UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA NÚCLEO DE ESTUDO E PESQUISA EM ALIMENTAÇÃO E CULTURA Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia UFBA DISCURSOS E PRÁTICAS SOBRE A FARINHA DE MANDIOCA NA FEIRA DAS SETE PORTAS, SALVADOR-BAHIA Ianua Coeli Santos Ribeiro de BRITO¹; Juliede de Andrade ALVES2; Lígia Amparo da Silva SANTOS3 1Graduanda do curso de Nutrição – UFBA 2Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Alimentos Nutrição e Saúde - UFBA 3Professora Adjunta no Departamento de Ciências da Nutrição – UFBA OBJETO O lugar da farinha de mandioca nos discursos e práticas de comensais e vendedores de uma feira livre da cidade de Salvador, Bahia. OBJETIVO Analisar o lugar da farinha de mandioca na comensalidade popular em uma feira livre da cidade de Salvador-Bahia, envolvendo as memórias alimentares, o saber-fazer e os usos da farinha no comer. METODOLOGIA Trata-se de uma abordagem qualitativa de cunho etnográfico, que transita no campo da socioantropologia da alimentação e das ciências da nutrição. O lócus do estudo foi a Feira das Sete Portas, situada na cidade de Salvador-BA. Foi utilizada como técnica de produção dos dados, a observação participante cujos dados foram registrados em diários de campo, bem como o uso de quatro entrevistas semiestruturadas, com homens e mulheres, com idade entre 27 e 60 anos, sendo eles feirantes, comensais e cozinheiras da feira, desenvolvidos no período de fevereiro a junho de 2013. Foram utilizados pseudônimos a fim de preservar as identidades dos entrevistados. RESULTADOS Os significados do “comer farinha” desloca o sujeito no curso da vida, imprime valores aprendidos na infância, confere identidade e sabedoria empírica gastronômica do uso da farinha de mandioca. Segundo Cascudo (2004), há séculos a farinha continua mantendo o prestígio no crédito popular. Essa permanência constituía a imagem da suficiência. Sem ela a refeição estará incompleta e falha. É comida de volume, comida que enche, sacia, faz bucha, satisfaz. Observou sujeitos que comiam na feira pela manhã apreciavam a farinha durante suas refeições. Nos discursos de quem come e trabalha, a farinha foi sendo desvelada como acompanhamento fundamental. “O feijão, o arroz e a farinha. A carne, tem como substituir uma carne pela outra, mas o principal é a farinha. Porque uma comida sem a farinha não é comida. A comida não é a comida sem a farinha...principalmente a farinha” (José) A prova da farinha de mandioca é uma prática muito observada durante as visitas à feira, bem como os discursos sobre a sua textura. Antes da compra, os vários tipos de farinha – molhada ou mais torrada, branca ou amarela, fina ou grossa – eram provados pelos fregueses e transeuntes. A escolha vinha exatamente do gosto adquirido naquele instante. Sobre a prática de “provar farinha”, Cascudo (2004) acrescenta: Comem-na pura, sessando-a na mão, mastigando a crueira que não pode ser peneirada. Para Bourdieu (1983), o distanciamento desse consumo também é chamado de “estilização de vida”, pois reside nas variações da distância que depende da urgência objetiva da situação no momento. Para Nascimento (2007), entre as mudanças mais significativas, (...) destacam-se a redução da quantidade de comida, a rejeição a ingredientes que engordam, como a farinha e gordura animal. A relação entre as comidas de caldo e a farinha é expressa por Santos (2008) quando diz que essas preparações com caldo são tradicionais na culinária brasileira com os quais se preparam os pirões ou é consumido com o acréscimo de farinha de mandioca na hora de servir. Nos discursos pôde-se notar a apreciação do pirão e do caldo da culinária brasileira. “todas não, eu gosto de algumas. Por exemplo, do mocotó eu não gosto, eu gosto mais do caldo e do pirão; e nem da rabada, só do pirão.” (José) Referindo aos gostos pelos produtos a partir da farinha de mandioca, em um primeiro momento remeteu às memórias afetivas, do pirão, alimento feito com farinha e preparado pela cuidadora. Para Cascudo (2004), a farinha de mandioca garantia o pirão, indispensável, diário, sinônimo do próprio alimento geral. “Minha mãe criava muita galinha, e sempre que matava alguma assim ela fazia pra ela...aí como ela gosta do pirãozinho de galinha caipira, ela fazia pra ela e dava um pouquinho a gente e eu passei a gostar de comer o pirão de galinha caipira, né...pra mim é uma das melhores comidas que tem.” (Miguel) O saber-fazer do pirão surgiu como algo que não é de todos. Um comensal explicou o seu modo de preparo de um pirão sem “embolar”. Disse que a técnica era jogar a farinha aos poucos sobre o caldo do cozido – preparação feita com carnes e verduras -, sempre mexendo a mistura. Sobre esse saber-fazer pirão, Cascudo (2004) cita os dois tipos clássicos de pirão: o escaldado e o cozido ou mexido. O primeiro é a porção de caldo de peixe ou carne derramada sobre a farinha seca (...) O segundo demanda preparação culinária mais apurada. A alquimia nos usos revelou também a farinha como identificadora de gorduras das “comidas pesadas” da feira. Poderia identificar uma comida gordurosa e pesada no ato de comer, ao misturar a comida com a farinha. Percebe-se uma tradição estabelecida do gosto pela farinha entre os comensais, assim como fatores contribuintes para a significação do comer presentes nas práticas e escolhas alimentares de um determinado indivíduo ou grupo. A farinha na feira alimenta o corpo, realimenta lembranças e desvenda significados do comer. REFERÊNCIAS: “A farinha ruim é aquela meio azeda...tem uma farinha bem torradinha, gostosinha, sabe? Que você come até ela pura, mas tem uma farinha meio azeda que estraga a comida (...) a torrada é bem gostosa, ela tem um sabor diferente da outra farinha (...) a farinha amarela é a pior que tem (...) ela bem fininha é melhor do que a grossa.” (Sônia) CANESQUI, A. M.; GARCIA, R. W. D. Antropologia e Nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2005. Para Canesqui e Garcia (2005), as práticas alimentares, somada ao acesso, às razões do gosto, ao tipo de comida que marca a identidade, juntamente com a sua relação com o corpo, especialmente pelas sensações provocadas, norteia as preferências e a seleção dos alimentos apropriados, sendo que as regras de evitação, se flexibilizavam entre as classes populares urbanizadas, aplicando-se muito restritamente. Sobre essas regras de evitação, pôde-se observar nos discursos a restrição da farinha durante as refeições por questões médicas, o que podemos chamar de uma urgência temporal. NASCIMENTO, A. B. Comida: prazeres, gozos e transgressões. 2ª ed. Salvador: EDUFBA, 2007. “A farinha também estou proibida, mas eu como. Não consigo largar a farinha. A farinha é um habito (...) é uma coisa que desde criança, sou viciada numa farinha,” (Míriam) CASCUDO, C. História da Alimentação no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Global, 2004. BOURDIEU, P. In: ORTIZ, R. Bourdieu – Sociologia. São Paulo: Ática. Coleção Grandes Cientistas Sociais, vol. 39. p.82-121, 1983. SANTOS, L. A. S. O corpo, o comer e a comida: um estudo sobre as práticas corporais alimentares cotidianas a partir da cidade de Salvador – Bahia. Salvador: EDUFBA, 2008. SILVA, P. S. Farinha, Feijão e Carne Seca: um tripé culinário no Brasil colonial. São Paulo: SENAC São Paulo, 2005.