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Joseph Banks no Paraíso
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A 13 de Abril de 1769, o jovem Joseph Banks, botânico oficial do HM Bark Endeavour,
vislumbrou pela primeira vez a ilha de Taiti, a 17 graus Sul e 149 graus Oeste. Fora-lhe dito
que era a localização geográfica precisa do Paraíso, uma ideia magnífica, ainda que nela não
acreditasse por completo.
Banks tinha 26 anos, era alto e bem constituído, com uma cabeleira rebelde, farta, de
caracóis negros. Quanto a temperamento era alegre, confiante, aventureiro: um verdadeiro
filho do iluminismo. No entanto, os seus olhos revelavam um ser pensativo, taciturno, a
espaços com uma intensidade melancólica, como se reflectissem a premonição de uma
sensibilidade singular, diferente; a sensibilidade do sonho íntimo do romantismo.
Banks não gostava de se submeter a esse traço da personalidade e por isso cultivou uma
camaradagem saudável com os companheiros de bordo ao mesmo tempo que, disciplinado,
manteve a forma física durante os primeiros oito meses da viagem do Endeavour.
Considerava que se encontrava — «pela graça de Deus» — em tão boa «disposição», física e
mental, como seria possível a qualquer homem nas suas circunstâncias. Quando por acaso se
sentia abatido, dedicava-se a exercícios vigorosos de «salto à corda» na sua cabine, ao ponto
de em determinada ocasião ter escorregado e quase partido uma perna.
Era capaz de trabalhar pacientemente, horas a fio, no espaço apinhado de homens de bordo.
A cabina do tombadilho superior, que partilhava com um bom amigo, o Dr. Daniel Solander,
media aproximadamente oito por dez pés. Banks adoptara uma disciplina diária rígida, que
consistia em esboçar imagens de pássaros pela manhã, tentar experiências eléctricas,
dissecar animais, passear no convés, atirar aos pássaros (quando os havia) e escrever no
diário ao final do dia. Pescava constantemente, abatia ou capturava com redes pássaros
selvagens e observava fenómenos meteorológicos, como os belos «arco-íris» lunares. Com a
chegada do escorbuto, começou a sangrar sinistramente das gengivas, mas não se deixou
intimidar. Automedicou-se com um xarope pré-preparado de concentrado de sumo de
limão («a Mistura do Dr. Hume»), de que tomava precisamente seis onças por dia. O xarope
revelou-se de tal forma eficaz que no espaço de uma semana estava curado.
Por vezes, embora raramente, o entusiasmo científico do jovem Banks dava lugar a uma
impaciência explosiva. Quando foi impedido de fazer quaisquer visitas de estudo botânicas
pelo cônsul espanhol no Rio de Janeiro, vendo-se confinado durante três semanas à
atmosfera asfixiante do navio, solidamente ancorado no porto da cidade, escreveu,
acalorado, a um amigo da Royal Society, em Londres: «Já ouviste falar de Tântalo no Inferno,
já te contaram a história do francês cativo em malhas de linho entre duas das suas amantes,
ambas desnudas e recorrendo a todos os meios possíveis para lhe excitarem o desejo, mas
nunca ouviste falar de um infeliz tantalizado que suportasse a sua condição com menos
paciência que eu: amaldiçoei, invectivei, gritei, espezinhei.» No entanto, pela calada da noite
e às escondidas de todos, abandonava furtivamente o navio para recolher sementes e plantas
silvestres, numa enorme variedade de espécimes que incluía — até — a exótica buganvília
púrpura.
Assim que se encontrou nas ilhas polinésias começou a passar horas a fio na gávea do
mastro principal, a imensa forma do seu corpo inesperadamente agachada no cesto de vigia,
procurando terra onde acostar por baixo da densa base de nuvens tropicais. À noite a
tripulação ouvia a rebentação distante rugir na escuridão. Por fim Banks abarcava com o
olhar a fabulosa lagoa azul, a areia vulcânica preta e as intrigantes palmeiras (as Arecaceae de
Lineu). Acima da praia, as colinas íngremes, cobertas de folhagem verde-escura, brilhantes
das nascentes cristalinas, ascendiam abruptamente aos 7 mil pés de altitude. Banks reparou
que nas cartas navais o local fora prosaicamente assinalado como «baía de Port Royal, ilha
do Rei Jorge III». «Assim que as âncoras bateram no fundo, os botes foram arreados e todos
nos dirigimos a terra, onde fomos recebidos por algumas centenas de habitantes, cujos
rostos, ao menos isso, apresentavam sinais evidentes de que não éramos hóspedes
indesejados, embora de início mal se atrevessem a aproximar-se de nós. Ao fim de algum
tempo tornaram-se bastante amigáveis. O primeiro que se aproximou vinha quase a gatinhar
e entregou-nos um ramo verde, o símbolo da paz.»
Percebendo a deixa, todo o grupo britânico que desembarcara cortou ramos verdes das
palmeiras em redor, que foram levados ao longo da praia, brandidos como guarda-sóis
cerimoniais. Por fim foi-lhes mostrado um lugar idílico perto de uma nascente, ficando
subentendido que aí poderiam estabelecer acampamento. Os ramos verdes foram
amontoados numa grande pilha na areia e «assim foi concluída a paz». Seria aí que se
estabeleceria o povoado britânico, conhecido como Forte Vénus: «Caminhámos então na
direcção da floresta, seguidos de todos os nativos, a quem oferecemos contas e pequenos
presentes. Desta maneira avançámos umas quatro ou cinco milhas, sob pomares de
coqueiros e árvores de fruta-pão, carregadas com uma profusão de frutos, oferecendo a
mais bem-vinda sombra que alguma vez senti. Por baixo das árvores estavam as habitações
deste povo, a maior parte sem paredes. Em resumo, a cena que nos era dado contemplar
correspondia ao quadro mais verdadeiro de uma Arcádia onde seríamos reis que qualquer
coisa que a imaginação pudesse conceber.»
À medida que os homens iam voltando para trás, sentindo-se perigosamente próximos da
realeza, as raparigas do Taiti envolviam-nos com flores, ofereciam todo o tipo de
«civilidades» e gesticulavam convidativamente em direcção aos tapetes de folhas de coqueiro
que se espraiavam na sombra. Relutante, Banks sentiu que, visto serem as casas dos ilhéus
totalmente «desprovidas de paredes», este não seria o momento mais acertado para «pôr à
prova a delicadeza dos indígenas». Não obstante, não teria deixado de o fazer «se as
circunstâncias houvessem sido mais favoráveis».
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O Taiti localiza-se aproximadamente na direcção este-oeste imediatamente abaixo do
paralelo 17, sendo uma das maiores das que hoje se designam por ilhas da Sociedade,
sensivelmente a meio caminho entre o Peru e a Austrália. A sua forma não é muito distinta
de um número oito com cerca de 120 milhas («40 léguas») de circunferência. A maioria dos
seus ancoradouros é facilmente acessível, uma série de baías amplas e encurvadas com areias
vulcânicas negras ou praias de coral cor-de-rosa, delimitadas por coqueiros e árvores de
fruta-pão. Contudo, umas centenas de metros para o interior, a terra inclina-se de forma
abrupta, dando lugar a uma topografia completamente diferente. As colinas íngremes e
densamente arborizadas conduzem a uma paisagem remota e hostil, de ravinas profundas,
penhascos escarpados e saliências perigosas.
Contrariamente ao que diz a lenda, o Endeavour, capitaneado pelo tenente James Cook, não
foi o primeiro navio a acostar no Taiti. É provável que várias expedições espanholas, sob o
comando de Queirós ou Torres, ali tenham fundeado no final do século XVI e tenham
reclamado a posse do Taiti para Espanha. Uma expedição britânica anterior, sob o comando
do capitão Wallis, do Dolphin, chegara em definitivo ao Taiti em 1767, quando a ilha foi
descrita como «romântica» e a sua posse reclamada por Inglaterra. Uma expedição francesa,
comandada por Louis-Antoine de Bougainville, ancorara ali no ano seguinte e por seu turno
reclamara a ilha para França.
Apressadamente, os Franceses haviam baptizado o Taiti com o nome de Nova Cítara, a
Nova Ilha do Amor. O homólogo de Banks, o botânico francês Philibert Commerson (que
chamara buganvília à planta em honra do seu capitão), publicara uma epístola sensacional no
Mercure de France descrevendo o Taiti como uma «utopia» sexual. Demonstrava que Jean
Jacques Rousseau tinha razão em relação à existência do bom selvagem. No entanto, os
franceses tinham passado apenas nove dias na ilha.
Cook era mais céptico e fizera todos os membros da sua tripulação, inclusive os oficiais,
serem examinados pelo cirurgião de bordo, Jonathan Monkhouse, para detecção de doenças
venéreas, quatro semanas antes da chegada. Emitiu um conjunto de instruções, que
estabeleciam que a primeira regra de conduta em terra seria um comportamento civilizado:
«Devemos esforçar-nos por todos os meios justos por cultivar a amizade com os nativos e
tratá-los com toda a humanidade imaginável.» Não era de modo algum coincidência que
Cook incluísse nestas instruções o nome do próprio navio.
Joseph Banks tinha os próprios pontos de vista sobre o Paraíso. No seu Diário do Endeavour
apresentou um relato caprichoso da sua primeira noite em terra. Deliciou-se com um
repasto de peixe recheado de fruta-pão, ao lado de uma rainha taitiana que, nas suas
palavras, lhe «deu a honra, sem necessidade de convite, de se alapar no tapete» ao seu lado.
Contudo, a rainha era, «em consciência, feia quanto bastava». Então Banks reparou numa
rapariga muito bonita «com um fogo nos olhos» e uma flor branca de hibisco no cabelo que
se mantinha entre «a multidão comum», junto da porta. Encorajou-a a entrar e a sentar-se
do seu outro lado, ignorando propositadamente a rainha o resto da noite e «cumulando»
aquela beleza polinésia com colares de contas e todos os salamaleques de que se lembrou.
«Como isto poderia ter acabado é difícil dizer», observaria Banks mais tarde. Na verdade, a
festa amorosa terminou abruptamente quando se descobriu que desaparecera uma caixa de
rapé do colete do seu amigo Solander e que um outro oficial perdera «um par de binóculos
de ópera». Nunca se esclareceu por que motivo este último resolvera levar os ditos
binóculos a terra.
Veio a demonstrar-se que este tipo de ladroagem era moeda corrente no Taiti e isso
acarretou muitos e dolorosos mal-entendidos entre as duas partes. O primeiro teve lugar
no dia seguinte, quando, às claras, um taitiano fugiu com o mosquete de um fuzileiro e foi
imediatamente abatido por um guarda demasiado zeloso. Banks percebeu que devia estar ali
em jogo uma noção completamente diferente de propriedade e escreveu, sem
contemplações: «Retirámo-nos para o navio, tristes com a expedição do dia e sem dúvida
com alguma culpa pela morte de um homem que as mais severas leis da equidade não teriam
condenado a um castigo tão terrível. Não havia canoas à volta do navio esta manhã, na
verdade não devemos esperar nenhumas, visto ser provável que as notícias do nosso
comportamento de ontem já sejam conhecidas por todo o lado, uma circunstância que sem
dúvida não aumentará a confiança dos nossos amigos índios.» De qualquer modo, para alívio
e evidente surpresa de Banks, em vinte e quatro horas as boas relações tinham sido
restauradas.
A expedição do Endeavour permaneceu três meses no Taiti. O seu objectivo principal era
observar o trânsito de Vénus, isto é, a passagem de Vénus em frente do Sol (Cook afirma
que esta foi a razão ter sido dado o nome de Forte Vénus ao acampamento britânico,
embora os oficiais mais jovens tivessem outro entendimento sobre o nome). O trânsito
estava previsto para a manhã de 3 de Junho de 1769 e não haveria outro nos cem anos
seguintes (não antes de 1874). Era uma oportunidade única para estabelecer a paralaxe solar,
e assim a distância entre o Sol e a Terra. O cálculo dependia de se observar o momento
exacto no qual a silhueta de Vénus primeiro entrava e depois saía do disco solar.
Banks não fazia parte da equipa de astronomia, mas, quando o quadrante da expedição foi
roubado numa noite próxima do trânsito, reagiu com energia e coragem características.
Sabia que sem aquele objecto de bronze volumoso e calibrado, utilizado para medir ângulos
astronómicos com precisão, a observação perderia todo o valor. Sem esperar por Cook ou
pelos homens armados, acordou o astrónomo oficial da expedição, William Green, e lançouse a pé de imediato na perseguição do ladrão. Com um calor alucinante, Banks seguiu a pista
bem para o interior das colinas, acompanhado apenas por um Green relutante, um homem
desarmado e um intérprete taitiano. Através da selva penetraram 7 milhas para o interior,
mais do que qualquer europeu até então: «O tempo estava terrivelmente quente, antes de
sairmos das tendas o termómetro marcava 33 graus Celsius e isso tornou a nossa jornada
muito cansativa. Por vezes caminhávamos, por vezes corríamos, quando imaginávamos (o
que às vezes sucedia) que a caça estava mesmo ao nosso alcance, até que chegámos ao topo
de uma colina, a cerca de 4 milhas das tendas. Neste local, Tubourai [o intérprete] indicounos um ponto a umas 3 milhas e fez-nos entender que não deveríamos esperar reaver o
instrumento até lá chegarmos. Foi nessa altura que ponderámos a nossa situação. Não
tínhamos quaisquer armas connosco além de duas pistolas de bolso que eu trazia sempre
comigo, estávamos a pelo menos 7 milhas do forte, onde os índios podiam não ser tão
submissos como lá, e queríamos tirar-lhes um troféu pelo qual tinham arriscado a vida.»
Banks decidiu enviar o homem de regresso com uma mensagem lapidar para Cook, dizendolhe que quaisquer reforços seriam muito bem-vindos. Entretanto ele e Green continuariam
sozinhos, «reiterando a Cook ao mesmo tempo que era impossível regressar ainda com
luz».
Antes do crepúsculo, Banks alcançou o ladrão numa aldeia desconhecida e que poderia ser
hostil. Rapidamente foram rodeados por uma multidão que os empurrou «com rudeza».
Seguindo um costume taitiano que já tivera tempo de assimilar, Banks desenhou um anel nas
ervas e sentou-se tranquilamente no centro do mesmo. Aqui, em vez de ameaçar ou de se
pôr com bazófias, começou a explicar e a negociar. Durante algum tempo nada aconteceu.
Depois, peça por peça, começando pela sua pesada mala de madeira, o quadrante foi
solenemente devolvido. «O Sr. Green começou a examinar o instrumento para ver se
alguma parte ou partes estavam em falta […] A base desaparecera mas fomos informados de
que fora deixada para trás pelo ladrão e de que a recuperaríamos quando regressássemos
[…] Nada mais estava em falta além do que poderia ser facilmente reparado, e assim, o
melhor que pudemos, arrumámos tudo e procedemos de volta a casa.»
Na altura em que chegavam mais homens armados, a suar e a praguejar, cerca de 2 milhas
mais abaixo, Banks havia completado a transacção e contava com vários novos amigos. Toda
a gente regressou pacificamente a Forte Vénus, na costa. Por este feito, todo ele realizado
na maior das serenidades e de bom humor, Banks mereceu a gratidão profunda de Cook,
que salientou que «o Sr. Banks está sempre alerta em todas as coisas que aos nativos
possam dizer respeito». Banks concluiu amenamente no seu diário: «Todos ficaram, como se
pode imaginar, mais que satisfeitos com o resultado da nossa excursão.»
Na aparência, Banks e Cook faziam um par estranho. Berço, educação, classe e maneiras,
tudo os afastava. Contudo, formavam uma equipa curiosamente eficaz. A frieza e o
tratamento formal que Cook dispensava aos Taitianos eram compensados pela extroversão
e pelos entusiasmo naturais de Banks, que fazia amigos com facilidade. Com a ajuda destes,
reuniria um grande número de plantas e espécimes e faria um estudo antropológico dos
costumes. As entradas do seu diário abrangeriam tudo, das roupas (ou ausência delas) à
gastronomia, passando pelas danças, pelas tatuagens, pelas práticas sexuais, pelos métodos
de pesca, pelas esculturas em madeira ou pelas crenças religiosas. As suas histórias de um
cão que foi assado ou de uma mulher a quem tatuaram as nádegas são sinceras e
inesquecíveis. Participou em acontecimentos cerimoniais, dormiu nas cabanas dos indígenas,
comeu da comida deles, registou os seus costumes e aprendeu a sua língua. Era o pioneiro
de uma nova ciência. Escreveria no seu diário: «Cheguei à conclusão de que este povo era
tão incapaz de enganar que me comportava no meio deles quase tão livremente quanto o
faria no meu próprio país, dormindo continuamente nas suas casas na floresta, sem um único
companheiro ocidental.»
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Educado nos clássicos tradicionais em Harrow, Eton e no Christ Church College, em
Oxford, o jovem Joseph Banks descobrira a ciência e o mundo natural com a idade de 14
anos. Para o final da sua vida apresentou sobre isso uma história de «conversão» ao seu
amigo, o cirurgião Sir Everard Home. Mais tarde essa história passou a lenda no obituário,
ou Éloge, que o naturalista francês George Cuvier proferiu no Institut de France. Um dia em
que se demorou num mergulho de Verão no Tamisa em Eton, o adolescente Banks
encontrou-se só na margem do rio. Todos os colegas tinham partido. Na caminhada de
regresso através dos campos verdes, solitário e preocupado, observou os tufos de flores
silvestres ao longo das sebes, vividamente iluminados pela luz dourada do final da tarde. A
beleza e a estranheza das flores surgiu-lhe como uma revelação. «‘Após alguma reflexão’,
disse a si próprio, ‘seria sem dúvida mais natural que me fossem ensinadas todas as
produções da Natureza em detrimento do grego e do latim; mas assim ordenou o meu pai e
é meu dever obedecer-lhe [...]’ Imediatamente, começou a ensinar Botânica a si próprio.»
Apesar da forma artificial desta lembrança (está expressa nas palavras de Home e afastada
cinquenta anos do acontecimento em si), parece que para o jovem Banks a botânica envolvia
uma espécie de rebelião romântica contra o pai, bem como contra o currículo clássico
tradicional da escola. O mais importante é que a botânica o pôs em contacto com uma raça
de pessoas que, em circunstâncias normais, teriam sido praticamente invisíveis para um
rapaz privilegiado de Eton, como era o seu caso. Estas pessoas eram as mulheres sabedoras
dos caminhos dos bosques, os herbalistas que recolhiam plantas medicinais para fornecer as
lojas de droguistas e boticários de Windsor e Slough. Eram uma tribo estranha mas
conhecedora, que cedo Banks aprendeu a tratar com respeito. Mais que isso, pagava-lhes 6
centavos por cada «peça de informação» que lhe fizessem chegar.
Banks também contou a Everard Home que fora a mãe — e não o pai — quem lhe dera a
sua cópia, então já muito usada, do Herbário de Gerard, guardada com carinho «no seu
toucador», com as ilustrações maravilhosas que tanto o fascinavam. É então que Banks é
representado num retrato de família (possivelmente de Zoffany): um adolescente atraente
de cabelo e pernas compridas, alerta e um pouco insolente, em pose confiante, numa cadeira
forrada de couro, com um portefólio de gravuras botânicas espalhadas à frente. Mesmo por
trás do seu cotovelo esquerdo, de forma extraordinariamente profética, está um globo
terrestre no seu aro de mogno, com uma linha directa de luz solar curvando-se para o
equador.
Foi então que Banks concebeu o seu destino como naturalista e começou a coleccionar
avidamente plantas raras, flores silvestres, ervas, conchas, pedras, animais, insectos, peixes e
fósseis. A história da sua conversão revela outros elementos da sua vida e carácter.
Autoconfiança, riqueza, uma sensibilidade surpreendente, uma franqueza pouco habitual e a
atracção pelas mulheres. Na universidade tornou-se discípulo do grande naturalista sueco
Carl Lineu, o mais importante botânico iluminista da Europa. Lineu redefinira a taxionomia
das plantas que identificara de acordo com os órgãos reprodutores, e recatalogara-as em
latim de acordo com género, espécie e família, coleccionando uma variedade de espécimes
sem rival nos seus jardins de Uppsala.
Quando descobriu que não havia leitor de Botânica de Lineu em Oxford, Banks reagiu de
forma característica. Dirigiu-se a Cambridge, suplicou uma entrevista com o professor de
Botânica, John Martyn, e simplesmente pediu que lhe fosse recomendado o melhor jovem
botânico que ali tivessem. Regressou triunfalmente com um jovem botânico judeu muito
dotado, Israel Lyons, que concordara ensinar a disciplina em Oxford a Banks e a um grupo
de estudantes com aspirações similares. Mais tarde recomendou-o para uma expedição do
Almirantado e permaneceu seu amigo e patrono o resto da vida. Lyons foi o primeiro
protégé de Banks. Já então assumia a atitude de comando, bem como o encanto, de um
homem de posses. Este traço assumiu rédea solta quando o pai morreu, em 1761. Aos 18
anos tornou-se o único herdeiro de grandes propriedades no Lincolnshire e no Yorkshire
(incluíam mais de 200 quintas), que lhe renderiam 6 mil libras por ano (chegaram mais tarde
às 30 mil), um rendimento enorme para a época.
O dinheiro da família converteu Banks num autêntico cavalheiro ocioso, um
desenvolvimento que poderia ter sido fatal e, juntamente com a sua querida mãe e a sua
única irmã, mudou-se para uma grande residência em Chelsea, perto do Jardim Medicinal. A
atitude convencional da época para um jovem de posses seria iniciar, como a maior parte
dos seus amigos, um Grand Tour da Europa. Em vez disso, aos 22 anos, comprou uma
passagem no HMS Niger e embarcou numa jornada botânica extenuante de sete meses, ao
longo das costas lúgubres da Terra Nova e Labrador. O professor de Botânica de
Edimburgo escreveu-lhe, não sem um certo espanto, que corriam rumores de que Banks ia
partir «para o país dos índios esquimós para gratificar o seu gosto pelo Conhecimento
Natural».
Banks revelou a sua energia e entrega nesta expedição, em que mereceu a aprovação de
todos os oficiais navais, incluindo o seu amigo capitão Constantine John Phipps e de um
certo tenente chamado James Cook, que tinha a seu cargo a cartografia. Escreveu à irmã,
Sophia, cartas espirituosas, vagamente inconvenientes, e manteve também o primeiro dos
seus grandes diários, com o seu estilo corrido, ortografia terrível e quase total ausência de
pontuação. No regresso, em Novembro de 1766, com um vasto número de espécimes
botânicos (e alguma borracha de Portugal), Banks foi eleito fellow da Royal Society, com
apenas 23 anos. Começou aquilo que viria a ser o seu famoso herbário, uma biblioteca
científica e colecção de gravuras e ilustrações. O seu círculo de amigos ligados à ciência, em
acelerada expansão, incluía o dissoluto Lorde Sandwich, futuro chefe do Almirantado, e o
reservado, altivo e dedicado Daniel Solander, um jovem botânico sueco que fizera a sua
formação com Lineu em Uppsala e dirigia a secção de História Natural do Museu Britânico.
Dois anos mais tarde, Banks ouviu falar da expedição de circum-navegação do HMS Bark
Endeavour. Na verdade, originalmente tratava-se de um navio costeiro de carga de Whitby,
especialmente convertido, de casco largo, pouco calado e imensamente resistente, que podia
ser encalhado para reparações e com capacidade para armazenar grandes quantidades de
mercadorias e gado abaixo do convés (e acima). No entanto, media pouco mais de 100 pés
da proa à popa e os aposentos eram muito exíguos. Deveria ser comandado pelo tenente
James Cook, de 40 anos, magro e reservado, um marinheiro rijo e experiente do pequeno
porto de Staithes, no Yorkshire, que fizera a sua reputação quando cartografara a costa da
Terra Nova.
A expedição foi organizada pelo Almirantado, mas também parcialmente financiada pela
Royal Society, que concedeu 4 mil libras para as observações astronómicas. Tinha quatro
grandes objectivos: observar o trânsito de Vénus, cartografar e explorar as ilhas polinésias a
ocidente do cabo Horn, explorar as massas terrestres que se sabia existirem entre os
paralelos 30 e 40 — a Nova Zelândia (possivelmente a ponta de um continente) e a Terra
de Van Diemen (Tasmânia), possivelmente parte da Austrália, e por último recolher
espécimes botânicos e zoológicos do hemisfério sul. Também tinha o objectivo médico de
reduzir os fatais surtos de escorbuto, recorrendo a chucrute e citrinos.
A Royal Society nomeara já William Green — assistente do astrónomo real, Nevil
Maskelyne — astrónomo oficial da expedição. Banks ofereceu-se de imediato para botânico
oficial. Ele próprio financiaria a sua equipa de história natural, de oito homens, incluindo dois
artistas, um secretário para a ciência, Herman Spöring, dois criados negros da propriedade
do Yorkshire, o seu amigo Dr. Solander e — com era natural — um par de galgos. Para isso
e para uma enorme quantidade de equipamento, Banks disponibilizou cerca de 10 mil libras,
quase dois anos do seu rendimento. Para Banks seria uma viagem em busca de puro
conhecimento, e nesse sentido adquiriu equipamento que causou uma agitação considerável.
Um colega contou a Lineu, em Uppsala, admirado e talvez com uma ponta de inveja:
«Ninguém alguma vez foi para o mar mais bem equipado, nem de forma mais elegante, com
o propósito do estudo da História Natural. Têm uma excelente biblioteca de História
Natural; têm todo o tipo de máquinas para apanhar e preservar insectos; todo o tipo de
redes, arrastões, dragas e anzóis para a pesca nos corais; têm até um curioso dispositivo
telescópico, com o qual se pode ver o fundo da água até grande profundidade.» Concluía
tranquilizando Lineu: «Tudo isto se deve a si e à influência dos seus escritos.»
Contudo, é claro, havia aqui um elemento de competição imperial. Cook levava instruções
seladas do Almirantado para procurar, depois de partir do Taiti, um possível grande
continente localizado entre os 30 e os 40 graus de latitude sul. Isso era muito mais para sul
que as partes da costa oriental da Austrália que já eram conhecidas por intermédio dos
navegadores holandeses. Acreditava-se que a Nova Zelândia podia ser a ponta norte desse
continente e que o mesmo pudesse ocultar imensos recursos naturais. Se tal continente
existisse, tinha de ser cartografado e a sua posse reclamada (com vista a uma futura
colonização) antes que os Franceses o fizessem; parece que o Almirantado não estava ao
corrente da existência da Antárctida.
Na verdade, as instruções imperiais não eram assim tão secretas. Quer Banks quer Solander
sabiam delas antes da partida e até Lineu estava ao corrente. Além disso, nem Banks nem
Cook acreditavam na existência do misterioso continente do Sul. Banks escreveu uma
entrada longa e céptica no seu diário enquanto atravessavam o Pacífico, em Março de 1769,
em que conclui: «Há contudo algum prazer em provar que está errado aquilo que não existe
a não ser na opinião de escritores teóricos, do tipo de muitos dos que escreveram sobre
estes mares sem terem eles mesmo estado aqui. Supuseram, de modo geral, que todos os
espaços de mar que acreditavam nunca ter sido navegados seriam terra, embora tivessem
pouco ou nada para sustentar essa opinião além de vagos relatórios…» Seja como for, Banks
estava bem ciente do pouco que se sabia acerca das ilhas do Pacífico em geral e dos perigos
da circum-navegação em particular, especialmente dos mares entre o Taiti e a Indonésia, que
quase haviam destruído toda a tripulação de Bougainville no ano anterior.
Entre os muitos amigos que Banks deixava para trás figurava o botânico, colega de Solander
e horticultor, James Lee, que tinha um interesse profissional profundo na viagem ao Pacífico.
Lee era proprietário dos notáveis vinhedos experimentais na aldeia de Hammersmith on the
Thames. Era igualmente o autor de um bestseller sobre plantas, Uma Introdução à Botânica
Extraída dos Trabalhos do Dr. Linnaeus (1760), que tivera várias edições, e aconselhou Banks
na recolha de plantas. Lee também formara jovens naturalistas nos vinhedos de
Hammersmith. Entre os seus assistentes encontrava-se um Quaker escocês de 18 anos,
Sydney Parkinson, um jovem calmo e observador que Banks decidiu empregar como seu
segundo artista botânico a bordo do Endeavour. Foi uma boa escolha, embora com
consequências trágicas.
A jovem Harriet Blosset, de quem Lee era o tutor legal, era outra das pessoas sob a sua
protecção. Lee estava a ensinar-lhe o estudo das plantas e ela mesma ter-se-ia avidamente
alistado na expedição. No entanto, como era evidente, as mulheres não eram oficialmente
autorizadas nos navios de Sua Majestade, muito embora o botânico francês Philibert
Commerson tivesse dissimulado a amante no navio de Bougainville, disfarçada de moço de
cabine. Corria nos vinhedos que Harriet estava «desesperadamente apaixonada pelo Sr.
Banks» e muito se mexericava sobre ambos imediatamente antes da partida da expedição.
Um colega botânico, Robert Thornton, catalogou Harriet de maneira extravagante,
afirmando tratar-se de uma jovem «possuidora de extraordinária beleza e de todos os
talentos, com uma fortuna avaliada em 10 mil libras. O Sr. Banks tinha-a visitado com
frequência, quando vinha ver as plantas raras de Lee, e considerava-a a mais bela das flores».
Na realidade, Harriet era uma de três irmãs que viviam com a mãe viúva em Holborn. Banks
parece ter gostado genuinamente dela e os acontecimentos subsequentes sugerem que
existiria algum tipo de entendimento entre os dois. O tutor de Harriet, James Lee,
considerava o caso um noivado oficioso, que seria formalizado caso Banks regressasse vivo
do Pacífico. Corria também uma anedota acerca de Harriet estar a bordar um conjunto de
coletes para Banks enquanto este estava fora, com padrões de flores silvestres — talvez um
para cada estação da sua ausência.
Contudo, Banks, nesta fase da sua carreira, mostrava-se sem dúvida cauteloso em relação ao
casamento, tendo observado com algum humor a um amigo que, conquanto adorasse
experiências, o matrimónio era «uma experiência [...] com consequências incertas» que
muito raramente trazia felicidade duradoura. Por certo, a véspera desta grande viagem não
era o momento adequado para a tentar. Numa rara entrada introspectiva, Banks reflectiria
no seu diário que provavelmente não voltaria a ver a Europa e que só duas pessoas no
mundo verdadeiramente sentiriam a sua falta. «Hoje jantámos pela primeira vez em África e
deixámos para trás a Europa e só os Céus saberão por quanto tempo; talvez para sempre.
Esse pensamento merece um suspiro como tributo à memória de amigos que ficaram para
trás e eles o têm; mas dois há que terão de ser poupados, pois o suspiro causaria mais dor a
quem suspira que àqueles por quem o faz. Basta que sejam recordados, por certo não
desejariam que tantos pensamentos fossem tidos por alguém que por tanto tempo ficará
separado, e deixado à mercê dos ventos e das ondas.»
Se estas duas pessoas eram a sua mãe e a sua irmã Sophia, então ele não deseja suspirar em
vão por Harriet Blosset. Uma certa prosápia estava também em ordem. Quando lhe
perguntaram porque não optara pela segurança do Grand Tour do século XVIII, cujo
objectivo, dizia o Dr. Johnson, era visitar as civilizações clássicas ao longo das costas do
Mediterrâneo, respondeu abruptamente: «Qualquer cabeça dura faz isso; o meu Grand Tour
será uma viagem à volta do globo inteiro.»
Banks passou a sua última noite em terra na ópera. Na ocasião jantou com Harriet Blosset
em casa da mãe desta, juntamente com um geólogo suíço, Horace de Saussure, que supôs a
partir do comportamento deles que estariam «prometidos». Saussure descreveu Harriet
como uma jovem muito bonita e atenciosa, embora também como uma «coquete
circunspecta», e Banks como estando inteiramente reconciliado com a ideia da sua
separação iminente e bebendo champanhe em demasia.
Quando o naturalista Gilbert White, retirado na sua aldeia no Hampshire, ouviu falar da
partida de Banks para o mar alto, escreveu pensativamente ao amigo mútuo de ambos
Thomas Pennant: «Quando pondero a juventude e a riqueza deste cavalheiro jovem e
empreendedor fico cheio de admiração ao verificar o modo conspícuo como despreza os
perigos e o amor que dedica aos seus estudos favoritos. Como isso sobressai no seu
carácter [...] Se sobreviver, com quanto contentamento folhearemos os seus Diários, a sua
Fauna, a sua Flora! Se cair pelo caminho, reverenciarei a sua firmeza e o seu desdém pelos
prazeres e indulgências, mas lamentá-lo-ei para sempre.»
4
Graças ao brilhantismo da navegação de Cook e à sua capacidade para lidar com a
tripulação, o Endeavour chegou ao Taiti com mais de seis semanas para se preparar para o
objectivo principal da viagem, as observações do trânsito. Por esta altura já tinham sido
dizimadas expedições anteriores, mas Cook perdera apenas quatro homens e nenhum deles
vítima de doença. A dieta da tripulação incluía couve em chucrute, «fresca todas as manhãs
como no mercado de Covent Garden», e Banks abatera pássaros marinhos sempre que
possível para incluir carne na alimentação, incluindo vários albatrozes com uma envergadura
de nove pés.
A primeira morte resultou de um acidente com uma corrente de âncora na ilha da Madeira.
As duas seguintes aconteceram em terra e envolveram Banks. Uma expedição por ele
liderada foi apanhada por uma tempestade de neve na Terra do Fogo. Tratou-se de um
episódio sinistro e confuso, que revelou um pouco a personalidade de Banks em situações
de crise. O grupo de doze homens (incluindo Green, Solander e vários marinheiros)
deparou-se com problemas quando um dos jovens artistas, Alexander Buchan, teve um
ataque epiléptico. Nessa altura uma nevasca súbita cortou-lhes o caminho de regresso ao
navio, a várias horas para lá das montanhas, e o grupo separou-se num bosque de bétulas
quando a noite caía.
Desanimados pelo frio cortante, os dois criados negros de Banks beberam uma garrafa de
rum que tinham roubado e deitaram-se na neve, recusando-se a partir. Enquanto isso,
Solander, corpulento e em baixo de forma, pura e simplesmente desmaiou. O grupo de
homens ameaçava desintegrar-se e a expedição abeirava-se do desastre. A escuridão
aproximava-se, a temperatura descia e Banks tentava manter o grupo unido. Primeiro
reagrupou os homens que tinham ficado espalhados para trás, na montanha com Green;
depois fez uma fogueira e com ramos de árvore improvisou uma tenda onde Buchan foi
reanimado. A seguir voltou, na noite gelada, com tantos homens quantos os que conseguiu
convencer, e arrastou o semi-inconsciente Solander através do bosque de bétulas até este
ficar em segurança. A acção cimentou a amizade entre ambos. Banks também enviou
homens para salvarem os criados negros, mas estes estavam «imoderadamente
embriagados» e não puderam, ou não quiseram, ser trazidos para o acampamento.
Já passava da meia-noite e toda a gente estava paralisada com o frio mas Banks voltou de
novo para trás, com o intuito de os salvar. «Richmond aguentava-se nas pernas mas não
conseguia andar, o outro jazia no chão completamente insensível.» Tentou acender uma
fogueira mas a neve que continuava a cair não o permitiu. Era «absolutamente impossível»
trazer os dois homens. Por fim deitou-os numa cama de ramos, cobriu-os com ramagens e
deixou-os, na esperança de que sobrevivessem à noite, protegidos pelo álcool. Quando
regressou, de madrugada, encontrou-os mortos.
Por fim o resto do grupo regressou ao Endeavour e Cook reparou que todos se recolheram
aos seus beliches à excepção de Banks. Depois de fazer o seu relatório e catalogar os
espécimes, insistiu em sair sozinho num dos pequenos botes e passou o resto do dia na baía,
uma figura solitária inclinada à popa da pequena embarcação, a pescar com uma rede de
cerco. Cook não o acusara pelas mortes dos companheiros, mas, talvez pela primeira vez,
Banks sentiu o peso da responsabilidade.
A terceira morte foi um suicídio no Pacífico. A ocasião revelou outra faceta de Banks.
Escreveu uma entrada longa e ponderada no seu diário acerca do incidente, em que um
marinheiro jovem e capaz, «notavelmente calmo e habilidoso», aparentemente saltara borda
fora depois de ter sido acusado de roubar uma bolsa de tabaco da cabina do capitão. Banks
ficou impressionado com o carácter melancólico do sucedido, observando que o mesmo
deveria «parecer incrível a qualquer corpo que não esteja familiarizado com o efeito
poderoso que a vergonha pode ter nas mentes jovens». Cook não investigou o incidente,
embora pareça claro a partir do que escreveu Banks que o capitão suspeitara de assédio
homossexual de um membro mais velho da tripulação.
Os primeiros dias no Taiti foram obviamente excitantes, mas, curiosamente, muito tensos.
Acontecera o caso lamentável dos tiros na primeira semana e o susto por causa do
quadrante na terceira. O jovem Alexander Buchan adoeceu de novo e morreu do que
pareceu uma repetição do ataque epiléptico na Terra do Fogo. Escreveria Banks no seu
diário: «O Dr. Solander, o Sr. Spöring, o Sr. Parkinson e alguns dos oficiais do navio
estiveram no funeral. Lamento a sua morte sinceramente, visto tratar-se de um jovem
bondoso e industrioso, mas a sua perda é para mim irreparável. O meu sonho de apresentar
aos meus amigos em Inglaterra as paisagens que aqui observarei esfumou-se no ar.» Os
comentários de Banks parecem curiosamente duros e sugerem o seu sentido instintivo de
propriedade. «Nenhuma descrição das figuras e do vestuário dos homens pode ser
satisfatória a não ser ilustrada com imagens: tivesse ele sido poupado mais um mês pela
Providência e que vantagens isso não teria trazido ao meu objectivo. Mas tenho de me
sujeitar.»
Esta ideia viria a ser repetida no seu diário. Contudo, o outro artista da expedição, o jovem
de 18 anos Sydney Parkinson, não tinha quaisquer dúvidas sobre a humanidade do seu
empregador. Fora testemunha de como Banks tratara de Buchan no descalabro da Terra do
Fogo e escreveu uma longa nota no seu próprio diário reflectindo sobre a reacção de Banks
ao fuzilamento desnecessário do taitiano por causa do mosquete roubado. «Quando o Sr.
Banks soube do que acontecera ficou extremamente desagradado, afirmando que ‘se
lutamos com estes índios não deveremos concordar com os Anjos’ e fez tudo o que pôde
para resolver o diferendo, atravessando o rio e, através da mediação de um ancião,
conseguiu que muitos dos nativos viessem até nós, trazendo árvores de banana, o que é um
sinal de paz entre eles; e batendo com as mãos nos peito gritavam ‘Tyau!’, o que significa
amizade. Sentaram-se à nossa beira; mandaram vir cocos; e destes bebemos leite com eles.»
Com a segurança de toda a expedição a seu cargo, Cook era naturalmente cauteloso.
Decidiu que deveria ser construído na praia um acampamento armado permanente, Forte
Vénus, para proteger a tripulação em terra e estabelecer autoridade. Banks diz que os
Taitianos aprovaram esta ideia e ajudaram na construção. Os desenhos de Parkinson, se bem
que o enquadramento do forte entre as palmeiras procure parecer idílico, mostram um
muro de terra em quadrado, encimado por uma paliçada de madeira, com canhões navais
giratórios no topo. O forte tinha 50 metros de comprimento por 30 de largura, a dominar
uma faixa de rio do lado que dava para terra. À frente e ao longo da costa ficava uma área
de trocas, onde acostavam barcos e canoas, mas todos os bens e armas eram mantidos no
interior, guardados, à excepção dos barris de água perto da nascente. Havia portões de
madeira que se fechavam pelo crepúsculo, com sentinelas armadas.
No interior do perímetro, Cook estabeleceu uma área de recepção oficial, com um poste
onde ondulava a Union Jack. Havia uma grande tenda rectangular para reuniões e banquetes,
rodeada por outras mais pequenas, para alojamento e trabalho, juntamente com uma
padaria, uma forja e um observatório. Banks trouxera a sua própria canadiana, que tinha
apenas 15 pés de diâmetro, mas, obviamente, era a tenda mais bem equipada e confortável.
Em breve se converteu num destino muito popular entre os taitianos que entravam no forte
e havia grande rivalidade no que tocava a ser convidado para ali jantar e dormir. Anotou
Banks no seu diário: «A nossa pequena fortificação está agora completa. Consiste em
trincheiras elevadas em todas as pontas, as paliçadas guardadas pelo rio, nas margens do qual
se encontram barris cheios de água. Em cada ângulo está montada uma carreta e dois
canhões apontados às duas direcções pelas quais podemos ser atacados pelos índios. As
nossas sentinelas também estão tão bem posicionadas como poderiam estar na mais normal
das fortificações.»
A segurança era considerada importante para o bom relacionamento, e o forte pode bem
ter sido concebido tanto para manter os nativos ao largo como os marinheiros no interior.
Cook estabeleceu uma disciplina naval rígida, que incluiu mandar chicotear um marinheiro
no convés por este ter ameaçado uma taitiana com um machado. Como é natural, havia
recolher obrigatório, mas não era rigorosamente observado, em particular pelos oficiais.
O roubo constante de bens, em especial dos que eram feitos de metal, prejudicava
constantemente o relacionamento entre as duas comunidades. Era o roubo também o que
mais claramente revelava o fosso cruel entre as duas civilizações. Para os europeus, era uma
violação da riqueza e da propriedade privada. Para os Taitianos era uma afirmação
engenhosa dos recursos comunitários, uma tentativa de equilibrar a sua evidente pobreza
com a esmagadora superioridade material dos europeus, o seu excedente de objectos
supérfluos. Não existia qualquer fonte de metal na ilha. As facas de caça dos Taitianos eram
de madeira, os seus anzóis de madrepérola, os tachos para cozinhar de barro. Os europeus
refulgiam de tanto metal.
Como o próprio Cook observou, no que se referia a bens metálicos, o Endeavour em si era
o enorme cofre de um tesouro, cheio de pregos, martelos e instrumentos de carpintaria,
relógios, telescópios e dos mais desconcertantes instrumentos científicos. Os Taitianos
achavam que era inteiramente justificável redistribuir esses bens. Banks, que tinha de manter
o seu equipamento científico permanentemente debaixo de olho, sobretudo as facas de
dissecação e os dois microscópios solares, escreveria no seu diário: «Não sei por que
motivo tenho omitido tanto tempo o quanto estas pessoas são dadas à ladroagem. Hoje, não
obstante, vou reparar essa negligência dizendo que quer os grandes quer os pequenos chefes
ou os homens comuns, são da firme opinião de que a partir do momento em que entram na
posse seja do que for imediatamente essa coisa passa a ser deles.»
Ruminar sobre estas vastas questões éticas não impedia Banks de pensar nos problemas
práticos concretos, por exemplo o da ubiquidade das moscas: «As moscas têm causado
tantos problemas desde que chegámos a terra que quase não conseguimos fazer nada por
causa delas: comem a tinta dos pintores mais depressa do que esta pode ser aplicada ao
papel e, se é necessário desenhar um peixe, perde-se mais tempo a mantê-las afastadas que
no desenho em si.» Os homens tentaram vários expedientes: mata-moscas, armadilhas de
melaço e até mosquiteiros por cima de Parkinson enquanto este desenhava.
Muito tempo se passava também a negociar favores sexuais. A moeda corrente era qualquer
tipo de objecto de metal: não havia necessidade de ouro, prata ou pechisbeque. Entre os
marinheiros o câmbio inicial era um prego do navio por uma acto sexual vulgar, mas em
breve se instalou a hiperinflação; os Taitianos compreendiam muito bem a economia de
mercado. Havia um fluxo contínuo de objectos de metal que pudessem ser contrabandeados
do navio — talheres, espigões, manivelas, utensílios de cozinha, peças sobresselentes, e
sobretudo pregos. Dizia-se que o carpinteiro chefe depressa passou a dominar um
monopólio ilegal de bens metálicos e os pregos saíam do navio às sacadas.
No final de Junho houve uma crise quando um dos membros da tripulação roubou uma saca
de pregos de sete arrobas e se recusou a revelar onde a escondera, mesmo depois de ter
sido chicoteado: «Um dos ladrões foi apanhado, mas dos cem quilos apenas se encontrarem
sete pregos com ele e suportou a punição exemplar sem denunciar qualquer dos cúmplices.
Esta perda é muito séria porque se estes pregos circularem entre os índios isso
desvalorizará imenso o valor do ferro, a nossa moeda de troca essencial.»O capitão Cook
não aprovava estas trocas equívocas e fez várias tentativas de regular o comércio do sexo —
«sem o auxílio», anotaria secamente mais tarde, de qualquer dos seus oficiais. Cook
permaneceu filosófico, observando, não sem humor, que o que acontecera ao navio do
capitão Wallis, o Dolphin, devia ser considerado admonitório: ao deixar as águas polinésias,
dois anos antes, haviam sido sub-repticiamente arrancados tantos pregos da sua estrutura
que quase se partira ao meio à primeira tempestade. Só muito mais tarde é que as
completas e desastrosas consequências médicas deste comércio sexual espontâneo se
revelariam.
Contudo, Cook estava já ciente dos terríveis riscos e fardos da propagação de doenças
venéreas e escreveu uma longa entrada no seu diário, a 6 de Junho de 1769, em que reflectia
sobre os mesmos. É certo que tomara todas as precauções no sentido de que a sua
tripulação estivesse limpa de infecções sexuais quando chegasse ao Taiti. Todos os homens
haviam sido examinados pelo Dr. Monkhouse, o cirurgião do Endeavour, e — de facto —
haviam estado em quarentena durante os oito meses da viagem. No entanto, as mulheres
taitianas eram «tão liberais com os seus favores» que em breve as doenças venéreas se
tinham espalhado «à maior parte da equipagem». Os próprios nativos lhe chamavam «a
doença britânica» e Cook pensava que provavelmente tinham razão, embora perguntasse a
si mesmo se afinal não seria já endémica, trazida ou pelos franceses ou pelos espanhóis.
«Seja como for, isso é fraco consolo para os que dela padecem em alto grau e pode com o
tempo espalhar-se a todas as ilhas dos mares do Sul, para vergonha eterna dos que primeiro
a trouxeram.»
Alguns membros da tripulação revelaram escrúpulos morais desde o início. O jovem Sydney
Parkinson escreveu desaprovadoramente no seu diário: «A maior parte dos nossos
companheiros procurou esposas temporárias entre as Nativas, com as quais ocasionalmente
coabitavam; uma indulgência que até muitos europeus reputadamente virtuosos se
permitem, em partes incivilizadas do mundo, com impunidade. Como se uma mudança de
localização alterasse a torpitude da fornicação, e como se aquilo que é um pecado na Europa
passasse a ser uma simples e inocente gratificação na América; o que faz supor que a
obrigação da castidade é localizada; restringida apenas a determinadas partes do globo.»
Aparentemente, Banks não tinha tais escrúpulos. Fazia questão de abandonar o
acampamento quase todas as noites e de, como escreve o próprio, «pernoitar sozinho nos
bosques». Dizia a si mesmo, talvez com a largueza que lhe advinha do berço e dos
privilégios, que as suas intenções eram tanto botânicas como amorosas e que nenhum
código moral fora seriamente violado. No fim de contas, era tudo pesquisa e Banks via-se a si
próprio como um homem de ciência. No entanto, mesmo hoje, é difícil vê-lo como um
simples predador. Claramente, as mulheres taitianas sentiam-se atraídas por ele — robusto,
generoso, bem-humorado —, e é digna de nota a rapidez com que fincou o pé (se é essa a
expressão adequada) na sociedade taitiana.
Chegou a um entendimento importante e duradouro com a rainha do Taiti, Oborea. Esse
entendimento incluía a rapariga com «olhos de fogo», Otheothea, que, convenientemente,
era uma das servas pessoais da rainha. Contudo, o entendimento ia além de um mero
acordo sexual. De forma quase única, Banks foi bem-vindo em muitos aspectos ocultos da
vida no Taiti, incluindo as refeições, o vestuário e os rituais religiosos. Também lhe trouxe o
seu contacto mais importante, com um dos «padres taitianos» ou homens sábios, Tupia, que
lhe ensinou a língua e muitos dos costumes da ilha.
De forma característica, Banks foi quase o único membro da tripulação que se deu ao
trabalho de aprender mais de uma mão-cheia de palavras. O seu diário contém um
vocabulário de base. As palavras estão agrupadas em quatro secções principais, que
possivelmente reflectem as suas áreas particulares de interesse: primeiro, plantas e animais
(«fruta-pão, golfinho, coco, papagaio, tubarão»); depois as partes íntimas do corpo humano
(«peito, unhas, ombros, nádegas, mamilos»); a seguir os fenómenos dos céus («Sol, luas,
estrelas, cometa, nuvem»); por fim, qualidades («bom, mau, amargo, doce, com fome»).
Também há alguns verbos, incluindo os que se referem a roubar, compreender, comer e
estar irritado ou cansado. Não obstante, não se pode dizer que a lista seja muito completa,
porque não há quaisquer palavras que signifiquem amor, riso, música ou beleza — e seria
difícil falar em taitiano sem as utilizar.
A destreza linguística de Banks deu-lhe um novo papel como chefe comercial ou «homem
do mercado» do Endeavour. Instalou-se numa canoa ancorada na costa, no exterior de Forte
Vénus, e todas as manhãs negociava mantimentos e outras mercadorias. Estava bem ciente
das oscilações nos preços e anotou a 11 de Maio: «Trouxeram tantos cocos esta manhã que
pelas seis e trinta já comprara 350. Isto obrigou a baixar o preço, não fosse dar-se o caso de
trazerem tal quantidade de uma só vez que se esgotasse na ilha a oferta subsequente. Não
obstante, antes de anoitecer comprei mais de mil ao câmbio de 6 por uma conta de âmbar
colorida, 10 por uma conta branca e 20 por um prego de 40 centavos.»
O comércio também o pôs em contacto com taitianos de todas as classes e ajudou-o a
estabelecer uma rede ampla de boas amizades, ao passo que Cook e outros oficiais se
mantinham mais distantes. O seu diário mostra-o constantemente a aumentar o seu círculo
social, referindo-se às pessoas pelos seus nomes, muitas vezes com afecto e confiança.
Quando essa confiança era cortada ou abalada, Banks ficava muitas vezes mortificado.
Culpava-se com frequência (e não aos taitianos) pelos mal-entendidos ou pelas falsas
acusações de roubo.
Aprendeu o nome local da ilha, que transpôs para inglês: «Temos agora o nome índio da
ilha, Otahite, e será assim que passarei a designá-la no futuro.» A sua grafia era baseada
meramente na pronúncia de «o Taiti». Descobriu também que os Taitianos haviam por seu
turno transposto os nomes ingleses dos seus visitantes, mas à sua própria maneira.
Os resultados foram bizarros e Banks suspeitava que eles seriam em parte alcunhas
humorísticas. O capitão Cook era «Toote»; o Dr. Solano «Torano»; o imediato, Sr.
Molineux, «Boba» (Banks achava que seria por causa do seu primeiro nome, Robert); e o
próprio Banks era «Tapáne», o que aparentemente queria dizer tambor. Ao passo que os
ingleses tinham dificuldade em reconhecer mais de uma mão-cheia de taitianos pelo nome,
Banks observou que estes eram muito mais rápidos e em pouco tempo tinham nomes «para
quase todos os homens a bordo».O novo papel de Banks alargou-se ao de diplomata civil e
secretário de eventos sociais. O facto de não ser um oficial integrado no comando naval de
Cook deu-lhe alguma flexibilidade nas relações entre o navio e terra. Ajudou a organizar
muitos dos jantares informais em Forte Vénus, bem como as visitas oficiais ao navio. Teve
possibilidade de participar em cerimónias taitianas que não eram inteiramente sancionadas
por Cook. Em resultado disso, as entradas no diário foram mudando progressivamente de
carácter. Ainda estavam cheias de pormenores zoológicos e botânicos exóticos, mas haviamse tornado cada vez mais antropológicas. As pessoas passaram a substituir as plantas. As
entradas diárias começavam a abranger um vasto espectro de fenómenos: tatuagens, tocar
flauta pelas narinas, luta em pelota, assados de cão e surf.
O jovem coleccionador discípulo de Lineu, com o seu interesse neutro pela catalogação,
pela dissecação e pela taxonomia, estava a ser transformado pela sua experiência no Taiti. O
botânico do iluminismo, o aristocrata que coleccionava e classificava, ia sendo arrastado para
a partilha com outra cultura étnica e os seus costumes. O seu Diário do Endeavour apresenta
mais referências ao Taiti que a qualquer outra parte do Pacífico. Por fim, expandir-se-ia até
se tornar um longo relatório, escorado em termos antropológicos e intitulado «Sobre as
Maneiras e Costumes das Ilhas dos Mares do Sul». Tornar-se-ia a monografia mais
pormenorizada que alguma vez escreveu. Banks estava a tornar-se um etnógrafo, um
investigador do homem, cada vez mais envolvido, de forma positiva, noutra comunidade. Os
Taitianos deixam de ser «os selvagens» e passam a ser os seus «amigos». Tentava
compreender o Paraíso, embora não acreditasse inteiramente nele.
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1 Joseph Banks no Paraíso 1 A 13 de Abril de 1769, o