GÊNEROS DOCENTES EM FORMAÇÃO: REFLETINDO SOBRE LEITURA E ESCRITA NA EDUCAÇÃO INFANTIL Bruna Molisani Ferreira Alves (LEDUC/UFRJ) [email protected] Introdução O objetivo deste trabalho é discutir algumas questões inerentes ao meu projeto de pesquisa de doutorado. Tal projeto está articulado à pesquisa “As (im)possíveis alfabetizações dos alunos de classes populares pela visão de docentes na escola pública”, coordenada pela professora Ludmila Thomé de Andrade. Ele foi tecido a partir de minhas experiências de formação e de atuação profissional que me levaram a articular questões relacionadas ao trabalho com a linguagem, à educação infantil (EI) e à formação de professores. O referencial teórico-metodológico adotado tem como base os estudos de Mikhail Bakhtin (2003, 2009). Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de abordagem sócio-histórica, assumindo a concepção de que o ser humano é constituído socialmente, na e pela linguagem, e que a pesquisa é uma relação dialógica entre sujeitos produtores de discursos (FREITAS, 2007). Dentre as formulações teóricas bakhtinianas, ganham especial relevância em meu projeto as concepções de dialogismo, alteridade, polifonia, interdiscursividade, autoria e exotopia. Parto do entendimento de que somos seres constituídos na e pela linguagem, nas relações sociais, em que “o outro impõe sua alteridade irredutível sobre o eu” (PONZIO, 2008, p.23). Nossos discursos se constituem nesse diálogo inevitável com o outro, sendo formados como respostas à palavra alheia da qual nos apropriamos, repetindo, manipulando, transformando, fazendo-a ressoar de forma diferente, expressando outro ponto de vista, porque enunciados a partir de um outro lugar. Essa apropriação do discurso alheio dá-se como relação ativa de uma enunciação a outra (BAKHTIN, 2009, p. 145), como responsividade, e consiste num trabalho de autoria em meio a uma multiplicidade de vozes que convivem e interagem num determinado cenário. O foco da pesquisa que estou desenvolvendo está voltado para o trabalho de autoria do professor, de escolha e assinatura de seu discurso em meio aos diferentes discursos que circulam no cenário da educação infantil e da formação docente. Para conhecer e compreender os saberes docentes relativos ao trabalho com a leitura e a escrita, analiso os enunciados orais e escritos produzidos por professores de educação infantil1 no contexto da formação continuada (EPELLE)2 proporcionada pela pesquisa à qual meu projeto está articulado. 1 Os encontros de formação contam com participação majoritária de professoras que atuam nos anos iniciais do ensino fundamental, o que faz com que as professoras de EI estejam imersas na dialogia com outras profissionais que não atuam nessa etapa de escolarização. 2 A formação continuada proposta pela pesquisa coordenada pela professora Ludmila T. Andrade iniciouse em 2011 e está prevista para acontecer ao longo de quatro anos. Sua realização consiste em encontros semanais, denominados EPELLE (Encontro de Professores de Estudos sobre Letramento, Leitura e Escrita), com duração de três horas, em que são discutidas questões referentes a quatro eixos: teorias de alfabetização; crianças de classes populares e seus letramentos; formação de professores; escrita docente. Além disso, prevê horas de leitura de preparação para os encontros e de produção escrita dos professores participantes (planejamentos, anotações sobre os alunos, registros de práticas que possam ser publicados). Trata-se de uma proposta de “formação pela prática” que envolve professores que atuam nos anos iniciais No presente artigo, interessa-me analisar as primeiras produções escritas das professoras sujeitos de minha pesquisa, gêneros docentes em formação, e apresentar algumas reflexões sobre a formação e a escrita docentes e a necessidade de se pensar o trabalho com a linguagem na educação infantil. Formação de professores e escrita docente Nas últimas décadas, muitas pesquisas sobre formação têm colocado foco nos professores, abordando os saberes docentes a partir de diferentes perspectivas que, em linhas gerais, buscam (re)conhecê-los como frutos de trajetórias de vida e formação (NÓVOA, 1995; JOSSO, 2004; CATANI, 1997; dentre outros), apresentando o professor como produtor de saberes, sujeito de conhecimento (TARDIF, 1991, 2000) e propondo sua formação baseada na pesquisa, como profissional reflexivo (SCHÖN, 1997; ZEICHNER, 1998; CONTRERAS, 2002; LÜDKE, 2002; ESTEBAN & ZACCUR, 2002; GERALDI et al., 1998). Nesse contexto, a necessidade de investir na formação continuada ganha força tanto no meio acadêmico quanto nos textos legais e nas políticas educacionais. Kramer (2005), ao apontar como questão fundamental para o enfrentamento e a superação das dificuldades vividas na EI o investimento na formação dos profissionais envolvidos, afirma A formação é necessária não apenas para aprimorar a ação profissional ou melhorar a prática pedagógica. A formação é direito de todos os professores, é conquista e direito da população, por uma escola pública de qualidade. Podem os processos de formação gerar ou desencadear mudanças? Sim, se as práticas concretas feitas nas creches, pré-escolas e escolas forem o ponto de partida para as mudanças que se pretende implementar. (p. 224) Se podemos admitir que a necessidade da formação continuada é consenso, não se pode dizer o mesmo quanto ao lócus e ao modus de seu desenvolvimento. Há diferentes propostas em cena, desde aquelas desenvolvidas nos modelos de educação à distância às que concebem a escola como espaço privilegiado de formação, passando pela universidade. Em sua maioria, não apresentam continuidade e, muitas vezes, não envolvem todos os profissionais, além de não apresentar coerência entre a forma e o conteúdo (HENRIQUES, 2005). A concepção de formação que me conduz nessa pesquisa encontra suas bases nos estudos de Andrade (2003, 2004, 2010) e Prado (2007, 2010). Partindo do pressuposto de que os professores são sujeitos produtores de conhecimento, dialogando responsivamente (BAKHTIN, 2003, 2009) com diferentes discursos que atravessam o campo educacional, esses autores têm insistido na necessidade de se criar espaços institucionalizados para que os professores possam narrar e compartilhar suas experiências, teorizando sobre elas, em percursos de autoria, assumindo a escrita docente como aspecto central da formação. Essas “narrativas pedagógicas” são (...) compreendidas como escritas que pretendem compartilhar lições aprendidas a partir da experiência, da reflexão sobre a experiência, da discussão coletiva, da leitura, do estudo, da pesquisa. Dentre a diversidade de gêneros textuais, as “narrativas pedagógicas” – relatos da educação básica (educação infantil e 1º ao 3º ano do ensino fundamental) em escolas públicas do Rio de Janeiro. de experiência e pesquisa, memoriais de formação, diários, crônicas do cotidiano, cartas pedagógicas, depoimentos, relatórios – são gêneros discursivos privilegiados para que os educadores documentem o que fazem, o que pensam, assim como suas inquietações, dificuldades, conquistas..., enfim, sua produção intelectual. As ‘narrativas pedagógicas’, escritas principalmente na primeira pessoa, evidenciam a autoria construída no contexto de exercícios de pesquisa, onde narrar o trabalho e narrar-se professoras-pesquisadoras são dois lados de uma mesma moeda. (PRADO & CUNHA, 2007, pp.9-10) Investir na escrita docente como experiência de formação e foco de pesquisa é uma necessidade, tendo em vista que pouco tem sido feito nesse sentido. Em trabalho anterior, apontei a escassez de pesquisas sobre a produção escrita docente (ALVES, 2011). A análise dos trabalhos apresentados nas reuniões anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) no período de 2007 a 2010 nos Grupos de Trabalho (GT) “Educação de Crianças de 0 a 6 anos” (GT7), “Formação de Professores” (GT8) e “Alfabetização, Leitura e Escrita” (GT10) demonstrou que as pesquisas têm privilegiado o trabalho com histórias de vida, tomando como principais referências teórico-metodológicas os pressupostos de autores como Marie-Christine Josso que, desde a década de 1990, tem defendido a necessidade de investir nas narrativas (auto)biográficas como método de pesquisa e de formação. A produção escrita em si tem sido pouco analisada, tendo aparecido majoritariamente como instrumento metodológico para investigar os efeitos de propostas de formação inicial ou continuada na trajetória docente. Poucos foram os trabalhos que investigaram escritas produzidas no contexto do trabalho docente ou que a analisaram com o objetivo de compreender as práticas e os saberes profissionais dos professores. Com o objetivo de conhecer o que professores de educação infantil pensam e fazem em relação ao trabalho com a linguagem nessa etapa da escolaridade, volto o foco de minha pesquisa para os discursos daqueles professores, especialmente para suas produções escritas. Antes, porém, de analisar as primeiras produções que constituem o corpus da pesquisa, julgo relevante apresentar algumas reflexões sobre a importância de pensar a leitura e a escrita na educação infantil. Educação infantil e o trabalho com a linguagem No campo da educação infantil, os desafios a ser enfrentados são inúmeros e de diversas ordens, envolvendo desde condições de infra-estrutura às práticas e formação dos profissionais que nele atuam. Muitos deles são frutos da trajetória da educação infantil em nosso país, que assumiu funções e objetivos diversos ao longo da história: assistencialismo, compensação, preparação para a alfabetização, formação integral da criança (CORSINO e NUNES, 2010; NUNES, 2009; OLIVEIRA, 2007; ROCHA, 2009). Na Constituição Federal de 1988, a educação infantil, que antes tinha cunho assistencialista, passou a figurar como um direito da criança. Tal conquista foi reforçada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96), que, em um capítulo próprio, reconhece a educação infantil como uma etapa de significativa importância no desenvolvimento humano, incluindo-a na educação básica. Nesse contexto legal, a educação infantil tornou-se pauta de diferentes fóruns de debates. As novas concepções de criança, baseadas nas múltiplas áreas do desenvolvimento e na condição de sujeito ativo e de direito, indicam que a educação da criança deve promover a aprendizagem considerando a integralidade e a indivisibilidade das dimensões de seu desenvolvimento. Consequentemente, vive-se, atualmente, um intenso processo de revisão de concepções sobre a educação de crianças em espaços coletivos. A saída da esfera da Assistência Social, que se caracteriza pelo cuidar, para integrar a da Educação, que privilegia o educar, intensificou a necessidade de se discutir a não dissociação entre esses dois eixos (cuidar e educar) e, mais especificamente, tem suscitado questões relativas ao trabalho pedagógico nas creches e pré-escolas. Como deve ser o currículo da EI? Que práticas educativas podem ser construídas e desenvolvidas nesses espaços? Há conteúdos que precisam ser trabalhados? Cabem sistematizações? Alguns autores têm mostrado a excessiva escolarização das práticas na educação infantil. Muitos aspectos dessa escolarização são alvos de críticas, independentemente da etapa da educação em que sejam desenvolvidos (Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio). Quando se pensa nas crianças pequenas, eles assumem uma feição mais grave e alarmante. Colocar crianças sentadas por longos períodos, realizando atividades mecânicas, numa rotina engessada, entra em choque com as especificidades e necessidades do desenvolvimento infantil (KRAMER, 2009; CORSINO, 2009; OLIVEIRA, 2007). Quando se trata de questões relacionadas ao trabalho com a linguagem, mais especificamente com a leitura e a escrita, percebe-se que ainda é muito forte nos cotidianos da EI a presença de práticas preparatórias para a alfabetização, os chamados exercícios de prontidão, que se sustentam numa concepção de desenvolvimento como processo linear e cumulativo, em que a aprendizagem está diretamente relacionada à maturação da criança, e de língua como código, como sistema, afastada de seus usos e funções sociais. Em pesquisa recente sobre a educação infantil em cinco capitais brasileiras, coordenada por Maria Clotilde Rossetti-Ferreira, chama a atenção o alto índice de professores que não lêem ou não consideram importante ler para crianças desse nível de ensino3. Por que esse índice? Por que professores não lêem ou não consideram relevante ler para crianças na EI? O que eles pensam sobre leitura e escrita? Chego, assim, ao foco central de meu estudo: os discursos dos professores de EI sobre leitura e escrita. O foco está voltado para os professores de educação infantil por entender que se faz necessário investir em eventos de letramento desde essa etapa da escolaridade, construindo práticas pedagógicas que possibilitem a familiarização com os diversos usos sociais da leitura e da escrita (KLEIMAN, 1995), entendidas como processos interativos, de construção e circulação de sentidos, com os confrontos próprios de cada situação histórica (GERALDI, 2004). Gêneros docentes em formação Um dos objetivos principais do projeto “As (im)possíveis alfabetizações dos alunos de classes populares pela visão de docentes na escola pública” é criar condições 3 Trago essa informação com base em notas de aula de uma disciplina ministrada pelas professoras Ludmila Thomé de Andrade e Patrícia Corsino na UFRJ no 1º semestre de 2010, e na reportagem de Fernando Nogueira. <http://g1.globo.com/vestibular-e-educacao/noticia/2010/06/495-das-creches-dopais-tem-nivel-inadequado-diz-pesquisa.html>. Acesso em 15 de junho de 2010 para que os professores produzam discursos sobre alfabetização, a partir de suas práticas, que possam ser publicados, proporcionando o florescimento de gêneros docentes. Para tanto, a formação continuada proposta pelo projeto vem se constituindo como um espaço em que as professoras são constantemente convocadas a escrever, embora nem todas respondam às solicitações. Na “didática da formação” que estamos construindo, alguns aspectos vêm ganhando centralidade, como partir de enunciados das professoras para tratar dos temas escolhidos para cada encontro e retomar tais enunciados em apresentações de Power Point em encontros subsequentes. Essa retomada de enunciados escritos através da oralidade e vice-versa vai permeando as produções discursivas, possibilitando o aparecimento de relações intergenéricas (CORRÊA, 2006; MARCUSCHI, ; SOBRAL, 2009) nos textos escritos produzidos pelas professoras. Dentre as escritas já produzidas, encontram-se gêneros que foram designados, no ato da solicitação de sua escrita, como: memórias de formação, glossário de termos relacionados à alfabetização, ingredientes imprescindíveis para a alfabetização, relato de trabalho com a oralidade, reconto e resenha de um conto de fadas, classificados de venda de um imóvel e notícia de jornal (esses dois últimos suscitados a partir da leitura de um texto), perguntas de leitura de um livro e memorial de escola e formação profissional. Apresentarei, aqui, análise somente dos termos do glossário e dos ingredientes da alfabetização e apenas os produzidos por professoras que atuam na educação infantil, tomando essas produções escritas como germes (FIAD et allii, 2003, apud ANDRADE, 2010) de possíveis gêneros docentes, discursos em estado rudimentar que, se adubados, podem dar origem a outros, enraizados, vigorosos. Tendo em vista que “a linguagem não é falada no vazio, mas numa situação histórica e social concreta no momento e no lugar da atualização do enunciado” (BRAIT, 2001, p. 77) e que, como salienta Fiorin (2008, p. 192), “para perceber o sentido, é preciso situar o enunciado no diálogo com outros enunciados e apreender os confrontos sêmicos que geram os sentidos”, situarei o contexto de produção de textos no gênero glossário de alfabetização. No primeiro encontro de formação, a formadora fez a leitura do livro “Mania de explicação”, de Adriana Falcão4, e, com o objetivo de levantar representações sobre alfabetização, propôs um momento de associação livre/tempestade de ideias com o tema e solicitou que as professoras escolhessem algumas das palavras listadas para criar uma definição nos moldes do livro lido. Tais palavras foram agrupadas5 conforme apresentado no quadro abaixo e retomadas em apresentações de Power Point em encontros posteriores: Palavras ligadas ao processo de letramento Palavras ligadas ao processo de alfabetização 4 literatura, contos, linguagem, processo, construção, escrita, oportunidade de ler, autoria cartilha, alfabeto, sílaba, linguagem, processo, construção, escrita, oportunidade de ler, início Nesse livro (Editora Salamandra, 2001), Adriana Falcão cria significados poéticos para palavras como saudade, angústia, solidão. Alguns exemplos: "Angústia é um nó muito apertado bem no meio do seu sossego."; "Sucesso é quando você faz o que sabe fazer só que todo mundo percebe." 5 O agrupamento aqui apresentado foi feito pela professora Marlene Carvalho, integrante do grupo de pesquisa. As palavras música e ideia não foram agrupadas. Palavras relacionadas com a língua falada Palavras relacionadas com objetivos sociais Sentimentos/afetos/disposições afetivas Agentes oralidade, fala, sílaba, comunicação, linguagem cidadania, inclusão, coletividade, visão (de mundo?) desafio, curiosidade, cuidado, vitória, autonomia, auto-estima, descoberta, criatividade, compreensão, liberdade, interesse, compromisso, crescimento, confiança, desejo, sofrimento, insegurança, dúvida família, escola, professor Percebemos6 um predomínio de palavras ligadas a sentimentos/afetos e a ausência de livro, letra, fonema, e tantos outros termos que consideramos relevantes na alfabetização. Notamos também a forte presença de palavras ligadas a sentimentos associadas a alfabetização e sobre esta fizemos várias hipóteses, que não são mutuamente excludentes: presença marcante da psicologia na formação inicial de professores em geral, mais do que da sociologia; o fato de termos lido um livro cujo tema eram sentimentos em geral; a falta de conhecimentos a respeito deste conhecimento curricular traz apenas emoções sobre ele e não conhecimentos; os sentimentos negativos foram minoritários (SOFRIMENTO; INSEGURANÇA; DÚVIDA), mas são expressivos. Os demais, positivos, expressam a importância de cunho psicológico que atribuem, majoritária em relação aos de cunho social ou linguísticos da alfabetização (oralidade incluída). (ANDRADE, 20117) As palavras propostas no momento das interações coletivas, pela oralidade, foram escritas no quadro e novamente enunciadas por escrito nas definições que as professoras elaboraram. Nas definições, as escolhas das professoras de educação infantil não incluíram palavras relacionadas aos processos de alfabetização e letramento, direcionando-se para sentimentos/disposições afetivas, como apresentado a seguir: “Ideia - Surgimento de um pensamento; uma novidade; aquilo que traz uma novidade; aquilo que traz uma alternativa, uma solução para uma necessidade”. (P1)8 “Ideia - É quando uma lâmpada acende na nossa cabeça e faz com que nós tenhamos a coragem de realizar transformações.” (P2) “Medo - É quando um pequeno tronco de árvore se transforma em um monstro terrível.” (P2) 6 Utilizarei a primeira pessoa do plural para apresentar considerações/reflexões compartilhadas pelos integrantes do grupo de pesquisa em nossas reuniões semanais. 7 Citação extraída das anotações feitas pela professora Ludmila Andrade de reunião do grupo de pesquisa em que conversamos sobre o primeiro encontro de formação. Tais anotações foram digitadas e enviadas para todo o grupo via e-mail. 8 Utilizarei a letra P seguida de um número para (não) identificar as professoras. “Vitória - É quando você consegue alcançar o ponto mais alto de uma montanha.” (P2) “Vitória - é conseguir algo que se quer muito depois de muita luta.” (P3) “Liberdade - É quando aquele passarinho que está preso dentro de você consegue criar asas e voar.” (P2) “Compartilhar = Alfabetizar - Ato de dividir experiências, emoções, alegrias e descobertas.” (P4) As professoras P1, P2 e P3 trabalham na mesma escola, uma unidade da rede municipal do Rio de Janeiro. As palavras escolhidas por elas podem ser associadas ao contexto de trabalho em que essas professoras estão inseridas e aos modos como o percebem. É constante, desde o primeiro encontro com elas, ouvir relatos de dificuldades, de desânimo, de necessidade de encontrar caminhos para mudar a realidade da escola. Já P4, professora de uma fundação vinculada ao governo do Estado do Rio de Janeiro, demonstra em seus relatos orais nos encontros de formação uma relação prazerosa com a profissão e seu contexto de trabalho, narrando, com frequência, episódios em que compartilhou experiências e descobertas com seus alunos. Quanto aos ingredientes da alfabetização, estes foram escritos a partir de solicitação feita pelas formadoras no IV EPELLE, em que foi retomado o glossário com apresentação do quadro analítico das palavras associadas à alfabetização. Esse mesmo encontro foi finalizado com uma breve incursão pelos princípios do trabalho alfabetizador, apresentados por Patrícia Corsino no texto “Alfabetização não tem receita, mas tem princípios” e que foi indicado para leitura naquela semana. Destaco, aqui, trechos dos textos das professoras: “Acredito que uma característica fundamental que o professor alfabetizador deve ter é o gosto pela leitura. Desta forma, ele poderá desenvolver em seus alunos este gosto também. O professor deve, ainda, proporcionar ao aluno diferentes tipos de leitura como por exemplo: em jornais, revistas, poesias, contos, crônicas etc. e incentivá-lo sempre. O professor também deve ter o cuidado de selecionar textos, frases e conteúdos que estejam dentro da realidade de seu aluno” (P2) “O processo de alfabetização é longo e possui vários atores em seu cenário. Para que ele atinja o sucesso é necessário o envolvimento integral de todas as suas partes. Como peça chave desse quebracabeça temos o professor, que essencialmente precisa estar envolvido, para que com isso as crianças consigam perceber o mundo da alfabetização e o que este trará de benefícios para ele. O envolvimento do professor mostrará que a criança já interage com o mundo externo, porém através da leitura e da escrita, essa comunicação poderá ser maior, melhor e mais eficiente.É somente através de alguém muito interessado em ensinar e que mostre paixão pelo que faz, que o interesse do outro é despertado e incentivado.A paixão contagia o entorno.” (P3) “No diálogo e na troca o professor deve se permitir perceber que a criança traz em sua bagagem uma história e deve ser valorizada como subsídio para ação alfabetizadora. Essa história se consolidará no ouvir do educador. A relação do educador, sua história de vida e a alfabetização, possibilitam estabelecer oportunidades de conhecer e compreender a criança nesse processo alfabetizador. (...) ousamos dizer que o professor também precisa perceber-se um aprendiz. Entender a função social da palavra. Constituir-se leitor. A prática alfabetizadora é um processo de constantes descobertas. Então o professor precisa se descobrir a cada momento e não pode prescindir da oportunidade de oferecer ao educando a possibilidade de estar envolvido nas questões literárias e de trazer sua realidade para o contexto da sala.” (P4) “Partindo do fato de que nenhuma criança é totalmente desprovida de conhecimento sobre a leitura e a escrita, um primeiro aspecto a ser trabalhado consiste numa sondagem do que cada uma traz em sua bagagem cultural. Isto significa verificar se percebem que existe relação entre a fala e a escrita, se já identificam letras, números, etc. (...) Sabedor destas coisas, é interessante que o professor alfabetizador se utilize de recursos que façam sentido para quem se destina seu trabalho, no caso, a criança. Isto quer dizer que se faz necessário uma articulação entre a história de vida do aluno e seu processo de aprendizagem. (...) A presença de livros e outros materiais impressos devem estar ao alcance das crianças para que as mesmas possam manuseá-los livremente. A partir dessa ideia, o professor alfabetizador deve ter o hábito de ler constantemente histórias, recontando e até mesmo criando para seu público.(...)” (P1) De um modo geral, as professoras atribuem centralidade à ação do professor sem, contudo, fazer referência à necessidade de conhecimentos teóricos específicos sobre o processo de alfabetização. Aparecem também a importância de ler para os alunos e de conhecer suas histórias de vida como aspectos indispensáveis para o sucesso do trabalho alfabetizador. A análise dos ingredientes permite ainda constatar o tom prescritivo assumido pelas professoras e ausência de referências explícitas às suas práticas cotidianas. Aparecem, com frequência, expressões como “o professor precisa”, “o professor deve”, “é necessário” e há o predomínio do discurso em 3ª pessoa. Tais aspectos estariam relacionados à falta de experiências próprias para incluir nos ingredientes ou as professoras se sentem desautorizadas a falar de seus saberes? Considerações Finais A análise, ainda em fase inicial, das escritas das professoras indica que os gêneros aqui analisados foram constituídos na relação com os discursos orais e escritos em circulação nos EPELLE e nos contextos de trabalho das professoras, evidenciando, entretanto, o que Andrade (2003, pp. 1301-1302) afirma: (...) é preciso lembrar que, ao dar voz aos professores em nossas pesquisas, constatamos que estes estão sem voz, envergonhados em se dizer. Não arriscam dizer o que parece ser considerado que não deve ser dito, já que tanto se tem falado da escola e de suas dificuldades. O que fica para os professores é que, para dizerem algo sobre a escola, apenas dizeres teóricos são legitimamente enunciáveis. Essa ausência de voz dos professores pode ser atribuída às formas como as pesquisas, as políticas educacionais e os cursos de formação têm tratado os professores. Nas políticas educacionais, é comum haver formulações discursivas que sugerem que a culpa pelos baixos índices da educação brasileira é dos professores e sua formação, apresentando, em decorrência disso, soluções de caráter prescritivo, autoritário, negando percursos de autoria. Também as pesquisas voltadas para a formação, muitas vezes, têm dirigido aos professores e aos seus saberes tons depreciativos. Mesmo quando declaram “dar voz” a esses profissionais, estas são ouvidas como distorções, inadequações em relação ao conhecimento científico, negando, assim, sua legitimidade. Nos cursos de formação, as maneiras como os saberes teóricos são apresentados têm levado os professores a aprender, com frequência, o discurso competente9, baseado na apropriação de expressões de efeito, impactantes, como os slogans, que segundo Scheffler (1974, p.46), “são inteiramente assistemáticos, de tom menos solene, mais populares, a serem repetidos com veemência ou de maneira tranquilizadora, e não a serem gravemente meditados”. Assim, os professores incorporam ideias como a importância de ler para as crianças, de conhecer suas histórias de vida e de valorizar seus saberes sem que elas sejam gravemente meditadas. Cabe perguntar: os discursos das professoras estariam marcados pela presença de slogans ou enraizados em seus saberes e práticas, constituindo-se a partir de percursos de autoria? É possível que estejam mais próximos da primeira opção, o que leva a considerar que o solo em que foram construídos precisará ser bem arado, adubado, para que a escrita em estado germinal se enraíze e dê origem a gêneros docentes robustos e frondosos. Referências Bibliográficas 9 “O discurso competente é um discurso instituído. É aquele no qual a linguagem sofre uma restrição que poderia ser assim resumida: não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância. O discurso competente confunde-se, pois, com a linguagem institucionalmente permitida ou autorizada, isto é, com um discurso no qual os interlocutores já foram previamente reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir, no qual os lugares e as circunstâncias já foram pré-determinadas para que seja permitido falar e ouvir e, enfim, no qual o conteúdo e a forma já foram autorizados segundo os cânones da esfera de sua própria competência.” (CHAUÍ, Marilena. 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