UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
ESPECIALIZAÇÃO EM EDUCAÇÃO, SEXUALIDADE E RELAÇÕES DE GÊNERO
ELZIRA TISCHER DE LIMA
RELAÇÕES ENTRE FAMÍLIA, ESCOLA E DESEMPENHO ESCOLAR, SOB A
PERSPECTIVA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO
Porto Alegre
2011
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
ESPECIALIZAÇÃO EM EDUCAÇÃO, SEXUALIDADE E RELAÇÕES DE GÊNERO
RELAÇÕES ENTRE FAMÍLIA, ESCOLA E DESEMPENHO ESCOLAR, SOB A
PERSPECTIVA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO
ELZIRA TISCHER DE LIMA
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Dagmar E.
Estermann Meyer
Coorientadora: Prof.ª Dr.ª Carin Klein
Porto Alegre
2011
AGRADECIMENTOS
Ao GEERGE, Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero, pela
oportunidade de frequentar o curso que me proporcionou reflexões para minha
qualificação tanto pessoal como profissional.
À Dagmar Estermann Meyer, pela aceitação do projeto e da minha escolha de
pesquisa.
À Carin Klein, pelas orientações preciosas e principalmente pelo apoio
incondicional, encorajando-me sempre nos momentos difíceis das elaborações de
ideias.
Ao Márcio Gastaldo, sou grata pela formatação e revisão deste texto, assim
como pelas devidas alterações que se fizeram necessárias.
Ao Marco Aurélio que, aparentemente, entendeu meu trabalho, mas que
esteve presente nos problemas que foram surgindo e precisavam de seu apoio.
Às minhas filhas Michelle e Janaína, que suportaram minha ausência nos
momentos em que estive envolvida com meus estudos; que este trabalho sirva de
inspiração para retornarem aos seus estudos para continuarmos nossa missão de
educadoras.
À Maria de Nazareth Agra Hassen e ao João M. Carneiro, que me adotaram
emocionalmente de maneira carinhosa, atenta e preocupada.
Quero ainda agradecer aos/às colegas professores e professoras que
participaram das entrevistas e de suas contribuições para que este trabalho fosse
realizado.
Para todos e todas vocês, muito obrigada!
RESUMO
Partindo do pressuposto de que nas instituições escolares os alunos/as são
avaliados/as de formas semelhantes, verificam-se múltiplos fatores que influenciam
na sua aprovação ou reprovação. As análises estão embasadas pelos estudos
culturais e de gênero na perspectiva pós-estruturalista, e apontam um quadro bem
diferenciado na avaliação dos/as alunos/as, principalmente em relação ao
comportamento. O disciplinamento dos/das estudantes ainda se apresenta como
uma das formas de utilização de retenção. O objetivo da pesquisa é ampliar os
sentidos sobre o que se compreende por comportamento de alunos/as e como estes
vão sendo articulados, positiva ou negativamente, ao desempenho escolar.
Investigou-se como os/as docentes se referem ao envolvimento e à participação da
família e como esses atributos são relacionados ao desempenho escolar dos/as
estudantes. Com o propósito de ampliar tais discussões, buscou-se dar visibilidade
aos critérios que são atribuídos como relevantes em um modelo de avaliação
conteudista. O corpus da pesquisa foi realizado em uma escola de ensino médio da
rede estadual de educação na cidade de Porto Alegre, por entender que esse
espaço congrega uma multiplicidade de aspectos que envolvem a avaliação escolar.
Constatou-se que são utilizados diversos critérios na avaliação dos/as alunos/as,
sendo o comportamento um fator definidor de aprovação/reprovação. Pela ótica
dos/as professores/as, o envolvimento da família se faz necessário no
acompanhamento escolar.
Palavras-chave: Desempenho escolar. Gênero. Família.
A escola delimita espaços. Servindo-se de
símbolos e códigos, ela afirma o que cada um
pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui.
Informa o “lugar” dos pequenos e dos grandes,
dos meninos e das meninas. Através de seus
quadros, crucifixos, santos ou esculturas,
aponta aqueles/aquelas que deverão ser
modelos e permite também que os sujeitos se
reconheçam (ou não) nesses modelos. O
prédio escolar informa a todos/as sua razão de
existir. Suas marcas, seus símbolos e arranjos
arquitetônicos “fazem sentido”, instituem
múltiplos sentidos, constituem distintos sujeitos.
Guacira Lopes Louro (1997, p. 58)
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO...................................................................................
1
6
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O ESPAÇO ESCOLAR E A
CONTEXTUALIZAÇÃO DA INSTITUIÇÃO PESQUISADA....................
8
1.1
A instituição escolar na atualidade......................................................
12
2
CAMINHOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS...........................................
15
3
RELAÇÕES ENTRE COMPORTAMENTOS E DESEMPENHO
ESCOLAR................................................................................................
3.1
20
O conselho de classe como instrumento documental de
reprovação ou aprovação......................................................................
28
3.2
Relações entre família e desempenho escolar....................................
31
4
CONCLUSÃO: UMA REFLEXÃO PARA O ESPAÇO ESCOLAR.......... 37
REFERÊNCIAS........................................................................................
40
ANEXO A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido................
43
6
APRESENTAÇÃO
Neste trabalho de conclusão de curso de pós-graduação, pretendo analisar a
relação entre família, escola e desempenho escolar sob o ponto de vista das
relações de gênero no que tange à aprovação e à reprovação dos estudantes de
nível médio de uma escola de ensino público estadual, situada no bairro Menino
Deus, na cidade de Porto Alegre. Com o intuito de realizar este trabalho, utilizo a
teorização nos estudos culturais e de gênero, em aproximação com o pósestruturalismo.
Esta pesquisa torna-se relevante, tendo em vista que nosso sistema avaliativo
parte de um pressuposto de que os/as estudantes são avaliados a partir de critérios
semelhantes, porém no dia a dia observamos que diferentes compreensões fazem
parte da avaliação de meninos e meninas. Para que essa proposta fosse realizada,
foi elaborada entrevista com os/as professores/as e a participação do último
conselho de classe do ano de 2010 dos/as alunos/as ingressantes no ensino médio.
Essa interação possibilitou-me refletir sobre os modos de como os/as estudantes
são avaliados/as pelos professores/as dentro desse espaço educativo, cujo objetivo
principal é preparar para o vestibular, a fim dar seguimento aos estudos.
Na primeira parte do trabalho, apresento aspectos referentes à escola, sua
história enquanto espaço educativo – primeiramente inaugurado para atender o
curso
ginasial
feminino
–,
com
a
devida
contextualização,
situando-a
geograficamente dentro do bairro. Priorizei essa escola como lócus da pesquisa por
fazer parte dela, não só como profissional, mas também por ser ex-aluna dessa
instituição. Assim, acredito que o trabalho se torna proveitoso não só para mim, mas
para toda comunidade escolar e também para refletir acerca de questionamentos
que formulei ao longo do curso de especialização em Educação e Relações de
Gênero.
Busco discutir e construir reflexões, mostrando a relevância de alguns
entendimentos que fazem parte da avaliação dos/as alunos/as, embasada em
autoras como Guacira Lopes Louro (1997), que traça importantes discussões a fim
de problematizar as relações de gênero no campo da educação. Essa autora nos
possibilita ver o quanto a escola produz diferenciações e mais que isso: “Ela dividiu
também, internamente, os que lá estavam, através de múltiplos mecanismos de
7
classificação, ordenamento, hierarquização” (LOURO, 1997, p. 47). Como podemos
perceber, no âmbito dessa instituição meninos são avaliados de forma diferenciada
das meninas.
Partindo da contribuição de autores/as ligados/as aos estudos culturais e de
gênero, pude formular as seguintes questões para apresentar aos/às professores/as
participantes, servindo de base para esta investigação:

Como o comportamento de alunos/alunas influencia no desempenho
escolar?

Como a participação da família interfere no desempenho escolar?
Para a coleta de dados, a metodologia utilizada para a pesquisa foi a
observação participante do conselho de classe de final de ano e a utilização de uma
entrevista semiestruturada, realizada na referida escola de ensino médio, das turmas
de alunos/as ingressantes. Nesta pesquisa, procuro mostrar a relevância de alguns
aspectos que fazem parte da avaliação dos/as alunos/as, quais critérios e
argumentos
são
utilizados
pelos/as
professores/as
para
efetivar
a
aprovação/reprovação. Os campos teóricos das relações de gênero e dos estudos
culturais apontam reflexões acerca de um quadro bem diferenciado na avaliação de
nossos/as estudantes, principalmente em relação à diferenciação de gênero.
Na relação entre escola, família e desempenho escolar dos/as alunos/as,
procuro apreender, sob o ponto de vista dos professores/as, o que se entende por
desempenho escolar e em que aspectos a participação da família favorece ou
interfere na atuação de seus/suas filhos/as. Busco, ainda, compreender que critérios
são atribuídos, pelos/as docentes, como relevantes, além da avaliação conteudista.
8
1
ALGUMAS
REFLEXÕES
SOBRE
O
ESPAÇO
ESCOLAR
E
A
CONTEXTUALIZAÇÃO DA INSTITUIÇÃO PESQUISADA
A instituição escolar pesquisada pertence ao bairro Menino Deus, ocupando
um quarto de quarteirão, com um total de 2.092m2. Conta com um prédio de dois
andares e um amplo pátio demarcado com grades, para que funcionários/as e
docentes pudessem ter um controle maior dos/as estudantes no horário de entrada e
no intervalo. As salas de aula, assim como os setores administrativos, possuem
amplas janelas que fornecem uma vista das árvores cinquentenárias. O interior das
salas de aula encontra-se pouco conservado, sendo que alguns mobiliários datam
da inauguração da escola.
Devido à sua proximidade com o centro histórico da cidade e por ser de fácil
acesso aos demais bairros localizados na zona sul, a escola atende não só aos
moradores do seu entorno, mas também de bairros adjacentes, assim como de
outras cidades da região metropolitana.
Conforme consta no regimento escolar da instituição, suas atividades tiveram
início em 1957, com o Curso Ginasial Feminino. O currículo era extremamente
diferenciado da atualidade, pois a intenção naquela época era formar mulheres que
seriam esposas no futuro. Constava na grade curricular a disciplina de trabalhos
manuais, que proporcionava um aprendizado prático para uma boa dona de casa e
mãe. Nesse contexto, conforme nos aponta Léa Resende Archanjo (1998, p. 87), os
currículos eram “baseados no caráter biológico da diferença entre os dois sexos”.
Uma educação ministrada para homens era diferenciada das mulheres que, através
da Lei Orgânica do Ensino Secundário e adotada pelo ministro Capanema em 1942,
priorizava que a educação das mulheres deveria orientá-las para as atividades do lar
e para a maternidade.
A escola contava, naquele período, com duas inspetoras para um maior
controle das moças. O bom comportamento das alunas deveria ser preservado
através da vigilância, apesar de serem somente 38 mulheres estudantes. Nesse
sentido, Archanjo expõe nas primeiras páginas de seu livro que, embora tenhamos a
exigência de uma educação igualitária entre os sexos, na época os homens “tinham
como prioridade a vida profissional, já as mulheres abriam mão das possibilidades
de prosseguir os estudos e investir numa carreira em favor da vida familiar” (ibidem,
9
p. 7). Desse modo, muitas mulheres foram sendo desestimuladas e impossibilitadas
de entrar numa universidade, pois seu futuro já estava traçado socialmente – tanto
pela instituição escolar como pela instituição religiosa – para o casamento e para a
maternidade. Esse modelo educacional propiciava um ensino diferenciado baseado
no sexo dos/as alunos/as, em que as meninas eram direcionadas para o lar e os
meninos eram incentivados a seguirem seus estudos e tornarem-se „chefes‟ de
família.
Nessa linha, na década de 1970, apesar do crescente crescimento das
atividades profissionais femininas, Archanjo (1998, p. 97) expõe que o “trabalho fora
do lar não é encarado como meio de realização pessoal”. Socialmente, o futuro das
mulheres dependeria mais de um bom casamento do que de uma profissão, já que
“o homem deveria ser o provedor financeiro da família, enquanto a mulher deveria
manter a harmonia familiar organizando a vida doméstica e criando um ambiente de
paz e conforto para marido e filhos” (ibidem, p. 97).
A reflexão dessa autora faz-me ampliar a contextualização da escola
pesquisada, que a partir da década de 1960, sob a denominação de Colégio
Estadual, as turmas passaram a ser mistas, não mais com um currículo diferenciado
para moças e rapazes. Assim, a escola especializou-se na produção de sujeitos
competentes
e
trabalhadores/as,
baseada
na
educação
tecnicista,
que
proporcionava ao mercado de trabalho mão de obra especializada. O professorespecialista utilizava livros didáticos específicos com a objetividade de formar o
aluno-autônomo, que aprimorava seus conhecimentos através da repetição dos
exercícios. A única disciplina que ainda operava com a distinção dos sexos era a de
Educação Física, pois o único esporte em que as meninas poderiam usar a bola era
nos jogos de vôlei e nas aulas de dança rítmica. Porém havia uma maior integração
entre as escolas através dos campeonatos estudantis promovidos pela Secretaria de
Educação e Cultura, que salientava a relevância do esporte na vida do adulto que
está por vir. Louro (1997, p. 72) aponta que nessa disciplina ainda vigora a égide do
caráter biologicista:
Ainda que várias escolas e professores/as venham trabalhando em regime
de coeducação, a Educação Física parece ser uma área onde as
resistências ao trabalho integrado persistem, ou melhor, onde as
resistências provavelmente se renovam, a partir de outras argumentações
ou de novas teorizações.
10
A representação social dos anos 1960 apresentava-se de forma diferenciada
para os/as estudantes. Tomaz Tadeu da Silva (1999) indica que, historicamente, o
currículo não contemplava a igualdade, porque as mulheres entraram mais tarde na
instituição escolar:
Estava claro, para essa análise, que o nível de educação das mulheres [...]
era visivelmente mais baixo que o dos homens, refletindo seu acesso
desigual às instituições educacionais. Mesmo naqueles países em que o
acesso era aparentemente igualitário, havia desigualdades internas de
acesso aos recursos educacionais: os currículos eram desigualmente
divididos por gênero. Certas matérias e disciplinas eram consideradas
naturalmente masculinas, enquanto outras eram consideradas naturalmente
femininas. Da mesma forma, certas carreiras e profissões eram
consideradas monopólios masculinos, estando praticamente vedadas às
mulheres. (SILVA, 1999, p. 92).
Vale dizer em linhas gerais que, quanto à profissionalização, o critério era que
correspondesse a um determinado gênero. Silva (ibidem) afirma que, por serem
consideradas incapazes para certos cargos, dificultava-se o acesso das mulheres na
faculdade de Medicina, por exemplo, instruindo-as a serem enfermeiras, já que
médicos deveriam ser os homens. Dagmar Meyer (2003) também aponta que certas
atribuições, apesar de serem exercidas pelas mulheres, “eram quase sempre,
controladas e dirigidas por homens” (p. 13). Sua atuação nas escolas e nos hospitais
era definida “como secundárias ou de apoio”. Essas visões são exercidas pelas
diferenciações dos seus corpos, pelo sexo, reforçando as desigualdades de gênero.
Outro fator importante explicitado por Meyer (2004) é que as mulheres,
mesmo exercendo a mesma profissão de um homem, tendem a receber um salário
inferior, mesmo tendo um grau de escolaridade maior. Esse fator por muito tempo
desestimulou mulheres a embarcarem no espaço público, não por incapacidade ou
incompetência, mas por não ter oportunidade de atuar de forma igualitária aos
homens.
Louro (1994) apresenta algumas dimensões importantes que atravessam o
processo educativo na perspectiva das relações de gênero, expondo da seguinte
maneira:
O processo de educação de homens e mulheres supõe uma construção
social e corporal dos sujeitos. Implica na transmissão/aprendizagem de
princípios, valores, conhecimentos, habilidades; supõe também a
internalização de gestos, posturas, comportamentos, disposição
„apropriadas‟ a cada sexo. (ibidem, p. 41).
11
Para a autora (idem, 2001), a escola tem como intencionalidade moldar o
corpo de determinada forma, como se houvesse um modelo hegemônico e
determinante de sermos homens e mulheres, assim “a escola também deixou
marcas expressivas em seu corpo e ensinou a usá-lo de determinada forma”
(LOURO, 2001, p. 18).
Na escola, seu arranjo espacial e seus móveis delimitam o espaço na qual o/a
estudante deve se mover. Louro (1997, p. 58) manifesta que a escola “afirma o que
cada um pode (ou não pode) fazer”. Isso quer dizer que não é um local onde os
alunos circulam livremente; ao contrário, existe um rígido controle para o acesso a
determinados setores. Para Dayrell (1996), a escola é um espaço sociocultural que
opera com duas dimensões: a institucional – com suas normas e regras que buscam
unificar e delimitar a ação dos sujeitos que a compõem – e a cotidiana – que visa a
estabelecer as relações dos sujeitos que convivem neste espaço delimitado. Nesta
dimensão, os/as jovens criam alianças/conflitos e estratégias tanto individuais como
coletivas que estão longe de ser uma relação homogeneizante e unificada. Esse
autor considera que a arquitetura da escola favorece o controle dos/das alunos/as,
assim como do corpo docente e dos/as funcionários/as. Todos os espaços de dentro
da escola já foram definidos anteriormente, fato esse que desestimula o/a estudante
a participar de forma democrática da instituição, pois tudo já está delimitado e pronto
para ser usado. Marília Pinto de Carvalho (2001), em pesquisa realizada numa
escola, afirma que o controle também se estendeu “sobre suas professoras, até
mesmo sobre seus conteúdos ministrados” (p. 238), atribuídos pela Secretaria de
Educação daquele município pesquisado. Isso denota que existe uma hierarquia a
ser seguida pelos/as profissionais da educação.
Michel Foucault (2000) pontua que a escola foi construída nos mesmos
moldes que o hospital, o asilo e as prisões. Sua arquitetura foi projetada para que
seus ocupantes sejam observados e que se exerça uma vigilância constante:
[...] uma arquitetura que não é mais feita simplesmente para ser vista [...],
ou para vigiar o espaço exterior [...], mas para permitir um controle interior,
articulado e detalhado – para tornar visíveis os que nela se encontram; [...]
uma arquitetura que seria um operador para a transformação dos
indivíduos: agir sobre aquele que abriga, dar domínio sobre seu
comportamento, [...]. O velho esquema simples do encarceramento e do
fechamento, do muro espesso, da porta sólida que impedem de entrar ou de
sair [...]. (ibidem, p. 144).
12
Desse modo, o processo de escolarização busca moldar, no sentido do
disciplinamento, corpos de meninos e de meninas de formas diferenciadas,
demarcando atitudes específicas. Sendo assim, espera-se que, ainda atualmente, as
meninas sejam mais dóceis, comportadas, prestativas e caprichosas. Já dos
meninos esperam-se características opostas, na qual a violência tende a ser
permitida em muitas ocasiões, como, por exemplo, nas brincadeiras e nos esportes,
demarcando o disciplinamento dos corpos de meninos e meninas desde as classes
de educação infantil. Louro (2001) apresenta importantes ponderações sobre
educação e os modos de educar os corpos e, para isso, cita Philip R. D. Corrigan,
que expõe suas memórias de estudante, na qual a conduta masculina deveria seguir
uma “violência consentida”, assim, “todos os investimentos eram feitos no corpo e
sobre o corpo” (ibidem, p. 17). Foucault (1987), ao analisar a estrutura escolar,
conclui que ela se assemelha a hospitais e quarteis por sua forma facilitar uma
constante vigilância através de um olhar panóptico que tudo controla, inclusive os
modos de ser de seus integrantes:
Esse espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os
indivíduos estão inseridos num olhar fixo, onde os menores movimentos são
controlados, onde todos os acontecimentos são registrados, onde um
trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é
exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada
indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído entre os
vivos, os doentes [...] – isso tudo constitui um modelo compacto do
dispositivo disciplinador. (ibidem, p. 163)
Nesse sentido, a escola (ainda) opera com o pressuposto de que os/as
alunos/as têm de ser vigiados/as constantemente. Nem todos os espaços podem ser
utilizados livremente por todos/as os/as integrantes da escola, a não ser, é claro,
com autorização expressa do/a responsável pelo setor. Exemplo disso é que nem
todos/as os/as professores/as têm acesso a todas as dependências da instituição
escolar.
1.1 A instituição escolar na atualidade
Atualmente, a instituição atende pela denominação de Escola Estadual de
Ensino Médio. Pela sua singular característica de operar com matrícula por disciplina
13
(MPD), diferencia-se das demais instituições de ensino público da capital. Essa
modalidade surge, também, por existir certa carência nos demais bairros de escolas
de ensino médio, uma vez que a prefeitura tem por obrigação legal fornecer ensino
fundamental gratuito e cabe o estado dar continuidade da escolarização do ensino
médio. Devido a essa particularidade, a escola acaba tendo uma procura bastante
significativa.
A referida instituição escolar atendeu no ano de 2010 um total de 820 alunos,
distribuídos em três turnos: manhã, tarde e noite. Atualmente está sob a
administração de uma equipe diretiva eleita pela comunidade escolar, na qual fazem
parte: a diretora-geral, a vice-diretora substituta, que atende o turno da manhã, a
vice-diretora para o turno da tarde e a vice-diretora que atende o turno da noite,
além de duas supervisoras, duas orientadoras nos turnos da tarde e noite, uma
bibliotecária, 49 professoras, sete professores, três secretárias (uma para cada
turno), duas monitoras, quatro serventes e duas merendeiras. No total, o quadro
funcional possui 76 integrantes.
Atua desde 1989 com o sistema MPD. Esse diferencial originou-se através de
políticas públicas pela Secretaria da Educação, devido ao alto índice de
reprovações, havendo a necessidade de implantar um currículo que ampliasse as
alternativas para os/as alunos/as, facilitando a aprovação. Maria Alice Setubal (2000,
p. 10) atribui às repetências fatores como “atitudes de rebeldia ao sistema como um
todo, ou falta de perspectiva e emprego, até questões internas à escola, que não
estaria sabendo ouvir e respeitar esse aluno, buscando tornar o conhecimento
significativo para ele”. Além de garantir o aprendizado aos/às educandos/as, a
escola deve, também, garantir sua permanência.
Marília Pinto de Carvalho (2001a) relata que políticas públicas favorecem a
permanência de alunos/as dentro do espaço escolar. A escola aqui pesquisada é um
exemplo desse movimento que permite aos/às estudantes cursar no turno inverso a
disciplina na qual foi reprovado/a, seguindo para a etapa seguinte. Desse modo, é
favorecida a “diminuição drástica do número de reprovados” (ibidem, p. 555).
Vale ressaltar que a autora, no artigo Estatística de desempenho escolar: o
lado avesso, aponta que, por trás da “diminuição dos índices de evasão e
repetência” (idem, 2001b, p. 232), estão sendo usados critérios não muito definidos
para a avaliação e o desempenho escolar de estudantes. Sendo assim, acredito
que, não havendo um padrão para definir o processo individual do/a aluno/a, as
14
avaliações tornam-se arbitrárias. Esses indicadores de melhorias vão muito além
das notas e dos conceitos atribuídos. As estatísticas que apresentam o fracasso
escolar vão muito além dos números. A autora cita, ainda, os dados do Censo
Escolar 2000, os quais indicam que as mulheres são a maioria de aprovadas “desde
as séries finais do Ensino Fundamental, no Ensino Médio e no Curso Superior”
(CARVALHO, 2001b, p. 232). Como podemos perceber, existe um engendramento
das relações de gênero, diferenciando homens e mulheres dentro do espaço
educativo.
O Projeto Político Pedagógico (PPP) que rege a escola está desatualizado
(sua data de elaboração é de 2002), não foi baseado em nenhum referencial teórico
e não contou com a participação da comunidade escolar de forma adequada em sua
elaboração, tais como: professores/as, funcionários/as, pais/mães, responsáveis e
alunos/as. Mesmo assim, foi assinado pela equipe diretiva com a participação das
professoras eleitas pela comunidade, que representam e atuam nesse espaço
educativo. Nesse documento, existe um item em que a escola aponta como
necessidade trabalhar com a dinâmica de seu grupo de professores e professoras,
no sentido de promover maior integração. Sugere-se, ainda, a participação em
cursos de atualização profissional e em grupos de estudos, pois alguns/algumas
profissionais
efetivados/as
estão
há
mais
de
dez
anos
sem
realizar
aperfeiçoamentos. Isso denota uma preocupação da escola no sentido de qualificar
seu quadro funcional. Pela valorização das relações interpessoais, a aprendizagem
pelos
alunos
e
alunas
terá
maior
êxito
se
educadores/as
sentirem-se
sensibilizados/as e implicados/as em suas funções. Esse é o fator primordial da
atual equipe diretiva da escola. Tal espaço objetiva um ensino de qualidade e
eficiente aos/às estudantes, para que se sintam acolhidos/as, pertencentes e
sujeitos desse espaço educativo.
Através da observação participante, de entrevistas e da participação no
conselho de classe, procurei analisar quais critérios a escola – a partir de seus
professores e de suas professoras – utiliza para avaliar o desempenho escolar
dos/as alunos/as do primeiro ano do ensino médio.
15
2 CAMINHOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
As metodologias de pesquisa nesta investigação são uma construção a ser
realizada a partir do referencial teórico dos estudos culturais e de gênero. Assim,
minha abordagem de referência foi trilhada por estudiosos/as feministas e pósestruturalistas, além de suas articulações no campo da Educação.
Buscando problematizar a relação entre família, escola e desempenho
escolar, sob o ponto de vista das relações de gênero, utilizei mais de um
procedimento para a produção do material empírico. O questionamento feito aos/às
professores/as na escola estadual de ensino médio teve como propósito responder
às seguintes questões:

Como o comportamento de alunos/alunas influencia no desempenho
escolar?

Como a participação da família interfere no desempenho escolar?
Partindo do pressuposto de que antes mesmo de nascermos somos
indivíduos generificados, atribuem-nos modos de ser e de agir e de nos
comportarmos como homens e mulheres pela visão biologicista, ou seja, pelo nosso
sexo. Porém não se nega este fator, mas se enfatiza a dimensão cultural.
Com o intuito de conceituar gênero, tomo como referência Louro (1997, p.
22), a qual manifesta que a categoria gênero surge “através das feministas anglosaxãs”, na qual atribui que “não é negada a biologia, mas enfatizada,
deliberadamente, a construção social e histórica produzida sobre as características
biológicas”. Com essa mesma linha de pensamento, Joan Scott (1995, p. 72),
conceitua que a categoria denominada „gênero‟ indica “rejeitar um determinismo
biológico, implícito no uso de termos como sexo ou diferença sexual”. Esse conceito
refere-se à organização social da relação entre os sexos, ou seja, “uma noção
relacional” entre o masculino e o feminino, pois só definiremos o que é ser homem
ao definirmos o que é ser mulher, e assim por diante. Silva (1999, p. 93) também
expõe que “o conceito de gênero na teoria feminista teve o mérito de chamar a
atenção para o caráter relacional das relações entre os sexos”.
16
Nesse mesmo movimento, Meyer (2003, p. 16) esclarece que “As abordagens
feministas pós-estruturalistas se afastam daquelas vertentes que tratam o corpo
como uma entidade biológica universal”, atribuindo que “o conceito de gênero
privilegia, exatamente, o exame dos processos de construção dessas distinçõesbiológicas,
comportamentais
ou
psíquicas-percebidas
entre
homens
e
mulheres”,(ibidem, p. 16).
O termo „cultura‟, no singular, surge no século XVIII, pelos alemães. O termo
Kultur vem a designar, como expõe Alfredo Veiga-Neto (2003, p. 7), as ações “de
produzir e apreciar obras de arte e literatura, de pensar e organizar sistemas
religiosos e filosóficos – especialmente todo aquele conjunto de coisas que eles
consideravam superiores e que os diferenciava do resto do mundo”. Vem dessa
concepção original a diferenciação de alta/baixa cultura, denotando a distinção entre
uma cultura e outra.
Na intencionalidade de conceituar „cultura‟, tomo como referência Silva
(1999), segundo o qual os estudos culturais concebem a cultura como campo de
lutas e de contestação: “A cultura é um campo onde se define não apenas a forma
que o mundo deve ter, mas também a forma como as pessoas e os grupos devem
ser. A cultura é um jogo de poder” (p. 134).
Na nossa cultura, atribui-se que a construção de um corpo seja alicerçada na
produção de hábitos e comportamentos marcadamente masculinos ou femininos.
Sendo assim, a escola, nos dizeres de Silvana Vilodre Goellner (2003, p. 37), é um
espaço que tem como princípio a “educação do corpo”, tratando de adequá-lo dentro
de padrões normalizantes, moldando-o. Nesse sentido, a autora adverte: “um corpo
não é só um corpo. É ainda, o conjunto de signos que compõe sua produção”
(ibidem, p. 37).
Bell Hooks (2001) aponta o quanto os/as educadores/as ignoram os corpos
dos/as alunos/as, que também estão presentes dentro da sala de aula, sem levar em
conta os processos de naturalização da diferença e da desigualdade de gênero, na
qual meninas e mulheres, por exemplo, são ensinadas a desenvolver funções
relacionadas à educação de crianças e ao cuidado de sua família. Na instituição
escolar, “o corpo tem de ser anulado, tem que passar despercebido” (ibidem, p.
115). Na mesma linha, Meyer (2003) direciona um olhar crítico sobre as
argumentações que a sociedade toma como pressupostos universais, que através
das diversas mídias, de livros didáticos, paradidáticos e da televisão – pelas novelas
17
e pelos comerciais – é reforçado como sendo natural uma ideia reduzida da
diferenciação de papeis/funções de mulher e de homem. De acordo com essa visão
estreita, a mulher nasceu para ser mãe e cuidadora do espaço privado, enquanto o
homem é visto como protetor de sua prole e dominante do espaço público (MEYER,
2003).
Maria Cláudia Dal‟Igna (2005) apresenta questionamentos acerca do
desempenho escolar e das relações de gênero no âmbito do espaço escolar. Em
seu estudo, cita o psicólogo terapeuta Steve Biddulph, autor do livro Criando
meninos, que atribui a estes um melhor aprendizado do que as meninas. Ele relata
que
os “hormônios masculinos, mais especificamente a testosterona,
no
comportamento e desenvolvimento dos meninos” (ibidem, p. 126) – entre outros
fatores – favorecem os meninos em detrimento das meninas.
A proposta desta pesquisa é desconstruir e duvidar desses pressupostos
estritamente generificados, do critério de valor atribuído às diferenças de gênero,
nas quais o masculino se sobrepõe ao feminino. Para Foucault (2005), o poder é
uma rede que atua “capilarmente”, não sendo possível exercê-lo em uma única
direção, pois permeia por toda uma rede de relações que se estabelece socialmente.
Nesse sentido, o poder não se esquivaria das relações de gênero. O autor também
fez importantes reflexões sobre o disciplinamento como forma de adestramento dos
corpos através de “observatórios”, como a escola-edifício (idem, 1987, p. 145). A
escola utiliza, como no exército, todo o tipo de punição para com os que não se
comportem como desejado. Assim como na prisão, no quartel e no hospital, a escola
tornou-se também uma “máquina de observar” os corpos que nela transitam. Mais
adiante, Foucault indica que “tudo que está inadequado à regra, tudo que se afasta
dela, os desvios” (ibidem, p. 149) devem ser contornados.
Para a presente pesquisa, a coleta de dados contou com a observação
participante no último conselho de classe do ano letivo de 2010 – das turmas
descritas abaixo –, no qual se fez uma gravação para posterior análise, o que
favoreceu identificar quem eram os/as alunos/as reprovados/as e que critérios foram
utilizados na aprovação/reprovação destes/as. Concomitantemente, foi realizada
uma entrevista semiestruturada para que o/a professor/a pudesse expor seus
critérios avaliativos.
Ao todo foram 10 turmas, assim designadas pela escola:
Turno da manhã: 1MA, 1MB, 1MC, 1MD.
18
Turno da tarde: 1TA, 1TB, 1TC.
Turno da noite: 1NA, 1NB, 1NC.
A partir de um roteiro prévio, realizei as entrevistas
de maneira
semiestruturada, para que os/as docentes pudessem responder às questões de
forma a apresentar os seus pontos de vista, assim como apontar alguns sentidos
sobre o tema e fornecer informações complementares, propiciando uma maior
interação com os/as demais professores/as.
A cada professor/a que participou da pesquisa através da entrevista e da
gravação do conselho de classe, foi fornecido o Termo de Consentimento Livre
Esclarecido (TCLE), pelo qual fica o caráter confidencial e anônimo das informações,
bem como a possibilidade de desistir a qualquer momento da pesquisa. Houve o
cuidado para que o nome verdadeiro dos/as alunos/as não constasse transcrito
neste trabalho, assim como o nome dos/as professores/as. A entrevista e a
gravação do conselho de classe foram consentidas por 31 professoras e três
professores; um grupo predominantemente feminino. Essa informação converge
com o que diz Louro (1997, p. 94), quando discute sobre a ocorrência de uma
feminilização do magistério. A autora argumenta que “no Brasil a instituição escolar
é, primeiramente masculina e religiosa”, ficando a cargo dos jesuítas que tinham a
missão de catequizar os índios e de formar “meninos jovens brancos da classe
dominante”. Somente a partir da metade do século XIX é permitida a entrada das
mulheres nas salas de aula como alunas e, posteriormente, como docentes. Nesse
movimento, o magistério “se tornará, neste contexto, uma atividade permitida e,
após muitas polêmicas, indicada para mulheres” (ibidem, p. 95), o que facilitou a
conquista do espaço feminino nas escolas.
Flávia Obino Corrêa Werle (2005, p. 612) realiza um resgate histórico
segundo o qual, “embora objetivando formar professores homens para atuar no
magistério, das primeiras letras, muitas de suas matrículas foram ocupadas por
mulheres órfãs”. Originava-se, assim, o processo de feminização da profissão,
embora as professoras fossem dirigidas por um homem, na função de padre-diretor.
Mais adiante, a autora expõe que, em 1890, “o poder público da época adotava
estratégias discursivas e de convencimento, reafirmando a importância de recorrer
às professoras habilitadas [...] para suprir as cadeiras do sexo masculino vagas por
falta de professores homens” (ibidem, p. 616.) Como se pode perceber, o
aparecimento de mulheres no magistério deu-se através do sistema religioso, que
19
propiciou que fossem habilitadas a dar aulas primeiramente somente aos meninos.
Posteriormente, a partir de 1900, a educação era propiciada às meninas de classes
mais
favorecidas.
Werle
(2005,
p.
610)
infere
que
essa
configuração
predominantemente feminina pode ser um dos fatores que “apontam prejuízos para
a formação dos alunos decorrente de tal predominância”, pois, sendo escolas com
maioria de mulheres, estas poderiam não estar auxiliando os meninos de maneira
adequada, de forma que facilitasse sua aprovação.
Tais considerações fazem parte da minha inserção como agente educacional
no contexto da escola pesquisada. Acredito que, apesar de já ter um contato diário
nessa instituição, minha participação no conselho de classe não foi neutra e, sim, de
certo desconforto para alguns/algumas dos/as participantes, por estar gravando e
posteriormente refletindo sobre as falas transcritas. Nesse ponto, Alba Zaluar (1986,
p. 115) refere o sentido de que o/a pesquisador/a, ao interagir com o grupo a ser
pesquisado, torna-se um sujeito de “uma alteridade nunca resolvida nem dissolvida
nos encontros e desencontros que a pesquisa traz”. Da mesma forma, Rosa Maria
Hessel Silveira (2007, p. 119) apresenta a “tensão instituída na dupla”, entre o/a
professor/a entrevistador/a e o/a professor/a entrevistado/a, permeado por uma
cultura hierárquica no momento em que um pergunta e o outro responde.
Ceres Gomes Víctora, Daniela Riva Knauth e Maria de Nazareth Agra Hassen
(2000, p. 56) consideram que “a presença do pesquisador já é parte do evento
observado”; nesse sentido, deixa de ser uma reação neutra para ser já um evento.
Tais autoras ainda estabelecem critérios para serem utilizados na pesquisa, como a
utilização da “triangulação de informações” (ibidem, p. 54), que consta das seguintes
etapas: “documentos escritos”, na qual pude colher informações desde a
inauguração da escola, que somente foram possíveis através de documentos
internos; “dados de observação”, na participação no conselho de classe; e
“depoimentos”, obtidos através da entrevista semiestruturada.
De posse desses documentos, pude trilhar os passos da escola pesquisada e,
posteriormente, colher informações junto com os/as professores/as sobre como
os/as alunos/as são avaliados. Através da análise desses dados, poderei compor
meu objeto de pesquisa.
20
3 RELAÇÕES ENTRE COMPORTAMENTOS E DESEMPENHO ESCOLAR
Recentemente,
no
ano
de
2006,
professores
e
professoras
foram
contemplados/as com um documentário do diretor João Jardim, intitulado Pro dia
nascer feliz. A partir da apresentação do conselho de classe de uma escola pública,
a obra acaba por ser um reflexo do que acontece na escola aqui pesquisada. Os
alunos/as têm a seu favor a nota das provas – um fator objetivo – e mais a
pontuação relativa a trabalhos realizados e à participação em aula, estipulado
pelos/as docentes em 10%. Isso denota que não se utilizam somente as notas das
provas, mas também critérios subjetivos para produzir a nota final. Entretanto as
considerações e as justificativas são extremamente diferenciadas, não existindo o
mesmo parâmetro para todos/as os/as alunos/as.
Aprovar ou reprovar depende de variantes distintas, movidas pela
subjetividade do/da docente com relação aos/às alunos/as, pois o/a professor/a
também é um sujeito produzido pela/na cultura, principalmente com relação ao
gênero dos/as estudantes. Tomo aqui a noção de que cultura é um campo de
disputas pelo poder de significar e de dar sentido às coisas e aos modos de ser e de
viver. Para Silva (2003), é na cultura que aprendemos a significar e a dar sentido
para o mundo e para as nossas atitudes, sem refletirmos sobre o fazer pedagógico
que naturaliza determinados conceitos e comportamentos, conforme se evidencia
nas falas dos/as professores/as, que serão apresentadas oportunamente.
As relações que se estabelecem no âmbito escolar parecem ser harmônicas à
primeira vista, porém, na medida em que adentrei o espaço enquanto pesquisadora,
esse quadro sofre uma metamorfose. Passei, então, a perceber uma trama de
tensões e conflitos em que os/as professores/as convergem e divergem em torno da
atribuição diferenciada de valores para aprovação/reprovação.
Convém ressaltar que, para o/a aluno/a passar de ano, deve atingir a média
de 60 e possuir uma frequência de 75% do total de 200 dias letivos.
Pelo depoimento dos/as professores/as, coletados nas entrevistas, o
comportamento é um fator relevante no desempenho escolar dos/as alunos/as,
como podemos perceber nos excertos transcritos abaixo:
21
“O comportamento dos alunos influencia diretamente no desempenho
escolar. Alunos com mau comportamento, em geral, possuem um péssimo
rendimento.”
“Certamente influencia, na medida em que o aluno tem um bom
comportamento, ficar quieto e prestar atenção na aula. Não tem
concentração quando o aluno fica para lá e para cá.”
“Se o aluno tem um bom comportamento eu dou 10% de participação, o
que ajuda na média final.”
“Ah, a Carla! Ela não está nem aí. A gente vê o comportamento dela. Que
bom que ela reprovou. Tem que rodar. Não tem disciplina.”
[Referindo-se à Turma 1MA] “São terríveis e não param quietos, parecem
umas crianças. Esses guris são fogo. São preguiçosos e inteligentes.”
“Ela tem bastante dificuldade e está sempre conversando.”
Valerie Walkerdine (1995, p. 209) diz que as escolas operam com um padrão
ideal a ser seguido por todos/as os/as estudantes, no qual o conhecimento está
pautado por pressupostos baseados em Piaget sobre o desenvolvimento infantil.
Entendo que essas diretrizes orientam uma „produção de verdade‟ sobre os sujeitos,
que trata de estabelecer e orientar quando e o que cada um/a deve saber, para que
todos/as sejam devidamente regulados e governados. Com isso, nada melhor do
que „conhecer‟, para poder „regular‟, tornando-se, assim, um padrão ideal a ser
seguido por muitas escolas. Para aqueles/as que porventura escaparem a essas
normas, existe a medicalização para „dominá-los/as‟, ou melhor, aquietar seus
corpos e suas mentes.
Carvalho (2001b) expõe o quanto o processo avaliativo dos/as alunos/as está
sendo direcionado. Por trás da diminuição dos índices de evasão e de reprovação
escolar, estão sendo utilizados critérios não muito definidos. A autora propõe um
olhar criterioso sobre a avaliação, indicando que “as cifras do desempenho escolar
são produzidas pelos próprios professores e professoras, a partir de critérios,
codificações e classificações” (ibidem, p. 234). Carvalho indica, ainda, que docentes
adotam, na avaliação, “alguns critérios em seu preenchimento, tendentes a diminuir
o número de alunos com conceitos negativos” (ibidem, p. 239). Para a autora, os/as
alunos/as abaixo da média ainda recebem “certos atributos de comportamento
como: agressividade, agitação, „dar trabalho‟, „falar demais‟ [...] não querer fazer as
tarefas” (ibidem, p. 244).
Observo na fala dos/as professores/as que o bom comportamento está
relacionado a “ficar quieto”, “prestar atenção”; já o mau comportamento é sinônimo
22
de “não tem disciplina”, “são preguiçosos”, ficar “sempre conversando” e “o aluno
fica para lá e para cá”, ou seja, a incapacidade de os/as estudantes controlarem
seus corpos e seus movimentos, de acordo com o que se espera deles/as em aula.
De acordo com Regina Leite Garcia (2002), os/as alunos/as agem de formas
diferentes dentro e fora da sala de aula. Esse fator aponta importantes reflexões
sobre como as variações no comportamento dos corpos, conforme o espaço
ocupado:
Na sala de aula, todas se mantinham sentadas, umas atrás das outras, em
silêncio, com olhares de tédio, não pareciam especialmente interessadas no
que a professora explicava no quadro. Os corpos parados, os olhos sem
brilho, algumas como se estivessem devaneando, outras olhando para o
quadro onde a professora escrevia, como se não vissem o que olhavam.
Quando batia o sino anunciando a saída, as mesmas crianças pareciam
outras crianças, os corpos ágeis gingavam, corriam, se tocavam, os olhos
brilhavam cheios de vida, conversavam, riam [...] (ibidem, p. 7).
Dagmar Meyer, Cláudia Fonseca e Rosângela Soares (2008) explicitam o
quanto nossos corpos estão em evidência: “Vivemos em um tempo em que o corpo
é exaustivamente falado, invadido, investigado e ressignificado” (p. 6). Através de
diversas áreas do conhecimento, podemos interpretar como as ações dos corpos
dos/das estudantes podem influenciar positiva ou negativamente nas avaliações. A
escola, ao invés disso, preocupa-se em ajustar os corpos de meninos e de meninas
de acordo com um conjunto de normas vigentes e de forma disciplinadora, o que
talvez possa acarretar aos meninos um rebaixamento de suas notas, assim como a
reprovação em grau mais alto que das meninas. Por trás do fundamento científico, a
escola tende a formar corpos obedientes. Como expõe Louro (2001, p. 18), a escola,
através dos/as professores/as, fabrica um “comportamento adequado” e, para isso, a
forma hierarquizante dos demais componentes escolares trata de formatar os/as
alunos/as.
Para Maria Isabel Edelweiss Bujes e Marisa Vorraber Costa (2007, p. 24), a
escola, “com aparato institucional, com suas arquiteturas, seus corpos de
profissionais, suas regras de funcionamento, suas diretrizes pedagógicas e
curriculares”, tende a moldar o bom comportamento dos alunos e das alunas.
O questionamento suscitou reflexões quanto à relação entre professor/a e
aluno/a dentro do espaço reservado da sala de aula. Muitas vezes, o
comportamento dos/as alunos/as é relacionado com a indisciplina e muitas vezes faz
parte da avaliação, positiva ou negativamente.
23
Quando se refere ao disciplinamento de alunos/as, Foucault (1987) expõe que
as escolas tomaram como ideal o sistema militarista, hospitalar e industrial, no qual é
preciso haver uma vigília sobre o corpo, exercendo “sobre ele uma coerção sem
folga” (p. 127). O autor aponta o quanto nossos corpos são dominados através de
inúmeras estratégias para delimitá-los e transformá-los em um corpo ideal, e a
escola é uma instituição legitimada para essa ação, formando corpos dóceis com
posturas e hábitos saudáveis e adequados. Para Foucault, o tempo, dentro da
instituição escolar, delimitado pelos períodos entre uma disciplina e outra, “é mais
que um ritmo coletivo e obrigatório” (ibidem, p. 130). O tempo delimita ações e
possibilita o controle para que os alunos/as não se distraiam, afinal, “No bom
emprego do corpo, que permite um bom emprego do tempo, nada deve ficar ocioso
ou inútil” (ibidem, p. 130). Na escola, os/as estudantes aprendem a controlar o
corpo, o qual mais tarde estará disciplinado para o mercado de trabalho.
Quanto a esses questionamentos, Hooks (2001) considera que ainda
operamos dentro das salas de aula com o dualismo mente/corpo. Como não fomos
preparados/as, tampouco ensinados/as, para lidar com esse corpo dentro da sala de
aula, preocupamo-nos em ensinar “como se apenas a mente estivesse presente, e
não o corpo” (p. 115).
Nessa escola, o corpo presente – isto é, o corpo propriamente dito – é mais
exposto na disciplina de Educação Física através de exercícios, em que se exige
correr, jogar bola etc., no intuito de competição ou de cooperação. Porém esse
mesmo corpo também é visto por outras disciplinas, nem que seja para „ficar quieto
e atento‟, „não se levantar toda hora‟, tanto que o incorporam na avaliação e o
enquadram no quesito „comportamento‟. Em relação às outras disciplinas do
currículo escolar, não existe propósito em que se diga „aqui tem um corpo‟, contudo
este é sempre referido e também disciplinado, inclusive na aula de Educação Física.
Louro (2000, p. 60) corrobora com esse pensamento:
Com exceção da Educação Física, que faz do corpo e de seu adestramento
o foco central de seu agir, todas as demais áreas ou disciplinas parecem ter
conseguido produzir seu “corpo de conhecimento” sem o corpo. [...] No
“sagrado” campo da educação não apenas separamos mente e corpo mas,
mais do que isso, suspeitamos do corpo
Nessa perspectiva, Hooks (2001, p. 115) faz refletir sobre o espaço escolar,
ao indicar que “O mundo público da aprendizagem institucional é um lugar onde o
corpo tem de ser anulado, tem que passar despercebido”.
24
Louro (2000) concorda com o raciocínio de que, ao mesmo tempo em que a
escola não vê os corpos, ela tende a contê-los, através de uma cultura disciplinar
que os adapta. A autora segue dizendo que “Todos os processos de escolarização
sempre estiveram – e ainda estão – preocupados em vigiar, controlar, modelar,
corrigir, construir os corpos de meninos e meninas, de jovens homens e mulheres”
(ibidem, p. 60).
Para Garcia (2002), mesmo que não se encontrem dentro da disciplina na
escola, esses corpos encontram seu espaço fora da instituição, através das mais
diversas atividades e encontrando múltiplas formas de prazer que o corpo
proporciona, como destaca: “corpos masculinos e femininos separados nas aulas de
educação física, mas que se reencontram nos bailes funk, corpos impedidos de se
tocar” (p. 15).
Outro fator que julgo importante mencionar é que, apesar de os/as
professores/as saberem do tema da minha pesquisa, todas as suas respostas foram
descritas no masculino, como pode ser visto pela transcrição de seus depoimentos.
A invisibilidade da mulher aparece nas respostas dadas por mulheres, que são a
maioria dentro desse espaço educativo. Louro (1995) alerta que a sociedade ainda
opera na cultura androcêntrica, na qual o modelo hegemônico é o masculino. Para
ela, a “História da Educação que se produz no Brasil é usualmente escrita no
masculino, ou seja, refere-se aos alunos, aos operários [...] ou utiliza termos
genéricos, como a classe trabalhadora, a elite brasileira para nunca designar a
mulher” (ibidem, p. 107). Essa autora afirma que, através da linguagem, acabamos
ocultando o feminino, conforme explicita a seguir:
A conformidade com as regras de linguagem tradicionais pode impedir que
observemos por exemplo, a ambiguidade da expressão homem – que serve
para designar tanto o indivíduo do sexo masculino quanto toda a espécie
humana. Aprendemos que em muitas situações, a palavra supõe todas as
pessoas, englobando, portanto homens e mulheres. (idem, 2003, p. 66).
Louro (2003, p. 67) cita Dale Spender, corroborando com a ideia de que esse
ocultamento “acentua que, na maior parte das vezes, ao se utilizar essa expressão
„genérica‟, a referência é, na verdade, a uma „espécie‟ construída apenas por
homens”, escondendo as mulheres nos mais diferentes campos, inclusive na área
do conhecimento.
O fator de que a maioria dos/as docentes se referirem explicitamente ao
masculino demonstra que estavam respondendo sobre os alunos de modo geral.
25
Como vimos, tal fato se descortinou no conselho de classe, que ocorreu após a
análise das respostas dos questionamentos.
Quanto aos critérios que são utilizados além da avaliação conteudista, os/as
professores utilizam critérios diversos e palpáveis para avaliar os/as estudantes, tais
como: provas, trabalhos individuais, trabalhos em grupos, participação nas aulas e
assiduidade. Nesse sentido, vão ao encontro dos dizeres de Carvalho (2001a), que
recomenda “avaliar os alunos a partir de uma multiplicidade de instrumentos” e
inclusive “procuravam levar em conta tanto o desempenho propriamente dito, quanto
o que chamavam de compromisso do aluno” (ibidem, p. 557-558). Acredito que
os/as professores/as não poupam esforços para que os alunos e as alunas
consigam atingir a média de aprovação, entretanto as análises das suas falas
indicam o quanto o comportamento dos/as estudantes fica diretamente atrelado ao
bom ou ao mau desempenho escolar.
Para Carvalho (2001b, 244), aos alunos abaixo da média ainda são
concedidos “certos atributos de comportamento como: agressividade, agitação, „dar
trabalho‟, „falar demais‟ [...] não querer fazer as tarefas”. Em sua análise, a autora diz
que não se atribui a indisciplina e a agressividade somente aos alunos do sexo
masculino. As meninas também têm posturas em sala de aula vistas de forma
negativa, tanto com os seus pares quanto com os/as professores/as. Esse fato pode
ser observado nos relatos dos/as professores/as no conselho de classe realizado em
dezembro do ano de 2010: “Ela não está nem aí. A gente vê o comportamento dela”;
“Que bom que ela reprovou. Tem que rodar. Ela não tem disciplina”.
Carvalho (2001b) apresenta uma ruptura quanto aos estereótipos de
masculinidade e de feminilidade quando se refere aos comportamentos. Louro
(2001) esclarece como ela e as professoras, em geral, aprendem a feminizar-se
através da escola e a ter certos “comportamentos adequados” que as diferenciam
dos meninos. O modo de ser das docentes foi, pode-se dizer, esculpido na escola
que se designava moderna e mesclava-se com a educação tradicional, embora não
tão rígida quanto esta.
É possível perceber que tanto no ensino fundamental como no ensino médio,
agora designado como educação básica, a indisciplina não é atribuída somente aos
alunos, portanto “não estaria diretamente relacionada às características de gênero”
(CARVALHO, 2001a, p. 569), pois os comportamentos de meninos e meninas não
são fixos. A autora acrescenta:
26
[...] parece que o esforço para realçar a existência de „meninas agressivas‟
e indisciplinadas e a visibilidade que sua presença minoritária ganhava nas
falas era um artifício que cumpria a função de desassociar masculinidade de
agressividade e violência, permitindo a percepção desses comportamentos
como neutros do ponto de vista do gênero. (ibidem, p. 570).
Nas observações realizadas, assim como no conselho de classe, muitos/as
professores/as diziam que os alunos da turma 1MA, “são terríveis e não param
quietos, parecem umas crianças”. Merece ser discutida a indisciplina, sob o ponto de
vista do gênero. As professoras consideram, de imediato, que os meninos são mais
barulhentos em suas ações. No seu relato, um professor lamenta: “Esses guris são
fogo. [...] São preguiçosos e inteligentes”.
Já as meninas ficam em conversas em tom baixo e em troca de bilhetes.
Quanto a esse fator, Carvalho (ibidem, p. 571) assinala que as meninas “são sempre
mais discretas” e suas desordens têm menor duração que as dos meninos. Sendo
assim, suas ações são menos perturbadoras dentro da sala de aula, como
explicitado pela professora: “Ela tem bastante dificuldade e está sempre
conversando”.
Os jovens acabam sendo prejudicados nas avaliações. Embora este trabalho
não seja pautado pelo sistema avaliativo, percebe-se o quanto os meninos tornaramse estigmatizados ao longo da trajetória escolar. Carmen A. Duarte da Silva (1999,
p. 208), em sua pesquisa realizada na cidade de Pelotas/RS, também constatou que
os meninos são os maiores prejudicados pelo sistema avaliativo do que as meninas
“o índice de reprovação foi maior entre os meninos (57%) do que as meninas (42%),
porém isso não impede que as meninas também sejam prejudicadas pelo sistema
avaliativo, com referência ao comportamento”.
Carvalho (2004), na tentativa de desmistificar a rotulagem de alunos como
fracassados, viu-se imbricada não só com relação ao gênero, mas também pelas
“desigualdades sociais de [...] classe” (p. 3). Para esta autora, assim como para os
estudiosos culturais, importa saber como esses processos se articulam. Carvalho
(2003, p. 186) mostra “uma trajetória mais longa e mais tumultuada para os do sexo
masculino”, fato que deveria ser mais problematizado para que o aproveitamento
seja igualitário para ambos os gêneros. Um dos quesitos apontados pela autora, de
que as meninas se adaptam melhor à escola, estaria relacionado ao trabalho infantil,
uma vez que elas, na sua maioria, trabalham em suas casas, cuidando de seus
irmãos menores. Porém Carvalho (2003) questiona esse olhar sobre as meninas,
27
pois não é o padrão de todas as meninas, e sim de algumas meninas, assim como
não é também “o único modelo de escola e de professora” (p. 189). Seguindo essa
linha de pensamento, “nem todos os meninos correspondem ao oposto dessa
feminilidade passiva” (ibidem, p.189).
A reação do/a professor/a quanto ao comportamento da aluna – “A gente vê o
comportamento dela. Que bom que ela reprovou. Tem que rodar. Não tem
disciplina.” – vai ao encontro do que aponta Carvalho (ibidem, p. 190), rompendo
com a “ideia de que as meninas estariam mais adaptadas à escola pela passividade
e obediência”, pela sua restrição ao espaço público, o qual, pelo senso comum, seria
dos meninos-homens. Nesse sentido, a autora nos faz refletir sobre nosso fazer
como educadores/as:
Não se cria um espaço para refletir sobre qual é a responsabilidade da
escola nessa conversa: no que nossa própria atitude como educadoras,
como educadores, as relações entre crianças na sala de aula, no pátio, no
recreio, no que tudo isso contribui para a formação desses modelos de
feminilidades e de masculinidades diversificados. É claro que isso está o
tempo todo em construção. Está em construção para nós adultos quanto
para as crianças. Não vem pronto de casa, ao contrário, está sendo
elaborado na escola também. Por exemplo, a relação entre ser masculino
ou feminino, como ter um caderno bonito, ter uma nota boa não foi
aprendida em casa, são elementos escolares. Em que medida nossa
própria atitude está participando nessa construção. (ibidem, p. 190).
Nessa linha de raciocínio, Jane Felipe e Bianca Salazar Guizzo (2004), em
seus estudos realizados sobre a sexualidade em duas escolas infantis, constataram
que precisamos, enquanto educadores/as, refletir acerca de nosso procedimento
nas escolas, pois acabamos reproduzindo o que aprendemos. Sendo o campo dos
estudos de gênero recente, é preciso capacitar-se para novas perspectivas, para
evitar declarações tal como “Ela tem muitas dificuldades nas exatas”, como referido
anteriormente no conselho de classe. As autoras refletem:
[...] ficou evidenciado que, mesmo de forma não intencional, algumas
professoras acabam reproduzindo as desigualdades de gênero existentes
na sociedade, a partir de concepções essencialistas, pautadas em uma
„natureza‟ capaz de determinar irremediavelmente os comportamentos
masculinos e femininos. (ibidem, p. 32).
Dando
prosseguimento
às
relações
que
se
estabelecem
entre
o
comportamento dos/as alunos/as e seu desempenho escolar, parto para a
participação do conselho de classe das turmas do primeiro ano do ensino médio,
para elucidar quais critérios são atribuídos para a efetivação da aprovação ou da
reprovação.
28
3.1 O conselho de classe como instrumento documental de reprovação ou
aprovação
A visão que tenho do conselho de classe é de que possui uma dinâmica
bastante arbitrária, tendo em vista que os/as professores/as expressam, entre si, o
que pensam dos/as alunos/as, avaliando e decidindo seu destino, sem critérios e
parâmetros muito bem definidos, conforme disposto ao longo do trabalho. É exercido
um poder hierárquico, que permite indicar aos/às estudantes adjetivos que irão se
conjugar à aprovação e à reprovação.
Abaixo, apresento o excerto da fala dos/das professores/as com referência
aos/às alunos/as, para demonstrar que não existe um só parâmetro utilizado para
aprovar/reprovar, isto é, não se leva em conta somente a nota. Convém ressaltar
que, conforme consta no Regimento Escolar, item 10, o/a aluno/a somente será
aprovado se obtiver média igual ou superior a 60 e frequência mínima de 75% em
cada disciplina. Lembro que os nomes aqui descritos são fictícios, assim como as
disciplinas a que me refiro, para que tanto o/a professor/a quanto o/a aluno/a tenham
suas identidades preservadas.
[Professor de Inglês com referência ao aluno Raul] “Aprovo o Raul. Ele é
malandro, mas ele é bom. Ele tem muitas faltas, mas aprova comigo se eu
abonar quatro faltas excedentes. Bem, então abono as faltas e o aprovo por
minha conta e responsabilidade.”
[Professora de Biologia com referência ao aluno Paulo] “O Paulo só tem
média 51 comigo. Mas ele só tem oito faltas durante o ano todo e não tem
porque eu reprová-lo. Ele melhorou muito desde o início do semestre até
agora. Então eu aprovo o Paulo.”
[Professora de Matemática com referência à aluna Edite] “Edite só tem
média 48 comigo, mas ela é tão aplicada... Esforçou-se muito neste último
bimestre.”
[Após, a professora de Geografia interveio] “Passa ela, passa...”
“Está bem, aprovada pelo seu esforço.” [diz a professora de Matemática].
[Professora de Português com referência ao aluno Márcio] “Ele tem um
problema sério. Entra mudo e sai calado. Ele não falou nada o ano inteiro.
E as provas então? Ele olha, olha e não faz nada... Ah, e é muito tímido,
29
Mas como ele reprovou em sociologia, física e matemática eu não posso
passar ele. Uma pena, ele é muito inteligente”
[Professora de Religião com referência à aluna Sandra] “A gente vê o
comportamento dela, a gente vê que ela é drogada. Tu nota direitinho. Ela
não acompanha. Esta aluna foi diagnosticada e já esteve internada.”
[Professora de Matemática com referência à aluna Tamara] “Ela tem muitas
dificuldades nas exatas. E, além disso, rodou também em física, química e
biologia.”
Para os meninos, quando os adjetivos são depreciativos, os/as professores/as
logo em seguida descrevem algo positivo, como em “ele é malandro, mas ele é
bom”. O mesmo ocorre quando o menino é reprovado e alguém faz a ressalva:
“muito inteligente”. Outros alunos passam para a etapa seguinte porque não tiveram
faltas. Isso serve para refletirmos que critérios estão sendo utilizados para avaliar
os/as estudantes. Que critérios, afinal, são atribuídos?
Primeiramente, destaco a insígnia do senso comum, segundo o qual os
jovens meninos se dão melhor nas áreas das exatas, e as jovens meninas nas áreas
das humanas. Maria Cláudia Dal‟Igna (2005) relata o significado que os/as
professores/as atribuíram para o desempenho escolar de meninos e meninas
atendidos/as em um acompanhamento de reforço extraclasse, na qual os/as
docentes atribuem uma aparente neutralidade para avaliar os/as estudantes. Porém
a autora expõe que, “na medida em que as normas não são problematizadas, elas
funcionam para produzir e reiterar noções de masculinidade e feminilidade” (ibidem,
p. 121).
Com a descrição dos/as professores/as com relação ao comportamento e ao
desempenho dos/as alunos/as, podemos perceber, como nos aponta Dal‟Igna, uma
instauração de verdade sobre os modos de ser dos/as estudantes pelo seu gênero:
É possível identificar as implicações da linguagem na instituição e
demarcação de diferentes posições para os gêneros. Esses diferentes
modos de descrever os desempenhos têm efeitos. Mecanismos de
naturalização, essencialização e dicotomização são acionados e funcionam
para justificar as diferenças de desempenho entre meninos e meninas, no
que se refere tanto a comportamentos quanto a conhecimentos. (DAL‟IGNA,
2005, p. 122).
Apesar de a instituição pesquisada tratar-se de uma escola de ensino médio e
de não utilizarmos pareceres descritivos, nas falas dos/as professores/as há
30
constantes dizeres para que se proceda à aprovação das referidas alunas: “ela é tão
aplicada, esforçou-se muito neste semestre” e de que elas têm “dificuldades nas
exatas”.
Walkerdine (1995), quando estudante, foi considerada pela sua professora
como „esforçada‟, um adjetivo muito utilizado pelos/as professores/as como se
precisasse justificar alguma incapacidade das alunas:
[...] quero argumentar que não é tanto uma questão de faltar alguma coisa,
de não ser capaz de romper com as regras ou o fracasso de ser autônoma,
mas que estas explicações têm de ser entendidas como parte de tentativas
para produzir ideias científicas acerca de pessoas oprimidas e exploradas,
ideias que têm se tornado central sua regulação. Em outras palavras, quero
questionar as ideias sobre a suposta carência de alguns grupos em relação
a certas capacidades intelectuais e examinar como estas ideias têm se
tornado parte não apenas da forma pela qual nós temos pensado o
pensamento, mas da forma pelo qual este conhecimento constitui um
componente central de aspectos de governo (no sentido foucaultiano).
(ibidem, p. 208)
Sandra Corazza (1995) apresenta a análise dos pareceres descritivos de
alunos da educação infantil e percebe o quanto eles pareceres se tornam
prescritivos quanto a sua forma. A autora cita Foucault para afirmar que, mesmo que
professoras/es não queiram, acabam impondo „regras de conduta‟. Para as meninas,
os adjetivos “delicada, simpática e atenciosa”; para os meninos, tem que ser algo
diferente do que foi explicitado para elas: “decidido, responsável, confiante,
temperamento forte” (ibidem, p. 51). Algumas professoras atribuem o mau
comportamento dos meninos a esse temperamento forte e, assim, ficam
prejudicados em suas avaliações, embora não haja consenso sobre o assunto. No
mesmo estudo, Corazza mostra que, se os alunos são reprovados, é conveniente
que os pais levem seus/suas filhos/as para um acompanhamento psicológico;
através da medicalização, o corpo se tornará inerte e sem reflexão, e finalmente um
corpo comportado. A medicalização parece estar virando uma constante, identificada
na voz do/a professor/a que participou do conselho de classe, analisado nesta
pesquisa: “A gente vê o comportamento dela, a gente vê que ela é drogada. Tu nota
direitinho. Ela não acompanha. Essa aluna foi diagnosticada e já esteve internada”.
Por esses excertos, podemos perceber o quanto a avaliação se torna
subjetiva no âmbito educacional. Se existem regras para avaliar os/as estudantes,
as regras não são as mesmas para todos. Um olhar „para dentro‟ dessas respostas,
tão difundidas no espaço educativo, requer que reflitamos sobre elas. Nesse sentido,
31
o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (1996) aponta que é no “saber: olhar,
ouvir e escrever” (p. 14), que construímos e delimitamos nossa pesquisa. Ele
salienta que no olhar e no ouvir existe a inteiração entre o pesquisador e seu objeto
de pesquisa, o que não ocorre com o escrever. Este, sendo uma atividade posterior,
requer interpretação pessoal, mesmo que seja fragmentado, e está permeado de
compreensões e de valores acerca das relações que se estabelecem dentro do
espaço educativo pesquisado.
Expostas as questões do conselho de classe, que estabelece mais de um
critério para a aprovação dos/as alunos/as, sigo para as reflexões sobre família e
desempenho escolar. Tal problematização é especialmente importante, tendo em
vista que os/as professores/as consideram que a participação da família favoreceria
um melhor desempenho escolar.
3.2 Relações entre família e desempenho escolar
A „família‟ foi citada como responsabilizada pelo desempenho escolar, por
alguns/mas dos docentes, por sua ausência e pela falta de comprometimento no
processo educacional de seus/suas filhos/as. De um lado, professores/as
responsabilizam os pais e as mães, tal como suscitou uma das professoras no artigo
de Carvalho (2001b), por sentir a necessidade da “parceira família-escola”. Pode-se
pensar na reprovação de um aluno como um ato hierarquizado, na qual o/a docente,
que pouco sabe da vida dos seus estudantes, não leva em conta os
atravessamentos de gênero e de pertencimento social. Muitas vezes, não sabemos
e nem temos condições de saber que aquele estudante quieto e apático, como
relatado em “Ele olha, e olha e não faz nada”... , é o reflexo de cansaço e/ou de
submissão. Isso pode ser visto na entrevista realizada pela autora com uma aluna
que fora reprovada pelas professoras. A moça em questão não tinha como estudar,
pois fazia todo o serviço doméstico dentro de sua casa. As professoras
consideravam-na como boa aluna, porém trazia “questões que pareciam totalmente
opacas para os adultos da escola” (CARVALHO, 2001b, p. 563). Esse é o outro lado
da moeda que não vemos, não conhecemos, mas está presente em tantas salas de
aula.
32
Os referidos dados são de extrema importância para educadores/as, para que
se possa refletir sobre essas e tantas outras ações realizadas cotidianamente no
fazer pedagógico. Os/as profissionais da educação têm múltiplas identidades: são
mães/pais, alunos/as, professores/as, tios/as, avós, e esses „lugares‟ construídos ao
longo da vida nunca estarão estabilizados, pois as pessoas estão sempre se
transformando. Nesse sentido, Louro (1997) expõe que a identidade é marcada por
outros demarcadores sociais, conforme descreve:
É possível pensar as identidades de gênero de modo semelhante: elas
também estão continuamente se construindo e se transformando. Em suas
relações sociais, atravessadas por diferentes discursos, símbolos,
representações e práticas, os sujeitos vão se construindo como masculinos
ou femininos arranjando o desarranjo, seus lugares sociais, suas
disposições, suas formas de ser e de estar no mundo. Essas construções e
esses arranjos são sempre transitórios, transformando-se na articulação
com as histórias pessoais, as identidades sexuais, étnicas, raça e de classe.
(p. 29).
A
maioria
dos/as
professores/as
entrevistados/as
considera
que
a
participação da família interfere no desempenho escolar, atribuindo que esta deveria
estar mais presente na escola, bem como ser mais participativa na vida estudantil.
Em suas falas, observamos declarações em que o termo „família‟ vai sendo
articulado ao bom ou ao mau desempenho escolar.
“Muitas vezes, o comportamento dos alunos em sala de aula vem de
problemas em casa, pois a família pouco acompanha os estudos. A
família deveria estar trabalhando de forma a ajudar o educando. O ideal
seria a tríade: pais/escola/educando, porém poucos têm recebido o apoio da
família.”
“Claro, pois a família interfere no comportamento diário na sala de aula.”
“Sim, os pais e familiares precisam ter muita participação no
desempenho escolar de seus filhos. Notamos isto quando o aluno está
com as notas baixas e os pais não vêm buscar suas avaliações.”
“Sim. Positiva e negativamente, dependendo do caso. Se a família apoia e
participa do desempenho escolar é melhor. Se for uma família sem
estrutura dentro dos padrões ditos „anormais‟, a tendência é que esse
aluno não se empenhe.”
“Família estruturada é aquela que acompanha os filhos na escola e se
preocupa com ele. Isso vem de casa, não se ensina na escola.”
“Sim. Em 30% dele. Uma família desestruturada impede que o aluno se
dedique à vida escolar. Mesmo que essa dedicação seja parcial, „metade
da cabeça‟ estará nos problemas familiares.”
“Sim, atualmente com a participação das mulheres no mercado de
trabalho fica difícil participar da vida escolar dos seus filhos.”
“É aquela em que se tem um pai e uma mãe que cuide dos filhos. E, não
essas mães que não estão nem aí!”
33
“Muitas vezes, o comportamento dos alunos em sala de aula vem de
problemas em casa, pois a família pouco acompanha nos estudos e
somente querem ver os resultados finais.”
“É fundamental a estrutura familiar, pois os horários de estudos devem
ser estipulados pela família”.
Maria Eulina Pessoa de Carvalho (2004) explicita como, através dos séculos,
as instituições família e escola foram se formando e, por sua vez, se distanciando.
Para essa autora, a relação entre escola e família, baseia-se “na divisão do trabalho
de educação de crianças e jovens, e envolvem expectativas recíprocas” (p. 41), pois
têm como objetivos a formação integral de homens e de mulheres.
Quanto à participação dos pais (e mães) na escola, a autora cita Henderson e
Berla, entre outros autores que compactuam da premissa “a participação dos pais na
escola está relacionada ao desempenho escolar” (ibidem, p. 45). Porém devemos
estar cientes de que os pais e as mães já não têm tanta disponibilidade para
acompanhar os/as estudantes no espaço educativo. Para Carvalho, a educação é
adquirida e propiciada pelas instituições família, trabalho, escola e meios de
comunicação de massa. A escola ainda parte do princípio de que quem deve „cuidar‟
da vida escolar e pessoal é a mãe, como vemos na expressão “essas mães que não
estão nem aí”. A escola, por meio dos professores/as, dirige-se a ela como
responsável pelo/a seu filho/a: “sobrecarregando as mães, sobretudo
as
trabalhadoras e chefes de família, portanto, perpetuando a iniquidade de gênero”
(ibidem, p. 42). Trazer os pais para a escola, assim como o envolvimento com suas
tarefas escolares cotidianas, não depende somente deles, mas da escola e de
políticas públicas eficientes. A escola quer que a família participe, mas se as famílias
interrogam mais do que o esperado a escola os considera inconvenientes. A autora
ainda cita que “o envolvimento ou participação dos pais, na educação dos filhos e
filhas significa o comparecimento às reuniões de pais e mestres, [...], comunicação
casa-escola e, sobretudo, acompanhamento nos deveres” (CARVALHO, 2004, p.
44). Aliado a essas questões, professores/as atribuem que somente a “Família
estruturada é aquela que acompanha os filhos”.
Quanto ao auxílio nas tarefas escolares, observamos que muitos pais e mães,
assim como responsáveis pelos/as alunos/as, são pouco escolarizados, e essa
questão não é refletida pela escola através de seus/suas professores/as.
34
A escola aqui pesquisada toma como princípio de que tem de haver maior
participação da família-escola, porém os pais, as mães ou demais responsáveis pelo
aluno/a não foram convidados a participar da elaboração, tampouco da alteração do
Projeto Político Pedagógico.
Marília Pinto de Carvalho (2001), pesquisando em uma escola paulista,
identificou que as professoras de forma específica atribuem aos/às responsáveis
pelos/as alunos/as o seu desempenho e a aprendizagem. Para os/as responsáveis
que não acompanham os/as alunos, atribuem que estes/as tenham problemas
familiares.
A
parceria
escola-família,
tão
suscitada
e
até
desejada,
aparece
constantemente na fala dos/as professores/as, portanto essa relação está longe de
ser pacífica. Assim, tanto a educação como a família estão longe de ser
homogêneas; ambas passaram a utilizar diversos arranjos. Se a escola mudou, a
família também teve alterações significativas.
Em palestra realizada no Congresso de Escola Particular Gaúcha, cujo tema
foi Escola, saberes, relações e valores, o psicanalista José Outeiral (2003) expõe
que a partir da década de 1970 “houve a passagem de um tipo de estrutura familiar,
onde vários graus de relações de parentesco habitavam uns próximos aos outros e
por vezes inseridas no mesmo sistema reprodutivo”. Nessa extensa família, todos
participavam da criação e da educação: “Havia um tecido social amplo”. Com o
passar das décadas, esse grupo tornou-se “pequeno, frágil e isolado: a Família
Nuclear”. Nessa nova configuração a rede de proteção ficou limitada a poucos
integrantes que fazem parte do processo de cuidar.
Outro fator que surgiu na entrevista com os/as professores/as diz respeito à
“participação das mulheres no mercado de trabalho”. Nessa questão, pode-se
retomar a afirmação de Meyer (2004), de que as mulheres, através do movimento
feminista, adquiriram o direito ao trabalho fora do contexto domiciliar, mesmo não
tendo remuneração igual à do homem.
Cláudia Fonseca (2004) mostra o quanto a questão familiar é tratada de modo
diferenciado nos bairros menos favorecidos: “há tempo, as camadas populares no
Brasil conhecem uma tradição familiar bem diferente do modelo conjugal estável” (p.
57). Aos olhos de uma sociedade que opera com uma norma pode parecer que
os/as filhos/as estejam desamparados, mas o que realmente ocorre são laços de
solidariedade
nas camadas populares, dizendo de outro modo, aos moldes do
35
“tecido social amplo” – ao qual Outeiral (2003) se refere – que abriga a criança
quando seus pais e suas mães e/ou responsáveis não estão presentes.
Para Fonseca (1995), uma mãe poderia deixar seu/sua filho/a por anos aos
cuidados de terceiros, sem que se caracterize abandono. Aos olhos de uma cultura
homogeneizante, que não valoriza o saber e os modos de viver de outra classe
social, uma mãe tem que estar sempre ao lado do seu/sua filho/a. A antropóloga
denomina esse evento como “circulação de crianças” (ibidem, p. 15), que são
cuidados/as por terceiros. O documentário intitulado: Ciranda, cirandinha: história da
circulação de crianças em grupos populares é inquietante no primeiro olhar, porém
apresenta o modo como circulam essas crianças em uma relação de solidariedade
entre os integrantes da comunidade descrita (idem, 1994).
Louro (1997) contrapõe-se a esses estereótipos de família nos quais o ideal, a
norma, é a que tem como pressuposto a união heterossexual, ou seja, de pessoas
de sexos diferenciados. A autora esclarece que, “por levar em conta a presença dos
múltiplos arranjos familiares na sociedade é que podemos supor distintas formas de
intervenção da família nas disposições escolares” (ibidem, p. 126), sabendo que as
representações conservadoras são vinculadas através de diversas pedagogias
culturais, assim como em veículos midiáticos.
Nas escolas, assim como nas famílias, desde a educação infantil os/as jovens
entram em contato com filmes e livros infantis que somente mostram uniões
heterossexuais, tomando-a como uma norma. Ruth Sabat (2004, p. 101) pondera
que “Um conjunto de procedimentos técnicos, gráficos e discursivos opera de
maneira
pedagógica
para
ensinar
formas
de
condutas
relacionadas
à
heterossexualidade como sexualidade normativa”.
Se aceitarmos que existem múltiplos arranjos familiares, independentemente
do sexo do homem e da mulher, a medicina tem anunciado que atualmente novas
configurações familiares estão surgindo. De acordo com Louro (2001, p. 10), através
das “novas tecnologias reprodutivas, as possibilidades de transgredir categorias e
fronteiras sexuais, as articulações corpo-máquina a cada dia desestabilizam antigas
certezas [...] subvertem as formas de gerar, de nascer, de crescer, de amar ou de
morrer”.
Como podemos perceber, a „família‟, em especial a família nuclear, tornou-se,
do ponto de vista dos/as professores/as, um fator preponderante no desempenho
36
escolar dos/as estudantes. Sendo assim, propomos uma reflexão para esse espaço
educativo.
37
4 CONCLUSÃO: UMA REFLEXÃO PARA O ESPAÇO ESCOLAR
Parafraseando Veiga-Neto (2003), meu objetivo não é propor soluções, nem
fazer prescrições, nem tampouco julgar, mas tecer algumas considerações
pertinentes às relações entre família, escola e desempenho escolar de alunos de
uma escola de ensino médio.
A pesquisa trouxe elementos para refletir que, além da avaliação conteudista,
o comportamento também é extremamente definidor da aprovação ou da reprovação
dos/as alunos/as. Estes/as, para passar para a etapa seguinte, têm dominar os
conteúdos, mas devem também portar-se bem e ter 75% de presença nas aulas.
Como critério definidor, o comportamento alia-se a um bom (ou mau) desempenho
escolar por parte dos/as professores/as, sendo inclusive propiciado um „aditivo‟ de
10% na média final.
Sobre desempenho, Dal‟Igna (2005) aponta que a escola fidelizou “A
instauração
de
um
desempenho
escolar
normativo,
além
de
atuar
na
produção/identificação dos desvios, permite medi-los, classificando-os enquanto
estados de anormalidade” (p. 89). Sendo assim, alunos/as com mau comportamento
apresentam um baixo desempenho e por isso precisam ser „corrigidos‟, para que se
igualem aos demais, para serem um/a aluno/a normal.
Neste trabalho de conclusão de curso, procurei discutir como as relações de
gênero operam na escola pesquisada, no que se refere ao desempenho escolar dos
alunos e das alunas. Na operacionalização do fazer pedagógico, percebi o quanto
os/as educadores/as ocupam uma posição arbitrária quando avaliam os/as
alunos/as, exercendo um poder hierarquizante: instituem quem são os/as bem
comportados/as que poderão seguir para a série seguinte e quem terá de refazer as
disciplinas em que foram reprovados/as.
Este trabalho proporcionou visibilizar que o processo avaliativo realizado
pelos/as professores/as é atravessado por pressupostos de gênero. Foi possível
perceber, também, de que forma essas construções passam a determinar o
desempenho dos/as estudantes, estipulando e estabelecendo uma norma de que o
comportamento dos meninos tem que ser diferenciado dos das meninas, e viceversa, sendo um padrão universalizante.
38
No conselho de classe observado, os meninos com mau comportamento
foram os maiores prejudicados, diferentemente de alunos e alunas bem
comportados/as
que
recebem
mais
estima
dos/as
professores/as
e,
consequentemente, melhores notas, devido ao acréscimo de 10% na média final.
Conforme o regimento escolar, o aluno precisa de média 60 para passar para a série
seguinte. Com isso, constata-se que o comportamento nessa escola é definidor de
aprovação/reprovação.
Como a escola pesquisada recebe alunas e alunos dos mais diversos bairros,
não consegui priorizar as suas liberdades de expressão, por não saber, muitas
vezes, qual é o contexto de cada um/a. Enquanto educadores precisamos aprender
com eles/as para ampliarmos a ação pedagógica, no sentido de refletirmos sobre
seus modos de agir e de ser. Se por um lado seus comportamentos nos „assustam‟,
pelo outro, devemos ouvir o que eles/as têm a nos dizer enquanto sujeitos
participantes do processo educativo.
Nosso cotidiano escolar está repleto de expectativas dos modos de ser e de
viver. As trilhas que percorri, através dos estudos de gênero, me fizeram refletir
sobre minha escola e, por que não dizer, minha vida, pois passo a maior parte do dia
dentro dela.
No meu TCC da graduação em Pedagogia, explorei e explanei modos de ser
de meninos e meninas, alicerçados no dualismo escolar de que cada um nasce e
deve agir de determinadas maneiras, correspondentes ao seu sexo. Se hoje tenho
uma visão totalmente diferenciada, foram os/as teóricos/as feministas que abriram
caminhos para entender melhor os/as alunos/as e também para entender melhor
esse mundo tão múltiplo. Muitas vezes, não percebemos as „fissuras‟ que ocorrem
no processo de identidade dos/as estudantes, como explicita Louro (1997). Nossa
identidade não é fixa, ela vai “sendo produzida, contestada, questionada e assumida
em múltiplas relações e práticas cotidianas, ao longo de vários anos” (ibidem, p. 7),
ou seja, por toda vida.
As diferenças biológicas são demarcadoras dos modos de ser homem e de
ser mulher. Somente após o curso pude refinar meu olhar para essa questão, fato
tão importante para quem trabalha não só em uma instituição escolar, mas em todos
os setores.
A família foi um dos tópicos do trabalho que gerou muita discussão. O termo
„família desestruturada‟ sempre vem à tona quando se atribuem notas baixas aos/às
39
alunos/as. Em pleno século XXI, ainda temos pressupostos de que a família nuclear
seja o modelo hegemônico, não percebendo que existem novas e múltiplas
configurações. Esse e muitos outros conceitos com referência a gêneros devem ser
trabalhados em nossas escolas.
Apesar de este trabalho dar-se como concluído, em resposta a um
determinado e instigante conteúdo acadêmico, senti a necessidade de ouvir e de
relatar o que os/as alunos/as e seus pais e mães e/ou responsáveis diriam com
relação ao „comportamento‟, contemplando, assim, toda a comunidade escolar.
Concordo com a proposta de Carvalho (2009, p. 838), de que, se tivéssemos
“critérios de avaliação de aprendizagem bem delimitados”, professores e professoras
não estariam tão confusos/as na hora de dar as notas, pois, como percebemos, não
existe um padrão definidor único na aprovação/reprovação dos/as alunos/as. Para
esta autora, se integrarmos o comportamento na avaliação, os meninos serão mais
prejudicados que as meninas, pelos seus modos de ser e de agir com mais
„saliência‟ do que as meninas. Mais adiante, ela propõe que os/as alunos/as tenham
somente a avaliação de aprendizagem, para que seja desvinculado da avaliação de
comportamento.
Há indicações de que uma nítida separação entre avaliação de
comportamento e avaliação de aprendizagem tende a diminuir o número
de meninos indicados para classes especiais ou atividades de reforço,
resultando em presença paritária entre os sexos uma vez que, da mesma
forma que nas escolas por mim estudadas, os meninos são considerados
mais agitados, indisciplinados e dispersos. (ibidem, p. 839). (grifos meus)
Em sua pesquisa nas escolas londrinas, percebeu que apenas uma entre
quatro escolas pesquisadas, em que o número de meninas era igual ao dos meninos
“no atendimento a alunos com dificuldades de aprendizagem” era a que “colocava
ênfase no sentido pedagógico desta ação, separando-a explicitamente dos
problemas comportamentais” (ibidem, p. 839). Como constatamos, a insígnia de uma
avaliação do/a aluno/a como um todo tende mais a prejudicar do que auxiliar.
Outro fator que julgo relevante para esta pesquisa é trazer a família para perto
da escola, no sentido de fazê-la participar do Projeto Político Pedagógico, para que
pais, mães e responsáveis se sintam tranquilos quanto à aprendizagem de seus
filhos e de suas filhas. Assim, a ligação entre família-escola será promissora para
toda a comunidade escolar.
40
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Copacabana Filmes. Gênero: Documentário. Música: Dado Villa Lobos. Fotografia:
Gustavo Hadba. Rio de Janeiro: Ravina Filmes e Fogo Azul Filmes, 2006. 1 bobina
cinematográfica (88 min), son., color., 35mm.
SABAT, Ruth. Só as quietinhas vão casar. In: MEYER, Dagmar; SOARES,
Rosângela (Org.). Corpo, gênero e sexualidade. Porto Alegre: Editora Mediação,
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SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e
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inteligentes, indisciplinados. Cadernos de Pesquisa, n. 107, p. 207-225, jul. 1999.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do
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VEIGA-NETO, Alfredo. Cultura, culturas e educação. Revista Brasileira de
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VÍCTORA, Ceres Gomes; KNAUTH, Daniela Riva; HASSEN, Maria de Nazareth
Agra. Pesquisa qualitativa em saúde: uma introdução ao tema. Porto Alegre:
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43
ANEXO A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido*
Prezada Professora,
A referida pesquisa pretende discutir a relação entre família, escola e
desempenho escolar, do ponto de vista das relações de gênero e, para tanto,
produzirei o material empírico juntamente com o grupo de professores que atendem
os alunos do primeiro ano do ensino médio desta instituição escolar.
A presente pesquisa será realizada através da coleta de dados no conselho
de classe das referidas turmas dos primeiros anos, sendo gravadas para fins de
pesquisa, e posteriormente destruídas. Ressaltamos que será assegurado às/aos
participantes o caráter confidencial e anônimo das informações, bem como a
possibilidade de desistir de participar da pesquisa a qualquer momento.
Pelo presente Termo de Consentimento, declaro que fui esclarecida/o, de
forma clara e detalhada, livre de qualquer forma de constrangimento ou coerção, dos
objetivos, da justificativa e dos procedimentos a qual serei submetida/o.
Assim como fui igualmente informada/o da garantia de receber respostas a
qualquer pergunta ou esclarecimento sobre os procedimentos e outros assuntos
relacionados à pesquisa, tendo a liberdade de retirar meu consentimento a qualquer
momento e deixar de participar do estudo, sem que isso me traga nenhum tipo de
prejuízo.
A segurança de que não serei identificada/o e que se manterá o caráter
confidencial e anônimo das informações. As imagens, como as informações e os
resultados desta pesquisa estarão sempre sob sigilo ético, não sendo mencionados
os nomes dos participantes em nenhuma apresentação oral ou trabalho escrito, que
venha a ser publicado.
A pesquisadora responsável por este projeto de pesquisa é a pós-graduanda
Elzira Tischer de Lima (51-9254-0816), orientada pela Prof.ª Dr.ª Dagmar Elisabeth
Estermann Meyer.
____________________
Participante da pesquisa
_______________________
Responsável pela pesquisa
Porto Alegre, 22 de dezembro de 2010.
* Elaborado em duas vias, uma entregue para a pesquisadora e outra para a
participante da pesquisa.
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Relações entre família, escola e desempenho escolar, sob a