II SEMINÁRIO DE ESTUDOS CULTURAIS, IDENTIDADES E RELAÇÕES INTERÉTNICAS GT 3 – RELAÇÕES RACIAIS E RETÓRICAS DE IDENTIDADE A INFLUÊNCIA DA VISÃO RACIALISTA NA CONFORMAÇÃO DA IDENTIDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA RAÍSA FERREIRA SANTOS A INFLUÊNCIA DA VISÃO RACIALISTA NA CONFORMAÇÃO DA IDENTIDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA Raísa Ferreira Santos, UFBA [email protected] 1. INTRODUÇÃO “São três as raízes da nossa cultura: a cultura ibérica, que é a cultura do privilégio; a cultura africana que é a cultura da magia; e a cultura indígena que é a cultura da indolência. Com esses ingredientes, o desenvolvimento econômico é uma parada...” (Roberto Campos) O intuito de começar esse trabalho com a citação acima do economista, diplomata e político brasileiro Roberto Campos é para que seja feita uma breve reflexão a respeito da formação da identidade cultural brasileira. Que povo seria esse que habita o território brasileiro? Qual sua identidade cultural, diante e resultante de matrizes culturais tão diametralmente opostas? O presente trabalho tem como objetivo problematizar de que maneira a primeira geração de intelectuais das ciências sociais formados no Brasil, a saber: Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha, que possuíam sua formação essencialmente pautada nas questões raciais, serviram de agentes influenciadores na formação da identidade cultural do país. Além de abordar as idéias e os marcos teóricos dessa geração, conhecida como a geração de 1870. A antropologia, em seus momentos iniciais, teve um viés mais etnocêntrico e menos relativista, como pode ser observado nos escritos dos autores da geração de 1870, tendo esta tendência se invertido tão logo fossem superadas as idéias evolucionistas à luz das idéias de Franz Boas e, posteriormente, de Claude LévyStrauss. No Brasil, autores como Gilberto Freyre, da geração de 1930, abriram caminhos para a superação inicial da inferioridade cultural existente na população brasileira, abriram caminhos para a compreensão da realidade cultural do país. É a partir dessas perspectivas que o presente trabalho tenta explicar quão importante foi a influência da visão racialista, exaltada nos primórdios das ciências sociais, para a conformação da identidade brasileira contemporânea. Desde o conceito de cultura elaborado por Tylor (In: CASTRO, 2005): “Cultura (...) é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade”, muitos outros conceitos foram criados sem que se chegasse a um entendimento que permitisse a síntese em uma única idéia, de tal modo que nos tempos mais atuais a preocupação dos antropólogos nesse mister deixou de ser o de cunhar novos conceitos e sim de buscar uma síntese capaz de reduzir a quantidade de conceitos existentes. É claro que as preocupações de uma ciência vão muito além da busca por um conceito amplamente aceito do seu objeto de estudo, mas é importante ressaltar essa questão uma vez que, como dizia o jusfilósofo brasileiro Miguel Reale "na árvore do conhecimento os conceitos equivalem aos frutos maduros". Partindo do entendimento de cultura exposto por Tylor, é possível perceber que essas teorias moldaram a visão do povo brasileiro a respeito si mesmos e dessa forma, originou-se um pensamento que foi enraizado em suas concepções, foi algo adquirido pelo homem em sua condição de integrante da sociedade, que até os dias atuais, embora já tenha diminuído de forma considerável, os legados da influência de seus estudos persistem na percepção do povo brasileiro para se entender como povo e para formar sua identidade, assim como no desenvolvimento das relações raciais contemporâneas. 2. PANORAMA INTERNACIONAL Desde os primórdios da humanidade os homens perceberam-se diferentes uns dos outros, não apenas fenotipicamente falando, mas também em relação aos seus costumes, aos seus hábitos, à sua linguagem... à sua cultura, ainda que esse termo – cultura – não estivesse sido conceituado efetivamente, a diferença era facilmente perceptível, e justamente a existência dessa percepção da diferença entre as sociedade era explicitado a partir dos choques culturais que existiam entre as mesmas. Tomando como exemplo, pode-se falar da Roma Antiga, que antes do século XVI, os romanos denominavam de “bárbaros” todos aqueles que não fossem eles mesmos, todos aqueles que não fizessem parte de seu mundo romano, ou seja, as pessoas que eles percebiam como diferentes a eles mesmos. Vale a pena ressaltar que naquela época, as pessoas denominadas de “bárbaros” eram povos europeus, europeus assim como os próprios romanos. Não muito diferente da Roma Antiga, a parte cristã do Ocidente utilizou o termo “pagão” a culturas que, especialmente no âmbito religioso, não se assemelhavam a sua, além de denominar como “primitivos” todos aqueles povos que não eram ocidentais. Durante o século XVI, com a descoberta do Novo Mundo, da América, a comunidade européia não conseguiu compreender as diferenças culturais, e até mesmo fenotípicas, existentes na América e designaram de “índios” todos aqueles que ali viviam, apropriando-se desse termo para fazer uma distinção da diferença existente entre eles. Observa-se aí que a prática etnocêntrica sempre esteve presente quando uma determinada sociedade se deparava com outra sociedade diferente da sua, mesmo que nos mínimos detalhes, pois o diferente, na maioria das vezes, é visto algo inferior à visão do povo que a observa. É apenas no século XVIII que a questão da diferença e da desigualdade é retomada com força e de forma efetiva. Com a influência das idéias Iluministas vigentes do final do século XVII e início do século XVIII na Europa e com o advento da Revolução Francesa e da Revolução Industrial no século XVIII é que se estabelecem as bases filosóficas para se pensar a humanidade enquanto totalidade, não mais em unidade. Até então, o homem descoberto do Novo Mundo era desconhecido, sua raça era desconhecida, havia a dúvida de que nova raça seria essa. O século XVIII, considerado o século das razões, foi um período de grandes transformações, principalmente transformações na esfera econômica, devido ao grande acúmulo do capital e da expansão capitalista que se iniciava com o Renascimento e que chegava ao seu auge com as colonizações. É paralelo a esse período que surge a máquina a vapor, dando início à Revolução Industrial que mudaria de uma vez por todas as relações sociais, culturais e econômicas já existentes. A Revolução Francesa trouxe consigo a tomada do lugar da religião pela ciência, a ciência agora era capaz de explicar tudo por si mesma, as explicações científicas ocorriam separadamente das explicações religiosas. Em meio a um século de grandes transformações em todas as esferas sociais foi que a comunidade européia começa a pensar de forma auto-crítica, é a partir desse momento que há uma reflexão crítica dos europeus em relação a eles mesmos, até então inexistente. Alguns autores como Voltaire, Montaigne e Rousseau, foram os grandes responsáveis pelo pensamento crítico europeu surgido no século XVIII, com suas teorias a respeito do estado de natureza. Mas foi também, no século XVIII que começou a formação das correntes pessimistas, das visões negativas sobre os homens da América, com teses sobre a inferioridade do continente americano e de seus habitantes. Entretanto, é somente no século XIX que essas teses se firmaram, é nesse período que a noção de raça surge na comunidade intelectual e o assunto a respeito da miscigenação é abordado. Há a naturalização das diferenças, surgem teorias a respeito do monogenismo e do poligenismo, o advento da ciência positivista e determinista, e nasce uma corrente antropológica fortemente marcada pelo momento histórico vigente: o Evolucionismo e o Racialismo. Tendo como precursores da corrente evolucionista Darwin e Spencer, que contribuíram de forma significativa com suas publicações, ou então antropólogos (assim considerados pelos seus trabalhos realizados, embora não de formação acadêmica) Tylor, Morgan e Frazer foram felizes em abordar ao estudo do evolucionismo o estudo da sociedade em sua totalidade e não apenas em sua esfera individual. Não obstante, pecaram ao fazer um recorte da sociedade sem levar em consideração o contexto no qual determinada sociedade estava inserida, além de terem estudado os fenômenos sociais de forma separada, sem observar a cultura como parte integrante e modificante da sociedade, deixando dessa forma de lado o particularismo de cada cultura e de cada sociedade. O evolucionismo tinha como conceitos e temas a unidade psíquica do homem, a evolução das sociedades das mais “primitivas” para as mais “civilizadas”, uma perspectiva diacrônica, no qual havia a busca das origens e a substituição do conceito de raça pelo conceito de cultura. Mas sem dúvida, a categoria marcante do século XIX foi a criação das raças, seu entendimento e suas percepções. Os estudiosos utilizavam o termo “raça inferior” para se referirem à diferença humana (leia-se: diferença humana essa que estivesse fora dos padrões ocidentais, fora da ideologia dominante do momento), foi dessa forma então que surgiu a doutrina Racialista, doutrina essa que pregava a existências de raças. As raças são grupos humanos com características físicas diferentes, a raça na visão racialista supunha uma moral nos indivíduos, ou seja, cada raça representava uma moral, além de um ponto importante a ser destacado dessa doutrina que a partir do momento que ela aborda a visão e a compreensão de raças ela exclui simultaneamente a visão e a compreensão de indivíduo, haja vista que pensar em raças é pensar na ausência do indivíduo, pois pensar em raça é pensar apenas em grupos, em conjunto. Autores como Renan, Gabineau e Agassiz, foram adeptos da teoria racialista e trouxeram consigo a idéia da miscigenação. Desde o século XVI há relatos da existência da miscigenação entre os povos, mas como nessa época não existia a categoria de raças e de mistura que foram aplicadas e desenvolvidas pelos racialistas, do século XVI ao XVIII não se pensava entre as sociedades em mistura, a mistura não era vista como algo diferente, como algo estranho, mas como algo natural ao ser humano. O contexto do século XIX que firmou essas teorias evolucionistas e racialistas foi um contexto que procurava legitimar a desigualdade racial com base científica, a idéia da desigualdade racial surge nas academias como idéia científica para justificar ações que já existiam e precisavam se manter. 3. BRASIL Durante boa parte do século XIX o regime político vigente no Brasil foi o Império, que nos seus últimos anos sofreu fortes críticas, fazendo com que suas bases ficassem fracas, além de a escravidão existente naquele período ter sido também fortemente criticada. Em 1808, por conseqüência da invasão que estava próxima a acontecer pelas tropas francesas de Napoleão Bonaparte, a Família Real transfere a corte portuguesa para sua colônia americana, o Brasil. Com a chegada da Família Real à colônia mais importante de Portugal, D. João engendrou algumas mudanças significativas, principalmente na esfera cultural e acadêmica, do Brasil. Dentre as mudanças ocorridas vale a pena destacar a criação do primeiro Banco do Brasil (1808), do Jardim Botânico (1810), da Academia Médico-cirúrgico (1813), mas a de relevância no que diz respeito ao rumo do trabalho foi, sem dúvida, a criação da primeira Escola de Medicina da Bahia em 1808. Contemporaneamente à criação da Escola de Medicina da Bahia cria-se a Escola de Medicina do Rio de Janeiro, e subseqüentemente, em 1827 é fundada a Escola de Direito de São Paulo, seguida pela Escola de Direito de Recife, fundada um ano após a criação da de são Paulo. Foi a partir do surgimento dessas escolas que apareceram os primeiros intelectuais do Brasil. Antes do aparecimento dessas Escolas, as elites locais tinham que mandar seus filhos para estudar fora do país, mais especificamente na Europa, que era considerado o centro intelectual daquele momento, principalmente em Portugal (Coimbra, para ser mais exato). Com a queda do Império, a vinda da República e o fim da escravidão o rumo do país muda completamente diante essas transformações significantes. Além das transformações sofridas na esfera econômica e política, houve transformações importantes na esfera cultural, nesse contexto de mudanças no percurso histórico brasileiro é surge entre os intelectuais a dúvida da identidade do povo brasileiro, a dúvida da formação da sociedade brasileira. Que país era esse? Que povo era esse? A geração de 1870 foi a primeira que a partir de seus estudos realizados, buscaram dar respostas relativas a essas questões, ou pelo menos, de esforçarem-se para tentar responder a essas questões. Mas, com mais precisão, foi a Escola de Recife que teve uma maior preocupação relacionada com esses questionamentos. Ela tinha um olhar direcionado à questão racial pautada nos modelos evolucionista e de darwinismo social importados da Europa. Uma das primeiras grandes figuras de destaque nessa Escola foi o poeta, filosófico e jurista Sergipano Tobias Barreto (1839-1889), depois seu contemporâneo Silvio Romero e posteriormente Euclides da Cunha (1866-1909). Silvio Romero nasceu em Lagarto, município situado no estado de Sergipe, em 1851 e foi pertencente à Escola de Direito do Recife, além de ter sido considerado o percussor da antropologia no Brasil e a primeira pessoa a fazer trabalhos etnográficos com a população negra. Silvio Romero foi filósofo, ensaísta, poeta, professor, político e alcançou maior notoriedade como crítico literário, sendo a “História da Literatura Brasileira”, publicada em 1888 sua obra considerada a de maior notoriedade. A obra anteriormente citada teve uma grande repercussão na vida de Silvio Romero, por conseqüência dessa obra ele alcançou a cadeira número 5 da Associação Brasileira de Literatura, sendo reconhecido ainda em vida. Sua obra foi a primeira a estudar os mestiços, e como anteriormente citado, foi o primeiro a fazer trabalhos etnográficos, mais precisamente com os negros. O conceito de raça é a base para entender o pensamento de Silvio Romero. Esse membro da Escola de Recife foi o primeiro intelectual a afirmar que existia uma mistura de raças no Brasil, foi o primeiro a perceber, mesmo que de forma equivocada, o cerne da formação da sociedade brasileira, que estava pautada nas misturas de suas matrizes, na miscigenação fortemente marcada entre a sociedade brasileira, desde a descoberta das Américas e a colonização portuguesa. Essa percepção da existência de uma mistura de raças no Brasil foi identificada em sua obra “História da Literatura Brasileira” (1888) e pode-se ilustrar essa afirmação com a famosa frase presente no livro: “mestiços se não no sangue ao menos na alma / todo brasileiro é mestiço senão no sangue pelo menos nas idéias”. Foi também o primeiro a estudar os negros, o que era um tabu na época, onde só se estudava os europeus e índios. Para Romero era fato que o Brasil era uma nação mestiça e em sua concepção, a evidência desse fato não agravada a ninguém. Mediante a essa constatação Silvio sugere uma política de “embranqueciemento” como solução para esse o problema da mestiçagem considerado por ele. Isso tudo só se torna possível porque a mestiçagem passa a ser considerada como envolvida em um processo de branqueamento, processo que Skidmore dá a impressão de entender quase como uma solução tipicamente brasileira para o problema da miscigenação, pelo qual se poderia assegurar um gradual predomínio dos caracteres brancos sobre os negros no interior do corpo e do espírito de cada mulato. (ARAÚJO, 2005) Diante da citação de Ricardo Benzaquen de Araújo, é possível observar que ainda na contemporaneidade, uma política desenvolvida anos atrás persiste enraizada nas idéias e concepções dos indivíduos, pois a mistura possui uma conotação negativa, e, além disso, as matrizes dessas misturas, especialmente a negra e a indígena, não são consideradas como favoráveis Nos estudos de Romero a respeito da cultura, o autor afirmava que a contribuição da população negra para a formação da identidade nacional era inferior, e que as contribuições dos brancos eram maiores. Sendo o Brasil uma nação mestiça, isso gerava um pessimismo em relação ao próprio país e aos sujeitos que ali nasciam e se desenvolviam, pois o país era essencialmente mestiço, e desde o momento que os indivíduos dessa sociedade se percebiam como indivíduos singulares e partícipes dessa sociedade, eles se percebiam como algo pernicioso, haja vista que eles eram resultado de algo considerado negativo: a miscigenação. Romero foi um racialista do tipo heterodoxo, apesar do pessimismo em relação à miscigenação que pairava no Brasil, Romero acreditava na transformação no entendimento positivo da miscigenação, mas para ele o futuro não precisava ser assim, melhor que não assim. Diante dessa perspectiva de Romero é que surge a política do “embanquecimento”, anteriormente citada. Essa política seria a solução, e para que ela acontecesse era necessário que houvesse um forte fluxo imigratório de europeus para o Brasil, a fim de se espalharem pelo continente e não ficassem agrupados em colônias, para que dessa forma a mestiçagem no Brasil se tornasse cada vez mais branca e mais homogênea. O discurso de Romero, apesar de ter disseminado uma visão extremamente racialista da formação identitária brasileira, foi marcado também de muita contrariedade, em um momento ele propunha uma política eugenista e de “embranquecimento” no Brasil, por outro lado, ele acreditava que a unidade e a essência da formação da nação brasileira era o mestiço, que era justamente o mestiço que diferenciava o que era o Brasil dos outros países, logo o resultado daquilo que ele percebia como negativo. Embora os estudos de Silvio Romero tenham repercutido de forma negativa na formação da identidade cultural brasileira, arraigando conceitos contraditórios à miscigenação, é importante ressaltar que sua visão positiva do mestiço trouxe efeitos também positivos. Outro grande intelectual da geração de 1870 também adepto da teoria racialista disseminada no Brasil, é o maranhense Nina Rodrigues. Nina Rodrigues nasceu em 1862 e sua obra de maior renome foi “Os Africanos no Brasil” (1890-1905). Nina foi médico, etnógrafo, criminalista, professor e antropólogo. Iniciou seus estudos na Escola de Medicina da Bahia em 1882 e depois transferiu seu curso para a Escola de Medicina do Rio de Janeiro e ao seu término voltou novamente para Bahia e então, em 1889 passa a lecionar na Faculdade de Medicina da Bahia. Nina sempre teve um comportamento ambíguo e contraditório que causou muita polêmica dentro da academia. Apesar de ser um racialista ortodoxo, ou seja, tinha uma visão extremamente pessimista em relação a questão da mestiçagem no Brasil, pois ele considerava a mestiçagem como um sinal de degenerescência, ele freqüentava os terreiros baianos, assim como as festas populares, ressaltando que isso tudo em companhia de negros e mulatos. O que era no mínimo contraditório já que o próprio afirmava que a raça negra era inferior, portanto, os mestiços eram uma raça degenerada devido à presença de sangue africano. Diferente de seus colegas da Escola de Recife – especialmente Tobias Barreto e Sílvio Romero – Nina Rodrigues opôs-se ao suposto evolucionismo social de que a “perfectibilidade” era possível para todos os grupos humanos. E ainda: ao conferir às raças o estatuto de realidades estanques, defendeu que toda mistura de espécies seria sinônimo de degeneração. (SCHWARCZ, 2009, pp. 92-93) Mas sem dúvida alguma, é correto entender que o resultado da obra de Nina Rodrigues e ele “foi, mesmo, um grande leitor e tradutor de seu próprio tempo; mas não só.” (SCHWARCZ, 2009, p. 92) Em oposição a Silvio Romero, Nina não era a favor da política de “embranquecimento” através da miscigenação com raças brancas, como os europeus, para que futuramente se chegasse a um tipo homogêneo. Nina foi mais radical nesse aspecto, para ele era necessário separar brancos de negros. Eis o exposto que opõe esses dois autores: enquanto Sílvio Romero acreditava no branqueamento geral da população, Nina Rodrigues afirmava que “o nosso futuro seria mestiço”. Por outro lado, Sílvio Romero veria o Brasil sob as lentes da unidade, ao passo que Nina destacaria as diferenças existentes entre as raças. (SCHWARCZ, 2009, pp. 96-97) Um dos métodos utilizados por Nina era o do Craniologia, que consistia na seguinte argumentação: quanto maior a caixa craniana maior o intelecto das pessoas, e a recíproca nesse caso era verdadeira. Segundo os resultados de suas pesquisas a caixa craniana dos negros e mulatos era menor do que a dos brancos e de menor peso. Nina considera que a mulata era uma mulher degenerada e superexcitada, para ele existe um determinismo biológico que sustenta a inferioridade do negro e a superioridade dos europeus. “Não somos todos iguais”, afirmava Nina, por isso ele acreditava que a penalidade jurídica deveria levar em conta o aspecto da diferença biológica das raças assim sendo,e aplicar punições diferentes para as diferentes “raças”. Para ilustrar e legitimar suas crenças a respeito dessas diferenças biológicas entre as raças, em suas pesquisas etnográficas na cidade de Salvador em penitenciárias e manicômios, ele constata que nesses ambientes a maioria das pessoas eram negras ou mulatas. “O suposto era o da “desigualdade” e, portanto, da necessidade de criação de códigos penais distintos que permitissem estabelecer responsabilidades atenuadas. Pautado por vários “estudos de caso”, Nina procurou fazer de suas teses não uma questão pessoal, mas uma matéria de ciência, fartamente amparada na bibliográfica da época. E o contexto não poderia ser mais revelador. Afinal, nesse momento a grande pergunta, que restava sem resposta, girava em torno do lugar que ocuparia a população negra recém-saída da escravidão e sujeita ao arbítrio da República, e sua igualdade cidadã.” (SCHWARCZ, 2009, pp. 93-94) O autor racialista acreditava que as naturezas são diferentes e por isso a aplicabilidade das leis deveria levar isso em conta. Nesse sentido ele elabora uma categoria de três tipos de mestiços onde a aplicação das leis deveria ser diferente; 1) os mestiços superiores (onde prevalece o sangue europeu) que são totalmente responsáveis pelos seus atos; 2) os comuns (com pequeno desequilíbrio mental devido à mestiçagem) com pena atenuada; e 3) os degenerados (totalmente loucos) são tão desequilibrados e fora de si que já não têm mais controle e responsabilidade do que fazem. Um fato curioso aconteceu com Nina, em um de seus estudos craniológicos, Nina estudou o crânio do líder do movimento de Canudos, Antônio Conselheiro, recebido na Faculdade de Medicina da Bahia. Dentro da academia esperava-se uma resposta científica à Guerra de Canudos e à natureza de Antônio Conselheiro, mas em seu laudo Nina Rodrigues não considerou o beato nem louco, nem criminoso, mas um indivíduo absolutamente normal, contrariando sua própria teoria. Diante de toda a teoria criada e disseminada por Nina Rodrigues, em Salvador, a capital do estado da Bahia, o Instituto Médico Legal recebe seu nome: IML Nina Rodrigues. Não seria justo não identificar os aspectos que Nina deu em contrapartida e em contribuição à sociedade brasileira, como por exemplo, seus estudos etnográficos realizados com os negros baianos foram os primeiros estudos realizados a fundo no que diz respeito à cultura negra, Nina registrou e descreveu a cultura negra como nunca antes havia sido feito até então, servindo inclusive de fonte histórica para estudiosos que precisaram estudar a cultura negra daquela época. Mas homenagear com o nome dele um órgão governamental como o IML dentro da cidade de Salvador deveria não ser concebido, considerando que Salvador, depois da África, é a cidade com maior número de negros habitantes fora do continente africano, e dentro da própria Salvador há o bairro da Liberdade, considerado o maior bairro negro da América Latina. Invocar uma homenagem nesse contexto, partindo da análise feita acerca das teorias racialistas desenvolvidas por ele parte de um pressuposto de exaltar algo contraditório. De um lado, talvez fosse justo pelo fato dele ter sido o primeiro a fazer estudos acerca dos negros na capital mais negra existente, mas de outro lado não é possível esquecer, nem se deve esquecer o teor dos estudos racialistas por ele realizado, que inclusive, tiverem maior notoriedade do que o fato da etnografia negra. Por último, outro autor que vale a pena ser discutido dentro da geração de 1870 é Euclides da Cunha. Nascido no Rio de Janeiro em 1866, Euclides foi professor, engenheiro, repórter, escritor, dentre outros ofícios. No ensino secundário foi aluno de Benjamim Constant e posteriormente o reencontra na Escola Militar da Praia Vermelha, onde se forma engenheiro militar. Sua principal obra e mais conhecida é “Os Sertões”, publicada em 1902, uma obra marcada pelo racialismo e determinismo geográfico, que o deu reconhecimento ainda em vida e teve uma grande repercussão. A obra “Os Sertões” é fruto de seu trabalho como correspondente jornalístico do jornal O Estado de São Paulo, onde presenciou boa parte da Guerra de Canudos (18961897). A grande mídia republicana da época divulgava que o objetivo da guerra de Canudos comandada pelo líder messiânico Antônio Conselho era restaurar o Regime Monárquico no Brasil, e que na verdade o movimento de Canudos era financiado e comandado por monarquistas. A conclusão que Euclides tira de sua viagem a Canudos é totalmente avessa a essa perspectiva e como conseqüência disso é que se origina sua tese acerca do atraso do povo sertanejo e sua inferioridade comparada ao povo litorâneo. Euclides se mostra como mais um adepto do racialismo e com o adendo de ser também um determinista geográfico, visto que sua obra é pautada pelo determinismo geográfico quase que o tempo todo. O livro “Os Sertões” é dividido em três partes: 1) A terra; 2) O homem; e 3) A Luta. Em “A Terra” Euclides analisa os fatores ambientais e geográficos de Canudos, em “O homem” ele julga que a terra é um fator determinante das ações dos homens. Segundo Euclides o clima seco era visível na expressão de embrutecimento dos sertanejos e explica que o comportamento desordenado de Antônio Conselheiro é fruto do ambiente caótico de Canudos. Já em “A luta”, o autor detalha a guerra de Canudos onde foram enviadas quatro expedições do exercito (três saíram derrotadas), tendo a última dizimado a população local. Euclides considera os mestiços uma “raça degenerada” e o sertanejo como mestiço seria uma “raça inferior”, além da sua visão da condenação do mestiço, devido ao cruzamento de diversas raças, ele define o mestiço como desequilibrado e instável, embora considere o mestiço do sertão forte e bem adaptado. Ele explica que por esses mestiços estarem longe do litoral, da “civilização”, da “cultura superior” isso os levaria a decadência moral por se encontrarem em um estágio inferior. Euclides acreditava que a “raça branca” era superior e todo mestiço por ter sangue negro era um degenerado. O grande ponto que o difere de outros racialistas como Silvio Romero e Nina Rodrigues é seu determinismo geográfico, considerando a população litorânea superior à do interior. Ainda hoje, a obra “Os Sertões” de Euclides é perpetuada como uma obra sem intenções negativas, ainda há uma grande mistificação em torno do autor e de seu escrito e seus aspectos racialistas não são levados em consideração. Os autores da geração de 1870 que foram apresentados tinham, de certo, uma coisa em comum: independente de suas teorias para a explicação da mestiçagem e do povo brasileiro, eles estavam preocupados com questões referentes à formação da identidade cultural brasileira, fosse essa preocupação imediata (como Nina Rodrigues) ou uma preocupação do futuro (como Euclides da Cunha). Os autores buscaram identificar e explicar, cada um de sua maneira, quem seria o povo brasileiro, qual e como seria essa nova nação que estava se formando, que país seria esse, qual seria sua identidade cultural. Durante o processo de formação teórica evolucionista e racista antropológica, o Brasil teve várias ideologias e pensamentos de escritores que pensaram o país a partir de suas perspectivas e seus momentos históricos, como os próprios intelectuais da geração de 1870. Em “A Ideologia Alemã” de Karl Marx e Friedrich Engels, logo na introdução, no ponto 5, os dois autores versam sobre o significado de ideologia, que vale a pena ser aqui ressaltado: A ideologia seria o estudo da origem e da formação das idéias, constituindo-se numa ciência propedêutica das demais. [...] As idéias se sistematizavam na ideologia – compêndio das ilusões através das quais os homens pensavam sua própria realidade de maneira enviesada, deformada, fantasmagórica. A primeira e máxima ilusão, própria de toda ideologia, consistia justamente em lhe atribuir a criação da história dos homens. Sob o prisma da ideologia é que a história se desenvolve como realização da Idéia Absoluta, da Consciência Crítica, dos Conceitos de Liberdade e Justiça e assim por diante. Ora, tais idéias não possuem existência própria, mas derivada do substrato material da história. [...] Ou seja, o da ideologia enquanto consciência falsa, equivocada, da realidade. (MARX & ENGELS, 2001. pp. 21-22) Diante do exposto, é possível observar que os autores explicam que a ideologia se reduz a uma falsa concepção da história e da realidade, é a concepção de mundo de uma classe, sendo essa classe sempre a dominante. Essa ideologia não corresponde à realidade histórica, ou então abstraí completamente a história “verdadeira”. Para Marx e Engels, a ideologia desconhece a realidade exterior à consciência, desconhece aquilo que o homem não sabe. A partir desse conceito é possível observarmos que as teorias no Brasil desenvolvidas, que as ideologias por trás das teorias desenvolvidas, dizem respeito ao que Marx e Engels consideravam. O que Silvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha escreveram (para ilustrar apenas a geração de 1870) foi apenas um retrato mal tirado da realidade que eles viviam, pois o que eles escreveram não, necessariamente, correspondeu à realidade histórica, eles foram influenciados pelos pensamentos e ideologias das classes dominantes do momento (leia-se: visão européia), ou seja, as suas ideologias se reduziram a uma falsa concepção da realidade e da história. Essa reflexão acerca do entendimento de ideologia para Marx e Engels é importante para que se perceba a realidade e que as pessoas não deixem ser acreditadas e levadas por tudo que lêem sem antes fazerem uma análise e uma profunda reflexão de tudo o que está acontecendo em sua volta, é nesse momento que a Antropologia surge como uma auxiliadora para perceber as diferenças, os problemas, a realidade, os particularismos, a sua volta, o outro, talvez até a verdade, se é que se pode considerar algo como verdade universal. 4. CONCLUSÕES A visão racialista desenvolvida no Brasil pela geração de 1870 deixou fortes marcas na conformação da identidade brasileira contemporânea. Percebe-se um complexo de inferioridade que paira sobre a sociedade e os indivíduos nela inserida. Sem dúvida outros intelectuais disseminando suas teorias pessimistas acerca da formação da identidade brasileira contribuíram para arraigar cada vez mais esse pensamento na formação cultural do país, mas em especial os intelectuais da geração de 1870, que foram os primeiros intelectuais a desenvolverem estudos acerca das relações raciais, em um momento no qual o Brasil e seus indivíduos precisavam se compreender enquanto nação, enquanto povo, enquanto cultura, ou seja, no momento crucial de sua formação identitária cultural. Não obstante, é preciso desmistificar essas idéias ainda presentes na sociedade, muito já se alcançou e o processo ainda levará tempo, haja visto que é extremamente difícil desvincular algo que está arraigado nos pensamentos, nas idéias e nas concepções das pessoas, mas “a mestiçagem é etnicamente bela e sadia e culturalmente enriquecedora” ( PALLARES-BURKE, 2005, p.302). A mestiçagem representa o povo brasileiro, representa a essência brasileira, o verdadeiro eu brasileiro, negar isso é negar a si mesmo. É interessante lembrar-se do que Marx e Engels explicitaram acerca das ideologias, pois elas não correspondem à realidade histórica, é preciso que os indivíduos apreendam seu momento e realidade histórica, utilizando das ideologias apenas como apoio nesse processo de apreensão e compreensão de si mesmos. “(...)não que no brasileiro não subsistam, como no anglo-americano, duas metades inimigas: a branca e a preta; o ex-senhor e o ex-escravo. De modo nenhum. Somos duas metades confraternizantes que se vêm mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas; quando nos completar-mos num todo, não será com o sacrifício de um elemento ao outro” (FREYRE, 2006, pp.417-418) REFERÊNCIAS TYLOR, Edward Burnett. A Ciência da Cultura. In: CASTRO, Celso (Org.). Evolucionismo Cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 69. ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e Paz: Casa Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 2005. SCHWARCZ, Lilia. Nina Rodrigues: Um radical do pessimismo. In: SCHWARCZ, BOTELHO & ANDRÉ (Orgs.). Um Enigma chamado Bran: 29 intérpretes e um país. São Paulo: Cia das Letras, 2009. MARX, Karl & ENGELS, Friendrich. A ideologia alemã. Tradução de Luiz Cláudio de Castro e Costa. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. pp. 21-22. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. São Paulo: Global, 2006, p. 417-418.