II SEMINÁRIO DE ESTUDOS CULTURAIS, IDENTIDADES E RELAÇÕES
INTERÉTNICAS
GT 3 – RELAÇÕES RACIAIS E RETÓRICAS DE IDENTIDADE
A INFLUÊNCIA DA VISÃO RACIALISTA NA CONFORMAÇÃO DA
IDENTIDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA
RAÍSA FERREIRA SANTOS
A INFLUÊNCIA DA VISÃO RACIALISTA NA CONFORMAÇÃO DA
IDENTIDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA
Raísa Ferreira Santos, UFBA
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1. INTRODUÇÃO
“São três as raízes da nossa cultura: a cultura ibérica, que é a cultura do
privilégio; a cultura africana que é a cultura da magia; e a cultura indígena que é a
cultura da indolência. Com esses ingredientes, o desenvolvimento econômico é uma
parada...”
(Roberto Campos)
O intuito de começar esse trabalho com a citação acima do economista,
diplomata e político brasileiro Roberto Campos é para que seja feita uma breve reflexão
a respeito da formação da identidade cultural brasileira. Que povo seria esse que habita
o território brasileiro? Qual sua identidade cultural, diante e resultante de matrizes
culturais tão diametralmente opostas?
O presente trabalho tem como objetivo problematizar de que maneira a primeira
geração de intelectuais das ciências sociais formados no Brasil, a saber: Sílvio Romero,
Nina Rodrigues e Euclides da Cunha, que possuíam sua formação essencialmente
pautada nas questões raciais, serviram de agentes influenciadores na formação da
identidade cultural do país. Além de abordar as idéias e os marcos teóricos dessa
geração, conhecida como a geração de 1870.
A antropologia, em seus momentos iniciais, teve um viés mais etnocêntrico e
menos relativista, como pode ser observado nos escritos dos autores da geração de
1870, tendo esta tendência se invertido tão logo fossem superadas as idéias
evolucionistas à luz das idéias de Franz Boas e, posteriormente, de Claude LévyStrauss. No Brasil, autores como Gilberto Freyre, da geração de 1930, abriram
caminhos para a superação inicial da inferioridade cultural existente na população
brasileira, abriram caminhos para a compreensão da realidade cultural do país. É a partir
dessas perspectivas que o presente trabalho tenta explicar quão importante foi a
influência da visão racialista, exaltada nos primórdios das ciências sociais, para a
conformação da identidade brasileira contemporânea.
Desde o conceito de cultura elaborado por Tylor (In: CASTRO, 2005): “Cultura
(...) é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e
quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de
membro da sociedade”, muitos outros conceitos foram criados sem que se chegasse a
um entendimento que permitisse a síntese em uma única idéia, de tal modo que nos
tempos mais atuais a preocupação dos antropólogos nesse mister deixou de ser o de
cunhar novos conceitos e sim de buscar uma síntese capaz de reduzir a quantidade de
conceitos existentes. É claro que as preocupações de uma ciência vão muito além da
busca por um conceito amplamente aceito do seu objeto de estudo, mas é importante
ressaltar essa questão uma vez que, como dizia o jusfilósofo brasileiro Miguel Reale "na
árvore do conhecimento os conceitos equivalem aos frutos maduros".
Partindo do entendimento de cultura exposto por Tylor, é possível perceber que
essas teorias moldaram a visão do povo brasileiro a respeito si mesmos e dessa forma,
originou-se um pensamento que foi enraizado em suas concepções, foi algo adquirido
pelo homem em sua condição de integrante da sociedade, que até os dias atuais, embora
já tenha diminuído de forma considerável, os legados da influência de seus estudos
persistem na percepção do povo brasileiro para se entender como povo e para formar
sua identidade, assim como no desenvolvimento das relações raciais contemporâneas.
2. PANORAMA INTERNACIONAL
Desde os primórdios da humanidade os homens perceberam-se diferentes uns
dos outros, não apenas fenotipicamente falando, mas também em relação aos seus
costumes, aos seus hábitos, à sua linguagem... à sua cultura, ainda que esse termo –
cultura – não estivesse sido conceituado efetivamente, a diferença era facilmente
perceptível, e justamente a existência dessa percepção da diferença entre as sociedade
era explicitado a partir dos choques culturais que existiam entre as mesmas.
Tomando como exemplo, pode-se falar da Roma Antiga, que antes do século
XVI, os romanos denominavam de “bárbaros” todos aqueles que não fossem eles
mesmos, todos aqueles que não fizessem parte de seu mundo romano, ou seja, as
pessoas que eles percebiam como diferentes a eles mesmos. Vale a pena ressaltar que
naquela época, as pessoas denominadas de “bárbaros” eram povos europeus, europeus
assim como os próprios romanos. Não muito diferente da Roma Antiga, a parte cristã do
Ocidente utilizou o termo “pagão” a culturas que, especialmente no âmbito religioso,
não se assemelhavam a sua, além de denominar como “primitivos” todos aqueles povos
que não eram ocidentais. Durante o século XVI, com a descoberta do Novo Mundo, da
América, a comunidade européia não conseguiu compreender as diferenças culturais, e
até mesmo fenotípicas, existentes na América e designaram de “índios” todos aqueles
que ali viviam, apropriando-se desse termo para fazer uma distinção da diferença
existente entre eles.
Observa-se aí que a prática etnocêntrica sempre esteve presente quando uma
determinada sociedade se deparava com outra sociedade diferente da sua, mesmo que
nos mínimos detalhes, pois o diferente, na maioria das vezes, é visto algo inferior à
visão do povo que a observa.
É apenas no século XVIII que a questão da diferença e da desigualdade é
retomada com força e de forma efetiva. Com a influência das idéias Iluministas vigentes
do final do século XVII e início do século XVIII na Europa e com o advento da
Revolução Francesa e da Revolução Industrial no século XVIII é que se estabelecem as
bases filosóficas para se pensar a humanidade enquanto totalidade, não mais em
unidade. Até então, o homem descoberto do Novo Mundo era desconhecido, sua raça
era desconhecida, havia a dúvida de que nova raça seria essa.
O século XVIII, considerado o século das razões, foi um período de grandes
transformações, principalmente transformações na esfera econômica, devido ao grande
acúmulo do capital e da expansão capitalista que se iniciava com o Renascimento e que
chegava ao seu auge com as colonizações. É paralelo a esse período que surge a
máquina a vapor, dando início à Revolução Industrial que mudaria de uma vez por todas
as relações sociais, culturais e econômicas já existentes. A Revolução Francesa trouxe
consigo a tomada do lugar da religião pela ciência, a ciência agora era capaz de explicar
tudo por si mesma, as explicações científicas ocorriam separadamente das explicações
religiosas. Em meio a um século de grandes transformações em todas as esferas sociais
foi que a comunidade européia começa a pensar de forma auto-crítica, é a partir desse
momento que há uma reflexão crítica dos europeus em relação a eles mesmos, até então
inexistente.
Alguns autores como Voltaire, Montaigne e Rousseau, foram os grandes
responsáveis pelo pensamento crítico europeu surgido no século XVIII, com suas
teorias a respeito do estado de natureza. Mas foi também, no século XVIII que começou
a formação das correntes pessimistas, das visões negativas sobre os homens da
América, com teses sobre a inferioridade do continente americano e de seus habitantes.
Entretanto, é somente no século XIX que essas teses se firmaram, é nesse
período que a noção de raça surge na comunidade intelectual e o assunto a respeito da
miscigenação é abordado. Há a naturalização das diferenças, surgem teorias a respeito
do monogenismo e do poligenismo, o advento da ciência positivista e determinista, e
nasce uma corrente antropológica fortemente marcada pelo momento histórico vigente:
o Evolucionismo e o Racialismo.
Tendo como precursores da corrente evolucionista Darwin e Spencer, que
contribuíram de forma significativa com suas publicações, ou então antropólogos (assim
considerados pelos seus trabalhos realizados, embora não de formação acadêmica)
Tylor, Morgan e Frazer foram felizes em abordar ao estudo do evolucionismo o estudo
da sociedade em sua totalidade e não apenas em sua esfera individual. Não obstante,
pecaram ao fazer um recorte da sociedade sem levar em consideração o contexto no
qual determinada sociedade estava inserida, além de terem estudado os fenômenos
sociais de forma separada, sem observar a cultura como parte integrante e modificante
da sociedade, deixando dessa forma de lado o particularismo de cada cultura e de cada
sociedade.
O evolucionismo tinha como conceitos e temas a unidade psíquica do homem, a
evolução das sociedades das mais “primitivas” para as mais “civilizadas”, uma
perspectiva diacrônica, no qual havia a busca das origens e a substituição do conceito de
raça pelo conceito de cultura.
Mas sem dúvida, a categoria marcante do século XIX foi a criação das raças, seu
entendimento e suas percepções. Os estudiosos utilizavam o termo “raça inferior” para
se referirem à diferença humana (leia-se: diferença humana essa que estivesse fora dos
padrões ocidentais, fora da ideologia dominante do momento), foi dessa forma então
que surgiu a doutrina Racialista, doutrina essa que pregava a existências de raças. As
raças são grupos humanos com características físicas diferentes, a raça na visão
racialista supunha uma moral nos indivíduos, ou seja, cada raça representava uma
moral, além de um ponto importante a ser destacado dessa doutrina que a partir do
momento que ela aborda a visão e a compreensão de raças ela exclui simultaneamente a
visão e a compreensão de indivíduo, haja vista que pensar em raças é pensar na ausência
do indivíduo, pois pensar em raça é pensar apenas em grupos, em conjunto.
Autores como Renan, Gabineau e Agassiz, foram adeptos da teoria racialista e
trouxeram consigo a idéia da miscigenação. Desde o século XVI há relatos da existência
da miscigenação entre os povos, mas como nessa época não existia a categoria de raças
e de mistura que foram aplicadas e desenvolvidas pelos racialistas, do século XVI ao
XVIII não se pensava entre as sociedades em mistura, a mistura não era vista como algo
diferente, como algo estranho, mas como algo natural ao ser humano.
O contexto do século XIX que firmou essas teorias evolucionistas e racialistas
foi um contexto que procurava legitimar a desigualdade racial com base científica, a
idéia da desigualdade racial surge nas academias como idéia científica para justificar
ações que já existiam e precisavam se manter.
3. BRASIL
Durante boa parte do século XIX o regime político vigente no Brasil foi o
Império, que nos seus últimos anos sofreu fortes críticas, fazendo com que suas bases
ficassem fracas, além de a escravidão existente naquele período ter sido também
fortemente criticada.
Em 1808, por conseqüência da invasão que estava próxima a acontecer pelas
tropas francesas de Napoleão Bonaparte, a Família Real transfere a corte portuguesa
para sua colônia americana, o Brasil. Com a chegada da Família Real à colônia mais
importante de Portugal, D. João engendrou algumas mudanças significativas,
principalmente na esfera cultural e acadêmica, do Brasil. Dentre as mudanças ocorridas
vale a pena destacar a criação do primeiro Banco do Brasil (1808), do Jardim Botânico
(1810), da Academia Médico-cirúrgico (1813), mas a de relevância no que diz respeito
ao rumo do trabalho foi, sem dúvida, a criação da primeira Escola de Medicina da Bahia
em 1808. Contemporaneamente à criação da Escola de Medicina da Bahia cria-se a
Escola de Medicina do Rio de Janeiro, e subseqüentemente, em 1827 é fundada a Escola
de Direito de São Paulo, seguida pela Escola de Direito de Recife, fundada um ano após
a criação da de são Paulo.
Foi a partir do surgimento dessas escolas que apareceram os primeiros
intelectuais do Brasil. Antes do aparecimento dessas Escolas, as elites locais tinham que
mandar seus filhos para estudar fora do país, mais especificamente na Europa, que era
considerado o centro intelectual daquele momento, principalmente em Portugal
(Coimbra, para ser mais exato). Com a queda do Império, a vinda da República e o fim
da escravidão o rumo do país muda completamente diante essas transformações
significantes. Além das transformações sofridas na esfera econômica e política, houve
transformações importantes na esfera cultural, nesse contexto de mudanças no percurso
histórico brasileiro é surge entre os intelectuais a dúvida da identidade do povo
brasileiro, a dúvida da formação da sociedade brasileira. Que país era esse? Que povo
era esse?
A geração de 1870 foi a primeira que a partir de seus estudos realizados,
buscaram dar respostas relativas a essas questões, ou pelo menos, de esforçarem-se para
tentar responder a essas questões. Mas, com mais precisão, foi a Escola de Recife que
teve uma maior preocupação relacionada com esses questionamentos. Ela tinha um
olhar direcionado à questão racial pautada nos modelos evolucionista e de darwinismo
social importados da Europa. Uma das primeiras grandes figuras de destaque nessa
Escola foi o poeta, filosófico e jurista Sergipano Tobias Barreto (1839-1889), depois
seu contemporâneo Silvio Romero e posteriormente Euclides da Cunha (1866-1909).
Silvio Romero nasceu em Lagarto, município situado no estado de Sergipe, em
1851 e foi pertencente à Escola de Direito do Recife, além de ter sido considerado o
percussor da antropologia no Brasil e a primeira pessoa a fazer trabalhos etnográficos
com a população negra. Silvio Romero foi filósofo, ensaísta, poeta, professor, político e
alcançou maior notoriedade como crítico literário, sendo a “História da Literatura
Brasileira”, publicada em 1888 sua obra considerada a de maior notoriedade.
A obra anteriormente citada teve uma grande repercussão na vida de Silvio
Romero, por conseqüência dessa obra ele alcançou a cadeira número 5 da Associação
Brasileira de Literatura, sendo reconhecido ainda em vida. Sua obra foi a primeira a
estudar os mestiços, e como anteriormente citado, foi o primeiro a fazer trabalhos
etnográficos, mais precisamente com os negros.
O conceito de raça é a base para entender o pensamento de Silvio Romero. Esse
membro da Escola de Recife foi o primeiro intelectual a afirmar que existia uma mistura
de raças no Brasil, foi o primeiro a perceber, mesmo que de forma equivocada, o cerne
da formação da sociedade brasileira, que estava pautada nas misturas de suas matrizes,
na miscigenação fortemente marcada entre a sociedade brasileira, desde a descoberta
das Américas e a colonização portuguesa. Essa percepção da existência de uma mistura
de raças no Brasil foi identificada em sua obra “História da Literatura Brasileira” (1888)
e pode-se ilustrar essa afirmação com a famosa frase presente no livro: “mestiços se não
no sangue ao menos na alma / todo brasileiro é mestiço senão no sangue pelo menos
nas idéias”. Foi também o primeiro a estudar os negros, o que era um tabu na época,
onde só se estudava os europeus e índios.
Para Romero era fato que o Brasil era uma nação mestiça e em sua concepção, a
evidência desse fato não agravada a ninguém. Mediante a essa constatação Silvio sugere
uma política de “embranqueciemento” como solução para esse o problema da
mestiçagem considerado por ele.
Isso tudo só se torna possível porque a mestiçagem passa a ser
considerada como envolvida em um processo de branqueamento,
processo que Skidmore dá a impressão de entender quase como uma
solução tipicamente brasileira para o problema da miscigenação, pelo
qual se poderia assegurar um gradual predomínio dos caracteres
brancos sobre os negros no interior do corpo e do espírito de cada
mulato. (ARAÚJO, 2005)
Diante da citação de Ricardo Benzaquen de Araújo, é possível observar que
ainda na contemporaneidade, uma política desenvolvida anos atrás persiste enraizada
nas idéias e concepções dos indivíduos, pois a mistura possui uma conotação negativa,
e, além disso, as matrizes dessas misturas, especialmente a negra e a indígena, não são
consideradas como favoráveis
Nos estudos de Romero a respeito da cultura, o autor afirmava que a
contribuição da população negra para a formação da identidade nacional era inferior, e
que as contribuições dos brancos eram maiores. Sendo o Brasil uma nação mestiça, isso
gerava um pessimismo em relação ao próprio país e aos sujeitos que ali nasciam e se
desenvolviam, pois o país era essencialmente mestiço, e desde o momento que os
indivíduos dessa sociedade se percebiam como indivíduos singulares e partícipes dessa
sociedade, eles se percebiam como algo pernicioso, haja vista que eles eram resultado
de algo considerado negativo: a miscigenação.
Romero foi um racialista do tipo heterodoxo, apesar do pessimismo em relação à
miscigenação que pairava no Brasil, Romero acreditava na transformação no
entendimento positivo da miscigenação, mas para ele o futuro não precisava ser assim,
melhor que não assim. Diante dessa perspectiva de Romero é que surge a política do
“embanquecimento”, anteriormente citada. Essa política seria a solução, e para que ela
acontecesse era necessário que houvesse um forte fluxo imigratório de europeus para o
Brasil, a fim de se espalharem pelo continente e não ficassem agrupados em colônias,
para que dessa forma a mestiçagem no Brasil se tornasse cada vez mais branca e mais
homogênea.
O discurso de Romero, apesar de ter disseminado uma visão extremamente
racialista da formação identitária brasileira, foi marcado também de muita
contrariedade, em um momento ele propunha uma política eugenista e de
“embranquecimento” no Brasil, por outro lado, ele acreditava que a unidade e a essência
da formação da nação brasileira era o mestiço, que era justamente o mestiço que
diferenciava o que era o Brasil dos outros países, logo o resultado daquilo que ele
percebia como negativo.
Embora os estudos de Silvio Romero tenham repercutido de forma negativa na
formação da identidade cultural brasileira, arraigando conceitos contraditórios à
miscigenação, é importante ressaltar que sua visão positiva do mestiço trouxe efeitos
também positivos.
Outro grande intelectual da geração de 1870 também adepto da teoria racialista
disseminada no Brasil, é o maranhense Nina Rodrigues. Nina Rodrigues nasceu em
1862 e sua obra de maior renome foi “Os Africanos no Brasil” (1890-1905). Nina foi
médico, etnógrafo, criminalista, professor e antropólogo. Iniciou seus estudos na Escola
de Medicina da Bahia em 1882 e depois transferiu seu curso para a Escola de Medicina
do Rio de Janeiro e ao seu término voltou novamente para Bahia e então, em 1889 passa
a lecionar na Faculdade de Medicina da Bahia.
Nina sempre teve um comportamento ambíguo e contraditório que causou muita
polêmica dentro da academia. Apesar de ser um racialista ortodoxo, ou seja, tinha uma
visão extremamente pessimista em relação a questão da mestiçagem no Brasil, pois ele
considerava a mestiçagem como um sinal de degenerescência, ele freqüentava os
terreiros baianos, assim como as festas populares, ressaltando que isso tudo em
companhia de negros e mulatos. O que era no mínimo contraditório já que o próprio
afirmava que a raça negra era inferior, portanto, os mestiços eram uma raça degenerada
devido à presença de sangue africano.
Diferente de seus colegas da Escola de Recife – especialmente Tobias
Barreto e Sílvio Romero – Nina Rodrigues opôs-se ao suposto
evolucionismo social de que a “perfectibilidade” era possível para
todos os grupos humanos. E ainda: ao conferir às raças o estatuto de
realidades estanques, defendeu que toda mistura de espécies seria
sinônimo de degeneração. (SCHWARCZ, 2009, pp. 92-93)
Mas sem dúvida alguma, é correto entender que o resultado da obra de Nina
Rodrigues e ele “foi, mesmo, um grande leitor e tradutor de seu próprio tempo; mas
não só.” (SCHWARCZ, 2009, p. 92)
Em oposição a Silvio Romero, Nina não era a favor da política de
“embranquecimento” através da miscigenação com raças brancas, como os europeus,
para que futuramente se chegasse a um tipo homogêneo. Nina foi mais radical nesse
aspecto, para ele era necessário separar brancos de negros.
Eis o exposto que opõe esses dois autores: enquanto Sílvio Romero
acreditava no branqueamento geral da população, Nina Rodrigues
afirmava que “o nosso futuro seria mestiço”. Por outro lado, Sílvio
Romero veria o Brasil sob as lentes da unidade, ao passo que Nina
destacaria as diferenças existentes entre as raças. (SCHWARCZ,
2009, pp. 96-97)
Um dos métodos utilizados por Nina era o do Craniologia, que consistia na
seguinte argumentação: quanto maior a caixa craniana maior o intelecto das pessoas, e a
recíproca nesse caso era verdadeira. Segundo os resultados de suas pesquisas a caixa
craniana dos negros e mulatos era menor do que a dos brancos e de menor peso.
Nina considera que a mulata era uma mulher degenerada e superexcitada, para
ele existe um determinismo biológico que sustenta a inferioridade do negro e a
superioridade dos europeus. “Não somos todos iguais”, afirmava Nina, por isso ele
acreditava que a penalidade jurídica deveria levar em conta o aspecto da diferença
biológica das raças assim sendo,e aplicar punições diferentes para as diferentes “raças”.
Para ilustrar e legitimar suas crenças a respeito dessas diferenças biológicas entre as
raças, em suas pesquisas etnográficas na cidade de Salvador em penitenciárias e
manicômios, ele constata que nesses ambientes a maioria das pessoas eram negras ou
mulatas.
“O suposto era o da “desigualdade” e, portanto, da necessidade de
criação de códigos penais distintos que permitissem estabelecer
responsabilidades atenuadas. Pautado por vários “estudos de caso”,
Nina procurou fazer de suas teses não uma questão pessoal, mas uma
matéria de ciência, fartamente amparada na bibliográfica da época. E
o contexto não poderia ser mais revelador. Afinal, nesse momento a
grande pergunta, que restava sem resposta, girava em torno do lugar
que ocuparia a população negra recém-saída da escravidão e sujeita ao
arbítrio da República, e sua igualdade cidadã.” (SCHWARCZ, 2009,
pp. 93-94)
O autor racialista acreditava que as naturezas são diferentes e por isso a
aplicabilidade das leis deveria levar isso em conta. Nesse sentido ele elabora uma
categoria de três tipos de mestiços onde a aplicação das leis deveria ser diferente; 1) os
mestiços superiores (onde prevalece o sangue europeu) que são totalmente responsáveis
pelos seus atos; 2) os comuns (com pequeno desequilíbrio mental devido à mestiçagem)
com pena atenuada; e 3) os degenerados (totalmente loucos) são tão desequilibrados e
fora de si que já não têm mais controle e responsabilidade do que fazem.
Um fato curioso aconteceu com Nina, em um de seus estudos craniológicos,
Nina estudou o crânio do líder do movimento de Canudos, Antônio Conselheiro,
recebido na Faculdade de Medicina da Bahia. Dentro da academia esperava-se uma
resposta científica à Guerra de Canudos e à natureza de Antônio Conselheiro, mas em
seu laudo Nina Rodrigues não considerou o beato nem louco, nem criminoso, mas um
indivíduo absolutamente normal, contrariando sua própria teoria.
Diante de toda a teoria criada e disseminada por Nina Rodrigues, em Salvador, a
capital do estado da Bahia, o Instituto Médico Legal recebe seu nome: IML Nina
Rodrigues. Não seria justo não identificar os aspectos que Nina deu em contrapartida e
em contribuição à sociedade brasileira, como por exemplo, seus estudos etnográficos
realizados com os negros baianos foram os primeiros estudos realizados a fundo no que
diz respeito à cultura negra, Nina registrou e descreveu a cultura negra como nunca
antes havia sido feito até então, servindo inclusive de fonte histórica para estudiosos que
precisaram estudar a cultura negra daquela época. Mas homenagear com o nome dele
um órgão governamental como o IML dentro da cidade de Salvador deveria não ser
concebido, considerando que Salvador, depois da África, é a cidade com maior número
de negros habitantes fora do continente africano, e dentro da própria Salvador há o
bairro da Liberdade, considerado o maior bairro negro da América Latina. Invocar uma
homenagem nesse contexto, partindo da análise feita acerca das teorias racialistas
desenvolvidas por ele parte de um pressuposto de exaltar algo contraditório. De um
lado, talvez fosse justo pelo fato dele ter sido o primeiro a fazer estudos acerca dos
negros na capital mais negra existente, mas de outro lado não é possível esquecer, nem
se deve esquecer o teor dos estudos racialistas por ele realizado, que inclusive, tiverem
maior notoriedade do que o fato da etnografia negra.
Por último, outro autor que vale a pena ser discutido dentro da geração de 1870 é
Euclides da Cunha. Nascido no Rio de Janeiro em 1866, Euclides foi professor,
engenheiro, repórter, escritor, dentre outros ofícios. No ensino secundário foi aluno de
Benjamim Constant e posteriormente o reencontra na Escola Militar da Praia Vermelha,
onde se forma engenheiro militar.
Sua principal obra e mais conhecida é “Os Sertões”, publicada em 1902, uma
obra marcada pelo racialismo e determinismo geográfico, que o deu reconhecimento
ainda em vida e teve uma grande repercussão.
A obra “Os Sertões” é fruto de seu trabalho como correspondente jornalístico do
jornal O Estado de São Paulo, onde presenciou boa parte da Guerra de Canudos (18961897). A grande mídia republicana da época divulgava que o objetivo da guerra de
Canudos comandada pelo líder messiânico Antônio Conselho era restaurar o Regime
Monárquico no Brasil, e que na verdade o movimento de Canudos era financiado e
comandado por monarquistas.
A conclusão que Euclides tira de sua viagem a Canudos é totalmente avessa a
essa perspectiva e como conseqüência disso é que se origina sua tese acerca do atraso
do povo sertanejo e sua inferioridade comparada ao povo litorâneo. Euclides se mostra
como mais um adepto do racialismo e com o adendo de ser também um determinista
geográfico, visto que sua obra é pautada pelo determinismo geográfico quase que o
tempo todo.
O livro “Os Sertões” é dividido em três partes: 1) A terra; 2) O homem; e 3) A
Luta. Em “A Terra” Euclides analisa os fatores ambientais e geográficos de Canudos,
em “O homem” ele julga que a terra é um fator determinante das ações dos homens.
Segundo Euclides o clima seco era visível na expressão de embrutecimento dos
sertanejos e explica que o comportamento desordenado de Antônio Conselheiro é fruto
do ambiente caótico de Canudos. Já em “A luta”, o autor detalha a guerra de Canudos
onde foram enviadas quatro expedições do exercito (três saíram derrotadas), tendo a
última dizimado a população local.
Euclides considera os mestiços uma “raça degenerada” e o sertanejo como
mestiço seria uma “raça inferior”, além da sua visão da condenação do mestiço, devido
ao cruzamento de diversas raças, ele define o mestiço como desequilibrado e instável,
embora considere o mestiço do sertão forte e bem adaptado. Ele explica que por esses
mestiços estarem longe do litoral, da “civilização”, da “cultura superior” isso os levaria
a decadência moral por se encontrarem em um estágio inferior. Euclides acreditava que
a “raça branca” era superior e todo mestiço por ter sangue negro era um degenerado.
O grande ponto que o difere de outros racialistas como Silvio Romero e Nina
Rodrigues é seu determinismo geográfico, considerando a população litorânea superior
à do interior.
Ainda hoje, a obra “Os Sertões” de Euclides é perpetuada como uma obra sem
intenções negativas, ainda há uma grande mistificação em torno do autor e de seu
escrito e seus aspectos racialistas não são levados em consideração.
Os autores da geração de 1870 que foram apresentados tinham, de certo, uma
coisa em comum: independente de suas teorias para a explicação da mestiçagem e do
povo brasileiro, eles estavam preocupados com questões referentes à formação da
identidade cultural brasileira, fosse essa preocupação imediata (como Nina Rodrigues)
ou uma preocupação do futuro (como Euclides da Cunha). Os autores buscaram
identificar e explicar, cada um de sua maneira, quem seria o povo brasileiro, qual e
como seria essa nova nação que estava se formando, que país seria esse, qual seria sua
identidade cultural.
Durante o processo de formação teórica evolucionista e racista antropológica, o
Brasil teve várias ideologias e pensamentos de escritores que pensaram o país a partir de
suas perspectivas e seus momentos históricos, como os próprios intelectuais da geração
de 1870.
Em “A Ideologia Alemã” de Karl Marx e Friedrich Engels, logo na introdução,
no ponto 5, os dois autores versam sobre o significado de ideologia, que vale a pena ser
aqui ressaltado:
A ideologia seria o estudo da origem e da formação das idéias,
constituindo-se numa ciência propedêutica das demais. [...] As idéias
se sistematizavam na ideologia – compêndio das ilusões através das
quais os homens pensavam sua própria realidade de maneira
enviesada, deformada, fantasmagórica. A primeira e máxima ilusão,
própria de toda ideologia, consistia justamente em lhe atribuir a
criação da história dos homens. Sob o prisma da ideologia é que a
história se desenvolve como realização da Idéia Absoluta, da
Consciência Crítica, dos Conceitos de Liberdade e Justiça e assim por
diante. Ora, tais idéias não possuem existência própria, mas derivada
do substrato material da história. [...] Ou seja, o da ideologia enquanto
consciência falsa, equivocada, da realidade. (MARX & ENGELS,
2001. pp. 21-22)
Diante do exposto, é possível observar que os autores explicam que a ideologia
se reduz a uma falsa concepção da história e da realidade, é a concepção de mundo de
uma classe, sendo essa classe sempre a dominante. Essa ideologia não corresponde à
realidade histórica, ou então abstraí completamente a história “verdadeira”. Para Marx e
Engels, a ideologia desconhece a realidade exterior à consciência, desconhece aquilo
que o homem não sabe.
A partir desse conceito é possível observarmos que as teorias no Brasil
desenvolvidas, que as ideologias por trás das teorias desenvolvidas, dizem respeito ao
que Marx e Engels consideravam. O que Silvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da
Cunha escreveram (para ilustrar apenas a geração de 1870) foi apenas um retrato mal
tirado da realidade que eles viviam, pois o que eles escreveram não, necessariamente,
correspondeu à realidade histórica, eles foram influenciados pelos pensamentos e
ideologias das classes dominantes do momento (leia-se: visão européia), ou seja, as suas
ideologias se reduziram a uma falsa concepção da realidade e da história.
Essa reflexão acerca do entendimento de ideologia para Marx e Engels é
importante para que se perceba a realidade e que as pessoas não deixem ser acreditadas
e levadas por tudo que lêem sem antes fazerem uma análise e uma profunda reflexão de
tudo o que está acontecendo em sua volta, é nesse momento que a Antropologia surge
como uma auxiliadora para perceber as diferenças, os problemas, a realidade, os
particularismos, a sua volta, o outro, talvez até a verdade, se é que se pode considerar
algo como verdade universal.
4. CONCLUSÕES
A visão racialista desenvolvida no Brasil pela geração de 1870 deixou fortes
marcas na conformação da identidade brasileira contemporânea. Percebe-se um
complexo de inferioridade que paira sobre a sociedade e os indivíduos nela inserida.
Sem dúvida outros intelectuais disseminando suas teorias pessimistas acerca da
formação da identidade brasileira contribuíram para arraigar cada vez mais esse
pensamento na formação cultural do país, mas em especial os intelectuais da geração de
1870, que foram os primeiros intelectuais a desenvolverem estudos acerca das relações
raciais, em um momento no qual o Brasil e seus indivíduos precisavam se compreender
enquanto nação, enquanto povo, enquanto cultura, ou seja, no momento crucial de sua
formação identitária cultural.
Não obstante, é preciso desmistificar essas idéias ainda presentes na sociedade,
muito já se alcançou e o processo ainda levará tempo, haja visto que é extremamente
difícil desvincular algo que está arraigado nos pensamentos, nas idéias e
nas
concepções das pessoas, mas “a mestiçagem é etnicamente bela e sadia e culturalmente
enriquecedora” ( PALLARES-BURKE, 2005, p.302). A mestiçagem representa o povo
brasileiro, representa a essência brasileira, o verdadeiro eu brasileiro, negar isso é negar
a si mesmo. É interessante lembrar-se do que Marx e Engels explicitaram acerca das
ideologias, pois elas não correspondem à realidade histórica, é preciso que os indivíduos
apreendam seu momento e realidade histórica, utilizando das ideologias apenas como
apoio nesse processo de apreensão e compreensão de si mesmos.
“(...)não que no brasileiro não subsistam, como no anglo-americano,
duas metades inimigas: a branca e a preta; o ex-senhor e o ex-escravo.
De modo nenhum. Somos duas metades confraternizantes que se vêm
mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas; quando
nos completar-mos num todo, não será com o sacrifício de um
elemento ao outro” (FREYRE, 2006, pp.417-418)
REFERÊNCIAS
TYLOR, Edward Burnett. A Ciência da Cultura. In: CASTRO, Celso (Org.).
Evolucionismo Cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 69.
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e Paz: Casa Grande & Senzala e a obra de
Gilberto Freyre nos anos 30. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 2005.
SCHWARCZ, Lilia. Nina Rodrigues: Um radical do pessimismo. In: SCHWARCZ,
BOTELHO & ANDRÉ (Orgs.). Um Enigma chamado Bran: 29 intérpretes e um país.
São Paulo: Cia das Letras, 2009.
MARX, Karl & ENGELS, Friendrich. A ideologia alemã. Tradução de Luiz Cláudio de
Castro e Costa. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. pp. 21-22.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. São Paulo: Global, 2006, p. 417-418.
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a influência da visão racialista na conformação da identidade