso às redes de transmissão, para
viabilizar a competição entre os consumidores livres (grandes consumidores) em um mercado atacadista de energia (no mercado bilateral e
spot). Na área do gás canalizado, onde a quase totalidade ofertada é
importada através do gasoduto Brasil-Bolívia, a meta é propiciar o acesso
ao pipeline de propriedade da Petrobrás e do governo boliviano.
Na prática, a regulação das redes implica regulação do acesso: proibição da negação do acesso, proibição de estratégias de discriminação de
preços em relação à empresa downstream da incumbente, no que se
refere ao acesso, fixação ou não de preços de acesso à rede (no caso da
telefonia, a tarifa de interconexão), etc.
Para fomentar a entrada de novas empresas entrantes no mercado, a
estratégia é a utilização de assimetrias regulatórias pró-entrante, ou seja,
conceder vantagens compensatórias aos entrantes para compensar o grande
potencial de práticas anticompetitivas das incumbentes. Dentre estas,
estão a utilização de preços menores de interconexão em relação às
incumbentes; autorização com prazo indefinido para entrantes versus outorgas com prazo limitados para incumbentes; a imposição de regras e
metas desiguais de atendimento de usuários e de universalização de
serviços etc.
Como assinala Possas (2002), as empresas incumbentes, no entanto,
continuam usufruindo economias de escala e escopo, além de externalidades
7
Mas exige-se uma separação contábil entre a incumbente controladora da rede e sua empresa
downstream.
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de rede que reduzem a eficácia e complexificam a atividade regulatória,
criando tensão permanente (i. e. nos casos, como o brasileiro, no quais não
se quebra a estrutura vertical integrada da indústria).
A defesa da concorrência e a proibição de práticas anticompetitivas
assumem outro formato no caso da regulação social. No caso da vigilância sanitária, a questão essencial é assegurar a oferta competitiva de
medicamentos num quadro de fortes assimetrias de informação nos mercados de serviços médicos, de medicamentos, alimentos ou planos de
saúde.8 A facilitação da oferta de genéricos no mercado interno cumpre
esse papel, bem como as garantias de portabilidade de carências
interplanos. Além disso, também é importante a regulação prudencial de
planos de saúde suplementar.
A terceira dimensão da regulação é a definição de padrões mínimos
de qualidade de serviços. Esses são justificados pela existência de falhas
de mercado e de consumidores cativos. Por sua vez, a fixação pelas
Agências Reguladoras de metas de universalização (no caso de telecomunicações) é um objetivo de natureza social.
A área de recursos hídricos é peculiar. A regulação nesse caso orientase por objetivos variados: a) de caráter ambiental e social: evitar fenômenos conhecidos como “tragédia dos comuns”, como o superconsumo de
bens públicos onde não há restrição ao usufruto do bem; b) de regulação
econômica (evitar a exploração de mananciais que têm características de
monopólios naturais, etc); e c) sanar falhas de coordenação na exploração do bem.
Um das questões centrais da regulação diz respeito aos trade offs
inevitáveis entre objetivos, que muitas vezes podem ser conflitantes. Os
objetivos sociais podem conflitar com os objetivos de defesa da concorrência. A meta de universalização na telefonia pode, por exemplo, conflitar
com os objetivos de defesa da concorrência.9
8
A demanda de serviços médicos e medicamentos é determinada pela oferta (supply driven demand),
convertendo o médico ou provedor de serviços em consumidor substituto. Nos planos de saúde,
medicamentos ou alimentos há assimetria entre consumidores e produtores, pelas quais os primeiros
não têm condição plena de avaliar o produto que consume ou adquire.
9
Foi o que aconteceu no caso brasileiro (Herrera 2002, p. 4). Esses conflitos e expressam no processo
legislativo de criação das agências. Cf. Amaral (2000) e Pereira, Costa Giovanella (000)
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III - DESENHO INSTITUCIONAL E CARACTERÍSTICAS ORGANIZACIONAIS DAS AGÊNCIAS
REGULATÓRIAS FEDERAIS
Vários aspectos singularizam as Agências em termos do seu desenho
institucional. Esses entes da gestão pública são usualmente estabelecidos
por estatuto como autoridade independente e recebem a permissão para
operar fora da linha de controle hierárquico e de supervisão do governo
central. Uma característica notável das novas instituições é o poder de
arbítrio e independência que são concedidos aos reguladores. Suas atribuições vão para além do monitoramento e autorização para funcionamento, intervindo na estrutura de preços e qualidade de serviço, como
também nas condições de financiamento das atividades concedidas. O
poder de arbitragem tem sido exercitado sem a necessidade de procedimentos legais mais gerais.
Do ponto de vista do desenho institucional, a autonomia da agência
está relacionada com os aspectos listados na Tabela 1.
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Essas características são auto-explicativas, mas alguns aspectos merecem comentários adicionais. As Agências são autarquias especiais, vinculadas a um ministério gestor, só que não mantém com ele nenhuma
relação de subordinação hierárquica. Há apenas um elo de conexão funcional. A autonomia e estabilidade dos dirigentes são garantidas por mandatos fixos e não coincidentes não só entre os diretores e o Executivo
que os nomeou, como também entre os próprios diretores. O primeiro
aspecto é essencial na medida em que garante a não captura do dirigente
em relação ao governo. O descasamento de mandatos entre dirigentes
favorece a imparcialidade nas decisões individuais dos mesmos. A vedação
da demissão imotivada assegura também autonomia, pois só podem ser
exonerados após condenação por sentença transitada em julgado ou por
improbidade administrativa. A exigência de aprovação do Legislativo é
outro dispositivo essencial para garantir autonomia e representa, sobretudo, uma instância de veto adicional.
Para que a agência possa operar com autonomia é fundamental também que tenha independência financeira, conferida no seu orçamento,
com fontes próprias de arrecadação. Para a autonomia funcional é fundamental que se constitua quadro próprio, com carreiras típicas e alto nível
de especialização, de forma a romper com a forte assimetria de informação entre regulador e empresas reguladas.
Outra característica das Agências que garante maior eficácia de suas
ações é que elas são a última instância de recurso no âmbito administrativo. Nesse sentido, para contestar suas decisões só cabe o recurso ao
Judiciário. Ao princípio da autonomia das Agências só se eleva o princípio da legalidade10. Muitas delas adquirem também o poder de instruir
processo no caso de leis de defesa da concorrência, e mesmo julgá-los
administrativamente.
Algumas Agências assinam um contrato de gestão com o Ministério
gestor da área, com o objetivo de criar um mecanismo gerencial de
responsabilização dos dirigentes. Essa inovação representa uma clara influência do novo gerencialismo público sobre o formato institucional de
tais Agências, uma vez que isso não existe na experiência norte-americana, bem mais antiga. O impacto desse dispositivo é ambíguo em termos
da autonomia, pois uma das cláusulas contidas estipula que o não cumpri10
As decisões das agências nos EUA equivalem a de tribunais de primeira instância, o que ainda não
é o caso no Brasil, malgrado a tendência à procedimentalização do direito na área.
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mento do contrato implica destituição de dirigentes. Ao contrário da legislação e das normas que governam a atuação das Agências, os contratos
de gestão estabelecem metas que são negociadas ex ante, introduzindo
uma relação de subordinação em relação aos Ministérios, com a conseqüência de minar a independência que se assegura, por outros instrumentos,
aos seus dirigentes. No caso das Agências da área de infraestrutura, rompese dessa forma a eqüidistância que os reguladores devem manter em relação às partes envolvidas, o poder concedente e os concessionários11.
No que se refere à transparência e ao controle social, o desenho
institucional das Agências tem incluído a criação de ouvidorias, algumas
das quais com mandato, além de prever a representação dos usuários e
dos Procons. As audiências públicas são elemento central do controle ex
ante e permitem a publicização das decisões. Nessa última linha, a publicidade de todos os atos, decisões, discussões (reproduzidas em atas de
reuniões) é um requisito legal importante seu funcionamento. Esses dois
últimos requisitos, aliados à exigência legal de justificativas por escrito,
caracterizam um processo de procedimentalização das Agências, que marca
seu desenho institucional. Por sua vez, as diretorias colegiadas, que impedem a personalização de decisões, reforçam o conjunto de incentivos
organizacionais para sua autonomia.
12
As agências federais comparadas
ANATEL
A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) foi criada através da
Lei 9.472 de 16 de julho de 1997, que dispõe sobre a organização dos
serviços de telecomunicações no país e funcionamento do órgão regulador. A implantação se deu pelo Decreto no. 2.338 de 7 de outubro de
1997, tornando-a autarquia especial vinculada ao Ministério das Comunicações. A Anatel tem a finalidade de regular o setor, implementar políticas nos termos da Lei Geral de Telecomunicações e formular de estraté11
No caso das agências da área da regulação social - saúde suplementar, vigilância sanitária, etc esse aspecto torna-se negligenciável.
12
O governo aprovou às pressas, e sem a definição dos dispositivos regulatórios, a Agência Nacional
de Aviação Civil (ANAC) em 2001, ressuscitando a Comissão Especial que havia sido criada para
apreciar um PL, em virtude da necessidade de homologação de aviões da Embraer por agência
independente, para que os mesmos pudessem operar em áreas internacionais. A agência não será,
no entanto, analisada neste texto por estar em instalação.
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gias para ampliar a concorrência, normatizar o mercado e fiscalizar. A
amplitude do escopo de intervenção da Anatel envolve o controle, prevenção e repressão das infrações da ordem econômica, ressalvadas as
pertencentes ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).
O órgão superior da ANATEL é o Conselho Diretor, composto por
cinco conselheiros nomeados pela Presidência da República e aprovação
do Senado Federal. O presidente do conselho é nomeado para esta função pela Presidência da República para um mandato de três anos sem
recondução - é a única agência onde isso ocorre. O mandato do Conselho
Diretor é de cinco anos, vedada a recondução. Os conselheiros só poderão perder seus mandatos em caso de ilícitos e a eles é vedada qualquer
atividade profissional, sindical ou político-partidária, salvo a de professor
universitário. A quarentena é de 12 meses após o fim do mandato, envolvendo atividade de representação de interesses junto à Agência.
O Conselho Consultivo destina-se à representação da sociedade, sendo composto por doze membros não remunerados, sendo dois indicados
pelo Senado federal, dois pela Câmara dos Deputados, dois pelo Poder
Executivo, dois indicados pelas empresas prestadoras de serviços, dois
representantes de usuários e dois conselheiros indicados por entidades
com representatividade na sociedade. Suas competências consistem em
opinar sobre o Plano Geral de Outorgas e acerca das metas para
universalização dos serviços prestados em regime público, requerer informações e formular proposições. O modelo tem como objetivo a inclusão de grupos públicos e de parlamentares como mecanismo de controle
sobre falhas de regulação.
A Anatel possui ainda um Ouvidor independente, sem relações com o
Conselho Diretor, nomeado pela Presidência da República para um mandato de dois anos, admitida uma recondução. A Procuradoria-Geral da
Agência está vinculada à Advocacia-Geral da União, para fins de orientação normativa e supervisão técnica. A Corregedoria fiscaliza as atividades
dos órgãos vinculados, aprecia representações efetuadas em seu nome,
realização correições, coordena os estágios confirmatórios dos servidores
e instaura sindicâncias e processos administrativos disciplinares. As decisões são submetidas ao Presidente do Conselho Diretor. A estrutura contempla ainda cinco Superintendências e Comitês dirigidos por conselheiros conforme necessidade.
As receitas da Anatel são decorrentes principalmente do Orçamento
Geral da União (OGU) e de recursos do Fundo de Fiscalização das Tele259
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comunicações (FISTEL), que são administradas exclusivamente por ela.
As mudanças tecnológicas no setor de telecomunicações e a alta
competitividade nos mercados internacionais, já assinaladas, favoreceram
a adoção de inovações que acompanharam o processo de privatização do
Sistema Telebrás e as concessões a novas empresas que entraram nos
mercados nacionais. Com o desenho de uma Agência Regulatória com
elevado grau de autonomia frente ao Poder Executivo e insulada frente
aos grupos de interesses privados, pretendeu-se o desenvolvimento de
políticas competitivas e a eliminação das características de monopólio
natural.
O aprendizado internacional da ANATEL na montagem do aparelho
regulatório brasileiro foi considerado como uma variável que favoreceu
as privatizações das empresas do Sistema Telebrás. O elenco de ações de
natureza regulatória orientada à competitividade no setor incluem proibições de concentração de concessões; limite por cinco anos de fusões;
proibição de ampliação do escopo de atuação e de integração vertical de
serviços locais e de longa distância.13
Foram estabelecidas regras de interconexão entre operadoras e concessionárias em consonância com a competitividade dos mercados, sendo
os conflitos arbitrados pela Agência. Como estratégia regulatória, está
prevista a prática temporária do cream skimming (autorização para novas
empresas atuarem nos segmentos mais rentáveis, obrigando os incumbentes
à prática de subsídios cruzados), a fim de assegurar novos agentes nos
mercados. Outra estratégia regulatória utilizada foi a adoção do modelo
britânico dos anos ’80 (RPI-X), como forma de regular por meio de preços (price cap), em substituição ao tradicional estabelecimento de preços
pelos custos14.
13
Segundo Pires (1999), uma das características importantes das reformas no setor de telecomunicações no Brasil consiste na adoção dos incentivos à entrada de novos operadores no setor (assimetrias
regulatórias pró-entrantes). Trata-se de reduzir o poder de mercado dos primeiros vencedores dos
leilões das estatais. Foram definidas seis estratégias com características de assimetrias regulatórias por
parte da ANATEL: definição do regime de exploração dos serviços; de área de atuação; critérios para
expansão de atividades; estrutura de incentivos para a universalização dos serviços; possibilidade de
diversificação; e uso de novas tecnologias.
14
No regime de regulação por incentivos, tais regras estimulam a concessionária a reduzir os custos
de operação cobertos pelos custos gerenciáveis da receita ao longo do período anterior à revisão
tarifária, uma vez que menores custos para um mesmo nível real de tarifas, implicam em maiores
benefícios para a concessionária, sob a forma de maior remuneração do capital. Os custos nãogerenciáveis são repassados.
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O aprendizado internacional da nova gerência pública implica que
soluções organizacionais sejam buscadas para definir o lugar do cidadão
e a responsabilização. A Agência contempla a figura da Ouvidoria independente na sua estrutura, nomeada pela Presidência da República na
forma de ombudsman. Em relação à responsabilização, não se definiu o
contrato de gestão com o Ministério supervisor.
ANEEL
A Agência foi criada através da Lei no. 9.427, de 26 de dezembro de
1996, na forma de uma autarquia em regime especial com o objetivo de
regular e fiscalizar o setor de energia elétrica. A implementação foi feita
através do Decreto 2.335 de 6 de outubro de 1997. A Aneel é dirigida
por um Diretor-Geral e quatro Diretores em regime colegiado, dos quais
um deles tem a incumbência de atuar como Ouvidor - modelo que confere menos autonomia à atividade do que a figura do ouvidor externo à
diretoria com mandato fixo.
A diretoria é nomeada pelo Presidente da República, com prévia aprovação pelo Senado Federal, para cumprir mandatos não coincidentes de
quatro anos, sendo vedada a participação de seus membros em empresas
ou grupos atuantes no setor. A quarentena estipulada após a saída do
cargo é de 12 meses. As receitas são obtidas junto ao Orçamento Geral
da União (OGU) e, sobretudo, a taxa de fiscalização. A estrutura da Aneel
é a mais complexa de todas as federais, comportando, além da diretoria
colegiada, vinte superintendências. O corpo funcional é composto por
funcionários selecionados por concurso público.
A Aneel é a única na área de infraestrutura que dispõe de Contrato de
Gestão. A subordinação direta foi substituída pelo instrumento do contrato de gestão com o Ministério das Minas e Energia - o qual, como assinalado, introduz um elemento de redução da autonomia da Agência.
O grau de insulamento da Agência é elevado. A exoneração imotivada
dos dirigentes só poderá ocorrer nos quatro meses iniciais do mandato,
após o que fica assegurado o exercício pleno das funções. A quarentena
é estipulada em 12 meses após o afastamento do diretor de seu cargo.
Por sua vez, a transparência no processo decisório e a inclusão de agentes econômicos e de grupos de interesses públicos buscam corrigir as
falhas de regulação, especialmente os riscos de captura. Não há ouvidor
externo à diretoria com mandato fixo, pois a ouvidoria constitui atividade
desenvolvida no âmbito da diretoria colegiada da ANEEL.
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No que se refere à representação dos interesses na Aneel, não se
prevê nenhuma estrutura de participação das concessionárias ou de consumidores na estrutura do órgão ou fora dele. O controle social é, dessa
forma, menor que nas outras agências. As audiências públicas são previstas na Lei 9.427 e têm caráter obrigatório, devendo ser convocadas pela
Aneel sempre que suas decisões afetarem direitos de agentes econômicos do setor e consumidores, e devem preceder a tomada de decisões,
sendo os resultados publicados no Diário Oficial da União (DOU).
A Aneel é a única Agência na qual as atividades de descentralização
são previstas e detalhadas na legislação e no regimento interno. Ela atua
nos estados mediante convênios - sendo 13 já celebrados até outubro de
2002.
ANP
A Agência Nacional do Petróleo foi criada pela Lei 9.478 de 6 de
agosto de 1997 em conjunto com o Conselho Nacional de Política
Energética e implantada pelo Decreto no. 2.455 de 14 de janeiro de
1998, na forma de autarquia sob regime especial. Seus objetivos consistem em regular a indústria do petróleo de acordo com objetivos da
política energética nacional. O CNPE concentra as funções de formulação política e está diretamente ligado à Presidência da República. A Lei
assegura o monopólio da União sobre a pesquisa e lavra de jazidas de
petróleo e gás natural, refinação, importação de exportação de produtos e derivados básicos e o transporte marítimo de petróleo bruto e
derivados básicos. No entanto, a nova legislação autoriza o Governo
Federal a efetuar concessões ou autorizações para empresas desenvolverem atividades sob monopólio estatal. A regulação das atividades
públicas e privadas no setor é competência da ANP.
Ele á uma autarquia sob regime especial vinculada ao Ministério das
Minas e Energia. A estrutura consiste de Diretoria-Geral, ProcuradoriaGeral e Superintendências. A Diretoria-Geral funciona em regime
colegiado, sendo composta por um Diretor-Geral e quatro Diretores, todos nomeados pela Presidência da República após aprovação pelo Senado Federal, permitida a recondução. No ato de implantação da ANP
foram remanejados de outros órgãos da administração direta um total de
208 cargos comissionados de diferentes níveis, que compõem o quadro
inicial da agência.
O grau de insulamento dos dirigentes da ANP é muito inferior às
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demais Agências. Ao contrário da Aneel e da Anatel, os diretores da ANP
não gozam de estabilidade no cargo15. O artigo 12 da Lei 9478 foi vetado
pelo Presidente da República. O artigo vedava a demissão imotivada dos
dirigentes16. Os dirigentes tampouco estão sujeitos às exigências das outras Agências de não ter mantido vínculos nos 12 meses anteriores com
as empresas ou entidades de representação17.
O mandato da diretoria é de quatro anos não coincidentes, permitida a
recondução. Nos 12 meses após deixar o cargo é proibida a vinculação
dos diretores a empresas ou grupos atuantes no setor. As receitas da ANP
advêm do OGU; participações por implementação da legislação; convênios, acordos ou contratos; doações e similares; taxas e multas; venda ou
locação de imóveis.
Os aspectos procedimentais, afora os comuns a todas as Agências,
estão explicitados na lei de criação da ANP. O processo decisório estabelece que as sessões deliberativas, destinadas a resolver pendências entre
agentes econômicos e entre estes e consumidores e usuários de bens e
serviços da indústria do petróleo, serão públicas, permitida a sua gravação por meios eletrônicos e assegurado aos interessados o direito de
delas obter transcrições. Além disso, o processo decisório que implicar
afetação de direitos dos agentes econômicos ou de consumidores e usuários de bens e serviços da indústria do petróleo, decorrente de ato administrativo da Agência ou de anteprojeto de lei por ela proposto, será
precedido de audiência pública.
15
É curioso que o primeiro ocupante do cargo venha a ser o genro do presidente da República. Uma
hipótese sobre esse baixo grau de insulamento é que ele pode estar relacionado com a centralidade
da Petrobrás na economia brasileira.
16
O artigo 9 da Lei 9986, de 2000 (Lei dos quadros das agências), estabelece que “Os Conselheiros e
os Diretores somente perderão o mandato em caso de renúncia , de condenação judicial transitada
em julgado ou de processo administrativo disciplinar . Parágrafo único - A lei de criação da Agência
poderá prever outras condições para a perda do mandato”.
17
O artigo 13 da Lei 9478 foi vetado. A íntegra do artigo é a seguinte: Art. 13. Está impedida de exercer
cargo de Diretor na ANP a pessoa que mantenha, ou haja mantido nos doze meses anteriores à data
de início do mandato, um dos seguintes vínculos com empresa que explore qualquer das atividades
integrantes da indústria do petróleo ou de distribuição I - acionista ou sócio com participação
individual direta superior a cinco por cento do capital social total ou dois por cento do capital votante
da empresa ou, ainda, um por cento do capital total da respectiva empresa controladora; II administrador, sócio-gerente ou membro do Conselho Fiscal; III - empregado, ainda que o respectivo contrato
de trabalho esteja suspenso, inclusive da empresa controladora ou de entidade de previdência
complementar custeada pelo empregador. Parágrafo único. Está também impedida de assumir cargo
de Diretor na ANP a pessoa que exerça, ou haja exercido nos doze meses anteriores à data de inicio
do mandato, cargo de direção em entidade sindical ou associação de classe, de âmbito nacional ou
regional, representativa de interesses de empresas que explorem quaisquer das atividades.
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A ANP conta com um órgão consultivo externo que é o Conselho
Nacional de Política Energética, criado pela mesma Lei que a agência,
mas só regulamentado em junho de 2001, no quadro da crise de energia.
O CNPE, no entanto, não é um conselho exclusivo da agência, nem nele
estão representantes de recipientes de outorgas18.
ANVISA
A Agência foi criada através de Medida Provisória no. 1.791, de 1998, e
regulamentada pela Lei 9.782 de 26 de janeiro de 1999, que define o
Sistema Nacional de Vigilância Sanitária e o seu funcionamento. Ao contrário dos casos anteriormente descritos, a ANVISA não se estrutura no
interior de privatizações de monopólios estatais ou voltada para estimular
a concorrência e competitividade em mercados. Neste sentido, o foco da
regulação é fortemente concentrado em funções de fiscalização. No entanto, a atuação recente da agência tem tido repercussão sobre o mercado de medicamentos, na medida em que impulsiona a Lei de Medicamentos Genéricos em consonância com as atividades do Ministério da
Saúde ao qual está vinculada, a fim de promover a redução de preços ao
consumidor de remédios básicos e essenciais.
Foi criada como autarquia em regime especial. Seus objetivos se remetem ao controle sanitário da produção e comercialização de produtos e
serviços submetidos à vigilância sanitária, dos ambientes, dos insumos e
das tecnologias, assim como efetuar o controle sobre portos, aeroportos e
fronteiras. O controle territorial também a diferencia das demais. Ela coordena o Sistema Nacional de Vigilância sanitária, o que implica em estabelecer amplo conjunto de normas e ações, estipular padrões técnicos, intervir
em empresas e serviços públicos e naqueles privados de caráter estratégico, conferir licenças de produtos, exigir certificados de qualidade e
credenciamentos junto ao SINMETRO, entre outras competências. A criação da Agência resultou na substituição de estruturas burocráticas do Ministério da Saúde, com a extinção da Secretaria de Vigilância Sanitária.
18
Integram o CNPE: I - o Ministro de Estado de Minas e Energia, que o presidirá; II - o Ministro de
Estado da Ciência e Tecnologia; III - o Ministro de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão; IV
- o Ministro de Estado da Fazenda; V - o Ministro de Estado do Meio Ambiente; VI - o Ministro de
Estado do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; VII - o Ministro Chefe da Casa Civil da
Presidência da República; VIII - um representante dos Estados e do Distrito Federal; IX - um cidadão
brasileiro especialista em matéria de energia; e X - um representante de universidade brasileira,
especialista em matéria de energia. Os membros tem mandato de 2 anos, e são designados pelo
Ministro das Minas e Energia e pelos estados.
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A ANVISA está vinculada ao Ministério da Saúde e possui Diretoria
Colegiada, contando com um Ouvidor, um Procurador, um Corregedor e
um Conselho Consultivo.A Diretoria-Geral é composta por cinco membros, com um Diretor-Presidente, todos nomeados pela Presidência da
República, após aprovação pelo Senado Federal, para mandato de três
anos, admitida uma recondução. O Diretor-Presidente é nomeado pelo
Presidente da República entre os membros do colegiado. A exoneração
imotivada de diretores só pode ser feita nos quatro meses iniciais do
mandato. É proibida outra atividade profissional ou de representação
política e sindical dos diretores e o período de quarentena é de 12 meses
após o término de seu mandato.
A atuação da ANVISA é regida por Contrato de Gestão estabelecido
com o Ministério da Saúde e o descumprimento injustificado de seus
termos implicará a exoneração do seu Diretor-Presidente. As receitas da
ANVISA decorrem de dotações do OGU; Taxa de Fiscalização Sanitária;
retribuição por serviços prestados; multas e dívidas; convênios, contratos
ou acordos; doações e similares; rendas de bens móveis e imóveis.
A ANVISA é a única agência brasileira que instrui e julga processos,
sem remissão ao CADE. Suas decisões só podem ser contestadas no
Judiciário. No entanto, na prática, a fixação de preços de medicamentos
cabe a Câmara de Medicamentos, integrada pelos Ministérios da Fazenda,
Justiça, Casa Civil e pela ANVISA, que exerce a secretaria executiva.
ANS
Criada pela Lei n° 9.961 de 28 de Janeiro de 2000, a Agência Nacional
de Saúde Suplementar é uma autarquia sob regime especial, vinculada ao
Ministério da Saúde. A ANS tem a missão de promover a defesa do
interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais, inclusive nas suas relações com prestadores e consumidores. É dirigida por uma Diretoria Colegiada, devendo contar, também,
com um Procurador, um Corregedor e um Ouvidor, além de unidades
especializadas.
A gestão da ANS é exercida pela Diretoria Colegiada, composta por
até cinco Diretores, sendo um deles o seu Diretor-Presidente. Todos
devem ser brasileiros, indicados e nomeados pelo Presidente da República, após aprovação prévia pelo Senado Federal, para cumprimento de
mandato de três anos, admitida uma única recondução. O Diretor-Presidente da ANS será designado pelo Presidente da República, dentre os
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membros da Diretoria Colegiada, e investido na função por três anos, ou
pelo prazo restante de seu mandato, admitida uma única recondução por
três anos. Após os primeiros quatro meses de exercício, os dirigentes da
Agência Nacional de Saúde Suplementar somente perderão o mandato
em virtude de condenação penal transitada em julgado ou condenação
em processo administrativo; acumulação ilegal de cargos, empregos ou
funções públicas, e/ou descumprimento injustificado de objetivos e metas acordados no contrato de gestão.
A representação de interesses é extremamente ampla e inusitada em
termos de sua diversificação. A ANS conta com uma Câmara de Saúde
Suplementar, de caráter permanente e consultivo. A Câmara é composta
de 34 membros19. A principal fonte de recursos é própria: a taxa de
saúde suplementar.
ANTT e ANTAQ
Essas duas Agências irmãs foram criadas pela mesma lei e tem a mesma
estrutura institucional salvo no que se refere ao número de diretores. A
Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) e a Agência Nacional
de Transportes Aquáticos (ANTAQ) têm como objetivo implementar, em
suas respectivas esferas de atuação, as políticas formuladas pelo Conselho Nacional de Integração de Políticas de Transporte e pelo Ministério
dos Transportes, segundo os princípios e diretrizes estabelecidos na le19
Os membros são os seguintes pela Lei 9961, modificada pela MP 2.177, de 24/08/01:
I - pelo Diretor-Presidente da ANS, ou seu substituto, na qualidade de Presidente;
II - por um diretor da ANS, na qualidade de Secretário;
III - por um representante de cada Ministério a seguir indicado:
a) da Fazenda; b) da Previdência e Assistência Social; c) do Trabalho e Emprego; d) da Justiça; e) da
Saúde;
IV - por um representante de cada órgão e entidade a seguir indicados:
a) Conselho Nacional de Saúde; b) Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Saúde;c) Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde;d) Conselho Federal de Medicina;e) Conselho
Federal de Odontologia;f) Conselho Federal de Enfermagem;g) Federação Brasileira de Hospitais;h)
Confederação Nacional de Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços;i) Confederação das Santas
Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas;j) Confederação Nacional da Indústria;l)
Confederação Nacional do Comércio;m) Central Única dos Trabalhadores;n) Força Sindical;o) Social Democracia Sindical; p)Federação Nacional das Empresas de seguros provados e capitalização
q ) Associação Médica Brasileira.
V - por um representante de cada entidade a seguir indicada:
a)do segmento de auto-gestão de assistência à saúde;b) das empresas de medicina de grupo;c) das
cooperativas de serviços médicos que atuem na saúde suplementar;d) das empresas de odontologia
de grupo;e) das cooperativas de serviços odontológicos que atuem na área de saúde suplementar;
VI- Por dois representantes de entidades a seguir:
a) de defesa do consumidor;b) de associações de consumidores de planos privados de assistência à
saúde;c) das entidades de portadores de deficiência e de patologias especiais.
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gislação. Ambos devem regular ou supervisionar, em suas respectivas
esferas e atribuições, as atividades de prestação de serviços e de exploração da infra-estrutura de transportes, exercidas por terceiros, com vistas:
a) a garantir a movimentação de pessoas e bens, em cumprimento a
padrões de eficiência, segurança, conforto, regularidade, pontualidade e
modicidade nos fretes e tarifas;
b) a harmonizar, preservado o interesse público, os objetivos dos usuários, das empresas concessionárias, permissionárias, autorizadas e arrendatárias, e de entidades delegadas, arbitrando conflitos de interesses e
impedindo situações que configurem competição imperfeita ou infração
da ordem econômica.
A ANTT e a ANTAQ têm diretorias atuando em regime de colegiado
como órgãos máximos de suas estruturas organizacionais, além de Ouvidoria
e Corregedoria. A Diretoria da ANTT é composta por um Diretor-Geral e
quatro Diretores e a Diretoria da ANTAQ tem um Diretor-Geral e dois
diretores. Os membros da Diretoria devem ser brasileiros, de reputação
ilibada, formação universitária e elevado conceito no campo de especialidade dos cargos a serem exercidos, e serão nomeados pelo Presidente
da República, após aprovação pelo Senado Federal.O Diretor-Geral é
nomeado pelo Presidente da República dentre os integrantes da Diretoria, os quais cumprem mandatos de quatro anos, não coincidentes, admitida uma recondução. Os membros da Diretoria perderão o mandato em
virtude de renúncia, condenação judicial transitada em julgado, processo
administrativo disciplinar, ou descumprimento manifesto de suas atribuições.
ANA
Criada em julho de 2000, a Agência Nacional de Recursos Hídricos (ANA)
é uma autarquia sob regime especial, com autonomia administrativa e
financeira, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, com a finalidade
de implementar, em sua esfera de atribuições, a Política Nacional de
Recursos Hídricos, integrando o Sistema Nacional de Gerenciamento de
Recursos Hídricos, juntamente com as agências estaduais de água, os
comitês de bacia e Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Em adição a
isso, cabe à ANA outorgar, por intermédio de autorização, o direito de
uso de recursos hídricos em corpos de água de domínio da União.Ela
agência está envolvida em densa estrutura institucional onde o potencial
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para conflitos de jurisdições é extremamente elevado.
A ANA é dirigida por uma Diretoria Colegiada, composta por cinco
membros, nomeados pelo Presidente da República, com mandatos não
coincidentes de quatro anos, admitida uma única recondução consecutiva, e conta com uma Procuradoria. O Diretor-Presidente da Agência é
escolhido pelo Presidente da República entre os membros da Diretoria
Colegiada, e investido na função por quatro anos ou pelo prazo que
restar de seu mandato.
A exoneração imotivada de dirigentes da ANA só poderá ocorrer nos
quatro meses iniciais dos respectivos mandatos. Depois disso, apenas o
perderão em decorrência de renúncia, de condenação judicial transitada
em julgado ou de decisão definitiva em processo administrativo disciplinar. Dentre os dispositivos que visam a assegurar autonomia, está a vedação
do exercício, por seus dirigentes, de qualquer outra atividade profissional, empresarial, sindical ou de direção político-partidária. A ANA detém
autonomia funcional e financeira. Dentre suas receitas, estão as provenientes da cobrança pelo uso de recursos hídricos de domínio da União, o
que lhe garante potencialmente uma gestão autônoma.
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IV - A IMPLEMENTAÇÃO DAS AGÊNCIAS FEDERAIS: DESAFIOS
A curta experiência das Agências Regulatórias no país ainda não permite que se faça uma avaliação de sua atuação e nem é este o objetivo do
trabalho. No entanto, já se pode identificar algumas questões críticas
relativas ao funcionamento das Agências e os desafios a sua
implementação.
A questão preliminar que se antepõe às demais é a vulnerabilidade
do regime regulatório brasileiro a choques endógenos e exógenos. A
crise de energia enfrentada pelo país em 2001 representou um teste
limite e expôs a fragilidade do regime no que se refere à energia
elétrica, gás e recursos hídricos20. Com a crise, foram criados o Comitê
de Gestão da Crise Energética (GCE), que substituiu a Aneel e a ANP
em muitas de suas atribuições (sobretudo a primeira) e a Empresa
Comercializadora de Energia Emergencial. A autonomia e estabilidade
das Agências ficaram seriamente abaladas. No auge da crise, parlamentares e o próprio Executivo discutiram a demissão do diretor da Aneel o que só poderia ser feito por falta grave ou descumprimento do contrato de gestão assinado. A questão da fusão das duas Agências também
entrou na agenda governamental.
O GCE assumiu muitas das responsabilidades estatutárias da Aneel,
tais como a definição do preço à vista no Mercado Atacadista de Energia
(MAE), a fixação das metas do racionamento e a comercialização de
excedentes. No que se refere à ANP, o GCE tomou para si a fixação das
condições do programa de uso do gás para a geração de energia
termelétrica (PIRES e GOLDSTEIN 2001, p.33-35; ANNUATI NETO e
HOCHSTETLER 2001).
A segunda questão é a ausência de competências plenamente definidas e a transição incompleta do modelo anterior para o novo. Na área
energética o ciclo permaneceu inconcluso, com a privatização restrita
basicamente às distribuidoras. Na área das telecomunicações não se
completou a fase de concentração de competências na área de regulação,
com a assunção pela Anatel das concessões de rádio e televisão, ainda
20
A crise foi produzida pela conjunção dos seguintes fatores: a falta de investimentos em geração;
pela trajetória incompleta das privatizações do setor, que atingiu apenas o segmento de distribuição;
grave falta de coordenação entre Aneel e ANP; atraso na constituição de uma marco regulatório para
a exploração de recursos hídricos, e conseqüentemente investimentos de geração; deficiências da
governança do MAE; além da falta de planejamento e fatores metereológicos.
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mantidas sob competência do Congresso Nacional. A Agência mais afetada pela incompletude da transição foi a Aneel. Nesse caso, o problema está ancorado na própria seqüência perversa no setor, com a montagem do marco regulatório e a criação da agência ocorrendo posteriormente ao início do processo de privatização. Com efeito, as privatizações
da Light, Escelsa, e Coelba precederam a definição do marco regulatório
e a criação da Aneel , MAE e ONS.
A indefinição de competências e a falta de coordenação intersetorial
contribuíram para a exacerbação da própria crise energética na medida
em que o aumento da oferta de energia no curto prazo e a redução da
dependência nacional de fontes hidrelétricas estavam vinculadas à definição pela ANP das condições de uso do gás para a termeletricidade.
Ainda houve a postergação por mais de dois anos da implantação do
CNPE, depois de sua criação legal. O conflito de competências envolvendo a ANA, acrescido da indefinição de parâmetros para o
licenciamento ambiental, foi outro fator que retardou o investimento em
geração.
A questão do caráter inconcluso da transição do modelo energético e
as insuficiências do quadro regulatório adquiriram grande centralidade
com a crise no setor. A convivência de empresas geradoras incumbentes
no sistema contribuiu também para aumentar o risco regulatório no
setor, uma vez que a credibilidade do Aneel para fazer valer as regras
foi colocada em dúvida. A permanência da Petrobrás como virtual
monopolista no setor de gás atuou na mesma direção. Esses dois aspectos são discutidos abaixo.
O conflito de jurisdições está presente no relacionamento entre as
Agências, a Secretaria de Acompanhamento do Econômico (SEAE, sediada
no Ministério da Fazenda), e a Secretaria de Defesa Econômica (SDE,
sediada no Ministério da Justiça)21, que desenvolvem atividades preliminares que são enviadas ao Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (CADE) para julgamento22. No entanto, deve-se destacar que o
CADE só pode intervir ex post, quando as empresas submetem para sua
aprovação propostas de fusão ou compra, enquanto as Agências e a SEAE
21
Ao contrário do previsto, as Agências não têm desempenhado um papel importante na arbitragem
de conflitos em virtude de inadequação da legislação brasileira. (Araújo e Pires 2000).
22
A fusão dessa entidade em uma Agência Nacional de Defesa da Concorrência foi anunciada para
consulta pública, mas que curiosamente não regulamenta a relação das agências com o novo órgão
(Herrera 2001, p. 5).
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atuam preventivamente sobre a conduta, colocando restrições ex ante.
Ademais, há acusações de captura das agências por interesses das
empresas por parte da SEAE23. Para esta, a regulação setorial é passível
de captura regulatória, enquanto a regulação geral, em sua alçada e da
SDE, é mais universalista e neutra. Por outro lado, o risco regulatório para
o mercado do SEAE é alto, em virtude de seu potencial de subordinação
às metas antiinflacionárias do Ministério da Fazenda. O conflito jurisdicional
também ocorre entre o INPI e a ANVISA, em torno da concessão de
patentes de medicamentos24.
A terceira questão está intimamente relacionada à anterior e refere-se ao
aspecto central do regime regulatório, a saber, a capacidade de enforcement
das Agências e sua autonomia em relação aos agentes envolvidos. Estes
serão discutidos com base em alguns eventos específicos que ilustram o
padrão de atuação delas. No caso da Anatel alguns episódios podem ser
destacados. O primeiro refere-se à regulação preventiva do mercado. A Lei
Geral de Telecomunicações (LGT) proíbe a mesma operadora de possuir
ações no consórcio controlador em mais de uma região25. A Anatel, neste
sentido, tomou três decisões com o objetivo de regular a estrutura do mercado (Pires & Goldstein 2001: 19-21). A primeira intervenção deveu-se ao fato
de o consórcio que adquiriu a Telesp fixa já controlar a operadora gaúcha
CRT, que não fazia parte do Grupo Telebrás. Uma série de conflitos entre os
acionistas da CRT impedia a venda das ações do consórcio da Telefônica na
companhia, o que levou à intervenção na empresa em junho de 1999.
As outras intervenções da Anatel foram a determinação para que a
Sprint se desligasse do controle acionário da Embratel, em razão do anúncio de fusão, ao final não concretizada, entre a Sprint e a MCI (controladora
da operadora de longa distância), e a suspensão dos direitos de gestão da
Maçal Investimentos no Conselho de Administração da Telemar, em se23
Titular da SEAE, Cláudio Considera, na Conferência Competition and Regulation: the energy sector
in Brazil and the UK, Oxford, 4-5 June 2001.
24
Cerca de 220 patentes de remédios concedidas pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial
(INPI) até 2001 foram alvo de procedimentos administrativos requerendo a nulidade das concessões
porque as patentes foram concedidas sem o exame de anuência prévia da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (ANVISA), conforme dispõe a Lei nº 10.196, de 2001. Valor econômico, 1/8/2002.
25
A Lei Mínima havia criado, respectivamente, nove e dez áreas de concessão para as bandas A e B
de telefonia móvel, enquanto o Plano Geral de Outorgas, conforme previsão da Lei Geral de Telecomunicações, estabeleceu o duopólio em três grandes áreas de concessão de telefonia fixa local, além
da abrangência nacional para a operação de telefonia de longa distância. As bandas C, D e E foram
oferecidas em leilão, em áreas superpostas às regiões das operadoras fixas, enquanto as operadoras
celulares das bandas A e B foram estimuladas a migrar para as regras do novo modelo SMP.
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tembro de 1990, por suspeitas de a mesma ter transferido suas ações
para o Grupo Garantia (quando a LGT exigia cinco anos de carência).
A segunda área em que a Anatel foi bem-sucedida foi a de garantia do
acesso à interconexão pelas operadoras de longa distância e que envolveu também o acesso aos chamados backbones para o fornecimento de
serviços de transmissão de dados. A Agência tem o papel de árbitro em
conflitos envolvendo as operadoras - mas em alguns casos a disputa foi
resolvida pelo Judiciário26.
Por fim, o terceiro evento relevante se refere às definições das regras
dos editais de concessão para as licenças dos serviços móveis pessoais
(SMP), e também da definição da faixa de 1,8 GHz para essa área. A
missão da Agência visava à convergência celular-móvel e a criação de
conglomerados e foi bem sucedida.
Um episódio mais recente diz respeito à antecipação de metas pelas
operadoras de telefonia fixa e sua possível habilitação a operar serviços
de longa distância. Essa medida foi contestada judicialmente pela Embratel,
impossibilitando a Telefônica de entrar no mercado. A Lei Geral de Telecomunicações prevê que depois de antecipação de metas, as empresas
podem explorar serviços de longa distância, justamente para estimular a
antecipação. No entanto, nesse caso surgiu um buraco negro regulatório.
A Anatel, ao regulamentar a outorga de novas licenças às operadoras,
criou o precedente legal usado pela Embratel para questionar a concorrência. Para regulamentar um direito previsto na concepção do modelo
de telecomunicações - o de operadoras prestarem novos serviços depois
de antecipar as metas -, a Anatel decidiu conceder a licença de DDD
nacional na forma de uma extensão dos contratos de concessão. Como a
Lei Geral proíbe que uma mesma empresa tenha duas outorgas para
prestar determinado serviço, essa concessão não aconteceu com os serviços de DDI ou de chamadas originadas fora da área da concessão, que
foram outorgados na forma de autorizações. As concessionárias que já
têm a licença para prestar DDD dentro de suas áreas não poderiam ter
outra outorga para prestar o mesmo serviço, fora delas.
Para superar esse obstáculo, a Anatel decidiu que a prestação de DDD
nacional seria uma extensão do contrato de concessão. No entanto, pela
Lei Geral, novas concessões, ou a mudança do objeto de contratos de
26
No primeiro caso o conflito envolveu a Embratel, operadora de longa distância, e a Telefônica,
sobre a titularidade de receita sobre ligação interurbana de serviço móvel pessoal.
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concessão existentes, só podem ser feitas mediante processo licitatório.
Dessa forma, o dispositivo do marco regulatório criado para incentivar a
universalização tornou-se juridicamente questionável. Neste sentido, parece ter havido falha do marco regulatório. O aspecto mais relevante
desse episódio é que revela os limites da capacidade de enforcement da
Anatel. Como assinala Herrera (2001: 7), o saudável recurso à Justiça, na
ausência de tribunais especializados em matérias regulatórias, pode gerar
um vácuo regulatório27.
No caso da Aneel, três episódios revelam que sua capacidade de
enforcement apresenta debilidades: o episódio de revisão das tarifas da
Escelsa, a decisão de não se permitirem repasses de custos não-controláveis dos distribuidores e a decisão, já assinalada, de intervir na gestão do
MAE (Pires e Goldstein 2001). No primeiro caso, em um contexto de
forte críticas à ausência de cláusulas de produtividade nos contratos, e
após processo de consulta pública, a Aneel estabeleceu uma redução
média de 3,4% nas tarifas da Escelsa e uma pequena reestruturação no
valor das tarifas por classe de consumidores. Quanto aos reajustes anuais
da tarifa para 1999-2001, a Aneel decidiu condicioná-los ao cumprimento
de metas adicionais de qualidade e universalização, permitindo dessa
forma que os usuários compartilhassem os benefícios da melhora em
eficiência resultantes da privatização. A decisão de não autorizar o repasse de custos não controláveis às tarifas gerou um contencioso e afetou a
credibilidade da Agência, segundo Pires e Goldstein (2001), pois tal ação
foi identificada como volta a velhas práticas de controle da inflação através do controle de tarifas. A decisão de intervir no MAE, embora acertada, só foi tomada após manifestas evidências quanto a um processo de
forte deterioração de performance dessa instituição28.
27
O Presidente mundial da telefônica afirmou que “o Brasil não poderia conviver com uma situação
de mudança nas regras do jogo. O próprio governo, entendendo a gravidade, é o maior interessado
em verificar o que pode ser feito para contornar a situação e mostrar que o país tem regras estáveis”
“Telefônica pede envolvimento do governo”, Valor Econômico, 5/05/2002. O mesmo aconteceu com
um dirigente da ANVISA que proibiu a importação de uma substância, e a empresa estrangeira
prejudicada ganhou a causa. “Diretor da ANVISA escapa de ser preso em Brasília”, Estado de São
Paulo, 20/04/20.
28
Em dois anos nenhuma transação ocorreu neste mercado. A estrutura de governança no MAE era
claramente deficiente, e a gestão compartilhada foi substituída por uma gestão profissional. A Aneel
após a intervenção passou a regular o ASMAE (a administradora das transações do MAE), que deixou
de ser um órgão independente. Como assinalam Pires e Goldstein (2001), a operação do MAE foi
prejudicada pelos interesses conflitantes do Estado como regulador e produtor e pela escassa capacidade de aplicar sanções.
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No que se refere à ANP, deve ser destacado o episódio da garantia de
acesso ao gasoduto Brasil-Bolívia. O conflito envolveu a Petrobrás, sócia
controladora da Transportadora Brasileira Gasoduto Brasil Bolívia (TBG).
O livre acesso aos gasodutos é um das questões fundamentais para a
promoção da concorrência no mercado de gás natural por reduzir as
barreiras à entrada de concorrentes e diminuir as necessidades de investimentos do possível entrante (pela não necessidade de duplicação de
redes que representam sunk costs de grande magnitude). A ANP concluiu que a TGB estava criando obstáculos ao compartilhamento de sua
infra-estrutura, ao atender prioritariamente os contratos assinados com
seu carregador controlado (a Petrobrás), sem considerar a oferta de capacidade a outros interessados (Pires e Goldstein 2001).
No caso da regulação social a capacidade de enforcement da ANS e
ANVISA é significativa. No caso desta última, ela é sinalizada pela polêmica autuação da empresa Phillip Morris, pela transmissão de propaganda em desacordo com a Lei 10.167, a Lei do Fumo, publicada em 28 de
dezembro de 2000, que delega à ANVISA a competência de fiscalizar
propagandas de cigarro veiculadas em rádio, televisão, jornais, revistas,
Internet e outros meios audiovisuais. A agência de publicidade responsável pela criação e compra do espaço também foi autuada. (ANVISA
2001a).
A capacidade de fiscalização dos preços dos remédios é objeto de
conflito jurisdicional com o Ministério da Fazenda.29 Enquanto a ANVISA
insiste no congelamento de preços (que foi determinado em dezembro
de 2000), a Secretaria Especial de Acompanhamento Econômico se opõe.
Para a ANVISA, a Lei de defesa da Concorrência é ineficaz para controlar
os preços de medicamentos30. A política de medicamentos genéricos
(obrigatoriedade de disponibilização e autorização de importação) im29
Sobre as críticas recíprocas destas duas instituições cf. “Estudo confunde debate sobre remédios no
governo”, Valor Econômico, 2/05/2001.
30
“No âmbito do executivo, a maior parte das medidas adotadas contra aumentos de preços do setor
se deu através da abertura de processos administrativos no âmbito da lei de defesa da concorrência,
sendo um grande número de processos instaurados entre 1992 e 1994, quando ainda vigorava a Lei
8158/91. Todos os processos foram arquivados pelo Conselho administrativo de Defesa Econômica
(CADE), sob a alegação de que os aumentos ocorreram após longo período de controle de preços e a
recomposição da margem seria normal naquele momento. Novos processos foram instaurados a
partir do ano de 1997, por investigações promovidas pela Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, por denúncias do conselho de farmácia ou de diversos segmentos da
sociedade e já enquadrados na nova lei antitruste (Lei 8884/94). Nenhum dos casos julgados teve
decisão pela condenação da prática de aumento de preço abusivo” (ANVISA 2001b, p.7).
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plantada pela Agência também é indicador relevante de capacidade de
enforcement. Sua credibilidade está em jogo nestes casos, nos quais é
acusada de práticas de controle de preços com o objetivo de controle da
inflação.
A quarta questão relevante trata da capacidade das Agências nas ações
de defesa dos consumidores. Um dos pouquíssimos estudos neste sentido, realizado sobre o desempenho da Anatel, no entanto, apresenta resultados mistos e paradoxais (Lins 2001)31. Por um lado, os indicadores de
qualidade produzidos e disponibilizados pelas próprias companhias apontam para uma significativa melhoria. Por outro lado, o número de reclamações feitas diretamente ao órgão e aos Procons revela crescente insatisfação. A interpretação desses dados é complexa, mas há grande necessidade de auditorias independentes para aferir a qualidade dos serviços.
Outra constatação importante é que embora o número de reclamações
dos usuários seja elevado, as atividades de fiscalização e auditoria não
estão voltadas para os serviços que originam maior número de reclamações32.
Embora não seja possível avaliar a extensão do impacto, pela curta
experiência, o impacto das Agências de regulação social na defesa da
concorrência e do consumidor parece ter sido significativo. A mudança
no setor foi estrutural. Na área de regulação dos planos de saúde, houve
mudanças amplas na regulação econômica do setor e na regulação do
produto da assistência à saúde. As empresas que antes se organizavam
livremente para atuar no setor, submetendo-se unicamente à legislação
do tipo societário escolhido, passaram a ter que cumprir exigências específicas, desde registro de funcionamento, até a constituição de garantia,
além de estarem sujeitas a processos de intervenção e liquidação.
Quanto à regulação da assistência à saúde, se antes as empresas
definiam livremente o produto que pretendiam oferecer, a quem oferecer, em que condições de operação e preço (carências, coberturas, condições de rescisão e de reajustes), após a regulamentação o produto
31
O grau de controle da Anatel na área da defesa do consumidor, no entanto, parece ser bastante
superior ao de outros países latino americanos (Rhodes 2001).
32
Ainda que o serviço de telefonia fixa tenha sido objeto de cerca de cerca de 78.000 reclamações
junto aos Procon das capitais de estado em 2000, apenas 1.459 procedimentos de apuração de
ocorrências foram conduzidos no serviço, a maior parte indireta, menos de 0,2% do total de procedimentos efetuados nos serviços de radiodifusão, com cerca de 13.000 procedimentos de apuração e
190.000 vistorias (Lins 2001).
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obrigatório está definido em lei, a seleção de risco é proibida, assim
como a exclusão indiscriminada de usuários. Em 2001, a ANS instaurou
Regime de Direção Fiscal em quinze operadoras (em 2002, esse número
foi para 110!), Direção Técnica em duas outras e Liquidação Extrajudicial
de mais cinco. A razão entre ações de fiscalização e denúncias é muito
mais elevada do que na área de telecomunicações33.
No caso da ANVISA, a percepção de sua atuação na defesa dos
consumidores pelos agentes locais de vigilância sanitária é muito positiva. Uma pesquisa realizada em amostra representativa de municípios
de todo o país avaliou alguns impactos da implantação da ação descentralizada da ANVISA, por intermédio adicional do Piso de Atenção Básica para Ações de Vigilância Sanitária PAB/VISA. Em mais da metade
dos municípios pesquisados (59%), a opinião prevalente é a de que
houve melhora dos serviços de vigilância sanitária após a implantação
Este percentual foi ainda maior nos casos dos municípios que declararam utilizar os recursos do PAB/VISA exclusivamente para a vigilância
sanitária (71%)34.
A quinta questão relaciona-se à criação de capacidade institucional e
formação de uma elite burocrática autônoma. Um aspecto central que
permite garantir a autonomia funcional das agências diz respeito aos
seus quadros técnicos. As agências tiveram dificuldades de constituição
de quadro próprio em função de dois desenvolvimentos. O primeiro diz
respeito aos impasses resultantes da contestação da Lei das Agências (Lei
9986, de 2000), que dispõe sobre os quadros de servidores das agências. A
Lei cria, para exercício exclusivo nas Agências Reguladoras, os empregos
públicos de nível superior de Regulador, de Analista de Suporte à Regulação,
os empregos de nível médio de Técnico em Regulação e de Técnico de
Suporte à Regulação. No entanto, ela foi objeto de contestação judicial no
STF, por meio da ADIN 2310 interposta pelo PC do B e PT, que argumentaram que ela que está em desacordo com a Emenda Constitucional 19
33
Elevou-se a taxa de operadoras fiscalizadas em 2001, relativamente ao ano de 2000 (64% em 2001
e 39% em 2000). Ao todo, foram realizadas, em 2001, 8.139 fiscalizações em 1.177 operadoras de
planos e seguros privados de saúde, que geraram a aplicação de 1.355 autuações por desobediência
das normas do setor. Foram registrados o recebimento de 8.475 denúncias, as quais ensejaram a
realização de 8.028 fiscalizações reativas, e também efetuadas 111 fiscalizações derivadas de análise
técnica, assistencial e econômico-financeira de operadoras e de seus respectivos produtos. Em resposta à média de 706 denúncias mensais registradas, empreendeu-se uma média de 669 ações de
fiscalização mensais e aplicou-se uma média de 112 autos de infração mensais (ANS 2001).
34
Cf. ANVISA (2000)
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(reforma administrativa), que estabelece que as funções de fiscalização e
regulação representam atividades típicas de Estado, obtendo liminar suspendendo a validade de alguns artigos e a realização de concurso. A
opção, no curto prazo, foi a contratação temporária de pessoal nas Agências e a requisição de funcionários do Executivo. O quadro abaixo indica a
situação em fevereiro de 2000.
A lei também determina que os contratos de trabalho temporários
somente podem ser prorrogados por prazo máximo de 24 meses e o
período de prorrogação de alguns destes contratos vence em 200335.
A formação de elite técnica também enfrenta grave problema de evasão de quadros em algumas agências, principalmente a Anatel (Herrera
2001: 5). Na Aneel, a questão de formação de recursos humanos está
marcada pela forte continuidade entre o pessoal do DNAEE e o da agência, mantendo práticas administrativas e a cultura organizacional características da regulação endógena anterior, comprometendo assim a eficácia
da Agência. Mas grave do que isso é a circularidade entre o setor público
35
Na Anatel, em 2003, caso não ocorram mudanças, serão demitidos 139 funcionários e, em 2004,
outros 393 também terão que deixar os cargos. Do quadro de funcionários da Anatel em 2002, 680
foram contratados temporariamente, 350 são cedidos pela Telebrás e 227 são dos quadros dos
ministérios, principalmente do Ministério das Comunicações. “Anatel terá que emitir funcionários
temporários”, O Estado de São Paulo, 1/1/2002. Dificuldade adicional é que os salários do regime de
emprego são mais elevados do que os do regime de carreiras típicas.
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e o privado nas Telecomunicações, com forte repercussão sobre a autonomia burocrática da agência36.
Quanto à autonomia financeira das agências a situação é bastante heterogênea, com algumas delas tendo alcançado virtual autonomia - como
a ANVISA, que arrecada 94% de sua receita - e outras, como a ANTT, que
dependem do Orçamento da União. As Agências vêem seus recursos
contingenciados como órgãos regulares da administração pública, mesmo
no caso da Anatel, que arrecada valores extremamente vultosos, mas que
são revertidos para o Tesouro, restando-lhe apenas os valores relativos à
taxa de arrecadação, com graves prejuízos para sua autonomia.
V - O DESENHO INSTITUCIONAL E O FEDERALISMO REGULATÓRIO
Federação e Regulação
A dimensão federativa é de grande importância para a questão da regulação
em país de forte tradição federativa como o Brasil37. Grande parte dos
desafios à institucionalização de uma nova governança regulatória no
Brasil estão relacionados à questão federativa. Esta seção analisa
tentativamente o processo de implantação das Agências estaduais, focalizando um problema específico: o desenho institucional e suas repercussões sobre o controle social e a autonomia e independência do órgão
regulador. Deve-se destacar, preliminarmente, que a interface entre
regulação e Federação varia amplamente conforme o setor o que adiciona grande complexidade à questão. A Tabela 2 apresenta uma matriz
cruzando setor e interface regulatória (que inclui competência constitucional e outras interfaces institucionais relevantes).
36
Cf Amaral (2000). O caso mais destacado é Fernando Xavier, ex-presidente da Telebrás e exsecretário executivo do Ministério das Telecomunicações, que comandou o processo que levou às
privatizações, para se tornar posteriormente Presidente da Telefônica.
37
Cf sobre este tema Resende (2000) e Melo, Pereira, Mueller e Costa e (2000).
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O setor de saneamento é de competência municipal, mas as questões
relativas à captação, adução e distribuição d’água podem exigir cooperação intergovernamental para serem equacionadas. Por sua vez, o setor
de transportes intermunicipais é estadual, contudo no plano metropolitano as interfaces com os municípios são grandes. A área de energia apresenta interfaces com os níveis estadual e federal: a competência é da
União, todavia as concessionárias eram - e ainda são em alguns estados , empresas públicas estatais. A decisão de privatização também está na
esfera estadual. O setor de gás canalizado, no que se refere à exploração
e transporte, é de competência da União, e virtual monopólio da Petrobrás,
só que a distribuição e comercialização é de titularidade dos governos
estaduais. Por sua vez, a implementação das redes locais é uma questão
de uso do solo, de competência municipal. O conflito concentra-se, aqui,
nos níveis estadual e federal.
Na área de telecomunicações a dimensão federativa está, hoje, virtualmente ausente. Na regulação social - casos da ANVISA e ANS - a legislação é federal, mas essas atividades se confundem em larga medida com o
controle de qualidade e a fiscalização, atividades tipicamente desenvolvidas no plano local. Na área de recursos hídricos as competências tornamse extremamente complexas porque são estruturadas em torno de bacias
hidrográficas. Como decorrência dessas especificidades, a dinâmica político institucional varia conforme o setor.
À semelhança do ocorrido no plano federal, foram criadas, a partir de
1997, 19 Agências Regulatórias nos estados. Dois fatores devem ser destacados neste processo. Em primeiro lugar, a difusão dessa forma
institucional não ocorreu homogeneamente em todo o território federal.
Umas das agências citadas, a ARSE-MG, que foi criada pela Lei 12.999 de
31 julho de 1998, no entanto, não foi implantada. Um conflito da mesma
ordem, embora mais significativo (ver adiante no texto), ocorreu no Rio
de janeiro, com a ARSEP- RJ. em 1998 e 1999. Em segundo lugar, a
criação das Agências obedeceu a dois formatos distintos. O primeiro é o
multisetorial, que foi observado na grande maioria dos casos, e o segundo é o de especialização, adotado em São Paulo, onde foram criadas duas
instituições voltadas para a regulação de setores isolados: a Comissão de
Serviços Públicos de Energia (CSPE), em 1997, e a Agência Reguladora
de Serviços Públicos Delegados de Transporte do Estado de São Paulo
(ARTESP), em 2002.
Assim, as Agências no plano subnacional fugiram do padrão único,
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unisetorial e isomórfico existente na esfera federal, embora um modelo
multisetorial específico tenha se reproduzido na maioria dos estados. Há,
no entanto, maior variação no desenho institucional no âmbito estadual
do que entre as Agências federais. Elas divergem quanto às áreas de
atuação; ao recebimento de atribuições de poder concedente e órgão
gestor, ou seja, quanto a seus objetivos; quanto à estrutura funcional; ao
grau de autonomia e insulamento decisório; quanto aos mecanismos
adotados de controle social; de suas relações com as atribuições de defesa da concorrência e dos consumidores e, finalmente, quanto à eficácia
na intermediação de conflitos entre os agentes envolvidos.
A criação de agências multisetoriais nos estados, com a exceção de
São Paulo, deve-se, fundamentalmente, à necessidade de economias de
escala, escassez de recursos humanos e redução de custos. A amplitude
do programa de privatização de distribuidoras de energia no Estado de
São Paulo - onde operam 14 concessionárias de serviços de energia levou à constituição de uma agência específica para o setor. A constituição dessa Agência também foi uma imposição dos atores participantes do
processo. Deve-se destacar, ainda, que pela natureza federativa do processo de geração e distribuição de energia, houve a necessidade de
criação de Agências locais. Esta área, ademais, é o carro-chefe dos convênios de delegação de responsabilidades entre Agências federais e estaduais, o que vem ocorrendo de forma mais sustentada com a Aneel.
Estados importantes como o Rio de Janeiro e Minas Gerais não participam
desses convênios já celebrados com 13 estados38.
O papel da União como agente indutor da difusão da nova forma
institucional foi fundamental, se manifestando ativamente, sobretudo no
caso dos governos da coalizão política do Executivo federal, na forma de
indução ativa e financiamento das privatizações e dos programas estaduais de reforma do setor público39. As Agências Regulatórias federais, por
sua vez, contribuíram indiretamente de forma também importante nessa
difusão, mediante convênios e esquemas de cooperação os mais variados, e que tiveram grande expressão no setor elétrico.
Os convênios de descentralização na área de energia foram discutidos
38
Em Outubro de 2002, foram celebrados convênios com 13 estados e, em outros 6, entendimentos
estavam sendo mantidos nesse sentido (Cf www.aneel.gov.br). A ARSEP - RJ, no entanto, mantém
convênio de pesquisa com a ANP.
39
Cf. o estudo da reforma dos estados de SP, RS e ES, em ABRUCIO & FERREIRA COSTA (1999).
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em Pedrão (2002) e Santos (2002). Este último apresenta uma análise do
desempenho institucional das Agências estaduais na área de energia, nos
marcos do convênio Aneel, no que tange à qualidade de serviços prestados, e chega a conclusões instigantes sobre o papel do desenho
organizacional. Dos casos estudados, aquelas que exibem mais autonomia financeira, institucional e funcional, são os que apresentaram melhor
desempenho em termos de controle de serviços prestados. O autor também assinala que os convênios com a Aneel tiveram impacto importante
no fortalecimento das Agências.
O desenho institucional comparado: autonomia e controle
A onda de criação das agências teve início com a criação da AGERGS
(Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio
Grande do Sul), uma autarquia com autonomia financeira, funcional e
administrativa criada em 09 de janeiro de 1997, pela Lei N° 10.931. A
AGERGS teve sua estrutura definida pela Lei N° 11.292 de 23 de dezembro de 1998. Seu objetivo é garantir a qualidade de serviços públicos
(energia, telecomunicações, transporte etc.) oferecidos aos usuários pelas concessionárias privadas e o equilíbrio econômico e financeiro dos
contratos entre o poder concedente (Governo) e as empresas concessionárias. Pelas características singulares de seu desenho institucional, o
modelo da AGERGS será discutido em seção separada.
A Agência Reguladora de Serviços Públicos concedidos do Estado do
Rio de Janeiro (ARSEP-RJ) foi criada em 1997, pela Lei estadual N° 2.686,
de 13/02/97, posteriormente alterada pela Lei N° 2.752, de 02/07/97.
No entanto, como será analisado a seguir, manteve-se inoperante até
2001.
A ARCE foi criada em 1997 pelo governo estadual para controlar as
concessões e permissões dos serviços públicos do Ceará. A Agência é
uma autarquia especial, vinculada à Procuradoria Geral do Estado e tem
como órgãos superiores o Conselho Diretor e o Conselho Consultivo,
além de doze assessores técnicos. Como a maioria das Agências, a ARCE
atua de forma independente, tendo receita própria, proveniente de taxas
cobradas das empresas reguladas, e de convênios, dentre outras arrecadações. Seus Conselheiros são investidos de mandatos para que assim
possam ter total autonomia. Ao contrário das demais, todos os técnicos da
ARCE são concursados e não pode haver a alocação de servidores municipais, estaduais e federais cedidos ou transferidos.
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A ARCE dispõe de ampla autonomia política. Das agências existentes
(cf a AGERGS e a ARPE também neste ponto adiante) é a única cuja
vinculação não é com uma secretaria de infraestrutura, mas sim com a
Secretaria de Ouvidoria e Meio Ambiente. Em princípio, essa vinculação
com a Procuradoria do Estado lhe confere mais autonomia. No entanto,
outros fatores parecem restringir, em parte, essa potencialidade. Das agências existentes, é umas das que apresenta maior continuidade de pessoal
de direção entre a empresa estatal distribuidora anterior e a nova agência. O presidente do Conselho Diretor é ex-Diretor de Gestão Empresarial da Companhia Energética do Ceará (COELCE). Outro membro da diretoria foi Presidente da COELCE e também da Associação de Empresas
Distribuidoras de Eletricidade do Norte/Nordeste/Centro Oeste (AEDENNE)
e ex- Diretor-Presidente da Cia Energética do Ceará (COELCE).
Outros aspectos, no entanto, fortalecem a sua autonomia da. A habilitação a conselheiro é feita por edital aberto a qualquer cidadão, que
apresente qualificação técnica e idoneidade moral. O governador nomeia
os conselheiros que, por sua vez, elegem o presidente do conselho
diretor.
Por sua vez, a ARTESP é uma autarquia especial vinculada à Secretaria
de Estado dos Transportes do Estado de São Paulo, dotada de autonomia
orçamentária, financeira, técnica, funcional, administrativa e poder de
polícia, com a finalidade de regulamentar e fiscalizar todas as modalidades de serviços públicos de transporte autorizados, permitidos ou concedidos, no âmbito da Secretaria de Estado dos Transportes. A agência
dispõe de autonomia e representatividade de corte neocorporativo. O
Conselho Consultivo de 13 membros têm mandato fixo e são designados
pelo Governador. São escolhidos por lista tríplice os representantes das
entidades de classe das prestadoras de serviços; das entidades sindicais
dos transportadores, das entidades representativas da sociedade civil, das
entidades representativas dos trabalhadores dos diferentes setores de transportes. A Agência detém grande autonomia. Os mandatos dos diretores e
conselheiros são fixos e não coincidentes. A ouvidoria também tem mandato fixo e foi instituída uma Comissão de Ética.
No Pará, foi criada, em 1997, a ARCON, que foi uma das agências
estaduais pioneiras. A Agência tem como objetivo estabelecer normas e
fiscalizar a execução de serviços públicos de competência do Estado, ou
que lhe tenham sido delegados, e que são operados pelo setor privado
através de concessão, permissão, ou autorização. O grau de insulamento
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é alto, com os usuais descasamentos de mandato e demissibilidade de
diretores em caso de atos lesivos ao interesse público ou patrimônio. Há
um Conselho tripartite, o CONERC, com representantes do governo, empresas, e usuários. Além disso, os membros não integrantes da representação governamental são escolhidos por processo em que se admite a
postulação e seleção. Os Conselheiros têm mandatos fixos de dois anos,
com renovação alternada de 1/3 e 2/3.
O CONERC também é uma instância recursiva das decisões da ARCON,
podendo, em decisões colegiadas no fórum geral, vetar decisões ou pareceres da agência, inclusive multas e advertências. O Conselho pode,
também, com base em pareceres dos grupos técnicos, exigir que a Agência revise tarifas de concessionários delegados ou que esta intervenha
em assuntos que pareçam relevantes para o conselho. Há uma Ouvidoria
ativa, mas, no entanto, o ouvidor ressente-se de não ter mandato fixo, o
que lhe daria mais autonomia. A inexistência de pessoal próprio tem
exigido o uso constante de recursos humanos terceirizados.
A Agência Reguladora dos Serviços Públicos do Rio Grande do Norte
(ARSEP) foi criada com o objetivo de assegurar a qualidade nos serviços
públicos, bem como controlar tarifas e monitorar as condições de atendimento de serviços delegados. A agência sofreu alterações na legislação
que aumentaram sua representatividade e autonomia. Inicialmente havia
um único diretor geral com mandato de quatro anos. Com a Lei 7758, a
diretoria passou a ser colegiada e integrada por três membros com
mandato não coincidentes de três anos. O Conselho Diretor possui mandato de quatro anos descasados, com renovação anual de dois ou três
membros. Inicialmente era composto de quatro membros, nomeados pelo
governador, sendo um representante do Executivo; um representante do
Legislativo; o Diretor Geral da ASEP-RN e um representante das Federações de Sindicatos Patronais. Houve uma alteração que incluiu a representação dos usuários (a ser escolhido dentre os membros dos Conselhos
de Consumidores instalados).
A Agência Reguladora dos Serviços Públicos de Energia, Transportes e
Comunicações da Bahia (AGERBA) tem como missão garantir a
universalização e a qualidade dos serviços públicos oferecidos aos usuários pelas concessionárias do setor privado, bem como preservar o equilíbrio econômico e financeiro dos contratos de concessão e a modicidade
tarifária.
Seu Conselho Consultivo possui sete Conselheiros que são nomeados
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pelo governador, sem lista tríplice: um representante da Assembléia
Legislativa; um representante do Ministério Público (Promotoria de Defesa do Consumidor); um representante do Executivo; um representante
das entidades representativas das concessionárias dos serviços públicos
delegados; um representante das entidades ligadas às permissionárias
dos serviços públicos delegados; um representante da Coordenação de
Defesa do Consumidor; e um representante de entidades da sociedade
civil. Os Diretores da AGERBA, também nomeados pelo governador a
partir de critérios previamente estabelecidos, têm o período de seus
mandatos atrelado ao Contrato de Gestão assinado pelo Diretor Executivo
junto à Secretaria de Infra-Estrutura. Não há possibilidade de mandatos
descasados entre Executivo estadual e diretoria das Agências. O controle
social está previsto pela existência de uma Ouvidoria e pela participação
dos usuários.
A Comissão de Serviços Públicos de Energia (CSPE) é uma entidade
autárquica, criada pela Lei complementar N° 833, de 17 de outubro de
1997 e instalada em 14 de abril de 1998. Ela é vinculada à Secretaria de
Estado de Energia, que atua em convênio com a ANEEL, e tem por
finalidade fiscalizar e controlar as atividades de prestação de serviços
públicos de energia no Estado de São Paulo.
O insulamento, neste caso, é médio. Os comissários são escolhidos
unilateralmente pelo governador, sem ouvir a Assembléia. O controle
social é alto pela representatividade do Conselho Consultivo, que inclui o
Procon, além de representantes dos consumidores. O Conselho tem estrutura neocorporativista, com a participação de entidades do comércio e
da indústria.
No Estado de Alagoas, o governo estadual implantou a ARSAL em
2002. A Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de Alagoas
foi criada em 20 de setembro de 2001, pela Lei de Nº 6267/01, e tem
como meta a garantia da qualidade nos serviços públicos, com a fiscalização das concessionárias nas áreas de transportes intermunicipais, saneamento e energia. Além dos impedimentos usuais (não ser cotista, parente
etc), não pode ser membro diretor da ARSAL qualquer integrante da
diretoria de associação local, regional ou nacional, representativa de interesses das empresas fiscalizadas, de categoria profissional de empregados desses agentes, bem como de conjunto ou classe de consumidores
afins.
O grau de insulamento nesta Agência é baixo: os membros da direto286
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ria colegiada (consistindo de apenas três membros) podem ser demitidos
sem motivo com até seis meses de nomeação (é a única Reguladora que
contém esse dispositivo). Além disso, não existe conselho consultivo. O
controle social também é débil, embora exista a figura do ouvidor. Não
existe participação por parte dos conselhos de consumidores.
A Agência Reguladora de Serviços Concedidos do Estado de Sergipe
(ASES) é uma autarquia vinculada à Secretaria de Planejamento, Ciência e
Tecnologia, com autonomia técnica, administrativa e financeira. Pela Lei
3973, de 10 de junho de 1998 a finalidade da dela é exercer o poder de
regular e de fiscalizar as concessões e permissões de serviços públicos
concedidos, nos quais o Estado de Sergipe figure como poder concedente
ou permitente por disposição legal ou por delegação.
A ASES é bastante distinta das demais pelo seu caráter centralizado e
pouco representativo. Há um Conselho de três diretores, sendo um presidente, ambos nomeados pelo governador, observada as restrições comuns à totalidade das outras Agências (ser cotista, idoneidade etc), e com
mandato de quatro anos. No entanto, não há nenhuma estrutura representativa, consultiva. São admitidos nas reuniões representantes de usuários,
de empresas ou municípios, mas sem direito a voto. A única exceção são
as reuniões do Conselho em que estiver submetida à deliberação questão
de interesse de Município que detenha parcela do Poder Concedente na
área de saneamento, quando se garante a presença de um vogal por ele
indicado, com direito a voto. O controle social é, portanto, baixíssimo:
Não há Ouvidoria ou participação dos usuários ou qualquer estrutura
representativa, nem mesmo articulação com entidades de defesa dos
consumidores. Observa-se também notável continuidade de elites burocráticas ligadas ao modelo de regulação pretérito. O atual Presidente da
Agência é ex-presidente da Empresa Estatal de Energia pré-privatização,
a Energipe.
A agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados do Estado de
Pernambuco, ARPE (PE) é uma autarquia em regime especial subordinada
ao Gabinete do Governador. Sua finalidade é fiscalizar e regular os setores do saneamento, energia elétrica, rodovias, telecomunicações, transportes, distribuição de gás encanado, coleta e tratamento de resíduos
sólidos e inspeção veicular. Sua diretoria é colegiada e composta de três
diretores: o diretor geral e dois diretores. O Conselho Consultivo é
composto de nove membros: 1 da União de vereadores, 1 Associação
Municipalista de Pernambuco; o Prefeito do Recife; 1 da entidade repre287
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sentativa de usuários de serviços; 1 representante das empresas de serviços; o Governador do Estado; 1 membro do Ministério Público; e 1 membro da Assembléia Legislativa.
A representação do Conselho é singular no âmbito das agências estaduais por várias razões: a) o próprio governador participa do mesmo e,
ademais, a própria Agência é vinculada diretamente ao seu Gabinete; b)
há uma dupla participação dos municípios: da entidade representativa e
dos vereadores; c) o prefeito da capital participa do Conselho. O controle
social é elevado pela existência de ouvidoria e de representantes de
usuários e do Ministério Público. As exigências de nomeação são as
usuais: qualificação técnica e idoneidade; proibição de ser acionistas ou
cotistas, ou de parentesco ou afinidade com dirigente, administrador ou
conselheiro de empresas reguladas, ou detentores de até 1% do seu
capital.
A ARPE apresenta um aspecto que a singulariza juntamente com a
AGERGS: todos os membros da diretoria são aprovados pela Assembléia
Legislativa e submetidos à argüição pública, antes da nomeação. Ademais, afora as condições usuais (sentença transitada em julgado etc.), a
Lei estabelece que “será causa de perda do mandato a inobservância,
pelo Diretor, dos deveres e proibições inerentes ao cargo, inclusive no
que se refere ao cumprimento das políticas estabelecidas para o setor
pelos Poderes Executivo e Legislativo.” (art. 8, inciso I). Ou seja, o controle do Legislativo se estende às decisões da agência.
O Mandato é de dois anos, admitida uma recondução. Prevê-se uma
quarentena atipicamente longa de 24 meses para ex-diretor. Seus mandatos são fixos, mas curtos, de apenas dois anos (embora seja admitida,
como é praxe em todas as Agências, a recondução por mais um mandato). Os Diretores terão mandatos não coincidentes de três, dois e um ano,
de acordo com os termos de posse e fixados nos respectivos atos de
nomeação. No entanto, na primeira instalação regular da Diretoria, os
seus membros e do Conselho Consultivo terão seus mandatos finalizados
com o término do mandato do governador. A segunda instalação da Diretoria e do Conselho Consultivo dar-se-á na forma prevista descrita acima.
Os conselheiros têm mandato fixo de três anos (sem possibilidade de
recondução) e, ao contrário, dos conselheiros das outras agências, são
remunerados. O controle social é alto: há ouvidoria com mandato e representantes de consumidores.
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O Modelo AGERGS: neocorporativismo ou autonomia?
A AGERGS possui um desenho institucional singular no quadro das agências regulatórias, e, portanto, será tratada aqui de forma separada. A
discussão desse desenho permite destacar alguns problemas conceituais
da questão da regulação. No caso da AGERGS, o Conselho Superior, a
quem compete a direção superior da agência é composto de 7 (sete)
membros.
O Conselheiro tem mandato de quatro anos, sendo nomeado e
empossado somente após aprovação de seu nome pela Assembléia
Legislativa do Estado, devendo satisfazer, simultaneamente, as condições
de ser brasileiro maior de idade, ter habilitação profissional de nível
superior, ter reputação ilibada e idoneidade moral, além de possuir mais
de 5 (cinco) anos no exercício de função ou atividade profissional relevante para os fins da AGERGS. O Conselheiro só poderá ser destituído,
no curso de seu mandato, por decisão da Assembléia Legislativa.
A composição do Conselho Superior é a seguinte: 3 (três) membros de
livre indicação do governador; 1 (um) representante do quadro funcional
da AGERGS, indicado pelo Executivo, a partir de listas tríplices resultantes de eleição realizada entre os servidores efetivos; 2 (dois) representantes dos consumidores, indicados, respectivamente, pelo órgão gestor
do Sistema Estadual de Proteção ao Consumidor, e pelos Conselhos de
Consumidores dos concessionários, permissionários e autorizatários de
serviços públicos, no Estado do Rio Grande do Sul; e 1(um) representante
dos concessionários, permissionários e autorizatários de serviços públicos
no Estado do Rio Grande do Sul.
O Presidente do Conselho, ao qual se atribui o voto de qualidade, é
eleito dentre seus membros, com mandato de dois anos. Os membros do
Conselho Superior possuem atividade remunerada e sofrem as mesmas
restrições e limitações impostas aos servidores públicos em geral. À Diretoria-Geral compete a gestão executiva da AGERGS, em obediência às
diretrizes e deliberações do Conselho Superior. O titular da Diretoria
Geral é escolhido livremente pelo Conselho Superior da AGERGS. Já os
diretores dos departamentos executivos são escolhidos pelo Conselho
Superior dentre os servidores efetivos da AGERGS. Os mandatos tanto
dos conselheiros quanto dos diretores são de quatro anos não coincidentes com o do chefe do Executivo. A Lei de criação buscou garantir autonomia financeira à agência por intermédio da criação de uma taxa de
regulação de 0,5% sobre o faturamento bruto das empresas delegatárias.
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A AGERGS destaca-se do conjunto das agências estaduais por duas
razões. A primeira diz respeito à própria estrutura de governança centrada
em um Conselho, o qual por sua vez, escolhe três membros para constituir a diretoria, e os submete à aprovação da Assembléia Legislativa.
Note-se, que ao contrário de todas as outras Reguladoras estaduais, o
governador não escolhe o diretor geral da Agência. O Legislativo funciona, neste caso, como veto player. O presidente do Conselho, ou diretor
geral, neste sentido, pode vir a ser um representante de uma das partes:
usuários e consumidores, por um lado, e permissionários ou concessionários, por outro. O sentido de autonomia e neutralidade, que informa o
conceito da Agência, é rompido por esses dispositivos. Ele co-existe com
outros que visam a assegurar essa independência, tais como o papel da
Assembléia na aprovação de conselheiros, mandatos fixos, não coincidentes com o Executivo.
As únicas barreiras de ordem técnica para impedir o risco de captura
são a exigência de que os conselheiros tenham exercido cinco anos de
atividade relevante para os propósitos da AGERGS e a existência de duas
diretorias que são exercidas por servidores de carreira da instituição. A
questão relevante é: a quem responde esses diretores, ao governador ou
à Assembléia Legislativa? (que cumpre papel na aprovação destituição
dos conselheiros).
A outra razão refere-se ao grau de controle social existente, que se
manifesta em vários níveis. A Assembléia Legislativa estadual também
detém amplas prerrogativas na nomeação40 e destituição dos conselheiros. Com efeito, os membros do Conselho Superior só podem ser
destituídos por decisão da Assembléia Legislativa. A representação
que os consumidores tem no Conselho Superior também é substantiva,
pois estão previstos dois membros, os quais poderão escolher os diretores. Abre-se a possibilidade, portanto, da AGERGS ter como diretores os representantes dos consumidores. Um outro aspecto a ser destacado é que todos os membros são aprovados pela Assembléia
Legislativa, quando da nomeação e da destituição eventual. Por fim, a
Agência inovou ao ter criado a primeira Ouvidoria dentre as Reguladoras estaduais. A AGERGS conta também com um Cadastro de Usuários Voluntários para a realização de pesquisa de opinião sobre a
40
O único estado que tem dispositivo semelhante é o Pará. No caso dos diretores da ARCON, após três
recusas a indicação do governador prevalece.
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qualidade dos serviços públicos, em uma iniciativa mobilizadora dos
cidadãos.
Gifoni Neto (2002), em uma análise perspicaz e minuciosa das Agências estaduais de regulação na área de transportes intermunicipais, assinala que a AGERGS representa um modelo regulatório distinto, daí analisar e contrapor o que denomina “modelo AGERBA” e “modelo AGERGS”,
em oposição ao modelo francês de serviço público com regulação implícita, (representado, em sua análise, pelo DER). Os argumentos desse
autor são distintos dos assinalados anteriormente, e se concentram nas
semelhanças maiores do modelo da AGERGS com o das agências anglosaxônicas e de best practices internacionais.
O Modelo da AGERBA, em contraste, representaria, “um estágio intermediário na escala formada entre os outros dois modelos, tendo o Modelo
implícito do DER no pólo mais próximo do conceito francês de gestão de
serviços públicos e o modelo explícito da AGERGS no pólo mais próximo do conceito anglo-saxão de regulação de utilidades públicas.” 41
O Modelo AGERGS apresenta uma alternativa de separação das atribuições da regulação tarifária das de gestão, estabelecendo-as como
competência de uma Agência reguladora independente. Outra dimensão
relevante diz respeito à separação das funções regulatórias e operacionais.
No Modelo AGERBA, as políticas setoriais estão concentradas na Secretaria de Estado e são repassadas à AGERBA através de um Contrato de
Gestão, não ocorrendo separação de responsabilidades operacionais e
regulatórias. A AGERBA é o órgão gestor setorial competindo-lhe as
mesmas atribuições do DER, além daquelas advindas da própria figura
jurídica das agências, como mediação de conflitos e defesa da concorrência e dos consumidores. No Modelo AGERGS as políticas setoriais são
competência da Secretaria Estadual de Transportes (no caso da DAER que
como órgão gestor recebeu as atribuições operacionais), mas à AGERGS
coube apenas a responsabilidade especificamente regulatória.
Essas observações sobre o modelo da AGERGS permitem uma conclusão de caráter mais amplo em relação às Reguladoras estaduais. Malgrado
a sua grande heterogeneidade institucional, essas Agências parecem desviar-se de uma forma não trivial em relação ao modelo internacional. Em
primeiro lugar, como assinalado, o modelo de accountability das Agências Regulatórias em relação ao Executivo está fundado em uma relação
41
Cf também Brasileiro, Santos e Aragão (2001)
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direta com o Legislativo. No plano federal, a aprovação e demissão dos
dirigentes das agências cabem ao Senado. Este modelo, na realidade, só
existe no plano estadual na AGERGS e na ARPE, e, em menor medida, na
ARCON. Em segundo lugar, a separação entre atividades de gestão e de
regulação propriamente ditas só está presente no caso da AGERGS.
VI - A AUTONOMIA CONTESTADA: O DESENHO INSTITUCIONAL EM CHEQUE?
Uma das questões fundamentais relativas à sustentabilidade do regime
regulatório brasileiro diz respeito ao impacto das mudanças políticas
nos ramos Executivo e Legislativo sobre a autonomia das agências. A
experiência brasileira nos últimos anos contém alguns casos que parecem ser paradigmáticos dos conflitos que marcarão os próximos governos. Esses casos podem ocorrer nos dois níveis, federal e estadual. Essa seção discute os constrangimentos políticos à autonomia das
agências.
O Plano Federal
Essa contestação no plano federal é ainda embrionária e pode ser observada nas reações iniciais decorrentes das eleições presidenciais e da
vitória do candidato oposicionista. Tal contestação, no entanto, é mais
antiga. O deputado Sérgio Miranda (PC do B) reiteradamente afirmou que
as Agências constituíam aberrações. O próprio senador José Serra combateu a extensão excessiva da autonomia das Reguladoras durante a
tramitação dos projetos no final dos anos 90 na Comissão de Assuntos
Econômicos do Senado (CAE)42.
Mais recentemente recente, como amplamente divulgado pela imprensa, a contestação surgiu com sugestão do deputado Walter Pinheiro
relativa à renúncia conjunta dos dirigentes das Agências ao final do
Governo Fernando Henrique Cardoso43. Esses desenvolvimentos devem
ser colocados em perspectiva. Em setembro de 1997, o PT entrou no
Supremo Tribunal Federal com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade,
42
“Agências têm mais poder que Ministérios”, Jornal do Brasil, 2/12/2001.
43
Pinheiro, no entanto, afirmou querer fortalecer a Anatel, e retirar do Ministério das Telecomunicações o poder de concessão de radiodifusoras, conforme proposta em tramitação. “PT quer renúncia
de Dirigentes de Agências Reguladoras”, O Estado de São Paulo, 8/11/2002
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com pedido de medida liminar contra os dispositivos da LGT que, “frontalmente”, feriam a Constituição Federal. Em fevereiro de 1998, o deputado Walter Pinheiro (PT-BA) ajuizou Ação Popular, na Justiça Federal do Distrito Federal, em desfavor da União, do Ministério das Comunicações e da Agência Nacional de Telecomunicações, contra o Plano
Geral de Outorgas para Serviços de Telecomunicações em Regime Público visando a demonstrar que a publicação era “ (1) ilegal, (2)
intempestiva e (3) lesiva ao interesse e patrimônio públicos, visando
tão somente iludir terceiros desavisados de que a lei está sendo cumprida...” (PT 2000).
Em abril de 1998, o PT, novamente por intermédio do deputado Walter
Pinheiro (PT-BA) entrou com Ação Popular contra a União Federal, o
Ministério das Comunicações, a Telebrás, a Telebrasília e a ANATEL, por
omissão sobre a ilegalidade do ato e a sua lesividade ao interesse e
patrimônio públicos, em razão da privatização da Telebrás e da Telebrasília.
Em julho de 1999, o PT encaminhou representação à Procuradoria da
República no Distrito Federal contra a Anatel, por falta de cuidado em
zelar pelos interesses da sociedade, seja através de ações de caráter
técnico, para garantir a confiabilidade no funcionamento, seja por procedimentos consoantes os dispositivos estabelecidos na LGT. Outras medidas incluem também a ADIN 2473, contra a criação e competências da
Câmara de Gestão da Crise de Energia.
A experiência dos estados
A experiência nos estados ilustra três dimensões de contestação da autonomia das Agências. A primeira refere-se ao papel do Legislativo estadual como veto player na nomeação dos dirigentes. A segunda à contestação das competências federativas na área da regulação. A terceira tem a
ver com a questão do boicote administrativo e financeiro às Reguladoras.
A experiência da AGERGS representa um caso de contestação radical
à nova institucionalidade regulatória com relação ao primeiro dos aspectos citados: o papel do Legislativo como veto player. O conflito teve
início após a posse do governo petista no Rio Grande do Sul. O governador eleito, Olívio Dutra, decidiu exonerar os diretores da AGERGS. Em
virtude da resistência oferecida pelo Conselho da Agência e seus diretores, instalou-se um conflito. A querela assumiu um caráter de disputa
política explícita uma vez que o presidente do conselho, Guilherme
Socias Villela, ex-Secretário Estadual de Transportes do governo anterior
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e líder do PPB na Assembléia, havia sido, inicialmente, lançado como
candidato à Prefeitura Municipal de Porto Alegre, onde há três gestões
consecutivas governava o Partido dos Trabalhadores.
A AGERGS não dispõe de procuradoria jurídica e a procuradoria
estadual é a responsável pela defesa da Agência. No entanto, foi
através da própria procuradoria estadual que o governador impetrou
uma ação direta de inconstitucionalidade (ADIN) contra a estabilidade
no cargo dos conselheiros.44 Não contando com maioria na Assembléia
Legislativa, o Executivo argüiu que era inconstitucional a atribuição ao
Legislativo da prerrogativa de nomeação e destituição de conselheiro45.
Na petição com que impetrou a ADIN, o governo gaúcho argumentava que a remoção dos conselheiros era necessária “sob pena de se manter, no seio da administração gaúcha, um corpo de diretores de uma
entidade da administração indireta que possa se rebelar contra as diretrizes definidas pelo próprio governador e, assim, tornar o estado do Rio
Grande do Sul ingovernável”. (Governo do Estado do RS, 1999, Petição
Inicial da ADIN 1449, p.8). A concepção de Agência Regulatória no texto
está explícita na afirmação de que a “tarefa da AGERGS é de, eminentemente, ser “um longo braço da materialização da política econômica
estadual” (ibid. , p. 4).
O conceito de órgão regulador independente é contestado em seu
conceito fundamental de mandato descasado: a AGERGS é definida como
um “órgão técnico auxiliar na formulação e execução de sua política
econômica, que não pode ser dirigido por quem não se identifique com o
governo legitimamente eleito. Nem o Governo atual pode pretender
impor a seu sucessor a adoção de seu próprio programa, nem o Governo
anterior pode pretender a continuidade do seu programa, através de
pessoas que mereciam a sua confiança, mas não merecem do Governo
44
Uma formulação curta defendendo a autonomia está em Figueiredo (1999). Foram questionados os
Arts. 007 º e 008 º da Lei Estadual 10931 de 1997 , em sua redação originária e na redação que lhes
conferiu o art. 001 º da Lei Estadual 11292 de 1998 . O art. 007 º estabelece o seguinte: “- Os membros
do Conselho Superior da AGERGS terão mandato de 004 (quatro) anos, somente serão empossados
após terem seus nomes aprovados pela Assembléia Legislativa do Estado, devendo satisfazer, simultaneamente, às seguintes condições: 00I - ser brasileiro; 0II - ser maior de idade; III - ter habilitação
profissional de nível superior ; 0IV - ter reputação ilibada e idoneidade moral ; 00V - possuir mais de
cinco ( 005 ) anos no exercício de função ou atividade profissional relevante para os fins da AGERGS
. Por sua vez o Art. 008 º estabelece que “- Os membros do Conselho Superiro da AGERGS somente
poderão ser destituídos , no curso de seus mandatos , por decisão da Assembléia Legislativa do Estado“.
45
Gazeta Mercantil, 19/11/1999.
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atual” (id.ibid.). O Tribunal deferiu a liminar até o julgamento do mérito46,
mas os conselheiros cumpriram o mandato, até 2001.
A AGERGS também sofreu questionamentos judiciais, envolvendo o
Ministério Público, com em relação aos seguintes aspectos: a) fixação do
valor cobrado nos postos de pedágios; b) a mudança na modalidade de
cobrança do uso da água, de consumo real para consumo médio presumido; e c) o reajuste nas tarifas de ônibus intermunicipais. Nestes casos,
esta interpelação ocorreu por parte das de empresas públicas (Corsan) ou
autarquias (caso da DAER-RS). (Pinheiro et alii 2000).
A questão da contestação do mandato dos diretores também ocorreu
no Rio de Janeiro, mas o desfecho foi distinto. Logo após a sua posse, o
governador Garotinho exonerou quatro dos cinco diretores da ARSEP-RJ,
que haviam sido indicados pelo governo anterior. Denúncias de corrupção
afetaram o desempenho do órgão regulador (PECI e CAVALCANTI 2000;
REZENDE 2000, 90). O presidente da Agência foi acusado de participar
de um esquema de propinas, licenciando-se enquanto o Ministério Público apurava às denúncias.
O alto grau de politização dessa Agência é sinalizado com a renúncia
de outro conselheiro da agência, filiado ao Partido Trabalhador, após a
crise que levou os petistas a abandonarem o governo de coalizão com o
PDT. Como conseqüência, a Agência Reguladora permaneceu paralisada
até meados de 2000. Por determinação do Regimento Interno, as reuniões e sessões não podem funcionar com menos de três conselheiros.
Caso um dos conselheiros falte, a Agência praticamente parava.
Logo após sua criação a ARSEP assinou Convênio de Cooperação e de
Descentralização de Atividades Complementares com a ANEEL, porém
pouco mais de dois anos depois, o convênio foi rescindido. De acordo
com declarações do diretor geral da ANEEL47, o convênio de cooperação
foi cancelado porque durante os dois anos em que esteve vigente, a
ARSEP, uma autarquia do governo estadual, não implementou a estrutura
necessária para a operacionalização prática do acordo, com a formação
de equipe de técnicos qualificados para desempenhar as funções previstas. O convênio havia sido firmado no final da gestão do Governador
Marcelo Alencar, no entanto, na gestão Garotinho, entendeu-se que a
atribuição de fiscalizar caberia à ANEEL, já que a concessão para a pres46
47
Até outubro de 2002, o julgamento ainda não havia ocorrido.
Jornal do Brasil, 25 e 26.02.2001, citado por Pedrão (2002).
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tação de serviços de fornecimento de energia é dada pelo Governo
Federal. A ARSEP seria a responsável, então, apenas pela mediação dos
conflitos locais, entre as concessionárias e os consumidores. Com isso,
iniciou-se um processo de desmonte, que fez com que a ARSEP tivesse
seus recursos retidos, o que impediu a continuação do processo de
estruturação da Agência, levando à rescisão do convênio (PEDRÃO, 2002).
O segundo caso de contestação envolveu a competência da AGERGS
na área do saneamento. Na ação, a Procuradoria Geral do Estado (PGE)
contesta o artigo 3º e 4º da Lei 10.292 cuja redação foi dada pela Lei nº
11.292, de 23/12/98, que ampliou as competências da Agência. De acordo com a PGE, as competências atribuídas à AGERGS são inconstitucionais
pois invadem distintas esferas de poder. No caso do saneamento, a função regulatória sobre os serviços é afeta aos municípios. Segundo o procurador geral do estado: “atribuir a uma autarquia estadual competência
para atuar no que tange à prestação de serviços de interesse municipal
valeria por intervenção disfarçada na autonomia do Município, o que é
vedado pelo artigo 35 da Constituição Federal” 48.
O governo estadual impetrou a ADIN no Supremo Tribunal Federal
em resposta a um conflito envolvendo a reestruturação das tarifas da
Corsan, contra a qual a AGERGS se manifestou contra. Segundo o líder do
PT na Assembléia, “a AGERGS não tem isenção e está agindo politicamente. É uma estrutura criada pelo governo anterior que não representa
os interesses do conjunto da sociedade”49.
O Executivo estadual, alegando que a tarifa da Corsan apresentava
uma defasagem de 18%, considerando os 24 meses anteriores, instituiu
um índice escalonado. O governo sustentava que as novas taxas iriam
ocasionar a redução de tarifa em mais de 800 mil residências e restabeleceriam o equilíbrio financeiro da Corsan, tornando possível estender os
serviços de saneamento para a população que ainda não tinha acesso à
rede de água e esgoto.
“O objetivo deste novo sistema de cobrança é justamente ampliar o
número de pessoas atendidas pela Corsan, pois outros investimentos estão
condicionados ao saneamento financeiro da empresa. Além disso, nada
48
“AGERGSP. PGE questiona competências do órgão no STF”, in Informativo semanal da bancada do
PT , np. 120, dez 1998.
49
Ronaldo Zulke, in “AGERGSP. PGE questiona competências do órgão no STF”, in Informativo
semanal da bancada do PT , np. 120, dez 1998, p. 4; “PT na Assembléia”, 5/11/1999.
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mais justo do que cobrar mais de quem tem um consumo mais alto, resguardando os interesses dos cidadãos que têm um consumo mais baixo”50.
A terceira dimensão da contestação diz respeito ao boicote financeiro e
administrativo das Agências. Exemplos neste sentido ocorreram na ARSEMG, na AGERGS e na ARSEP-RJ. O caso mais significativo é o da primeira
dessas Agências, criada pela Lei 12.999, de 1999, mas que não foi implantada pelo governo Itamar Franco. Esse boicote também ocorreu no plano
da privatização da CEMIG, a empresa pública de energia elétrica de Minas
Gerais, no qual foram detectadas irregularidades. As empresas públicas
que foram privatizadas, no entanto, não são reguladas por uma Agência.51
No caso da ARSEP-RJ, o governo Garotinho não deu continuidade à formação de quadros da agência, prevista em Lei, e boicotou a transferência de
recursos. Ela não exerceu em 1999 e 2000 praticamente nenhuma atividade
de fiscalização, não tendo aplicado nenhuma multa até meados de 2000
(PECI e CAVALCANTI 2000). Vale destacar que o Rio de Janeiro foi pioneiro
nas privatizações com a venda da CERJ e da CEG/Riogás. Como depende
apenas da chamada taxa de fiscalização - cobrada das concessionárias e que
corresponde às 0,5% das suas receitas - a ARSEP enfrentou forte crise
organizacional. Até meados de 2000, três anos e meio após a sua criação, a
Agência dependia de recursos erráticos do Tesouro do Estado.
No caso da AGERGS, ocorreu contestação judicial em vários níveis da
cobrança de taxa de fiscalização, que daria autonomia à agência (taxa de
regulação, estabelecida pela Lei nº 11.073, de 30/12/97). Esta Lei foi
considerada inconstitucional pelo Executivo estadual. A Confederação
Nacional das Empresas de Transporte protocolou uma ADIN e, em juízo,
obteve liminar para suspensão do pagamento52. Como decorrência, apenas um pequeno número de empresas recolhe o valor. O boicote na
AGERGS atingiu também o quadro de pessoal. Não houve homologação
de concurso público - o que acarretou a vacância do cargo de conselheiro
representante dos servidores.
50
Id.ibid.
51
Cf Ferreira e Jaime Jr (2002) , os quais não fazem referência à Lei 12.999.
Várias empresas também o fizeram. Originalmente, a proposta estipulava uma Taxa de Regulação
a ser paga por todos os concessionários e equivalente a 0,5% do faturamento mensal, mas sofreu
mudanças posteriormente.
52
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VII - CONCLUSÃO
A criação e implementação das Agências Regulatórias representa uma
das mais abrangentes inovações institucionais das últimas décadas. Esse
processo exibe forte heterogeneidade interna. Pode-se distinguir pelo
menos três níveis nos quais a heterogeneidade do desenho institucional
se expressa.
O primeiro refere-se à dimensão setorial. Criadas fundamentalmente
para a redução do risco regulatório pós-privatização, as Agências da área
de infra-estrutura constituíram-se no modelo organizacional para as vinculadas à regulação social que surgiram posteriormente. A dinâmica de
criação dessas últimas está associada à “lógica da delegação” - que está
na base das relações e da divisão política de trabalho entre o Executivo e
o Legislativo -, e ao processo de difusão do novo gerencialismo público.
Embora exista grande isomorfismo organizacional, as Agências variam
também no que se refere ao seu desenho institucional. Esse é o segundo
nível em que se expressa a heterogeneidade. Como assinalado, o aspecto central desse desenho institucional diz respeito aos dispositivos que
asseguram transparência e autonomia às agências. O terceiro nível pelo
qual a heterogeneidade se expressa é de natureza federativa. Embora as
agências federais e estaduais mantenham forte isomorfismo, a variabilidade é
maior no plano estadual. O papel da União como agente indutor da difusão
da nova forma institucional não foi trivial. Pelo contrário, ele se manifestou
ativamente, sobretudo no caso dos governos da coalizão política do Executivo Federal. As Agências Regulatórias federais, por sua vez, contribuíram
indiretamente de forma importante nessa difusão através dos mecanismos e
arranjos cooperativos variados que foram montados entre os vários níveis de
governo - isso ocorreu de forma particularmente intensa na área de energia
elétrica.
Por outro lado, as áreas distintas de ação regulatória mantêm interface
diferenciada com a questão federativa. Em alguns setores a questão federativa é virtualmente um non-issue (telecomunicações), enquanto noutros ela
impacta de forma importante (saneamento). Um dos fatores explicativos da
variação interestadual do desenho regulatório é de natureza política. Características dos sistemas partidários locais também importam e impactam no
desenho regulatório: em estados polarizados e com forte alternância de forças políticas distintas no controle do Executivo estadual, como Rio Grande do
Sul e Pernambuco, o Legislativo representa um veto player importante.
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Embora seja cedo para uma avaliação preliminar, o texto sublinhou algumas questões fundamentais com base na curta experiência das Agências: sua
vulnerabilidade a crises; os conflito de jurisdição entre agências e, em muitos
casos, a incompletude da transição institucional; sua escassa institucionalização
como burocracias; sua diferenciada capacidade de enforcement. A análise
revela também que o modelo regulatório tem sido questionado em vários
níveis. Não é irrazoável supor que, dados os incentivos presentes em um
cenário de forte crise de credibilidade, o novo governo responda concedendo maior autonomia às Agências e os partidos de esquerda da coalizão de
governo reduzam sua contestação a elas. Uma estratégia de blame shifting
pode vir a ser percebida como altamente eficiente para os novos governantes
que já deram sinal de seu pragmatismo.
A percepção do balanço dos custos políticos e benefícios econômicos
(na forma de credibilidade regulatória) irá determinar o destino não só da
ação reguladora na área de infra-estrutura e do ambiente macroeconômico.
Se essa análise estiver certa, o destino dessas Agências, no curto e médio
prazo, está indissoluvelmente atrelado à sorte do Banco Central.
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CONCLUSÕES
O rico conjunto dos onze trabalhos aqui apresentados aponta claramente
para a construção de um novo aparato estatal no Brasil nos anos FHC. No
entanto, fica a pergunta: qual é o produto resultante deste processo? Em
primeiro lugar, surgiu um Estado multifacetado, com perfis nem sempre
coerentes entre si, por vezes reformulando as agendas e, por outras, chegando mesmo a montar novas instituições. Neste caminho diversificado, alguns
aspectos foram mais bem sucedidos, outros não foram levados adiante e
houve, ainda, escolhas equivocadas. Trata-se, portanto, de um caleidoscópio,
que precisa ser lido com muito cuidado.
Antes de mais nada, definitivamente não é possível definir o Estado
resultante como neoliberal, como fez a oposição nos últimos anos. Primeiro
por conta de sua diversidade, de modo que se a política cambial, em certo
momento, adotou uma crença absoluta nos fluxos de capitais como salvadores da pátria, as medidas na área de Saúde, peça-chave de qualquer Welfare
State, estiveram bem longe do neoliberalismo. Cabe relembrar, ademais, que
o papel econômico do governo continua crucial, com intervenção direta e
quase monopolista em áreas como o petróleo (o que ruborizaria as visões
mais fundamentalistas de mercado), no financiamento para o setor privado e
agrícola - com Bancos federais cuja atuação foge à cartilha de certos organismos multilaterais -, na manutenção de investimentos na infra-estrutura, na
regulação econômica - muitas vezes mal planejada, mas que nunca foi
descartada - e no fortalecimento de carreiras e órgãos públicos (como o
IPEA e o IBGE), mecanismo que foi na linha da reconstrução de um novo
tipo de Estado, e não de seu desmantelamento. Comparativamente, aliás,
tivemos um caminho de reformas diferente de outros países que tinham um
projeto de fato ideológico e cuja implementação foi rápida e sem discussão,
como a Argentina. No mais das vezes, fomos mais gradualistas e pragmáticos, apesar de certas nuances mais sectárias em prol do mercado e insuladas
do controle social, mormente a política do Banco Central no primeiro mandato, sobejamente conhecida como desastrosa.
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Entretanto, se houve políticas de corte social-democrata, como o PAB
e o Bolsa Escola - embora este tenha vindo tardiamente -, por outro lado
não se constituiu uma face mais nitidamente redistributivista do governo
FHC. Neste caso, as políticas sociais até que tentaram - e muitas vezes
conseguiram - trilhar esta linha, só que o resultado das crises internacionais e de nossos erros macroeconômicos apontaram para outro lado,
sobretudo nas metrópoles, onde a crise social se agravou.
O Executivo Federal foi decisivo no processo de reforma do Estado.
Todavia, não se deve minimizar a atuação fundamental do Legislativo nas
mudanças constitucionais, na transformação dos padrões fiscais e na criação de políticas setoriais. Por vezes, houve reclamações sobre a “lentidão
do Congresso”, mas graças a ela erramos menos, pois a separação de
Poderes é mais eficaz tanto na produção de accountability como na melhoria
dos processos decisórios. Claro que é preciso aperfeiçoar continuamente o
sistema político, para que ele represente mais adequadamente os cidadãos
e que possa fiscalizar com exatidão e parcimônia os governantes. O uso
desmedido da reedição das Medidas Provisórias foi sim um problema democrático do período, mas a reformulação das MPs, dando-lhe um novo
status, também é um sinal de que passamos por um aprendizado institucional.
Para avaliar a reforma do Estado nos anos FHC, três critérios podem
ser utilizados. O primeiro diz respeito à identificação daquilo que não foi
feito ou o que ficou no meio do caminho. A reforma tributária talvez seja
o principal exemplo do que não andou nem um pouco, ao passo que a
previdenciária representou alguns avanços e várias frustrações. Pelo que
foi detalhado ao longo dos textos, o fracasso destes projetos se deve a
diversos fatores. Uns de ordem político-institucional, como a dificuldade
de construir maioria congressual qualificada em matérias que impõem
perdas a interesses concentrados e benefícios difusos. Na base disso, está
uma Constituição que é prioritariamente um conjunto de policies, e não
primordialmente a definição da estrutura da polity. Isso faz com que
todos os governos que queiram alterar a dinâmica estatal tenham de
mexer na Carta constitucional, com a dificuldade de enfrentar a “ditadura
dos três quintos”. Este problema permanecerá para o presidente Lula e
para o próximo e, provavelmente, para o seguinte, e assim por diante.
Será que a Constituição deve ser majoritariamente um conjunto de policies? A esfinge do tempo e das necessidades deste país desigual continuará nos colocando esta questão até que um dia perceberemos a raiz profunda de nossos problemas.
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O andamento das reformas também enfrentou dificuldades no campo
da coordenação intragovernamental, por conta do legado de estruturas
que permanecem governo após governo e só são alteradas ao longo de
muitos anos. Fatores federativos foram bem menos reativos do que em
toda a redemocratização. Foram as grandes turbulências no cenário internacional que mais tiveram poder de paralisar o caminho das mudanças.
Porém, algumas transformações ocorreram por erro de estratégia governamental, como o caso da Previdência, que colocou no mesmo barco
questões diversas, em termos de coalizão política e justiça social, e no
tratamento das Agências responsáveis pelo desenvolvimento regional,
cujo resultado foi ter “jogado fora a criança com a água do banho”, isto é,
acabado com o que estava errado sem colocar nada no lugar.
Vários projetos fracassaram porque se baseavam em premissas equivocadas e, consequentemente, redundaram em escolhas erradas. O maior
exemplo é o da política cambial do primeiro mandato, baseada em uma
sobrevalorização exagerada da moeda e que levava todo o resto de roldão, e, particularmente, a suposição de que haveria um fluxo permanente e abundante de capitais externos, capazes de financiar ad infinitum a
economia brasileira. Com certeza, este foi o maior erro dos anos FHC e, o
pior de tudo, ele teve impacto em quase todas as outras áreas, por conta
do endividamento público crescente, prejudicando iniciativas bem formuladas e que estavam no caminho certo.
Equívocos e más escolhas apareceram também em determinados processos privatização e regulação, mormente o do setor energético. Muito
mais danosa foi a ausência de políticas urbanas, talvez o segundo maior
desastre dos anos FHC, o que resultou, juntamente com os problemas
econômicos, na perda de apoio social da população em geral. Destacamse, ainda, três outros erros, residentes no centro do Executivo federal.
Um é a “falha seqüencial” entre ajuste fiscal e reforma institucional, isto
é, o descompasso entre as duas perspectivas, com a vitória do fiscalismo
sobre a modernização administrativa do Estado. Outro é a má definição
do papel das Agências, problema que terá de ser resolvido urgentemente
pelo próximo governo. E, por fim, o modelo de coordenação
intragovernamental fracassou. Faltou comunicação, interna e externa; a
articulação ministerial foi inconstante e por vezes ineficaz; e, sobretudo,
houve um insulamento demasiado de certas áreas, com efeitos deletérios
ao desempenho e à accountability.
Muitas propostas e mudanças foram bem sucedidas. Certamente elas
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se destacam na área fiscal, com avanços no ordenamento das finanças
públicas, na melhoria da arrecadação tributária e da coordenação
intragovernamental pela Secretaria do Tesouro Nacional e, especialmente, na quebra do modelo predatório que vigorava na Federação. A Lei de
Responsabilidade Fiscal é a consolidação deste processo, um ganho incomensurável que nos legou o período FHC.
Houve também o aperfeiçoamento de mecanismos de accountability.
No Executivo, com a melhora da qualidade de a transparência das informações e por meio de políticas sociais que aproximaram o Estado dos
cidadãos, pela via dos Conselhos ou das parcerias com a comunidade. No
Congresso Nacional, os avanços foram o fim da imunidade parlamentar, a
maior visibilidade deste poder (cada vez mais responsivo à opinião pública), alterações na legislação de controle das campanhas eleitorais e,
em particular, a construção de uma nova regulamentação das MPs.
As capacidades institucionais do Estado reforçaram-se com a
informatização, a maior qualificação do funcionalismo (em termos de
escolaridade e treinamento interno), o investimento nas carreiras típicas
de Estado e a melhor definição do papel do Executivo Federal. O debate
sobre a gestão pública foi disseminado, e até por conta dos conflitos que
gerou, resultou numa melhora da cultura administrativa.
A coordenação federativa foi outra área que produziu novidades importantes. Em destaque, as ações do PAB e do Fundef de coordenar, por
meio da indução e da avaliação de metas, a descentralização, com resultado bastante satisfatórios. No Ensino Fundamental, ademais, foram criados eficazes mecanismos de redistribuição horizontal, os únicos em nossa
Federação tão assimétrica. A criação de programas mais focados na pobreza, de cunho intersetorial e com estímulos à maior emancipação dos
cidadãos (“renda mais escola”) também foram importantes, embora tais
políticas de distribuição de dinheiro direto à população sofram do mal da
fragmentação entre os setores governamentais.
Os capítulos trouxeram, ademais, importantes temas e desafios para o
próximo governo. Com relação às reformas políticas, indicamos que a
preocupação deveria ser menos focalizada na governabilidade e mais na
criação de mecanismos que reforcem a responsabilização dos governantes:
na relação entre Poderes, na dinâmica interna do Congresso e na relação
entre representantes e representados. Além disso, o país está condenado,
quem quer que seja o governante, a manter a estratégia de reforma
constitucional, o que implica custos altíssimos e que não trazem ganhos à
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melhor accountability. Enfatizamos novamente: qual é o sentido desta
estrutura política? A resposta fica a cargo do leitor. Por fim, ainda neste
tópico, é fundamental continuar apostando no “separacionismo” de nosso
sistema presidencialista, e, para tanto, é preciso reforçar política e tecnicamente a estrutura dos Poderes, a fim de reduzir as assimetrias de poder
e de informação entre o Executivo e Legislativo, por um lado, e de
constituir uma Presidência da República institucionalmente mais qualificada. O tema do Judiciário não foi tratado neste livro, mas avisamos que
sem sua reforma, não conseguiremos modernizar e tornar mais justo e
democrático o Brasil.
No que diz respeito à reforma administrativa, faz-se necessário definir
mais claramente a estrutura organizacional e seu modo de funcionamento. Neste ponto, houve avanços no debate, mas diversas indefinições na
construção de um novo arcabouço. É claro que se deve ter em conta o
caráter de longo prazo deste processo, envolvendo mudanças de postura
de políticos e burocratas. Estudando as experiências internacional e brasileira recentes, constatou-se que a mudança de tipo incremental é a que
tem mais chances de dar certo. Ela é baseada na negociação, no gradualismo
e no aprendizado contínuo dos atores, numa combinação de capacidades
técnicas e políticas.
Outro problema fundamental é o da coordenação administrativa. É
preciso evitar que as disputas entre Ministérios transformem-se num obstáculo à implementação das políticas, as quais, aliás terão de ser cada vez
mais intersetoriais e por programas, rompendo com a velha tradição da
gestão por setores, tomados como “caixinhas” isoladas uma das outras.
Ademais, diante de nossa estrutura presidencialista, é preciso definir claramente o papel do presidente na coordenação governamental e do núcleo estratégico ligado a ele. No centro desta questão, está a relação
entre política e burocracia, que necessita ser melhor equacionada, mediante a conciliação, sem compartimentalização, da lógica das indicações
políticas com o controle da delegação de poder.
Na área fiscal, os desafios são enormes, envolvendo o desenho
institucional e a avaliação dos resultados em termos de eficácia, eficiência e efetividade. Do lado intergovernamental, o objetivo deve ser a
manutenção da responsabilidade fiscal, mas isso só ocorrerá se reformas
institucionais forem feitas nos estados - particularmente na área
previdenciária -, se for implantado um novo projeto de desenvolvimento
e crescimento econômicos e se as arenas federativas forem utilizadas
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para resolver as possíveis pendências, em busca do aperfeiçoamento
democráticos das relações entre os níveis de governo.
As reformas previdenciária e tributária não podem ser mais adiadas.
Elas envolvem problemas fiscais, de competitividade econômica e de
justiça social. Para tanto, é urgente desonerar a produção para incentivar
o crescimento dos empregos e das exportações, bem como modificar a
estrutura do ICMS. Adicionalmente, outra meta deve ser a formação de
Fundos Previdenciários do funcionalismo, com a definição dos recursos
para capitalizá-los - em parte vindos da contribuição dos inativos. Tanto
melhor será, especialmente em termos de progressividade, se conseguirmos criar um só sistema previdenciário. Além disso, redução do trabalho
informal é peça chave que as duas reformas precisam resolver, até para
que se tornem complementares. A inspiração no modelo italiano, similar
em vários pontos com a situação brasileira, é sugestiva. Práticas negociadas, envolvendo governo, congressistas, sindicatos e empresários têm
mais chances de gerar bons resultados, tanto para as finanças públicas,
com a diminuição dos déficits previdenciários, quanto para os contribuintes de hoje e beneficiários no futuros.
O modelo regulatório brasileiro foi uma importante novidade dos anos
FHC. No entanto, dado seu caminho errático e fragmentado, ele pode ser
colocado na berlinda muito rapidamente. É preciso que as eventuais
mudanças não coloquem em risco a estabilidade do sistema. Neste sentido, deve-se montar uma estratégia de transição que nos logre Agências
Regulatórias fortes, em termos de desempenho e democratização. O mesmo
pode ser dito para os projetos de reformulação do Banco Central.
A reforma do Estado é elemento essencial nas políticas sociais e, por
conseguinte, na redução das imensas desigualdades deste país. Aprender
com os acertos e erros dos anos FHC é tanto mais importante aqui.
Seguindo esta linha, o caminho é fortalecer uma descentralização ancorada na coordenação federativa da União. Por esta via, teremos melhores
resultados, como comprovaram as experiências na Saúde e na Educação,
como também nas políticas de renda implementadas no final do mandato.
Só que outras áreas sociais estão sem uma estratégia adequada, como o
Saneamento e a Habitação, dois setores que pioraram nos últimos oito
anos. O maior desafio é, sem dúvida alguma, enfrentar as carências urbanas que crescem explosivamente. O Governo federal terá de se engajar
neste tema, porém precisará criar uma rede com os governos estaduais e
municipais para resolver os problemas das periferias metropolitanas.
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O país hoje é mais democrático e está mais habilitado para compreender seus desafios. Os erros e os acertos dos anos FHC nos deram este
legado. Com todos os problemas que o Brasil ainda tem, o presidente
Fernando Henrique Cardoso pode entregar o cargo para o vencedor das
eleições de 2002, o líder oposicionista Luiz Inácio da Silva, num novo
clima político e social. Mas o trajeto pela frente é difícil. Depois de todas
as reformas, o Estado realiza melhor algumas tarefas e outras, não. É
preciso continuar aprimorando os meios, contudo o essencial é interligálos adequadamente com os fins, para não termos a impressão de que
estamos fazendo bem as tarefas que não são as mais importantes. E existe
um Brasil nas periferias das grandes cidades que precisa urgentemente
de um governo mais presente e efetivo no seu dia-a-dia. Talvez seja este
o maior desafio do presidente Lula.
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O ESTADO NUMA ERA DE REFORMAS: OS ANOS FHC