Qualidade Assistencial Esta seção destina-se a atualizar os nossos leitores e estimulá-los à discussão permanente sobre valorização profissional e qualidade assistencial. Erro médico e sua origem A evolução da autonomia do paciente mudou radical e definitivamente a relação médico-paciente. Se até bem poucos anos, a orientação fornecida pelo médico funcionava como uma determinação de conduta para o paciente, hoje o paciente já adentra o consultório médico prescrevendo medicamentos e solicitando os exames que deseja fazer. Na concepção chamada hipocrática ou tradicionalista, hoje em desuso, o médico usufruía de absoluto respeito e autoridade sobre seu paciente que não lhe solicitava maiores explicações sobre seu proceder e submetia-se de boa mente às suas determinações, confiante de que seu médico sempre fazia o melhor e quando o melhor não ocorria, a culpa não era imputada ao médico. Não haviam dúvidas e não haviam suspeitas. Contudo, na mesma velocidade que a tecnologia médica evoluiu tornando os tratamentos mais eficientes e mais humanos, outras áreas do saber também se aprimoraram e o acesso do cidadão às informações sobre a ciência e sobre os seus direitos e melhoria das ferramentas de solução para seus conflitos mudaram o panorama mundial, atingindo a relação médico-paciente, cujos fundamentos ainda estão sendo adaptados para sobreviver com harmonia à mudança dos tempos. Uma das mais visíveis transformações porque passa a relação médico- paciente é o respeito devido à autonomia do paciente que deixa a posição passiva para assumir seu papel de sujeito no relacionamento com o profissional que cuida de sua saúde. Os princípios hipocráticos vão sendo paulatinamente abandonados para que seja criada uma relação de igualdade, de simetria com o médico, tanto assim que a expressão paciente não raro é substituída por cliente. Esta autonomia é representada pelo documento conhecido como Termo de Consentimento Informado ou Consentimento Livre e Esclarecido. O Consentimento Livre e Esclarecido é o documento que deve ser apresentado pelo médico e assinado pelo paciente, no qual constem as informações gerais sobre o tratamento, duração, conseqüências, eventuais complicações e outras necessárias à segurança de ambos, que se irmanam pelo objetivo comum. Na hipótese, hoje em dia cada vez mais comum, de haver uma insatisfação do paciente com o resultado obtido com o tratamento médico e o paciente decidir-se por demandar contra o médico, seja no Conselho Regional de Medicina – CRM seja na Justiça Comum – nas áreas cível e criminal, a existência do Consentimento Livre e Esclarecido como parte integrante do Prontuário Médico corretamente preenchido, é um forte indício de que o paciente estava ciente de que tanto ele quanto o médico não são deus e que se irmanam em busca do melhor resultado. Não se fala em Erros de outros profissionais, como se fala em Erro Médico, que abriga sob esta designação a iatrogenia, o acidente, a complicação, o resultado adverso e o erro propriamente dito. É comum que até mesmo a insatisfação do paciente seja chamada de Erro Médico, sem maiores questionamentos sobre suas reais causas. A responsabilidade de clínicas e hospitais, que envolvem a conduta de outros profissionais, quando acionados pelos pacientes insatisfeitos, jurídica ou eticamente, também são classificados como Erro Médico. Numa analogia simplificada, quando veículos se abalroam, não se fala em Erro de Trânsito, mas em acidente de trânsito, mesmo sabendo-se que por acidente devem ser considerados os fatos ocasionados por caso fortuito ou força maior e que a princípio não há causadores ou culpados, mas em se tratando do atendimento e tratamento a pacientes, a bipolaridade surge automaticamente com o médico ocupando um lugar hierarquicamente superior ao paciente em termos de responsabilidade o que o coloca também como culpado e o paciente como vítima. Para que o médico ocupe o lugar de hipersuficiência com relação ao paciente, são levados em consideração o conhecimento que o médico deve deter e a responsabilidade pelo ato que pratica, como profissional devidamente filiado ao seu Conselho Regional de Medicina. As informações a que o paciente tem acesso, especialmente através do conhecido “Dr. Google” não lhe garantem o saber, mas tem levado muitos pacientes a solicitarem este ou aquele exame e até mesmo determinado procedimento médico, com base em suas informações que embora atualizadas não rivalizam com o conhecimento médico. Atendi, há poucos dias, médico plantonista de um serviço de urgência de conhecida instituição de saúde que estava sendo interpelado pelo Ministério Público. A paciente compareceu durante três de seus plantões consecutivos e sendo examinada pelo médico em cada plantão, não foi encaminhada para a realização de um parto cesáreo, por não haver indicação médica. A paciente entendia que deveria submeter-se ao procedimento cirúrgico de sua escolha e diante da negativa do médico, solicitou providências junto à Procuradoria da Defesa da Saúde, daí a intimação do Ministério Público para que o médico justificasse sua conduta sob pena de ser acusado da prática de crime. Não valeram as explicações 32 número 04 - setembro de 2011 Arco - Arquivos Centro-Oeste de Cardiologia médicas e as orientações passadas à paciente. Ela confiou mais no doutor virtual. Pode-se analisar porque a paciente privilegiou sua vontade baseada em informações leigas em detrimento da opinião e orientação do médico. Talvez o profissional não lhe tenha inspirado confiança, talvez não tenha havido empatia. São perguntas. Tanto a hipersuficiência que às vezes se confunde com a divinização do médico, quanto o crescimento da propositura das ações contra o médico, têm raiz na época em que o médico desfrutou de um prestígio hoje em extinção e que permitiu a ocorrência do que se pode chamar de “alguns abusos”. Médicos atenderam sem conceder a devida atenção ao seu paciente. Diagnósticos foram feitos de maneira equivocada com grande prejuízo para o paciente. Tratamentos foram dispensados desnecessariamente ou de forma exagerada que impuseram aos pacientes seqüelas significativas. Tudo isso acontece ainda hoje, com a diferença de que as ferramentas hoje disponibilizadas ao paciente não só colocaram os equívocos e as queixas em evidência, como possibilitam a sua reparação. A relação do médico com seu paciente quando é mal estruturada, frágil, pela pressa, pelo sentimento de insignificância que o paciente do SUS desde sempre e o paciente dos planos de saúde mais recentemente, desperta em alguns médicos, pela falta de vocação ou qualificação e preparo do profissional é um grande incremento para a imposição de demandas contra o médico. Iatrogenias e complicações fazem parte da história da medicina. Na sua ocorrência, quando o médico construiu uma relação baseada em respeito e confiança, existe a possibilidade do paciente não abandonar o tratamento e os maus resultados havidos serem minimizados ou pelo menos bem compreendidos pelo paciente. O incorreto preenchimento do prontuário, onde faltam dados elementares como qualificação do paciente, queixa principal, medicação em uso, anamnese, exame físico, exames complementares, diagnóstico, prognóstico, tratamento, retornos, não permitem ao médico, em caso de necessidade, apresentar uma defesa de sua conduta profissional com base neste documento. O prontuário é o único meio de prova que está inteiramente sob o controle do médico. As outras provas admitidas em juízo e em processos administrativos, que são as provas testemunhais e periciais estão sujeitas à influência de fatores externos diversificados, mas o prontuário é criado, elaborado, preenchido e manuseado pelo próprio médico. Excetuadas situações excepcionais de violação, quando prontuários têm folhas arrancadas ou se perdem, êle é a peça mestra a demonstrar a conduta médica e merece atenção cuidadosa. Tanto é assim que o Conselho Federal de Medicina possui Resoluções Federais destinadas especialmente ao preenchimento do prontuário, como o exemplo a seguir: O que o prontuário médico deve conter por força da resolução CFM Nº1638/02 a. Identificação do paciente: nome completo, data de nascimento (dia, mês e ano com quatro dígitos), sexo, nome da mãe, naturalidade (indicando o município e o estado de nascimento), endereço completo (nome da via pública, número, complemento, bairro/distrito, município, estado e CEP); b. Anamnese, exame físico, exames complementares solicitados e seus respectivos resultados, hipóteses diagnósticas, diagnóstico definitivo e tratamento efetuado; c. Evolução diária do paciente, com data e hora, discriminação de todos os procedimentos aos quais o mesmo foi submetido e identificação dos profissionais que os realizaram, assinados eletronicamente quando elaborados e/ou armazenados em meio eletrônico; d. Nos prontuários em suporte de papel é obrigatória a legibilidade da letra do profissional que atendeu o paciente, bem como a identificação dos profissionais prestadores do atendimento. São também obrigatórias a assinatura e o respectivo número do CRM; e. Nos casos emergenciais, nos quais seja impossível a colheita de história clínica do paciente, deverá constar relato médico completo de todos os procedimentos realizados e que tenham possibilitado o diagnóstico e/ou a remoção para outra unidade. f. Assegurar a responsabilidade do preenchimento, guarda e manuseio dos prontuários, que cabem ao médico assistente, à chefia da equipe, à chefia da Clínica e à Direção técnica da unidade. Palova Amisses Parreiras Advogada especializada em Defesa do profissional da Saúde Professora Direito na PUC, de Ética na Saúde na Faculdade São Camilo, de Ética Médica na Faculdade de Ciências Médicas e do curso de pós-graduação da Unimed Coautora dos livros “Direito e Medicina” e “Ética e Direito” número 04 - setembro de 2011 33