UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE EDUCAÇÃO ESPECIALIZAÇÃO EM EDUCAÇÃO, SEXUALIDADE E RELAÇÕES DE GÊNERO ELZIRA TISCHER DE LIMA RELAÇÕES ENTRE FAMÍLIA, ESCOLA E DESEMPENHO ESCOLAR, SOB A PERSPECTIVA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO Porto Alegre 2011 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE EDUCAÇÃO ESPECIALIZAÇÃO EM EDUCAÇÃO, SEXUALIDADE E RELAÇÕES DE GÊNERO RELAÇÕES ENTRE FAMÍLIA, ESCOLA E DESEMPENHO ESCOLAR, SOB A PERSPECTIVA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO ELZIRA TISCHER DE LIMA Orientadora: Prof.ª Dr.ª Dagmar E. Estermann Meyer Coorientadora: Prof.ª Dr.ª Carin Klein Porto Alegre 2011 AGRADECIMENTOS Ao GEERGE, Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero, pela oportunidade de frequentar o curso que me proporcionou reflexões para minha qualificação tanto pessoal como profissional. À Dagmar Estermann Meyer, pela aceitação do projeto e da minha escolha de pesquisa. À Carin Klein, pelas orientações preciosas e principalmente pelo apoio incondicional, encorajando-me sempre nos momentos difíceis das elaborações de ideias. Ao Márcio Gastaldo, sou grata pela formatação e revisão deste texto, assim como pelas devidas alterações que se fizeram necessárias. Ao Marco Aurélio que, aparentemente, entendeu meu trabalho, mas que esteve presente nos problemas que foram surgindo e precisavam de seu apoio. Às minhas filhas Michelle e Janaína, que suportaram minha ausência nos momentos em que estive envolvida com meus estudos; que este trabalho sirva de inspiração para retornarem aos seus estudos para continuarmos nossa missão de educadoras. À Maria de Nazareth Agra Hassen e ao João M. Carneiro, que me adotaram emocionalmente de maneira carinhosa, atenta e preocupada. Quero ainda agradecer aos/às colegas professores e professoras que participaram das entrevistas e de suas contribuições para que este trabalho fosse realizado. Para todos e todas vocês, muito obrigada! RESUMO Partindo do pressuposto de que nas instituições escolares os alunos/as são avaliados/as de formas semelhantes, verificam-se múltiplos fatores que influenciam na sua aprovação ou reprovação. As análises estão embasadas pelos estudos culturais e de gênero na perspectiva pós-estruturalista, e apontam um quadro bem diferenciado na avaliação dos/as alunos/as, principalmente em relação ao comportamento. O disciplinamento dos/das estudantes ainda se apresenta como uma das formas de utilização de retenção. O objetivo da pesquisa é ampliar os sentidos sobre o que se compreende por comportamento de alunos/as e como estes vão sendo articulados, positiva ou negativamente, ao desempenho escolar. Investigou-se como os/as docentes se referem ao envolvimento e à participação da família e como esses atributos são relacionados ao desempenho escolar dos/as estudantes. Com o propósito de ampliar tais discussões, buscou-se dar visibilidade aos critérios que são atribuídos como relevantes em um modelo de avaliação conteudista. O corpus da pesquisa foi realizado em uma escola de ensino médio da rede estadual de educação na cidade de Porto Alegre, por entender que esse espaço congrega uma multiplicidade de aspectos que envolvem a avaliação escolar. Constatou-se que são utilizados diversos critérios na avaliação dos/as alunos/as, sendo o comportamento um fator definidor de aprovação/reprovação. Pela ótica dos/as professores/as, o envolvimento da família se faz necessário no acompanhamento escolar. Palavras-chave: Desempenho escolar. Gênero. Família. A escola delimita espaços. Servindo-se de símbolos e códigos, ela afirma o que cada um pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui. Informa o “lugar” dos pequenos e dos grandes, dos meninos e das meninas. Através de seus quadros, crucifixos, santos ou esculturas, aponta aqueles/aquelas que deverão ser modelos e permite também que os sujeitos se reconheçam (ou não) nesses modelos. O prédio escolar informa a todos/as sua razão de existir. Suas marcas, seus símbolos e arranjos arquitetônicos “fazem sentido”, instituem múltiplos sentidos, constituem distintos sujeitos. Guacira Lopes Louro (1997, p. 58) SUMÁRIO APRESENTAÇÃO................................................................................... 1 6 ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O ESPAÇO ESCOLAR E A CONTEXTUALIZAÇÃO DA INSTITUIÇÃO PESQUISADA.................... 8 1.1 A instituição escolar na atualidade...................................................... 12 2 CAMINHOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS........................................... 15 3 RELAÇÕES ENTRE COMPORTAMENTOS E DESEMPENHO ESCOLAR................................................................................................ 3.1 20 O conselho de classe como instrumento documental de reprovação ou aprovação...................................................................... 28 3.2 Relações entre família e desempenho escolar.................................... 31 4 CONCLUSÃO: UMA REFLEXÃO PARA O ESPAÇO ESCOLAR.......... 37 REFERÊNCIAS........................................................................................ 40 ANEXO A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido................ 43 6 APRESENTAÇÃO Neste trabalho de conclusão de curso de pós-graduação, pretendo analisar a relação entre família, escola e desempenho escolar sob o ponto de vista das relações de gênero no que tange à aprovação e à reprovação dos estudantes de nível médio de uma escola de ensino público estadual, situada no bairro Menino Deus, na cidade de Porto Alegre. Com o intuito de realizar este trabalho, utilizo a teorização nos estudos culturais e de gênero, em aproximação com o pósestruturalismo. Esta pesquisa torna-se relevante, tendo em vista que nosso sistema avaliativo parte de um pressuposto de que os/as estudantes são avaliados a partir de critérios semelhantes, porém no dia a dia observamos que diferentes compreensões fazem parte da avaliação de meninos e meninas. Para que essa proposta fosse realizada, foi elaborada entrevista com os/as professores/as e a participação do último conselho de classe do ano de 2010 dos/as alunos/as ingressantes no ensino médio. Essa interação possibilitou-me refletir sobre os modos de como os/as estudantes são avaliados/as pelos professores/as dentro desse espaço educativo, cujo objetivo principal é preparar para o vestibular, a fim dar seguimento aos estudos. Na primeira parte do trabalho, apresento aspectos referentes à escola, sua história enquanto espaço educativo – primeiramente inaugurado para atender o curso ginasial feminino –, com a devida contextualização, situando-a geograficamente dentro do bairro. Priorizei essa escola como lócus da pesquisa por fazer parte dela, não só como profissional, mas também por ser ex-aluna dessa instituição. Assim, acredito que o trabalho se torna proveitoso não só para mim, mas para toda comunidade escolar e também para refletir acerca de questionamentos que formulei ao longo do curso de especialização em Educação e Relações de Gênero. Busco discutir e construir reflexões, mostrando a relevância de alguns entendimentos que fazem parte da avaliação dos/as alunos/as, embasada em autoras como Guacira Lopes Louro (1997), que traça importantes discussões a fim de problematizar as relações de gênero no campo da educação. Essa autora nos possibilita ver o quanto a escola produz diferenciações e mais que isso: “Ela dividiu também, internamente, os que lá estavam, através de múltiplos mecanismos de 7 classificação, ordenamento, hierarquização” (LOURO, 1997, p. 47). Como podemos perceber, no âmbito dessa instituição meninos são avaliados de forma diferenciada das meninas. Partindo da contribuição de autores/as ligados/as aos estudos culturais e de gênero, pude formular as seguintes questões para apresentar aos/às professores/as participantes, servindo de base para esta investigação: Como o comportamento de alunos/alunas influencia no desempenho escolar? Como a participação da família interfere no desempenho escolar? Para a coleta de dados, a metodologia utilizada para a pesquisa foi a observação participante do conselho de classe de final de ano e a utilização de uma entrevista semiestruturada, realizada na referida escola de ensino médio, das turmas de alunos/as ingressantes. Nesta pesquisa, procuro mostrar a relevância de alguns aspectos que fazem parte da avaliação dos/as alunos/as, quais critérios e argumentos são utilizados pelos/as professores/as para efetivar a aprovação/reprovação. Os campos teóricos das relações de gênero e dos estudos culturais apontam reflexões acerca de um quadro bem diferenciado na avaliação de nossos/as estudantes, principalmente em relação à diferenciação de gênero. Na relação entre escola, família e desempenho escolar dos/as alunos/as, procuro apreender, sob o ponto de vista dos professores/as, o que se entende por desempenho escolar e em que aspectos a participação da família favorece ou interfere na atuação de seus/suas filhos/as. Busco, ainda, compreender que critérios são atribuídos, pelos/as docentes, como relevantes, além da avaliação conteudista. 8 1 ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O ESPAÇO ESCOLAR E A CONTEXTUALIZAÇÃO DA INSTITUIÇÃO PESQUISADA A instituição escolar pesquisada pertence ao bairro Menino Deus, ocupando um quarto de quarteirão, com um total de 2.092m2. Conta com um prédio de dois andares e um amplo pátio demarcado com grades, para que funcionários/as e docentes pudessem ter um controle maior dos/as estudantes no horário de entrada e no intervalo. As salas de aula, assim como os setores administrativos, possuem amplas janelas que fornecem uma vista das árvores cinquentenárias. O interior das salas de aula encontra-se pouco conservado, sendo que alguns mobiliários datam da inauguração da escola. Devido à sua proximidade com o centro histórico da cidade e por ser de fácil acesso aos demais bairros localizados na zona sul, a escola atende não só aos moradores do seu entorno, mas também de bairros adjacentes, assim como de outras cidades da região metropolitana. Conforme consta no regimento escolar da instituição, suas atividades tiveram início em 1957, com o Curso Ginasial Feminino. O currículo era extremamente diferenciado da atualidade, pois a intenção naquela época era formar mulheres que seriam esposas no futuro. Constava na grade curricular a disciplina de trabalhos manuais, que proporcionava um aprendizado prático para uma boa dona de casa e mãe. Nesse contexto, conforme nos aponta Léa Resende Archanjo (1998, p. 87), os currículos eram “baseados no caráter biológico da diferença entre os dois sexos”. Uma educação ministrada para homens era diferenciada das mulheres que, através da Lei Orgânica do Ensino Secundário e adotada pelo ministro Capanema em 1942, priorizava que a educação das mulheres deveria orientá-las para as atividades do lar e para a maternidade. A escola contava, naquele período, com duas inspetoras para um maior controle das moças. O bom comportamento das alunas deveria ser preservado através da vigilância, apesar de serem somente 38 mulheres estudantes. Nesse sentido, Archanjo expõe nas primeiras páginas de seu livro que, embora tenhamos a exigência de uma educação igualitária entre os sexos, na época os homens “tinham como prioridade a vida profissional, já as mulheres abriam mão das possibilidades de prosseguir os estudos e investir numa carreira em favor da vida familiar” (ibidem, 9 p. 7). Desse modo, muitas mulheres foram sendo desestimuladas e impossibilitadas de entrar numa universidade, pois seu futuro já estava traçado socialmente – tanto pela instituição escolar como pela instituição religiosa – para o casamento e para a maternidade. Esse modelo educacional propiciava um ensino diferenciado baseado no sexo dos/as alunos/as, em que as meninas eram direcionadas para o lar e os meninos eram incentivados a seguirem seus estudos e tornarem-se „chefes‟ de família. Nessa linha, na década de 1970, apesar do crescente crescimento das atividades profissionais femininas, Archanjo (1998, p. 97) expõe que o “trabalho fora do lar não é encarado como meio de realização pessoal”. Socialmente, o futuro das mulheres dependeria mais de um bom casamento do que de uma profissão, já que “o homem deveria ser o provedor financeiro da família, enquanto a mulher deveria manter a harmonia familiar organizando a vida doméstica e criando um ambiente de paz e conforto para marido e filhos” (ibidem, p. 97). A reflexão dessa autora faz-me ampliar a contextualização da escola pesquisada, que a partir da década de 1960, sob a denominação de Colégio Estadual, as turmas passaram a ser mistas, não mais com um currículo diferenciado para moças e rapazes. Assim, a escola especializou-se na produção de sujeitos competentes e trabalhadores/as, baseada na educação tecnicista, que proporcionava ao mercado de trabalho mão de obra especializada. O professorespecialista utilizava livros didáticos específicos com a objetividade de formar o aluno-autônomo, que aprimorava seus conhecimentos através da repetição dos exercícios. A única disciplina que ainda operava com a distinção dos sexos era a de Educação Física, pois o único esporte em que as meninas poderiam usar a bola era nos jogos de vôlei e nas aulas de dança rítmica. Porém havia uma maior integração entre as escolas através dos campeonatos estudantis promovidos pela Secretaria de Educação e Cultura, que salientava a relevância do esporte na vida do adulto que está por vir. Louro (1997, p. 72) aponta que nessa disciplina ainda vigora a égide do caráter biologicista: Ainda que várias escolas e professores/as venham trabalhando em regime de coeducação, a Educação Física parece ser uma área onde as resistências ao trabalho integrado persistem, ou melhor, onde as resistências provavelmente se renovam, a partir de outras argumentações ou de novas teorizações. 10 A representação social dos anos 1960 apresentava-se de forma diferenciada para os/as estudantes. Tomaz Tadeu da Silva (1999) indica que, historicamente, o currículo não contemplava a igualdade, porque as mulheres entraram mais tarde na instituição escolar: Estava claro, para essa análise, que o nível de educação das mulheres [...] era visivelmente mais baixo que o dos homens, refletindo seu acesso desigual às instituições educacionais. Mesmo naqueles países em que o acesso era aparentemente igualitário, havia desigualdades internas de acesso aos recursos educacionais: os currículos eram desigualmente divididos por gênero. Certas matérias e disciplinas eram consideradas naturalmente masculinas, enquanto outras eram consideradas naturalmente femininas. Da mesma forma, certas carreiras e profissões eram consideradas monopólios masculinos, estando praticamente vedadas às mulheres. (SILVA, 1999, p. 92). Vale dizer em linhas gerais que, quanto à profissionalização, o critério era que correspondesse a um determinado gênero. Silva (ibidem) afirma que, por serem consideradas incapazes para certos cargos, dificultava-se o acesso das mulheres na faculdade de Medicina, por exemplo, instruindo-as a serem enfermeiras, já que médicos deveriam ser os homens. Dagmar Meyer (2003) também aponta que certas atribuições, apesar de serem exercidas pelas mulheres, “eram quase sempre, controladas e dirigidas por homens” (p. 13). Sua atuação nas escolas e nos hospitais era definida “como secundárias ou de apoio”. Essas visões são exercidas pelas diferenciações dos seus corpos, pelo sexo, reforçando as desigualdades de gênero. Outro fator importante explicitado por Meyer (2004) é que as mulheres, mesmo exercendo a mesma profissão de um homem, tendem a receber um salário inferior, mesmo tendo um grau de escolaridade maior. Esse fator por muito tempo desestimulou mulheres a embarcarem no espaço público, não por incapacidade ou incompetência, mas por não ter oportunidade de atuar de forma igualitária aos homens. Louro (1994) apresenta algumas dimensões importantes que atravessam o processo educativo na perspectiva das relações de gênero, expondo da seguinte maneira: O processo de educação de homens e mulheres supõe uma construção social e corporal dos sujeitos. Implica na transmissão/aprendizagem de princípios, valores, conhecimentos, habilidades; supõe também a internalização de gestos, posturas, comportamentos, disposição „apropriadas‟ a cada sexo. (ibidem, p. 41). 11 Para a autora (idem, 2001), a escola tem como intencionalidade moldar o corpo de determinada forma, como se houvesse um modelo hegemônico e determinante de sermos homens e mulheres, assim “a escola também deixou marcas expressivas em seu corpo e ensinou a usá-lo de determinada forma” (LOURO, 2001, p. 18). Na escola, seu arranjo espacial e seus móveis delimitam o espaço na qual o/a estudante deve se mover. Louro (1997, p. 58) manifesta que a escola “afirma o que cada um pode (ou não pode) fazer”. Isso quer dizer que não é um local onde os alunos circulam livremente; ao contrário, existe um rígido controle para o acesso a determinados setores. Para Dayrell (1996), a escola é um espaço sociocultural que opera com duas dimensões: a institucional – com suas normas e regras que buscam unificar e delimitar a ação dos sujeitos que a compõem – e a cotidiana – que visa a estabelecer as relações dos sujeitos que convivem neste espaço delimitado. Nesta dimensão, os/as jovens criam alianças/conflitos e estratégias tanto individuais como coletivas que estão longe de ser uma relação homogeneizante e unificada. Esse autor considera que a arquitetura da escola favorece o controle dos/das alunos/as, assim como do corpo docente e dos/as funcionários/as. Todos os espaços de dentro da escola já foram definidos anteriormente, fato esse que desestimula o/a estudante a participar de forma democrática da instituição, pois tudo já está delimitado e pronto para ser usado. Marília Pinto de Carvalho (2001), em pesquisa realizada numa escola, afirma que o controle também se estendeu “sobre suas professoras, até mesmo sobre seus conteúdos ministrados” (p. 238), atribuídos pela Secretaria de Educação daquele município pesquisado. Isso denota que existe uma hierarquia a ser seguida pelos/as profissionais da educação. Michel Foucault (2000) pontua que a escola foi construída nos mesmos moldes que o hospital, o asilo e as prisões. Sua arquitetura foi projetada para que seus ocupantes sejam observados e que se exerça uma vigilância constante: [...] uma arquitetura que não é mais feita simplesmente para ser vista [...], ou para vigiar o espaço exterior [...], mas para permitir um controle interior, articulado e detalhado – para tornar visíveis os que nela se encontram; [...] uma arquitetura que seria um operador para a transformação dos indivíduos: agir sobre aquele que abriga, dar domínio sobre seu comportamento, [...]. O velho esquema simples do encarceramento e do fechamento, do muro espesso, da porta sólida que impedem de entrar ou de sair [...]. (ibidem, p. 144). 12 Desse modo, o processo de escolarização busca moldar, no sentido do disciplinamento, corpos de meninos e de meninas de formas diferenciadas, demarcando atitudes específicas. Sendo assim, espera-se que, ainda atualmente, as meninas sejam mais dóceis, comportadas, prestativas e caprichosas. Já dos meninos esperam-se características opostas, na qual a violência tende a ser permitida em muitas ocasiões, como, por exemplo, nas brincadeiras e nos esportes, demarcando o disciplinamento dos corpos de meninos e meninas desde as classes de educação infantil. Louro (2001) apresenta importantes ponderações sobre educação e os modos de educar os corpos e, para isso, cita Philip R. D. Corrigan, que expõe suas memórias de estudante, na qual a conduta masculina deveria seguir uma “violência consentida”, assim, “todos os investimentos eram feitos no corpo e sobre o corpo” (ibidem, p. 17). Foucault (1987), ao analisar a estrutura escolar, conclui que ela se assemelha a hospitais e quarteis por sua forma facilitar uma constante vigilância através de um olhar panóptico que tudo controla, inclusive os modos de ser de seus integrantes: Esse espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos num olhar fixo, onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes [...] – isso tudo constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinador. (ibidem, p. 163) Nesse sentido, a escola (ainda) opera com o pressuposto de que os/as alunos/as têm de ser vigiados/as constantemente. Nem todos os espaços podem ser utilizados livremente por todos/as os/as integrantes da escola, a não ser, é claro, com autorização expressa do/a responsável pelo setor. Exemplo disso é que nem todos/as os/as professores/as têm acesso a todas as dependências da instituição escolar. 1.1 A instituição escolar na atualidade Atualmente, a instituição atende pela denominação de Escola Estadual de Ensino Médio. Pela sua singular característica de operar com matrícula por disciplina 13 (MPD), diferencia-se das demais instituições de ensino público da capital. Essa modalidade surge, também, por existir certa carência nos demais bairros de escolas de ensino médio, uma vez que a prefeitura tem por obrigação legal fornecer ensino fundamental gratuito e cabe o estado dar continuidade da escolarização do ensino médio. Devido a essa particularidade, a escola acaba tendo uma procura bastante significativa. A referida instituição escolar atendeu no ano de 2010 um total de 820 alunos, distribuídos em três turnos: manhã, tarde e noite. Atualmente está sob a administração de uma equipe diretiva eleita pela comunidade escolar, na qual fazem parte: a diretora-geral, a vice-diretora substituta, que atende o turno da manhã, a vice-diretora para o turno da tarde e a vice-diretora que atende o turno da noite, além de duas supervisoras, duas orientadoras nos turnos da tarde e noite, uma bibliotecária, 49 professoras, sete professores, três secretárias (uma para cada turno), duas monitoras, quatro serventes e duas merendeiras. No total, o quadro funcional possui 76 integrantes. Atua desde 1989 com o sistema MPD. Esse diferencial originou-se através de políticas públicas pela Secretaria da Educação, devido ao alto índice de reprovações, havendo a necessidade de implantar um currículo que ampliasse as alternativas para os/as alunos/as, facilitando a aprovação. Maria Alice Setubal (2000, p. 10) atribui às repetências fatores como “atitudes de rebeldia ao sistema como um todo, ou falta de perspectiva e emprego, até questões internas à escola, que não estaria sabendo ouvir e respeitar esse aluno, buscando tornar o conhecimento significativo para ele”. Além de garantir o aprendizado aos/às educandos/as, a escola deve, também, garantir sua permanência. Marília Pinto de Carvalho (2001a) relata que políticas públicas favorecem a permanência de alunos/as dentro do espaço escolar. A escola aqui pesquisada é um exemplo desse movimento que permite aos/às estudantes cursar no turno inverso a disciplina na qual foi reprovado/a, seguindo para a etapa seguinte. Desse modo, é favorecida a “diminuição drástica do número de reprovados” (ibidem, p. 555). Vale ressaltar que a autora, no artigo Estatística de desempenho escolar: o lado avesso, aponta que, por trás da “diminuição dos índices de evasão e repetência” (idem, 2001b, p. 232), estão sendo usados critérios não muito definidos para a avaliação e o desempenho escolar de estudantes. Sendo assim, acredito que, não havendo um padrão para definir o processo individual do/a aluno/a, as 14 avaliações tornam-se arbitrárias. Esses indicadores de melhorias vão muito além das notas e dos conceitos atribuídos. As estatísticas que apresentam o fracasso escolar vão muito além dos números. A autora cita, ainda, os dados do Censo Escolar 2000, os quais indicam que as mulheres são a maioria de aprovadas “desde as séries finais do Ensino Fundamental, no Ensino Médio e no Curso Superior” (CARVALHO, 2001b, p. 232). Como podemos perceber, existe um engendramento das relações de gênero, diferenciando homens e mulheres dentro do espaço educativo. O Projeto Político Pedagógico (PPP) que rege a escola está desatualizado (sua data de elaboração é de 2002), não foi baseado em nenhum referencial teórico e não contou com a participação da comunidade escolar de forma adequada em sua elaboração, tais como: professores/as, funcionários/as, pais/mães, responsáveis e alunos/as. Mesmo assim, foi assinado pela equipe diretiva com a participação das professoras eleitas pela comunidade, que representam e atuam nesse espaço educativo. Nesse documento, existe um item em que a escola aponta como necessidade trabalhar com a dinâmica de seu grupo de professores e professoras, no sentido de promover maior integração. Sugere-se, ainda, a participação em cursos de atualização profissional e em grupos de estudos, pois alguns/algumas profissionais efetivados/as estão há mais de dez anos sem realizar aperfeiçoamentos. Isso denota uma preocupação da escola no sentido de qualificar seu quadro funcional. Pela valorização das relações interpessoais, a aprendizagem pelos alunos e alunas terá maior êxito se educadores/as sentirem-se sensibilizados/as e implicados/as em suas funções. Esse é o fator primordial da atual equipe diretiva da escola. Tal espaço objetiva um ensino de qualidade e eficiente aos/às estudantes, para que se sintam acolhidos/as, pertencentes e sujeitos desse espaço educativo. Através da observação participante, de entrevistas e da participação no conselho de classe, procurei analisar quais critérios a escola – a partir de seus professores e de suas professoras – utiliza para avaliar o desempenho escolar dos/as alunos/as do primeiro ano do ensino médio. 15 2 CAMINHOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS As metodologias de pesquisa nesta investigação são uma construção a ser realizada a partir do referencial teórico dos estudos culturais e de gênero. Assim, minha abordagem de referência foi trilhada por estudiosos/as feministas e pósestruturalistas, além de suas articulações no campo da Educação. Buscando problematizar a relação entre família, escola e desempenho escolar, sob o ponto de vista das relações de gênero, utilizei mais de um procedimento para a produção do material empírico. O questionamento feito aos/às professores/as na escola estadual de ensino médio teve como propósito responder às seguintes questões: Como o comportamento de alunos/alunas influencia no desempenho escolar? Como a participação da família interfere no desempenho escolar? Partindo do pressuposto de que antes mesmo de nascermos somos indivíduos generificados, atribuem-nos modos de ser e de agir e de nos comportarmos como homens e mulheres pela visão biologicista, ou seja, pelo nosso sexo. Porém não se nega este fator, mas se enfatiza a dimensão cultural. Com o intuito de conceituar gênero, tomo como referência Louro (1997, p. 22), a qual manifesta que a categoria gênero surge “através das feministas anglosaxãs”, na qual atribui que “não é negada a biologia, mas enfatizada, deliberadamente, a construção social e histórica produzida sobre as características biológicas”. Com essa mesma linha de pensamento, Joan Scott (1995, p. 72), conceitua que a categoria denominada „gênero‟ indica “rejeitar um determinismo biológico, implícito no uso de termos como sexo ou diferença sexual”. Esse conceito refere-se à organização social da relação entre os sexos, ou seja, “uma noção relacional” entre o masculino e o feminino, pois só definiremos o que é ser homem ao definirmos o que é ser mulher, e assim por diante. Silva (1999, p. 93) também expõe que “o conceito de gênero na teoria feminista teve o mérito de chamar a atenção para o caráter relacional das relações entre os sexos”. 16 Nesse mesmo movimento, Meyer (2003, p. 16) esclarece que “As abordagens feministas pós-estruturalistas se afastam daquelas vertentes que tratam o corpo como uma entidade biológica universal”, atribuindo que “o conceito de gênero privilegia, exatamente, o exame dos processos de construção dessas distinçõesbiológicas, comportamentais ou psíquicas-percebidas entre homens e mulheres”,(ibidem, p. 16). O termo „cultura‟, no singular, surge no século XVIII, pelos alemães. O termo Kultur vem a designar, como expõe Alfredo Veiga-Neto (2003, p. 7), as ações “de produzir e apreciar obras de arte e literatura, de pensar e organizar sistemas religiosos e filosóficos – especialmente todo aquele conjunto de coisas que eles consideravam superiores e que os diferenciava do resto do mundo”. Vem dessa concepção original a diferenciação de alta/baixa cultura, denotando a distinção entre uma cultura e outra. Na intencionalidade de conceituar „cultura‟, tomo como referência Silva (1999), segundo o qual os estudos culturais concebem a cultura como campo de lutas e de contestação: “A cultura é um campo onde se define não apenas a forma que o mundo deve ter, mas também a forma como as pessoas e os grupos devem ser. A cultura é um jogo de poder” (p. 134). Na nossa cultura, atribui-se que a construção de um corpo seja alicerçada na produção de hábitos e comportamentos marcadamente masculinos ou femininos. Sendo assim, a escola, nos dizeres de Silvana Vilodre Goellner (2003, p. 37), é um espaço que tem como princípio a “educação do corpo”, tratando de adequá-lo dentro de padrões normalizantes, moldando-o. Nesse sentido, a autora adverte: “um corpo não é só um corpo. É ainda, o conjunto de signos que compõe sua produção” (ibidem, p. 37). Bell Hooks (2001) aponta o quanto os/as educadores/as ignoram os corpos dos/as alunos/as, que também estão presentes dentro da sala de aula, sem levar em conta os processos de naturalização da diferença e da desigualdade de gênero, na qual meninas e mulheres, por exemplo, são ensinadas a desenvolver funções relacionadas à educação de crianças e ao cuidado de sua família. Na instituição escolar, “o corpo tem de ser anulado, tem que passar despercebido” (ibidem, p. 115). Na mesma linha, Meyer (2003) direciona um olhar crítico sobre as argumentações que a sociedade toma como pressupostos universais, que através das diversas mídias, de livros didáticos, paradidáticos e da televisão – pelas novelas 17 e pelos comerciais – é reforçado como sendo natural uma ideia reduzida da diferenciação de papeis/funções de mulher e de homem. De acordo com essa visão estreita, a mulher nasceu para ser mãe e cuidadora do espaço privado, enquanto o homem é visto como protetor de sua prole e dominante do espaço público (MEYER, 2003). Maria Cláudia Dal‟Igna (2005) apresenta questionamentos acerca do desempenho escolar e das relações de gênero no âmbito do espaço escolar. Em seu estudo, cita o psicólogo terapeuta Steve Biddulph, autor do livro Criando meninos, que atribui a estes um melhor aprendizado do que as meninas. Ele relata que os “hormônios masculinos, mais especificamente a testosterona, no comportamento e desenvolvimento dos meninos” (ibidem, p. 126) – entre outros fatores – favorecem os meninos em detrimento das meninas. A proposta desta pesquisa é desconstruir e duvidar desses pressupostos estritamente generificados, do critério de valor atribuído às diferenças de gênero, nas quais o masculino se sobrepõe ao feminino. Para Foucault (2005), o poder é uma rede que atua “capilarmente”, não sendo possível exercê-lo em uma única direção, pois permeia por toda uma rede de relações que se estabelece socialmente. Nesse sentido, o poder não se esquivaria das relações de gênero. O autor também fez importantes reflexões sobre o disciplinamento como forma de adestramento dos corpos através de “observatórios”, como a escola-edifício (idem, 1987, p. 145). A escola utiliza, como no exército, todo o tipo de punição para com os que não se comportem como desejado. Assim como na prisão, no quartel e no hospital, a escola tornou-se também uma “máquina de observar” os corpos que nela transitam. Mais adiante, Foucault indica que “tudo que está inadequado à regra, tudo que se afasta dela, os desvios” (ibidem, p. 149) devem ser contornados. Para a presente pesquisa, a coleta de dados contou com a observação participante no último conselho de classe do ano letivo de 2010 – das turmas descritas abaixo –, no qual se fez uma gravação para posterior análise, o que favoreceu identificar quem eram os/as alunos/as reprovados/as e que critérios foram utilizados na aprovação/reprovação destes/as. Concomitantemente, foi realizada uma entrevista semiestruturada para que o/a professor/a pudesse expor seus critérios avaliativos. Ao todo foram 10 turmas, assim designadas pela escola: Turno da manhã: 1MA, 1MB, 1MC, 1MD. 18 Turno da tarde: 1TA, 1TB, 1TC. Turno da noite: 1NA, 1NB, 1NC. A partir de um roteiro prévio, realizei as entrevistas de maneira semiestruturada, para que os/as docentes pudessem responder às questões de forma a apresentar os seus pontos de vista, assim como apontar alguns sentidos sobre o tema e fornecer informações complementares, propiciando uma maior interação com os/as demais professores/as. A cada professor/a que participou da pesquisa através da entrevista e da gravação do conselho de classe, foi fornecido o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE), pelo qual fica o caráter confidencial e anônimo das informações, bem como a possibilidade de desistir a qualquer momento da pesquisa. Houve o cuidado para que o nome verdadeiro dos/as alunos/as não constasse transcrito neste trabalho, assim como o nome dos/as professores/as. A entrevista e a gravação do conselho de classe foram consentidas por 31 professoras e três professores; um grupo predominantemente feminino. Essa informação converge com o que diz Louro (1997, p. 94), quando discute sobre a ocorrência de uma feminilização do magistério. A autora argumenta que “no Brasil a instituição escolar é, primeiramente masculina e religiosa”, ficando a cargo dos jesuítas que tinham a missão de catequizar os índios e de formar “meninos jovens brancos da classe dominante”. Somente a partir da metade do século XIX é permitida a entrada das mulheres nas salas de aula como alunas e, posteriormente, como docentes. Nesse movimento, o magistério “se tornará, neste contexto, uma atividade permitida e, após muitas polêmicas, indicada para mulheres” (ibidem, p. 95), o que facilitou a conquista do espaço feminino nas escolas. Flávia Obino Corrêa Werle (2005, p. 612) realiza um resgate histórico segundo o qual, “embora objetivando formar professores homens para atuar no magistério, das primeiras letras, muitas de suas matrículas foram ocupadas por mulheres órfãs”. Originava-se, assim, o processo de feminização da profissão, embora as professoras fossem dirigidas por um homem, na função de padre-diretor. Mais adiante, a autora expõe que, em 1890, “o poder público da época adotava estratégias discursivas e de convencimento, reafirmando a importância de recorrer às professoras habilitadas [...] para suprir as cadeiras do sexo masculino vagas por falta de professores homens” (ibidem, p. 616.) Como se pode perceber, o aparecimento de mulheres no magistério deu-se através do sistema religioso, que 19 propiciou que fossem habilitadas a dar aulas primeiramente somente aos meninos. Posteriormente, a partir de 1900, a educação era propiciada às meninas de classes mais favorecidas. Werle (2005, p. 610) infere que essa configuração predominantemente feminina pode ser um dos fatores que “apontam prejuízos para a formação dos alunos decorrente de tal predominância”, pois, sendo escolas com maioria de mulheres, estas poderiam não estar auxiliando os meninos de maneira adequada, de forma que facilitasse sua aprovação. Tais considerações fazem parte da minha inserção como agente educacional no contexto da escola pesquisada. Acredito que, apesar de já ter um contato diário nessa instituição, minha participação no conselho de classe não foi neutra e, sim, de certo desconforto para alguns/algumas dos/as participantes, por estar gravando e posteriormente refletindo sobre as falas transcritas. Nesse ponto, Alba Zaluar (1986, p. 115) refere o sentido de que o/a pesquisador/a, ao interagir com o grupo a ser pesquisado, torna-se um sujeito de “uma alteridade nunca resolvida nem dissolvida nos encontros e desencontros que a pesquisa traz”. Da mesma forma, Rosa Maria Hessel Silveira (2007, p. 119) apresenta a “tensão instituída na dupla”, entre o/a professor/a entrevistador/a e o/a professor/a entrevistado/a, permeado por uma cultura hierárquica no momento em que um pergunta e o outro responde. Ceres Gomes Víctora, Daniela Riva Knauth e Maria de Nazareth Agra Hassen (2000, p. 56) consideram que “a presença do pesquisador já é parte do evento observado”; nesse sentido, deixa de ser uma reação neutra para ser já um evento. Tais autoras ainda estabelecem critérios para serem utilizados na pesquisa, como a utilização da “triangulação de informações” (ibidem, p. 54), que consta das seguintes etapas: “documentos escritos”, na qual pude colher informações desde a inauguração da escola, que somente foram possíveis através de documentos internos; “dados de observação”, na participação no conselho de classe; e “depoimentos”, obtidos através da entrevista semiestruturada. De posse desses documentos, pude trilhar os passos da escola pesquisada e, posteriormente, colher informações junto com os/as professores/as sobre como os/as alunos/as são avaliados. Através da análise desses dados, poderei compor meu objeto de pesquisa. 20 3 RELAÇÕES ENTRE COMPORTAMENTOS E DESEMPENHO ESCOLAR Recentemente, no ano de 2006, professores e professoras foram contemplados/as com um documentário do diretor João Jardim, intitulado Pro dia nascer feliz. A partir da apresentação do conselho de classe de uma escola pública, a obra acaba por ser um reflexo do que acontece na escola aqui pesquisada. Os alunos/as têm a seu favor a nota das provas – um fator objetivo – e mais a pontuação relativa a trabalhos realizados e à participação em aula, estipulado pelos/as docentes em 10%. Isso denota que não se utilizam somente as notas das provas, mas também critérios subjetivos para produzir a nota final. Entretanto as considerações e as justificativas são extremamente diferenciadas, não existindo o mesmo parâmetro para todos/as os/as alunos/as. Aprovar ou reprovar depende de variantes distintas, movidas pela subjetividade do/da docente com relação aos/às alunos/as, pois o/a professor/a também é um sujeito produzido pela/na cultura, principalmente com relação ao gênero dos/as estudantes. Tomo aqui a noção de que cultura é um campo de disputas pelo poder de significar e de dar sentido às coisas e aos modos de ser e de viver. Para Silva (2003), é na cultura que aprendemos a significar e a dar sentido para o mundo e para as nossas atitudes, sem refletirmos sobre o fazer pedagógico que naturaliza determinados conceitos e comportamentos, conforme se evidencia nas falas dos/as professores/as, que serão apresentadas oportunamente. As relações que se estabelecem no âmbito escolar parecem ser harmônicas à primeira vista, porém, na medida em que adentrei o espaço enquanto pesquisadora, esse quadro sofre uma metamorfose. Passei, então, a perceber uma trama de tensões e conflitos em que os/as professores/as convergem e divergem em torno da atribuição diferenciada de valores para aprovação/reprovação. Convém ressaltar que, para o/a aluno/a passar de ano, deve atingir a média de 60 e possuir uma frequência de 75% do total de 200 dias letivos. Pelo depoimento dos/as professores/as, coletados nas entrevistas, o comportamento é um fator relevante no desempenho escolar dos/as alunos/as, como podemos perceber nos excertos transcritos abaixo: 21 “O comportamento dos alunos influencia diretamente no desempenho escolar. Alunos com mau comportamento, em geral, possuem um péssimo rendimento.” “Certamente influencia, na medida em que o aluno tem um bom comportamento, ficar quieto e prestar atenção na aula. Não tem concentração quando o aluno fica para lá e para cá.” “Se o aluno tem um bom comportamento eu dou 10% de participação, o que ajuda na média final.” “Ah, a Carla! Ela não está nem aí. A gente vê o comportamento dela. Que bom que ela reprovou. Tem que rodar. Não tem disciplina.” [Referindo-se à Turma 1MA] “São terríveis e não param quietos, parecem umas crianças. Esses guris são fogo. São preguiçosos e inteligentes.” “Ela tem bastante dificuldade e está sempre conversando.” Valerie Walkerdine (1995, p. 209) diz que as escolas operam com um padrão ideal a ser seguido por todos/as os/as estudantes, no qual o conhecimento está pautado por pressupostos baseados em Piaget sobre o desenvolvimento infantil. Entendo que essas diretrizes orientam uma „produção de verdade‟ sobre os sujeitos, que trata de estabelecer e orientar quando e o que cada um/a deve saber, para que todos/as sejam devidamente regulados e governados. Com isso, nada melhor do que „conhecer‟, para poder „regular‟, tornando-se, assim, um padrão ideal a ser seguido por muitas escolas. Para aqueles/as que porventura escaparem a essas normas, existe a medicalização para „dominá-los/as‟, ou melhor, aquietar seus corpos e suas mentes. Carvalho (2001b) expõe o quanto o processo avaliativo dos/as alunos/as está sendo direcionado. Por trás da diminuição dos índices de evasão e de reprovação escolar, estão sendo utilizados critérios não muito definidos. A autora propõe um olhar criterioso sobre a avaliação, indicando que “as cifras do desempenho escolar são produzidas pelos próprios professores e professoras, a partir de critérios, codificações e classificações” (ibidem, p. 234). Carvalho indica, ainda, que docentes adotam, na avaliação, “alguns critérios em seu preenchimento, tendentes a diminuir o número de alunos com conceitos negativos” (ibidem, p. 239). Para a autora, os/as alunos/as abaixo da média ainda recebem “certos atributos de comportamento como: agressividade, agitação, „dar trabalho‟, „falar demais‟ [...] não querer fazer as tarefas” (ibidem, p. 244). Observo na fala dos/as professores/as que o bom comportamento está relacionado a “ficar quieto”, “prestar atenção”; já o mau comportamento é sinônimo 22 de “não tem disciplina”, “são preguiçosos”, ficar “sempre conversando” e “o aluno fica para lá e para cá”, ou seja, a incapacidade de os/as estudantes controlarem seus corpos e seus movimentos, de acordo com o que se espera deles/as em aula. De acordo com Regina Leite Garcia (2002), os/as alunos/as agem de formas diferentes dentro e fora da sala de aula. Esse fator aponta importantes reflexões sobre como as variações no comportamento dos corpos, conforme o espaço ocupado: Na sala de aula, todas se mantinham sentadas, umas atrás das outras, em silêncio, com olhares de tédio, não pareciam especialmente interessadas no que a professora explicava no quadro. Os corpos parados, os olhos sem brilho, algumas como se estivessem devaneando, outras olhando para o quadro onde a professora escrevia, como se não vissem o que olhavam. Quando batia o sino anunciando a saída, as mesmas crianças pareciam outras crianças, os corpos ágeis gingavam, corriam, se tocavam, os olhos brilhavam cheios de vida, conversavam, riam [...] (ibidem, p. 7). Dagmar Meyer, Cláudia Fonseca e Rosângela Soares (2008) explicitam o quanto nossos corpos estão em evidência: “Vivemos em um tempo em que o corpo é exaustivamente falado, invadido, investigado e ressignificado” (p. 6). Através de diversas áreas do conhecimento, podemos interpretar como as ações dos corpos dos/das estudantes podem influenciar positiva ou negativamente nas avaliações. A escola, ao invés disso, preocupa-se em ajustar os corpos de meninos e de meninas de acordo com um conjunto de normas vigentes e de forma disciplinadora, o que talvez possa acarretar aos meninos um rebaixamento de suas notas, assim como a reprovação em grau mais alto que das meninas. Por trás do fundamento científico, a escola tende a formar corpos obedientes. Como expõe Louro (2001, p. 18), a escola, através dos/as professores/as, fabrica um “comportamento adequado” e, para isso, a forma hierarquizante dos demais componentes escolares trata de formatar os/as alunos/as. Para Maria Isabel Edelweiss Bujes e Marisa Vorraber Costa (2007, p. 24), a escola, “com aparato institucional, com suas arquiteturas, seus corpos de profissionais, suas regras de funcionamento, suas diretrizes pedagógicas e curriculares”, tende a moldar o bom comportamento dos alunos e das alunas. O questionamento suscitou reflexões quanto à relação entre professor/a e aluno/a dentro do espaço reservado da sala de aula. Muitas vezes, o comportamento dos/as alunos/as é relacionado com a indisciplina e muitas vezes faz parte da avaliação, positiva ou negativamente. 23 Quando se refere ao disciplinamento de alunos/as, Foucault (1987) expõe que as escolas tomaram como ideal o sistema militarista, hospitalar e industrial, no qual é preciso haver uma vigília sobre o corpo, exercendo “sobre ele uma coerção sem folga” (p. 127). O autor aponta o quanto nossos corpos são dominados através de inúmeras estratégias para delimitá-los e transformá-los em um corpo ideal, e a escola é uma instituição legitimada para essa ação, formando corpos dóceis com posturas e hábitos saudáveis e adequados. Para Foucault, o tempo, dentro da instituição escolar, delimitado pelos períodos entre uma disciplina e outra, “é mais que um ritmo coletivo e obrigatório” (ibidem, p. 130). O tempo delimita ações e possibilita o controle para que os alunos/as não se distraiam, afinal, “No bom emprego do corpo, que permite um bom emprego do tempo, nada deve ficar ocioso ou inútil” (ibidem, p. 130). Na escola, os/as estudantes aprendem a controlar o corpo, o qual mais tarde estará disciplinado para o mercado de trabalho. Quanto a esses questionamentos, Hooks (2001) considera que ainda operamos dentro das salas de aula com o dualismo mente/corpo. Como não fomos preparados/as, tampouco ensinados/as, para lidar com esse corpo dentro da sala de aula, preocupamo-nos em ensinar “como se apenas a mente estivesse presente, e não o corpo” (p. 115). Nessa escola, o corpo presente – isto é, o corpo propriamente dito – é mais exposto na disciplina de Educação Física através de exercícios, em que se exige correr, jogar bola etc., no intuito de competição ou de cooperação. Porém esse mesmo corpo também é visto por outras disciplinas, nem que seja para „ficar quieto e atento‟, „não se levantar toda hora‟, tanto que o incorporam na avaliação e o enquadram no quesito „comportamento‟. Em relação às outras disciplinas do currículo escolar, não existe propósito em que se diga „aqui tem um corpo‟, contudo este é sempre referido e também disciplinado, inclusive na aula de Educação Física. Louro (2000, p. 60) corrobora com esse pensamento: Com exceção da Educação Física, que faz do corpo e de seu adestramento o foco central de seu agir, todas as demais áreas ou disciplinas parecem ter conseguido produzir seu “corpo de conhecimento” sem o corpo. [...] No “sagrado” campo da educação não apenas separamos mente e corpo mas, mais do que isso, suspeitamos do corpo Nessa perspectiva, Hooks (2001, p. 115) faz refletir sobre o espaço escolar, ao indicar que “O mundo público da aprendizagem institucional é um lugar onde o corpo tem de ser anulado, tem que passar despercebido”. 24 Louro (2000) concorda com o raciocínio de que, ao mesmo tempo em que a escola não vê os corpos, ela tende a contê-los, através de uma cultura disciplinar que os adapta. A autora segue dizendo que “Todos os processos de escolarização sempre estiveram – e ainda estão – preocupados em vigiar, controlar, modelar, corrigir, construir os corpos de meninos e meninas, de jovens homens e mulheres” (ibidem, p. 60). Para Garcia (2002), mesmo que não se encontrem dentro da disciplina na escola, esses corpos encontram seu espaço fora da instituição, através das mais diversas atividades e encontrando múltiplas formas de prazer que o corpo proporciona, como destaca: “corpos masculinos e femininos separados nas aulas de educação física, mas que se reencontram nos bailes funk, corpos impedidos de se tocar” (p. 15). Outro fator que julgo importante mencionar é que, apesar de os/as professores/as saberem do tema da minha pesquisa, todas as suas respostas foram descritas no masculino, como pode ser visto pela transcrição de seus depoimentos. A invisibilidade da mulher aparece nas respostas dadas por mulheres, que são a maioria dentro desse espaço educativo. Louro (1995) alerta que a sociedade ainda opera na cultura androcêntrica, na qual o modelo hegemônico é o masculino. Para ela, a “História da Educação que se produz no Brasil é usualmente escrita no masculino, ou seja, refere-se aos alunos, aos operários [...] ou utiliza termos genéricos, como a classe trabalhadora, a elite brasileira para nunca designar a mulher” (ibidem, p. 107). Essa autora afirma que, através da linguagem, acabamos ocultando o feminino, conforme explicita a seguir: A conformidade com as regras de linguagem tradicionais pode impedir que observemos por exemplo, a ambiguidade da expressão homem – que serve para designar tanto o indivíduo do sexo masculino quanto toda a espécie humana. Aprendemos que em muitas situações, a palavra supõe todas as pessoas, englobando, portanto homens e mulheres. (idem, 2003, p. 66). Louro (2003, p. 67) cita Dale Spender, corroborando com a ideia de que esse ocultamento “acentua que, na maior parte das vezes, ao se utilizar essa expressão „genérica‟, a referência é, na verdade, a uma „espécie‟ construída apenas por homens”, escondendo as mulheres nos mais diferentes campos, inclusive na área do conhecimento. O fator de que a maioria dos/as docentes se referirem explicitamente ao masculino demonstra que estavam respondendo sobre os alunos de modo geral. 25 Como vimos, tal fato se descortinou no conselho de classe, que ocorreu após a análise das respostas dos questionamentos. Quanto aos critérios que são utilizados além da avaliação conteudista, os/as professores utilizam critérios diversos e palpáveis para avaliar os/as estudantes, tais como: provas, trabalhos individuais, trabalhos em grupos, participação nas aulas e assiduidade. Nesse sentido, vão ao encontro dos dizeres de Carvalho (2001a), que recomenda “avaliar os alunos a partir de uma multiplicidade de instrumentos” e inclusive “procuravam levar em conta tanto o desempenho propriamente dito, quanto o que chamavam de compromisso do aluno” (ibidem, p. 557-558). Acredito que os/as professores/as não poupam esforços para que os alunos e as alunas consigam atingir a média de aprovação, entretanto as análises das suas falas indicam o quanto o comportamento dos/as estudantes fica diretamente atrelado ao bom ou ao mau desempenho escolar. Para Carvalho (2001b, 244), aos alunos abaixo da média ainda são concedidos “certos atributos de comportamento como: agressividade, agitação, „dar trabalho‟, „falar demais‟ [...] não querer fazer as tarefas”. Em sua análise, a autora diz que não se atribui a indisciplina e a agressividade somente aos alunos do sexo masculino. As meninas também têm posturas em sala de aula vistas de forma negativa, tanto com os seus pares quanto com os/as professores/as. Esse fato pode ser observado nos relatos dos/as professores/as no conselho de classe realizado em dezembro do ano de 2010: “Ela não está nem aí. A gente vê o comportamento dela”; “Que bom que ela reprovou. Tem que rodar. Ela não tem disciplina”. Carvalho (2001b) apresenta uma ruptura quanto aos estereótipos de masculinidade e de feminilidade quando se refere aos comportamentos. Louro (2001) esclarece como ela e as professoras, em geral, aprendem a feminizar-se através da escola e a ter certos “comportamentos adequados” que as diferenciam dos meninos. O modo de ser das docentes foi, pode-se dizer, esculpido na escola que se designava moderna e mesclava-se com a educação tradicional, embora não tão rígida quanto esta. É possível perceber que tanto no ensino fundamental como no ensino médio, agora designado como educação básica, a indisciplina não é atribuída somente aos alunos, portanto “não estaria diretamente relacionada às características de gênero” (CARVALHO, 2001a, p. 569), pois os comportamentos de meninos e meninas não são fixos. A autora acrescenta: 26 [...] parece que o esforço para realçar a existência de „meninas agressivas‟ e indisciplinadas e a visibilidade que sua presença minoritária ganhava nas falas era um artifício que cumpria a função de desassociar masculinidade de agressividade e violência, permitindo a percepção desses comportamentos como neutros do ponto de vista do gênero. (ibidem, p. 570). Nas observações realizadas, assim como no conselho de classe, muitos/as professores/as diziam que os alunos da turma 1MA, “são terríveis e não param quietos, parecem umas crianças”. Merece ser discutida a indisciplina, sob o ponto de vista do gênero. As professoras consideram, de imediato, que os meninos são mais barulhentos em suas ações. No seu relato, um professor lamenta: “Esses guris são fogo. [...] São preguiçosos e inteligentes”. Já as meninas ficam em conversas em tom baixo e em troca de bilhetes. Quanto a esse fator, Carvalho (ibidem, p. 571) assinala que as meninas “são sempre mais discretas” e suas desordens têm menor duração que as dos meninos. Sendo assim, suas ações são menos perturbadoras dentro da sala de aula, como explicitado pela professora: “Ela tem bastante dificuldade e está sempre conversando”. Os jovens acabam sendo prejudicados nas avaliações. Embora este trabalho não seja pautado pelo sistema avaliativo, percebe-se o quanto os meninos tornaramse estigmatizados ao longo da trajetória escolar. Carmen A. Duarte da Silva (1999, p. 208), em sua pesquisa realizada na cidade de Pelotas/RS, também constatou que os meninos são os maiores prejudicados pelo sistema avaliativo do que as meninas “o índice de reprovação foi maior entre os meninos (57%) do que as meninas (42%), porém isso não impede que as meninas também sejam prejudicadas pelo sistema avaliativo, com referência ao comportamento”. Carvalho (2004), na tentativa de desmistificar a rotulagem de alunos como fracassados, viu-se imbricada não só com relação ao gênero, mas também pelas “desigualdades sociais de [...] classe” (p. 3). Para esta autora, assim como para os estudiosos culturais, importa saber como esses processos se articulam. Carvalho (2003, p. 186) mostra “uma trajetória mais longa e mais tumultuada para os do sexo masculino”, fato que deveria ser mais problematizado para que o aproveitamento seja igualitário para ambos os gêneros. Um dos quesitos apontados pela autora, de que as meninas se adaptam melhor à escola, estaria relacionado ao trabalho infantil, uma vez que elas, na sua maioria, trabalham em suas casas, cuidando de seus irmãos menores. Porém Carvalho (2003) questiona esse olhar sobre as meninas, 27 pois não é o padrão de todas as meninas, e sim de algumas meninas, assim como não é também “o único modelo de escola e de professora” (p. 189). Seguindo essa linha de pensamento, “nem todos os meninos correspondem ao oposto dessa feminilidade passiva” (ibidem, p.189). A reação do/a professor/a quanto ao comportamento da aluna – “A gente vê o comportamento dela. Que bom que ela reprovou. Tem que rodar. Não tem disciplina.” – vai ao encontro do que aponta Carvalho (ibidem, p. 190), rompendo com a “ideia de que as meninas estariam mais adaptadas à escola pela passividade e obediência”, pela sua restrição ao espaço público, o qual, pelo senso comum, seria dos meninos-homens. Nesse sentido, a autora nos faz refletir sobre nosso fazer como educadores/as: Não se cria um espaço para refletir sobre qual é a responsabilidade da escola nessa conversa: no que nossa própria atitude como educadoras, como educadores, as relações entre crianças na sala de aula, no pátio, no recreio, no que tudo isso contribui para a formação desses modelos de feminilidades e de masculinidades diversificados. É claro que isso está o tempo todo em construção. Está em construção para nós adultos quanto para as crianças. Não vem pronto de casa, ao contrário, está sendo elaborado na escola também. Por exemplo, a relação entre ser masculino ou feminino, como ter um caderno bonito, ter uma nota boa não foi aprendida em casa, são elementos escolares. Em que medida nossa própria atitude está participando nessa construção. (ibidem, p. 190). Nessa linha de raciocínio, Jane Felipe e Bianca Salazar Guizzo (2004), em seus estudos realizados sobre a sexualidade em duas escolas infantis, constataram que precisamos, enquanto educadores/as, refletir acerca de nosso procedimento nas escolas, pois acabamos reproduzindo o que aprendemos. Sendo o campo dos estudos de gênero recente, é preciso capacitar-se para novas perspectivas, para evitar declarações tal como “Ela tem muitas dificuldades nas exatas”, como referido anteriormente no conselho de classe. As autoras refletem: [...] ficou evidenciado que, mesmo de forma não intencional, algumas professoras acabam reproduzindo as desigualdades de gênero existentes na sociedade, a partir de concepções essencialistas, pautadas em uma „natureza‟ capaz de determinar irremediavelmente os comportamentos masculinos e femininos. (ibidem, p. 32). Dando prosseguimento às relações que se estabelecem entre o comportamento dos/as alunos/as e seu desempenho escolar, parto para a participação do conselho de classe das turmas do primeiro ano do ensino médio, para elucidar quais critérios são atribuídos para a efetivação da aprovação ou da reprovação. 28 3.1 O conselho de classe como instrumento documental de reprovação ou aprovação A visão que tenho do conselho de classe é de que possui uma dinâmica bastante arbitrária, tendo em vista que os/as professores/as expressam, entre si, o que pensam dos/as alunos/as, avaliando e decidindo seu destino, sem critérios e parâmetros muito bem definidos, conforme disposto ao longo do trabalho. É exercido um poder hierárquico, que permite indicar aos/às estudantes adjetivos que irão se conjugar à aprovação e à reprovação. Abaixo, apresento o excerto da fala dos/das professores/as com referência aos/às alunos/as, para demonstrar que não existe um só parâmetro utilizado para aprovar/reprovar, isto é, não se leva em conta somente a nota. Convém ressaltar que, conforme consta no Regimento Escolar, item 10, o/a aluno/a somente será aprovado se obtiver média igual ou superior a 60 e frequência mínima de 75% em cada disciplina. Lembro que os nomes aqui descritos são fictícios, assim como as disciplinas a que me refiro, para que tanto o/a professor/a quanto o/a aluno/a tenham suas identidades preservadas. [Professor de Inglês com referência ao aluno Raul] “Aprovo o Raul. Ele é malandro, mas ele é bom. Ele tem muitas faltas, mas aprova comigo se eu abonar quatro faltas excedentes. Bem, então abono as faltas e o aprovo por minha conta e responsabilidade.” [Professora de Biologia com referência ao aluno Paulo] “O Paulo só tem média 51 comigo. Mas ele só tem oito faltas durante o ano todo e não tem porque eu reprová-lo. Ele melhorou muito desde o início do semestre até agora. Então eu aprovo o Paulo.” [Professora de Matemática com referência à aluna Edite] “Edite só tem média 48 comigo, mas ela é tão aplicada... Esforçou-se muito neste último bimestre.” [Após, a professora de Geografia interveio] “Passa ela, passa...” “Está bem, aprovada pelo seu esforço.” [diz a professora de Matemática]. [Professora de Português com referência ao aluno Márcio] “Ele tem um problema sério. Entra mudo e sai calado. Ele não falou nada o ano inteiro. E as provas então? Ele olha, olha e não faz nada... Ah, e é muito tímido, 29 Mas como ele reprovou em sociologia, física e matemática eu não posso passar ele. Uma pena, ele é muito inteligente” [Professora de Religião com referência à aluna Sandra] “A gente vê o comportamento dela, a gente vê que ela é drogada. Tu nota direitinho. Ela não acompanha. Esta aluna foi diagnosticada e já esteve internada.” [Professora de Matemática com referência à aluna Tamara] “Ela tem muitas dificuldades nas exatas. E, além disso, rodou também em física, química e biologia.” Para os meninos, quando os adjetivos são depreciativos, os/as professores/as logo em seguida descrevem algo positivo, como em “ele é malandro, mas ele é bom”. O mesmo ocorre quando o menino é reprovado e alguém faz a ressalva: “muito inteligente”. Outros alunos passam para a etapa seguinte porque não tiveram faltas. Isso serve para refletirmos que critérios estão sendo utilizados para avaliar os/as estudantes. Que critérios, afinal, são atribuídos? Primeiramente, destaco a insígnia do senso comum, segundo o qual os jovens meninos se dão melhor nas áreas das exatas, e as jovens meninas nas áreas das humanas. Maria Cláudia Dal‟Igna (2005) relata o significado que os/as professores/as atribuíram para o desempenho escolar de meninos e meninas atendidos/as em um acompanhamento de reforço extraclasse, na qual os/as docentes atribuem uma aparente neutralidade para avaliar os/as estudantes. Porém a autora expõe que, “na medida em que as normas não são problematizadas, elas funcionam para produzir e reiterar noções de masculinidade e feminilidade” (ibidem, p. 121). Com a descrição dos/as professores/as com relação ao comportamento e ao desempenho dos/as alunos/as, podemos perceber, como nos aponta Dal‟Igna, uma instauração de verdade sobre os modos de ser dos/as estudantes pelo seu gênero: É possível identificar as implicações da linguagem na instituição e demarcação de diferentes posições para os gêneros. Esses diferentes modos de descrever os desempenhos têm efeitos. Mecanismos de naturalização, essencialização e dicotomização são acionados e funcionam para justificar as diferenças de desempenho entre meninos e meninas, no que se refere tanto a comportamentos quanto a conhecimentos. (DAL‟IGNA, 2005, p. 122). Apesar de a instituição pesquisada tratar-se de uma escola de ensino médio e de não utilizarmos pareceres descritivos, nas falas dos/as professores/as há 30 constantes dizeres para que se proceda à aprovação das referidas alunas: “ela é tão aplicada, esforçou-se muito neste semestre” e de que elas têm “dificuldades nas exatas”. Walkerdine (1995), quando estudante, foi considerada pela sua professora como „esforçada‟, um adjetivo muito utilizado pelos/as professores/as como se precisasse justificar alguma incapacidade das alunas: [...] quero argumentar que não é tanto uma questão de faltar alguma coisa, de não ser capaz de romper com as regras ou o fracasso de ser autônoma, mas que estas explicações têm de ser entendidas como parte de tentativas para produzir ideias científicas acerca de pessoas oprimidas e exploradas, ideias que têm se tornado central sua regulação. Em outras palavras, quero questionar as ideias sobre a suposta carência de alguns grupos em relação a certas capacidades intelectuais e examinar como estas ideias têm se tornado parte não apenas da forma pela qual nós temos pensado o pensamento, mas da forma pelo qual este conhecimento constitui um componente central de aspectos de governo (no sentido foucaultiano). (ibidem, p. 208) Sandra Corazza (1995) apresenta a análise dos pareceres descritivos de alunos da educação infantil e percebe o quanto eles pareceres se tornam prescritivos quanto a sua forma. A autora cita Foucault para afirmar que, mesmo que professoras/es não queiram, acabam impondo „regras de conduta‟. Para as meninas, os adjetivos “delicada, simpática e atenciosa”; para os meninos, tem que ser algo diferente do que foi explicitado para elas: “decidido, responsável, confiante, temperamento forte” (ibidem, p. 51). Algumas professoras atribuem o mau comportamento dos meninos a esse temperamento forte e, assim, ficam prejudicados em suas avaliações, embora não haja consenso sobre o assunto. No mesmo estudo, Corazza mostra que, se os alunos são reprovados, é conveniente que os pais levem seus/suas filhos/as para um acompanhamento psicológico; através da medicalização, o corpo se tornará inerte e sem reflexão, e finalmente um corpo comportado. A medicalização parece estar virando uma constante, identificada na voz do/a professor/a que participou do conselho de classe, analisado nesta pesquisa: “A gente vê o comportamento dela, a gente vê que ela é drogada. Tu nota direitinho. Ela não acompanha. Essa aluna foi diagnosticada e já esteve internada”. Por esses excertos, podemos perceber o quanto a avaliação se torna subjetiva no âmbito educacional. Se existem regras para avaliar os/as estudantes, as regras não são as mesmas para todos. Um olhar „para dentro‟ dessas respostas, tão difundidas no espaço educativo, requer que reflitamos sobre elas. Nesse sentido, 31 o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (1996) aponta que é no “saber: olhar, ouvir e escrever” (p. 14), que construímos e delimitamos nossa pesquisa. Ele salienta que no olhar e no ouvir existe a inteiração entre o pesquisador e seu objeto de pesquisa, o que não ocorre com o escrever. Este, sendo uma atividade posterior, requer interpretação pessoal, mesmo que seja fragmentado, e está permeado de compreensões e de valores acerca das relações que se estabelecem dentro do espaço educativo pesquisado. Expostas as questões do conselho de classe, que estabelece mais de um critério para a aprovação dos/as alunos/as, sigo para as reflexões sobre família e desempenho escolar. Tal problematização é especialmente importante, tendo em vista que os/as professores/as consideram que a participação da família favoreceria um melhor desempenho escolar. 3.2 Relações entre família e desempenho escolar A „família‟ foi citada como responsabilizada pelo desempenho escolar, por alguns/mas dos docentes, por sua ausência e pela falta de comprometimento no processo educacional de seus/suas filhos/as. De um lado, professores/as responsabilizam os pais e as mães, tal como suscitou uma das professoras no artigo de Carvalho (2001b), por sentir a necessidade da “parceira família-escola”. Pode-se pensar na reprovação de um aluno como um ato hierarquizado, na qual o/a docente, que pouco sabe da vida dos seus estudantes, não leva em conta os atravessamentos de gênero e de pertencimento social. Muitas vezes, não sabemos e nem temos condições de saber que aquele estudante quieto e apático, como relatado em “Ele olha, e olha e não faz nada”... , é o reflexo de cansaço e/ou de submissão. Isso pode ser visto na entrevista realizada pela autora com uma aluna que fora reprovada pelas professoras. A moça em questão não tinha como estudar, pois fazia todo o serviço doméstico dentro de sua casa. As professoras consideravam-na como boa aluna, porém trazia “questões que pareciam totalmente opacas para os adultos da escola” (CARVALHO, 2001b, p. 563). Esse é o outro lado da moeda que não vemos, não conhecemos, mas está presente em tantas salas de aula. 32 Os referidos dados são de extrema importância para educadores/as, para que se possa refletir sobre essas e tantas outras ações realizadas cotidianamente no fazer pedagógico. Os/as profissionais da educação têm múltiplas identidades: são mães/pais, alunos/as, professores/as, tios/as, avós, e esses „lugares‟ construídos ao longo da vida nunca estarão estabilizados, pois as pessoas estão sempre se transformando. Nesse sentido, Louro (1997) expõe que a identidade é marcada por outros demarcadores sociais, conforme descreve: É possível pensar as identidades de gênero de modo semelhante: elas também estão continuamente se construindo e se transformando. Em suas relações sociais, atravessadas por diferentes discursos, símbolos, representações e práticas, os sujeitos vão se construindo como masculinos ou femininos arranjando o desarranjo, seus lugares sociais, suas disposições, suas formas de ser e de estar no mundo. Essas construções e esses arranjos são sempre transitórios, transformando-se na articulação com as histórias pessoais, as identidades sexuais, étnicas, raça e de classe. (p. 29). A maioria dos/as professores/as entrevistados/as considera que a participação da família interfere no desempenho escolar, atribuindo que esta deveria estar mais presente na escola, bem como ser mais participativa na vida estudantil. Em suas falas, observamos declarações em que o termo „família‟ vai sendo articulado ao bom ou ao mau desempenho escolar. “Muitas vezes, o comportamento dos alunos em sala de aula vem de problemas em casa, pois a família pouco acompanha os estudos. A família deveria estar trabalhando de forma a ajudar o educando. O ideal seria a tríade: pais/escola/educando, porém poucos têm recebido o apoio da família.” “Claro, pois a família interfere no comportamento diário na sala de aula.” “Sim, os pais e familiares precisam ter muita participação no desempenho escolar de seus filhos. Notamos isto quando o aluno está com as notas baixas e os pais não vêm buscar suas avaliações.” “Sim. Positiva e negativamente, dependendo do caso. Se a família apoia e participa do desempenho escolar é melhor. Se for uma família sem estrutura dentro dos padrões ditos „anormais‟, a tendência é que esse aluno não se empenhe.” “Família estruturada é aquela que acompanha os filhos na escola e se preocupa com ele. Isso vem de casa, não se ensina na escola.” “Sim. Em 30% dele. Uma família desestruturada impede que o aluno se dedique à vida escolar. Mesmo que essa dedicação seja parcial, „metade da cabeça‟ estará nos problemas familiares.” “Sim, atualmente com a participação das mulheres no mercado de trabalho fica difícil participar da vida escolar dos seus filhos.” “É aquela em que se tem um pai e uma mãe que cuide dos filhos. E, não essas mães que não estão nem aí!” 33 “Muitas vezes, o comportamento dos alunos em sala de aula vem de problemas em casa, pois a família pouco acompanha nos estudos e somente querem ver os resultados finais.” “É fundamental a estrutura familiar, pois os horários de estudos devem ser estipulados pela família”. Maria Eulina Pessoa de Carvalho (2004) explicita como, através dos séculos, as instituições família e escola foram se formando e, por sua vez, se distanciando. Para essa autora, a relação entre escola e família, baseia-se “na divisão do trabalho de educação de crianças e jovens, e envolvem expectativas recíprocas” (p. 41), pois têm como objetivos a formação integral de homens e de mulheres. Quanto à participação dos pais (e mães) na escola, a autora cita Henderson e Berla, entre outros autores que compactuam da premissa “a participação dos pais na escola está relacionada ao desempenho escolar” (ibidem, p. 45). Porém devemos estar cientes de que os pais e as mães já não têm tanta disponibilidade para acompanhar os/as estudantes no espaço educativo. Para Carvalho, a educação é adquirida e propiciada pelas instituições família, trabalho, escola e meios de comunicação de massa. A escola ainda parte do princípio de que quem deve „cuidar‟ da vida escolar e pessoal é a mãe, como vemos na expressão “essas mães que não estão nem aí”. A escola, por meio dos professores/as, dirige-se a ela como responsável pelo/a seu filho/a: “sobrecarregando as mães, sobretudo as trabalhadoras e chefes de família, portanto, perpetuando a iniquidade de gênero” (ibidem, p. 42). Trazer os pais para a escola, assim como o envolvimento com suas tarefas escolares cotidianas, não depende somente deles, mas da escola e de políticas públicas eficientes. A escola quer que a família participe, mas se as famílias interrogam mais do que o esperado a escola os considera inconvenientes. A autora ainda cita que “o envolvimento ou participação dos pais, na educação dos filhos e filhas significa o comparecimento às reuniões de pais e mestres, [...], comunicação casa-escola e, sobretudo, acompanhamento nos deveres” (CARVALHO, 2004, p. 44). Aliado a essas questões, professores/as atribuem que somente a “Família estruturada é aquela que acompanha os filhos”. Quanto ao auxílio nas tarefas escolares, observamos que muitos pais e mães, assim como responsáveis pelos/as alunos/as, são pouco escolarizados, e essa questão não é refletida pela escola através de seus/suas professores/as. 34 A escola aqui pesquisada toma como princípio de que tem de haver maior participação da família-escola, porém os pais, as mães ou demais responsáveis pelo aluno/a não foram convidados a participar da elaboração, tampouco da alteração do Projeto Político Pedagógico. Marília Pinto de Carvalho (2001), pesquisando em uma escola paulista, identificou que as professoras de forma específica atribuem aos/às responsáveis pelos/as alunos/as o seu desempenho e a aprendizagem. Para os/as responsáveis que não acompanham os/as alunos, atribuem que estes/as tenham problemas familiares. A parceria escola-família, tão suscitada e até desejada, aparece constantemente na fala dos/as professores/as, portanto essa relação está longe de ser pacífica. Assim, tanto a educação como a família estão longe de ser homogêneas; ambas passaram a utilizar diversos arranjos. Se a escola mudou, a família também teve alterações significativas. Em palestra realizada no Congresso de Escola Particular Gaúcha, cujo tema foi Escola, saberes, relações e valores, o psicanalista José Outeiral (2003) expõe que a partir da década de 1970 “houve a passagem de um tipo de estrutura familiar, onde vários graus de relações de parentesco habitavam uns próximos aos outros e por vezes inseridas no mesmo sistema reprodutivo”. Nessa extensa família, todos participavam da criação e da educação: “Havia um tecido social amplo”. Com o passar das décadas, esse grupo tornou-se “pequeno, frágil e isolado: a Família Nuclear”. Nessa nova configuração a rede de proteção ficou limitada a poucos integrantes que fazem parte do processo de cuidar. Outro fator que surgiu na entrevista com os/as professores/as diz respeito à “participação das mulheres no mercado de trabalho”. Nessa questão, pode-se retomar a afirmação de Meyer (2004), de que as mulheres, através do movimento feminista, adquiriram o direito ao trabalho fora do contexto domiciliar, mesmo não tendo remuneração igual à do homem. Cláudia Fonseca (2004) mostra o quanto a questão familiar é tratada de modo diferenciado nos bairros menos favorecidos: “há tempo, as camadas populares no Brasil conhecem uma tradição familiar bem diferente do modelo conjugal estável” (p. 57). Aos olhos de uma sociedade que opera com uma norma pode parecer que os/as filhos/as estejam desamparados, mas o que realmente ocorre são laços de solidariedade nas camadas populares, dizendo de outro modo, aos moldes do 35 “tecido social amplo” – ao qual Outeiral (2003) se refere – que abriga a criança quando seus pais e suas mães e/ou responsáveis não estão presentes. Para Fonseca (1995), uma mãe poderia deixar seu/sua filho/a por anos aos cuidados de terceiros, sem que se caracterize abandono. Aos olhos de uma cultura homogeneizante, que não valoriza o saber e os modos de viver de outra classe social, uma mãe tem que estar sempre ao lado do seu/sua filho/a. A antropóloga denomina esse evento como “circulação de crianças” (ibidem, p. 15), que são cuidados/as por terceiros. O documentário intitulado: Ciranda, cirandinha: história da circulação de crianças em grupos populares é inquietante no primeiro olhar, porém apresenta o modo como circulam essas crianças em uma relação de solidariedade entre os integrantes da comunidade descrita (idem, 1994). Louro (1997) contrapõe-se a esses estereótipos de família nos quais o ideal, a norma, é a que tem como pressuposto a união heterossexual, ou seja, de pessoas de sexos diferenciados. A autora esclarece que, “por levar em conta a presença dos múltiplos arranjos familiares na sociedade é que podemos supor distintas formas de intervenção da família nas disposições escolares” (ibidem, p. 126), sabendo que as representações conservadoras são vinculadas através de diversas pedagogias culturais, assim como em veículos midiáticos. Nas escolas, assim como nas famílias, desde a educação infantil os/as jovens entram em contato com filmes e livros infantis que somente mostram uniões heterossexuais, tomando-a como uma norma. Ruth Sabat (2004, p. 101) pondera que “Um conjunto de procedimentos técnicos, gráficos e discursivos opera de maneira pedagógica para ensinar formas de condutas relacionadas à heterossexualidade como sexualidade normativa”. Se aceitarmos que existem múltiplos arranjos familiares, independentemente do sexo do homem e da mulher, a medicina tem anunciado que atualmente novas configurações familiares estão surgindo. De acordo com Louro (2001, p. 10), através das “novas tecnologias reprodutivas, as possibilidades de transgredir categorias e fronteiras sexuais, as articulações corpo-máquina a cada dia desestabilizam antigas certezas [...] subvertem as formas de gerar, de nascer, de crescer, de amar ou de morrer”. Como podemos perceber, a „família‟, em especial a família nuclear, tornou-se, do ponto de vista dos/as professores/as, um fator preponderante no desempenho 36 escolar dos/as estudantes. Sendo assim, propomos uma reflexão para esse espaço educativo. 37 4 CONCLUSÃO: UMA REFLEXÃO PARA O ESPAÇO ESCOLAR Parafraseando Veiga-Neto (2003), meu objetivo não é propor soluções, nem fazer prescrições, nem tampouco julgar, mas tecer algumas considerações pertinentes às relações entre família, escola e desempenho escolar de alunos de uma escola de ensino médio. A pesquisa trouxe elementos para refletir que, além da avaliação conteudista, o comportamento também é extremamente definidor da aprovação ou da reprovação dos/as alunos/as. Estes/as, para passar para a etapa seguinte, têm dominar os conteúdos, mas devem também portar-se bem e ter 75% de presença nas aulas. Como critério definidor, o comportamento alia-se a um bom (ou mau) desempenho escolar por parte dos/as professores/as, sendo inclusive propiciado um „aditivo‟ de 10% na média final. Sobre desempenho, Dal‟Igna (2005) aponta que a escola fidelizou “A instauração de um desempenho escolar normativo, além de atuar na produção/identificação dos desvios, permite medi-los, classificando-os enquanto estados de anormalidade” (p. 89). Sendo assim, alunos/as com mau comportamento apresentam um baixo desempenho e por isso precisam ser „corrigidos‟, para que se igualem aos demais, para serem um/a aluno/a normal. Neste trabalho de conclusão de curso, procurei discutir como as relações de gênero operam na escola pesquisada, no que se refere ao desempenho escolar dos alunos e das alunas. Na operacionalização do fazer pedagógico, percebi o quanto os/as educadores/as ocupam uma posição arbitrária quando avaliam os/as alunos/as, exercendo um poder hierarquizante: instituem quem são os/as bem comportados/as que poderão seguir para a série seguinte e quem terá de refazer as disciplinas em que foram reprovados/as. Este trabalho proporcionou visibilizar que o processo avaliativo realizado pelos/as professores/as é atravessado por pressupostos de gênero. Foi possível perceber, também, de que forma essas construções passam a determinar o desempenho dos/as estudantes, estipulando e estabelecendo uma norma de que o comportamento dos meninos tem que ser diferenciado dos das meninas, e viceversa, sendo um padrão universalizante. 38 No conselho de classe observado, os meninos com mau comportamento foram os maiores prejudicados, diferentemente de alunos e alunas bem comportados/as que recebem mais estima dos/as professores/as e, consequentemente, melhores notas, devido ao acréscimo de 10% na média final. Conforme o regimento escolar, o aluno precisa de média 60 para passar para a série seguinte. Com isso, constata-se que o comportamento nessa escola é definidor de aprovação/reprovação. Como a escola pesquisada recebe alunas e alunos dos mais diversos bairros, não consegui priorizar as suas liberdades de expressão, por não saber, muitas vezes, qual é o contexto de cada um/a. Enquanto educadores precisamos aprender com eles/as para ampliarmos a ação pedagógica, no sentido de refletirmos sobre seus modos de agir e de ser. Se por um lado seus comportamentos nos „assustam‟, pelo outro, devemos ouvir o que eles/as têm a nos dizer enquanto sujeitos participantes do processo educativo. Nosso cotidiano escolar está repleto de expectativas dos modos de ser e de viver. As trilhas que percorri, através dos estudos de gênero, me fizeram refletir sobre minha escola e, por que não dizer, minha vida, pois passo a maior parte do dia dentro dela. No meu TCC da graduação em Pedagogia, explorei e explanei modos de ser de meninos e meninas, alicerçados no dualismo escolar de que cada um nasce e deve agir de determinadas maneiras, correspondentes ao seu sexo. Se hoje tenho uma visão totalmente diferenciada, foram os/as teóricos/as feministas que abriram caminhos para entender melhor os/as alunos/as e também para entender melhor esse mundo tão múltiplo. Muitas vezes, não percebemos as „fissuras‟ que ocorrem no processo de identidade dos/as estudantes, como explicita Louro (1997). Nossa identidade não é fixa, ela vai “sendo produzida, contestada, questionada e assumida em múltiplas relações e práticas cotidianas, ao longo de vários anos” (ibidem, p. 7), ou seja, por toda vida. As diferenças biológicas são demarcadoras dos modos de ser homem e de ser mulher. Somente após o curso pude refinar meu olhar para essa questão, fato tão importante para quem trabalha não só em uma instituição escolar, mas em todos os setores. A família foi um dos tópicos do trabalho que gerou muita discussão. O termo „família desestruturada‟ sempre vem à tona quando se atribuem notas baixas aos/às 39 alunos/as. Em pleno século XXI, ainda temos pressupostos de que a família nuclear seja o modelo hegemônico, não percebendo que existem novas e múltiplas configurações. Esse e muitos outros conceitos com referência a gêneros devem ser trabalhados em nossas escolas. Apesar de este trabalho dar-se como concluído, em resposta a um determinado e instigante conteúdo acadêmico, senti a necessidade de ouvir e de relatar o que os/as alunos/as e seus pais e mães e/ou responsáveis diriam com relação ao „comportamento‟, contemplando, assim, toda a comunidade escolar. Concordo com a proposta de Carvalho (2009, p. 838), de que, se tivéssemos “critérios de avaliação de aprendizagem bem delimitados”, professores e professoras não estariam tão confusos/as na hora de dar as notas, pois, como percebemos, não existe um padrão definidor único na aprovação/reprovação dos/as alunos/as. Para esta autora, se integrarmos o comportamento na avaliação, os meninos serão mais prejudicados que as meninas, pelos seus modos de ser e de agir com mais „saliência‟ do que as meninas. Mais adiante, ela propõe que os/as alunos/as tenham somente a avaliação de aprendizagem, para que seja desvinculado da avaliação de comportamento. Há indicações de que uma nítida separação entre avaliação de comportamento e avaliação de aprendizagem tende a diminuir o número de meninos indicados para classes especiais ou atividades de reforço, resultando em presença paritária entre os sexos uma vez que, da mesma forma que nas escolas por mim estudadas, os meninos são considerados mais agitados, indisciplinados e dispersos. (ibidem, p. 839). (grifos meus) Em sua pesquisa nas escolas londrinas, percebeu que apenas uma entre quatro escolas pesquisadas, em que o número de meninas era igual ao dos meninos “no atendimento a alunos com dificuldades de aprendizagem” era a que “colocava ênfase no sentido pedagógico desta ação, separando-a explicitamente dos problemas comportamentais” (ibidem, p. 839). Como constatamos, a insígnia de uma avaliação do/a aluno/a como um todo tende mais a prejudicar do que auxiliar. Outro fator que julgo relevante para esta pesquisa é trazer a família para perto da escola, no sentido de fazê-la participar do Projeto Político Pedagógico, para que pais, mães e responsáveis se sintam tranquilos quanto à aprendizagem de seus filhos e de suas filhas. Assim, a ligação entre família-escola será promissora para toda a comunidade escolar. 40 REFERÊNCIAS ARCHANJO, Léa Resende. Gênero e educação: relações de gênero no Colégio Estadual do Paraná (1950-1960). Curitiba: Editora Aos Quatro Ventos, 1998. BUJES, Maria Isabel Edelweiss. Descaminhos. In: BUJES, Maria Isabel Edelweiss; COSTA, Marisa Vorraber (Org). Caminhos investigativos II: outros modos de pensar e fazer pesquisa em educação. Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2007. p. 13-34. CARVALHO, Maria Eulina Pessoa de. Modos de educação, gênero e relações escola-família. Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 121, p. 41-58, jan./abr. 2004. CARVALHO, Marília Pinto de. Mau aluno, boa aluna? 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A presente pesquisa será realizada através da coleta de dados no conselho de classe das referidas turmas dos primeiros anos, sendo gravadas para fins de pesquisa, e posteriormente destruídas. Ressaltamos que será assegurado às/aos participantes o caráter confidencial e anônimo das informações, bem como a possibilidade de desistir de participar da pesquisa a qualquer momento. Pelo presente Termo de Consentimento, declaro que fui esclarecida/o, de forma clara e detalhada, livre de qualquer forma de constrangimento ou coerção, dos objetivos, da justificativa e dos procedimentos a qual serei submetida/o. Assim como fui igualmente informada/o da garantia de receber respostas a qualquer pergunta ou esclarecimento sobre os procedimentos e outros assuntos relacionados à pesquisa, tendo a liberdade de retirar meu consentimento a qualquer momento e deixar de participar do estudo, sem que isso me traga nenhum tipo de prejuízo. A segurança de que não serei identificada/o e que se manterá o caráter confidencial e anônimo das informações. As imagens, como as informações e os resultados desta pesquisa estarão sempre sob sigilo ético, não sendo mencionados os nomes dos participantes em nenhuma apresentação oral ou trabalho escrito, que venha a ser publicado. A pesquisadora responsável por este projeto de pesquisa é a pós-graduanda Elzira Tischer de Lima (51-9254-0816), orientada pela Prof.ª Dr.ª Dagmar Elisabeth Estermann Meyer. ____________________ Participante da pesquisa _______________________ Responsável pela pesquisa Porto Alegre, 22 de dezembro de 2010. * Elaborado em duas vias, uma entregue para a pesquisadora e outra para a participante da pesquisa.