GÊNEROS DOCENTES EM FORMAÇÃO:
REFLETINDO SOBRE LEITURA E ESCRITA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Bruna Molisani Ferreira Alves (LEDUC/UFRJ)
[email protected]
Introdução
O objetivo deste trabalho é discutir algumas questões inerentes ao meu projeto
de pesquisa de doutorado. Tal projeto está articulado à pesquisa “As (im)possíveis
alfabetizações dos alunos de classes populares pela visão de docentes na escola
pública”, coordenada pela professora Ludmila Thomé de Andrade. Ele foi tecido a partir
de minhas experiências de formação e de atuação profissional que me levaram a
articular questões relacionadas ao trabalho com a linguagem, à educação infantil (EI) e à
formação de professores.
O referencial teórico-metodológico adotado tem como base os estudos de
Mikhail Bakhtin (2003, 2009). Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de abordagem
sócio-histórica, assumindo a concepção de que o ser humano é constituído socialmente,
na e pela linguagem, e que a pesquisa é uma relação dialógica entre sujeitos produtores
de discursos (FREITAS, 2007). Dentre as formulações teóricas bakhtinianas, ganham
especial relevância em meu projeto as concepções de dialogismo, alteridade, polifonia,
interdiscursividade, autoria e exotopia.
Parto do entendimento de que somos seres constituídos na e pela linguagem, nas
relações sociais, em que “o outro impõe sua alteridade irredutível sobre o eu”
(PONZIO, 2008, p.23). Nossos discursos se constituem nesse diálogo inevitável com o
outro, sendo formados como respostas à palavra alheia da qual nos apropriamos,
repetindo, manipulando, transformando, fazendo-a ressoar de forma diferente,
expressando outro ponto de vista, porque enunciados a partir de um outro lugar. Essa
apropriação do discurso alheio dá-se como relação ativa de uma enunciação a outra
(BAKHTIN, 2009, p. 145), como responsividade, e consiste num trabalho de autoria em
meio a uma multiplicidade de vozes que convivem e interagem num determinado
cenário.
O foco da pesquisa que estou desenvolvendo está voltado para o trabalho de
autoria do professor, de escolha e assinatura de seu discurso em meio aos diferentes
discursos que circulam no cenário da educação infantil e da formação docente. Para
conhecer e compreender os saberes docentes relativos ao trabalho com a leitura e a
escrita, analiso os enunciados orais e escritos produzidos por professores de educação
infantil1 no contexto da formação continuada (EPELLE)2 proporcionada pela pesquisa à
qual meu projeto está articulado.
1
Os encontros de formação contam com participação majoritária de professoras que atuam nos anos
iniciais do ensino fundamental, o que faz com que as professoras de EI estejam imersas na dialogia com
outras profissionais que não atuam nessa etapa de escolarização.
2
A formação continuada proposta pela pesquisa coordenada pela professora Ludmila T. Andrade iniciouse em 2011 e está prevista para acontecer ao longo de quatro anos. Sua realização consiste em encontros
semanais, denominados EPELLE (Encontro de Professores de Estudos sobre Letramento, Leitura e
Escrita), com duração de três horas, em que são discutidas questões referentes a quatro eixos: teorias de
alfabetização; crianças de classes populares e seus letramentos; formação de professores; escrita docente.
Além disso, prevê horas de leitura de preparação para os encontros e de produção escrita dos professores
participantes (planejamentos, anotações sobre os alunos, registros de práticas que possam ser publicados).
Trata-se de uma proposta de “formação pela prática” que envolve professores que atuam nos anos iniciais
No presente artigo, interessa-me analisar as primeiras produções escritas das
professoras sujeitos de minha pesquisa, gêneros docentes em formação, e apresentar
algumas reflexões sobre a formação e a escrita docentes e a necessidade de se pensar o
trabalho com a linguagem na educação infantil.
Formação de professores e escrita docente
Nas últimas décadas, muitas pesquisas sobre formação têm colocado foco nos
professores, abordando os saberes docentes a partir de diferentes perspectivas que, em
linhas gerais, buscam (re)conhecê-los como frutos de trajetórias de vida e formação
(NÓVOA, 1995; JOSSO, 2004; CATANI, 1997; dentre outros), apresentando o
professor como produtor de saberes, sujeito de conhecimento (TARDIF, 1991, 2000) e
propondo sua formação baseada na pesquisa, como profissional reflexivo (SCHÖN,
1997; ZEICHNER, 1998; CONTRERAS, 2002; LÜDKE, 2002; ESTEBAN &
ZACCUR, 2002; GERALDI et al., 1998).
Nesse contexto, a necessidade de investir na formação continuada ganha força
tanto no meio acadêmico quanto nos textos legais e nas políticas educacionais. Kramer
(2005), ao apontar como questão fundamental para o enfrentamento e a superação das
dificuldades vividas na EI o investimento na formação dos profissionais envolvidos,
afirma
A formação é necessária não apenas para aprimorar a ação
profissional ou melhorar a prática pedagógica. A formação é direito de
todos os professores, é conquista e direito da população, por uma
escola pública de qualidade. Podem os processos de formação gerar
ou desencadear mudanças? Sim, se as práticas concretas feitas nas
creches, pré-escolas e escolas forem o ponto de partida para as
mudanças que se pretende implementar. (p. 224)
Se podemos admitir que a necessidade da formação continuada é consenso, não
se pode dizer o mesmo quanto ao lócus e ao modus de seu desenvolvimento. Há
diferentes propostas em cena, desde aquelas desenvolvidas nos modelos de educação à
distância às que concebem a escola como espaço privilegiado de formação, passando
pela universidade. Em sua maioria, não apresentam continuidade e, muitas vezes, não
envolvem todos os profissionais, além de não apresentar coerência entre a forma e o
conteúdo (HENRIQUES, 2005).
A concepção de formação que me conduz nessa pesquisa encontra suas bases
nos estudos de Andrade (2003, 2004, 2010) e Prado (2007, 2010). Partindo do
pressuposto de que os professores são sujeitos produtores de conhecimento, dialogando
responsivamente (BAKHTIN, 2003, 2009) com diferentes discursos que atravessam o
campo educacional, esses autores têm insistido na necessidade de se criar espaços
institucionalizados para que os professores possam narrar e compartilhar suas
experiências, teorizando sobre elas, em percursos de autoria, assumindo a escrita
docente como aspecto central da formação. Essas “narrativas pedagógicas” são
(...) compreendidas como escritas que pretendem compartilhar lições
aprendidas a partir da experiência, da reflexão sobre a experiência, da
discussão coletiva, da leitura, do estudo, da pesquisa. Dentre a
diversidade de gêneros textuais, as “narrativas pedagógicas” – relatos
da educação básica (educação infantil e 1º ao 3º ano do ensino fundamental) em escolas públicas do Rio
de Janeiro.
de experiência e pesquisa, memoriais de formação, diários, crônicas
do cotidiano, cartas pedagógicas, depoimentos, relatórios – são
gêneros discursivos privilegiados para que os educadores documentem
o que fazem, o que pensam, assim como suas inquietações,
dificuldades, conquistas..., enfim, sua produção intelectual.
As ‘narrativas pedagógicas’, escritas principalmente na primeira
pessoa, evidenciam a autoria construída no contexto de exercícios de
pesquisa, onde narrar o trabalho e narrar-se professoras-pesquisadoras
são dois lados de uma mesma moeda. (PRADO & CUNHA, 2007,
pp.9-10)
Investir na escrita docente como experiência de formação e foco de pesquisa é
uma necessidade, tendo em vista que pouco tem sido feito nesse sentido. Em trabalho
anterior, apontei a escassez de pesquisas sobre a produção escrita docente (ALVES,
2011). A análise dos trabalhos apresentados nas reuniões anuais da Associação Nacional
de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) no período de 2007 a 2010 nos
Grupos de Trabalho (GT) “Educação de Crianças de 0 a 6 anos” (GT7), “Formação de
Professores” (GT8) e “Alfabetização, Leitura e Escrita” (GT10) demonstrou que as
pesquisas têm privilegiado o trabalho com histórias de vida, tomando como principais
referências teórico-metodológicas os pressupostos de autores como Marie-Christine
Josso que, desde a década de 1990, tem defendido a necessidade de investir nas
narrativas (auto)biográficas como método de pesquisa e de formação.
A produção escrita em si tem sido pouco analisada, tendo aparecido
majoritariamente como instrumento metodológico para investigar os efeitos de
propostas de formação inicial ou continuada na trajetória docente. Poucos foram os
trabalhos que investigaram escritas produzidas no contexto do trabalho docente ou que a
analisaram com o objetivo de compreender as práticas e os saberes profissionais dos
professores.
Com o objetivo de conhecer o que professores de educação infantil pensam e
fazem em relação ao trabalho com a linguagem nessa etapa da escolaridade, volto o
foco de minha pesquisa para os discursos daqueles professores, especialmente para suas
produções escritas. Antes, porém, de analisar as primeiras produções que constituem o
corpus da pesquisa, julgo relevante apresentar algumas reflexões sobre a importância de
pensar a leitura e a escrita na educação infantil.
Educação infantil e o trabalho com a linguagem
No campo da educação infantil, os desafios a ser enfrentados são inúmeros e de
diversas ordens, envolvendo desde condições de infra-estrutura às práticas e formação
dos profissionais que nele atuam. Muitos deles são frutos da trajetória da educação
infantil em nosso país, que assumiu funções e objetivos diversos ao longo da história:
assistencialismo, compensação, preparação para a alfabetização, formação integral da
criança (CORSINO e NUNES, 2010; NUNES, 2009; OLIVEIRA, 2007; ROCHA,
2009).
Na Constituição Federal de 1988, a educação infantil, que antes tinha cunho
assistencialista, passou a figurar como um direito da criança. Tal conquista foi
reforçada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pela Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (Lei 9394/96), que, em um capítulo próprio, reconhece a educação
infantil como uma etapa de significativa importância no desenvolvimento humano,
incluindo-a na educação básica.
Nesse contexto legal, a educação infantil tornou-se pauta de diferentes fóruns de
debates. As novas concepções de criança, baseadas nas múltiplas áreas do
desenvolvimento e na condição de sujeito ativo e de direito, indicam que a educação da
criança deve promover a aprendizagem considerando a integralidade e a indivisibilidade
das dimensões de seu desenvolvimento.
Consequentemente, vive-se, atualmente, um intenso processo de revisão de
concepções sobre a educação de crianças em espaços coletivos. A saída da esfera da
Assistência Social, que se caracteriza pelo cuidar, para integrar a da Educação, que
privilegia o educar, intensificou a necessidade de se discutir a não dissociação entre
esses dois eixos (cuidar e educar) e, mais especificamente, tem suscitado questões
relativas ao trabalho pedagógico nas creches e pré-escolas. Como deve ser o currículo
da EI? Que práticas educativas podem ser construídas e desenvolvidas nesses espaços?
Há conteúdos que precisam ser trabalhados? Cabem sistematizações?
Alguns autores têm mostrado a excessiva escolarização das práticas na educação
infantil. Muitos aspectos dessa escolarização são alvos de críticas, independentemente
da etapa da educação em que sejam desenvolvidos (Educação Infantil, Ensino
Fundamental, Ensino Médio). Quando se pensa nas crianças pequenas, eles assumem
uma feição mais grave e alarmante. Colocar crianças sentadas por longos períodos,
realizando atividades mecânicas, numa rotina engessada, entra em choque com as
especificidades e necessidades do desenvolvimento infantil (KRAMER, 2009;
CORSINO, 2009; OLIVEIRA, 2007).
Quando se trata de questões relacionadas ao trabalho com a linguagem, mais
especificamente com a leitura e a escrita, percebe-se que ainda é muito forte nos
cotidianos da EI a presença de práticas preparatórias para a alfabetização, os chamados
exercícios de prontidão, que se sustentam numa concepção de desenvolvimento como
processo linear e cumulativo, em que a aprendizagem está diretamente relacionada à
maturação da criança, e de língua como código, como sistema, afastada de seus usos e
funções sociais.
Em pesquisa recente sobre a educação infantil em cinco capitais brasileiras,
coordenada por Maria Clotilde Rossetti-Ferreira, chama a atenção o alto índice de
professores que não lêem ou não consideram importante ler para crianças desse nível de
ensino3. Por que esse índice? Por que professores não lêem ou não consideram relevante
ler para crianças na EI? O que eles pensam sobre leitura e escrita?
Chego, assim, ao foco central de meu estudo: os discursos dos professores de EI
sobre leitura e escrita. O foco está voltado para os professores de educação infantil por
entender que se faz necessário investir em eventos de letramento desde essa etapa da
escolaridade, construindo práticas pedagógicas que possibilitem a familiarização com os
diversos usos sociais da leitura e da escrita (KLEIMAN, 1995), entendidas como
processos interativos, de construção e circulação de sentidos, com os confrontos
próprios de cada situação histórica (GERALDI, 2004).
Gêneros docentes em formação
Um dos objetivos principais do projeto “As (im)possíveis alfabetizações dos
alunos de classes populares pela visão de docentes na escola pública” é criar condições
3
Trago essa informação com base em notas de aula de uma disciplina ministrada pelas professoras
Ludmila Thomé de Andrade e Patrícia Corsino na UFRJ no 1º semestre de 2010, e na reportagem de
Fernando Nogueira. <http://g1.globo.com/vestibular-e-educacao/noticia/2010/06/495-das-creches-dopais-tem-nivel-inadequado-diz-pesquisa.html>. Acesso em 15 de junho de 2010
para que os professores produzam discursos sobre alfabetização, a partir de suas
práticas, que possam ser publicados, proporcionando o florescimento de gêneros
docentes. Para tanto, a formação continuada proposta pelo projeto vem se constituindo
como um espaço em que as professoras são constantemente convocadas a escrever,
embora nem todas respondam às solicitações.
Na “didática da formação” que estamos construindo, alguns aspectos vêm
ganhando centralidade, como partir de enunciados das professoras para tratar dos temas
escolhidos para cada encontro e retomar tais enunciados em apresentações de Power
Point em encontros subsequentes. Essa retomada de enunciados escritos através da
oralidade e vice-versa vai permeando as produções discursivas, possibilitando o
aparecimento de relações intergenéricas (CORRÊA, 2006; MARCUSCHI, ; SOBRAL,
2009) nos textos escritos produzidos pelas professoras.
Dentre as escritas já produzidas, encontram-se gêneros que foram designados, no
ato da solicitação de sua escrita, como: memórias de formação, glossário de termos
relacionados à alfabetização, ingredientes imprescindíveis para a alfabetização, relato de
trabalho com a oralidade, reconto e resenha de um conto de fadas, classificados de
venda de um imóvel e notícia de jornal (esses dois últimos suscitados a partir da leitura
de um texto), perguntas de leitura de um livro e memorial de escola e formação
profissional. Apresentarei, aqui, análise somente dos termos do glossário e dos
ingredientes da alfabetização e apenas os produzidos por professoras que atuam na
educação infantil, tomando essas produções escritas como germes (FIAD et allii, 2003,
apud ANDRADE, 2010) de possíveis gêneros docentes, discursos em estado rudimentar
que, se adubados, podem dar origem a outros, enraizados, vigorosos.
Tendo em vista que “a linguagem não é falada no vazio, mas numa situação
histórica e social concreta no momento e no lugar da atualização do enunciado”
(BRAIT, 2001, p. 77) e que, como salienta Fiorin (2008, p. 192), “para perceber o
sentido, é preciso situar o enunciado no diálogo com outros enunciados e apreender os
confrontos sêmicos que geram os sentidos”, situarei o contexto de produção de textos
no gênero glossário de alfabetização.
No primeiro encontro de formação, a formadora fez a leitura do livro “Mania de
explicação”, de Adriana Falcão4, e, com o objetivo de levantar representações sobre
alfabetização, propôs um momento de associação livre/tempestade de ideias com o tema
e solicitou que as professoras escolhessem algumas das palavras listadas para criar uma
definição nos moldes do livro lido. Tais palavras foram agrupadas5 conforme
apresentado no quadro abaixo e retomadas em apresentações de Power Point em
encontros posteriores:
Palavras ligadas ao processo de letramento
Palavras ligadas ao processo de alfabetização
4
literatura, contos, linguagem, processo,
construção, escrita, oportunidade de ler,
autoria
cartilha, alfabeto, sílaba, linguagem,
processo,
construção,
escrita,
oportunidade de ler, início
Nesse livro (Editora Salamandra, 2001), Adriana Falcão cria significados poéticos para palavras como
saudade, angústia, solidão. Alguns exemplos: "Angústia é um nó muito apertado bem no meio do seu
sossego."; "Sucesso é quando você faz o que sabe fazer só que todo mundo percebe."
5
O agrupamento aqui apresentado foi feito pela professora Marlene Carvalho, integrante do grupo de
pesquisa. As palavras música e ideia não foram agrupadas.
Palavras relacionadas com a língua falada
Palavras relacionadas com objetivos sociais
Sentimentos/afetos/disposições afetivas
Agentes
oralidade, fala, sílaba, comunicação,
linguagem
cidadania, inclusão, coletividade, visão
(de mundo?)
desafio, curiosidade, cuidado, vitória,
autonomia, auto-estima, descoberta,
criatividade, compreensão, liberdade,
interesse, compromisso, crescimento,
confiança,
desejo,
sofrimento,
insegurança, dúvida
família, escola, professor
Percebemos6 um predomínio de palavras ligadas a sentimentos/afetos e a
ausência de livro, letra, fonema, e tantos outros termos que consideramos relevantes na
alfabetização.
Notamos também a forte presença de palavras ligadas a sentimentos
associadas a alfabetização e sobre esta fizemos várias hipóteses, que
não são mutuamente excludentes: presença marcante da psicologia na
formação inicial de professores em geral, mais do que da sociologia; o
fato de termos lido um livro cujo tema eram sentimentos em geral; a
falta de conhecimentos a respeito deste conhecimento curricular traz
apenas emoções sobre ele e não conhecimentos; os sentimentos
negativos foram minoritários (SOFRIMENTO; INSEGURANÇA;
DÚVIDA), mas são expressivos. Os demais, positivos, expressam a
importância de cunho psicológico que atribuem, majoritária em
relação aos de cunho social ou linguísticos da alfabetização (oralidade
incluída). (ANDRADE, 20117)
As palavras propostas no momento das interações coletivas, pela oralidade,
foram escritas no quadro e novamente enunciadas por escrito nas definições que as
professoras elaboraram. Nas definições, as escolhas das professoras de educação infantil
não incluíram palavras relacionadas aos processos de alfabetização e letramento,
direcionando-se para sentimentos/disposições afetivas, como apresentado a seguir:
“Ideia - Surgimento de um pensamento; uma novidade; aquilo que traz
uma novidade; aquilo que traz uma alternativa, uma solução para uma
necessidade”. (P1)8
“Ideia - É quando uma lâmpada acende na nossa cabeça e faz com que
nós tenhamos a coragem de realizar transformações.” (P2)
“Medo - É quando um pequeno tronco de árvore se transforma em um
monstro terrível.” (P2)
6
Utilizarei a primeira pessoa do plural para apresentar considerações/reflexões compartilhadas pelos
integrantes do grupo de pesquisa em nossas reuniões semanais.
7
Citação extraída das anotações feitas pela professora Ludmila Andrade de reunião do grupo de pesquisa
em que conversamos sobre o primeiro encontro de formação. Tais anotações foram digitadas e enviadas
para todo o grupo via e-mail.
8
Utilizarei a letra P seguida de um número para (não) identificar as professoras.
“Vitória - É quando você consegue alcançar o ponto mais alto de uma
montanha.” (P2)
“Vitória - é conseguir algo que se quer muito depois de muita luta.” (P3)
“Liberdade - É quando aquele passarinho que está preso dentro de você
consegue criar asas e voar.” (P2)
“Compartilhar = Alfabetizar - Ato de dividir experiências, emoções,
alegrias e descobertas.” (P4)
As professoras P1, P2 e P3 trabalham na mesma escola, uma unidade da rede
municipal do Rio de Janeiro. As palavras escolhidas por elas podem ser associadas ao
contexto de trabalho em que essas professoras estão inseridas e aos modos como o
percebem. É constante, desde o primeiro encontro com elas, ouvir relatos de
dificuldades, de desânimo, de necessidade de encontrar caminhos para mudar a
realidade da escola.
Já P4, professora de uma fundação vinculada ao governo do Estado do Rio de
Janeiro, demonstra em seus relatos orais nos encontros de formação uma relação
prazerosa com a profissão e seu contexto de trabalho, narrando, com frequência,
episódios em que compartilhou experiências e descobertas com seus alunos.
Quanto aos ingredientes da alfabetização, estes foram escritos a partir de
solicitação feita pelas formadoras no IV EPELLE, em que foi retomado o glossário com
apresentação do quadro analítico das palavras associadas à alfabetização. Esse mesmo
encontro foi finalizado com uma breve incursão pelos princípios do trabalho
alfabetizador, apresentados por Patrícia Corsino no texto “Alfabetização não tem
receita, mas tem princípios” e que foi indicado para leitura naquela semana.
Destaco, aqui, trechos dos textos das professoras:
“Acredito que uma característica fundamental que o professor
alfabetizador deve ter é o gosto pela leitura. Desta forma, ele
poderá desenvolver em seus alunos este gosto também. O professor
deve, ainda, proporcionar ao aluno diferentes tipos de leitura
como por exemplo: em jornais, revistas, poesias, contos, crônicas
etc. e incentivá-lo sempre. O professor também deve ter o cuidado
de selecionar textos, frases e conteúdos que estejam dentro da
realidade de seu aluno” (P2)
“O processo de alfabetização é longo e possui vários atores em seu
cenário. Para que ele atinja o sucesso é necessário o envolvimento
integral de todas as suas partes. Como peça chave desse quebracabeça temos o professor, que essencialmente precisa estar
envolvido, para que com isso as crianças consigam perceber o
mundo da alfabetização e o que este trará de benefícios para ele. O
envolvimento do professor mostrará que a criança já interage com
o mundo externo, porém através da leitura e da escrita, essa
comunicação poderá ser maior, melhor e mais eficiente.É somente
através de alguém muito interessado em ensinar e que mostre
paixão pelo que faz, que o interesse do outro é despertado e
incentivado.A paixão contagia o entorno.” (P3)
“No diálogo e na troca o professor deve se permitir perceber que a
criança traz em sua bagagem uma história e deve ser valorizada
como subsídio para ação alfabetizadora. Essa história se
consolidará no ouvir do educador.
A relação do educador, sua história de vida e a alfabetização,
possibilitam estabelecer oportunidades de conhecer e compreender
a criança nesse processo alfabetizador.
(...) ousamos dizer que o professor também precisa perceber-se um
aprendiz. Entender a função social da palavra. Constituir-se leitor.
A prática alfabetizadora é um processo de constantes descobertas.
Então o professor precisa se descobrir a cada momento e não pode
prescindir da oportunidade de oferecer ao educando a
possibilidade de estar envolvido nas questões literárias e de trazer
sua realidade para o contexto da sala.” (P4)
“Partindo do fato de que nenhuma criança é totalmente desprovida
de conhecimento sobre a leitura e a escrita, um primeiro aspecto a
ser trabalhado consiste numa sondagem do que cada uma traz em
sua bagagem cultural. Isto significa verificar se percebem que
existe relação entre a fala e a escrita, se já identificam letras,
números, etc. (...)
Sabedor destas coisas, é interessante que o professor alfabetizador
se utilize de recursos que façam sentido para quem se destina seu
trabalho, no caso, a criança. Isto quer dizer que se faz necessário
uma articulação entre a história de vida do aluno e seu processo
de aprendizagem. (...)
A presença de livros e outros materiais impressos devem estar ao
alcance das crianças para que as mesmas possam manuseá-los
livremente. A partir dessa ideia, o professor alfabetizador deve ter
o hábito de ler constantemente histórias, recontando e até mesmo
criando para seu público.(...)” (P1)
De um modo geral, as professoras atribuem centralidade à ação do professor
sem, contudo, fazer referência à necessidade de conhecimentos teóricos específicos
sobre o processo de alfabetização. Aparecem também a importância de ler para os
alunos e de conhecer suas histórias de vida como aspectos indispensáveis para o sucesso
do trabalho alfabetizador.
A análise dos ingredientes permite ainda constatar o tom prescritivo assumido
pelas professoras e ausência de referências explícitas às suas práticas cotidianas.
Aparecem, com frequência, expressões como “o professor precisa”, “o professor deve”,
“é necessário” e há o predomínio do discurso em 3ª pessoa. Tais aspectos estariam
relacionados à falta de experiências próprias para incluir nos ingredientes ou as
professoras se sentem desautorizadas a falar de seus saberes?
Considerações Finais
A análise, ainda em fase inicial, das escritas das professoras indica que os
gêneros aqui analisados foram constituídos na relação com os discursos orais e escritos
em circulação nos EPELLE e nos contextos de trabalho das professoras, evidenciando,
entretanto, o que Andrade (2003, pp. 1301-1302) afirma:
(...) é preciso lembrar que, ao dar voz aos professores em nossas
pesquisas, constatamos que estes estão sem voz, envergonhados em se
dizer. Não arriscam dizer o que parece ser considerado que não deve
ser dito, já que tanto se tem falado da escola e de suas dificuldades. O
que fica para os professores é que, para dizerem algo sobre a escola,
apenas dizeres teóricos são legitimamente enunciáveis.
Essa ausência de voz dos professores pode ser atribuída às formas como as
pesquisas, as políticas educacionais e os cursos de formação têm tratado os professores.
Nas políticas educacionais, é comum haver formulações discursivas que
sugerem que a culpa pelos baixos índices da educação brasileira é dos professores e sua
formação, apresentando, em decorrência disso, soluções de caráter prescritivo,
autoritário, negando percursos de autoria.
Também as pesquisas voltadas para a formação, muitas vezes, têm dirigido aos
professores e aos seus saberes tons depreciativos. Mesmo quando declaram “dar voz” a
esses profissionais, estas são ouvidas como distorções, inadequações em relação ao
conhecimento científico, negando, assim, sua legitimidade.
Nos cursos de formação, as maneiras como os saberes teóricos são apresentados
têm levado os professores a aprender, com frequência, o discurso competente9, baseado
na apropriação de expressões de efeito, impactantes, como os slogans, que segundo
Scheffler (1974, p.46), “são inteiramente assistemáticos, de tom menos solene, mais
populares, a serem repetidos com veemência ou de maneira tranquilizadora, e não a
serem gravemente meditados”. Assim, os professores incorporam ideias como a
importância de ler para as crianças, de conhecer suas histórias de vida e de valorizar
seus saberes sem que elas sejam gravemente meditadas.
Cabe perguntar: os discursos das professoras estariam marcados pela presença
de slogans ou enraizados em seus saberes e práticas, constituindo-se a partir de
percursos de autoria? É possível que estejam mais próximos da primeira opção, o que
leva a considerar que o solo em que foram construídos precisará ser bem arado,
adubado, para que a escrita em estado germinal se enraíze e dê origem a gêneros
docentes robustos e frondosos.
Referências Bibliográficas
9
“O discurso competente é um discurso instituído. É aquele no qual a linguagem sofre uma restrição que
poderia ser assim resumida: não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em
qualquer lugar e em qualquer circunstância. O discurso competente confunde-se, pois, com a linguagem
institucionalmente permitida ou autorizada, isto é, com um discurso no qual os interlocutores já foram
previamente reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir, no qual os lugares e as circunstâncias já
foram pré-determinadas para que seja permitido falar e ouvir e, enfim, no qual o conteúdo e a forma já
foram autorizados segundo os cânones da esfera de sua própria competência.” (CHAUÍ, Marilena.
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