REVISTA ÂMBITO JURÍDICO ® A propriedade privada na Constitui? Federal de 1988: Direito fundamental de dimens?sociais Resumo: A propriedade é um dos institutos basilares do direito. Desde o seu surgimento através dos tempos vem sofrendo modificações conforme a sociedade também se transforma, sendo-se impossível compreendê-la como um conceito estático, deixando de se analisar o contexto em que se insere, jurídico e social. Assim, para que se possa compreender o direito à propriedade privada no ordenamento jurídico brasileiro hoje, é necessário uma análise contextual da propriedade sob o prisma da constituição federal de 1988, como nossa lei maior e como projeto de transformação de nossa sociedade. Palavras-Chave: Propriedade, Função Social, Constituição Federal. Abstract: The property is one of the basic institutes of the right. Since his appearance through times comes suffering modifications as the society also transforms, being impossible to comprehends her as a static concept, letting of if analyze the context in which it inserts, juridical and social. This way, so that it can comprehend the right to property closet in Brazilian law today, is necessary a contextual analysis of the property under the prism of the federal constitution of 1988, as our larger law and as transformation project of our society. Key-Words: Property, Social Function, Federal Constitution. Sumário: 1. Introdução 2. A propriedade e sua função social 3. Entre a autonomia privada e os interesses sociais 4. A propriedade privada no ordenamento jurídico brasileiro 5. A concretização da função social da propriedade privada 1. Introdução. A propriedade é um dos institutos basilares do direito, assim como o é da própria vida em sociedade. Muitos autores, não só da ciência do direito, como de outras ciências sociais e humanas como a sociologia e a antropologia, chegam mesmo a atribuir à propriedade a responsabilidade pelo surgimento do direito. O direito de Propriedade, talvez seja o mais sólido e o mais importante dos direitos subjetivos, o eixo central, a viga mestra que sustenta todo o direito das coisas. Mais que isso, “A propriedade é um elemento essencial da estrutura econômica e social de qualquer Estado”[1]. Essa instituição, extremamente variável através dos tempos, teve e tem a função de organizar a relação entre os membros de uma determinada sociedade, no tocante à maneira de dispor do meio ambiente como fonte de riqueza e satisfação de necessidades. Vista de uma perspectiva histórica, a propriedade se transforma no decorrer do tempo, apresentando um contorno e conteúdo sempre variável de acordo com o contexto social e histórico no qual se encontra inserida. Assim, partindo da propriedade coletiva do início dos tempos, passando pelos romanos, pelo liberalismo incutido na revolução francesa e sua propriedade “sacre et inviolabile”, tem-se a grande transformação da propriedade que começa a partir do século XX: a funcionalização da propriedade. Esse novo conceito importará também na redefinição do próprio conceito de propriedade, que, embebido em sensibilidade social, prestará tanto aos interesses do proprietário, como dos não-proprietários. Essa nova figura de propriedade, transformada pela Constituição, representa não só uma readequação da propriedade a uma outra realidade e a outras necessidades da sociedade. Também tem um papel fundamental, de contribuinte e construtora da efetivação do que é um direito de interesse social por excelência. 2. A propriedade e sua função social. Tratado o aspecto estrutural da propriedade, deve-se analisar o aspecto funcional. Quando se fala em “função” de um determinado objeto, fala-se da sua utilidade, seu uso, para que presta, aquilo que é próprio desse objeto fazer. Sempre que se fala em função, logicamente, tem-se então que ligá-la a um processo, a um realizar, ou fazer alguma coisa, e esse fazer, com certeza, nos remeterá a um resultado, ou produto que é do nosso interesse, para a satisfação de uma necessidade ou desejo.Quando se fala em função ou funções da propriedade, refere-se aqui então logicamente a aplicação dessa propriedade, aplicação que visa atingir um determinado resultado. Assim, ao se dizer função da propriedade, quer se fazer referência à finalidade da propriedade, mas partindo-se do processo, do emprego da propriedade, da ação própria que lhe é afeita, para se chegar a esse fim. Ao se referir à propriedade, a função lógica que advém é a função econômica. Apropriar-se de um determinado bem significa tomar as utilidades desse bem para si como forma de satisfazer necessidades e desejos. Tanto o é que, ninguém se ocupa de se apropriar de um bem se esse bem não comportar nenhum tipo de utilidade. Bem como, ninguém se preocupa também em tomar para si um bem inexaurível, ou extremamente abundante. Essas duas características são sempre apontadas nos manuais de economia como critérios para se dar valor econômico a um bem. Assim, falar em propriedade significa também que estamos falando em um conceito que, mesmo jurídico, tem suas bases fundadas na economia. Quando se fala em função ou funções da propriedade, refere-se aqui então logicamente a aplicação dessa propriedade, aplicação que visa atingir um determinado resultado. Assim, ao se dizer função da propriedade, quer se fazer referência à finalidade da propriedade, mas partindo-se do processo, do emprego da propriedade, da ação própria que lhe é afeita, para se chegar a esse fim. Ao se referir à propriedade, a função lógica que advém é a função econômica. Apropriar-se de um determinado bem significa tomar as utilidades desse bem para si como forma de satisfazer necessidades e desejos. Tanto o é que, ninguém se ocupa de se apropriar de um bem se esse bem não comportar nenhum tipo de utilidade. Bem como, ninguém se preocupa também em tomar para si um bem inexaurível, ou extremamente abundante. Essas duas características são sempre apontadas nos manuais de economia como critérios para se dar valor econômico a um bem. Assim, falar em propriedade significa também que estamos falando em um conceito que, mesmo jurídico, tem suas bases fundadas na economia. A função econômica de uma coisa apropriada por alguém é, satisfazer a necessidade do proprietário, para isso funcionando dentro de sua destinação. Se for um lote de terras produtivo, produzir determinada cultura; se for uma casa, proporcionar abrigo e conforto aos seus ocupantes; se for um automóvel, transportar pessoas e objetos. Quando se fala no bem atendendo ao fim que lhe é próprio e assim aos interesses do proprietário, traz-se à baila a função econômica do bem. A função econômica da propriedade é então produzir, no sentido de realizar os interesses do proprietário. Essa concepção de função da propriedade acompanha o referido instituto desde tempos imemoriais. Inclusive, quando se falou na recepção do instituto da usucapião em Roma, ou nas demais culturas antigas, não há outro tipo de preocupação com a propriedade que não atender sua função econômica. Visualize-se que, na antiguidade, com os métodos rudimentares de agricultura, havendo ainda poucas áreas férteis, e a população humana mundial mesmo que ainda pequena, crescendo exponencialmente admitir-se um lote de terras ocioso, seria contraproducente. Não havia qualquer tipo de relação entre as pessoas não proprietárias e o proprietário. Produzir era entendido como uma necessidade, mas uma necessidade econômica. Não há que se falar em necessidade social, a não ser obliquamente. O atendimento da necessidade social, se puder ser distinto nesse caso, deve ser visualizado apenas como conseqüência do atendimento da necessidade econômica. Logicamente, trata-se de um erro, pois produzir nem sempre quer dizer atender a interesses sociais. Com a revolução francesa e o advento da sociedade liberal, a propriedade passa a ser encarada como instrumento de afirmação da liberdade humana. Enquanto sujeito de direitos, o homem é caracterizado por sua liberdade de contratar e dispor de seus bens conforme melhor lhe aprouvesse. Não cabe qualquer intervenção de ninguém na esfera privada particular, podendo o indivíduo gerir suas riquezas como bem entender. No entanto, a liberdade política adquirida na revolução, essa liberdade contratual e a igualdade formal pouco fizeram para a grande maioria da população, que despossuídos, não tinham a mínima condição de contratar ou dispor de seus bens. “O velho liberalismo, na estreiteza de sua formação habitual, não pode resolver o problema essencial de ordem econômica das vastas camadas proletárias da sociedade, e por isso entrou irremediavelmente em crise. A liberdade política como liberdade restrita era inoperante. Não dava nenhuma solução às contradições sociais, mormente daqueles que se achavam à margem da vida, desapossados de quase todos os seus bens.”[2] Assim a propriedade adentra o século XX motivada por uma luta ideológica. De um lado, os defensores da propriedade privada; do outro os defensores da propriedade comum. León Duguit já no início do século XX é um dos grandes responsáveis por inaugurar uma nova corrente de pensamento jurídico acerca da Propriedade. O referido autor foi responsável por formular uma ousada tese onde nega à propriedade um caráter de direito subjetivo, definindo-a somente como uma função social. “A propriedade é uma instituição jurídica que se formou para responder a uma necessidade econômica, como por outra parte, todas as instituições jurídicas e que evoluciona necessariamente com as necessidades econômicas. Agora bem, em nossas sociedades modernas, a necessidade econômica, à qual corresponde a propriedade instituição jurídica, se transforma profundamente; por conseguinte, a propriedade como instituição jurídica deve transformar-se também. Por isso, a propriedade individual deixa de ser um direito do indivíduo para converter-se em uma função social” [3] Para Duguit, o conteúdo da propriedade como função social pode ser resumido nas proposições de que o proprietário tem o dever, e portanto o poder de empregar a riqueza que possui na satisfação de suas necessidades. O proprietário também tem o dever, e portanto o poder de empregar a coisa na satisfação de necessidades comuns de uma coletividade nacional inteira ou de coletividades secundárias. Quando o proprietário faz uso da propriedade em razão de satisfação pessoal porém, tais atos não correspondem a mais do que o mero exercício da liberdade individual. Dessa forma, se o indivíduo não age com essa finalidade nem a finalidade de atender uma utilidade coletiva, terá lugar então uma repressão ou reparação. “Nas sociedades modernas, nas quais chegou a imperar a consciência clara e profunda da interdependência social, assim como a liberdade é o dever do indivíduo de empregar sua finalidade física, intelectual ou moral no desenvolvimento dessa interdependência, assim a propriedade é para todo o possuidor de uma riqueza o dever, a OBRIGAÇÃO DE ORDEM OBJETIVA, de empregar a riqueza que possui em manter e aumentar a interdependência sócial”[4] A partir da I Guerra Mundial, o Estado, antes um mero garantidor das relações privadas dentro da concepção liberalista, passa a intervir na economia, na tentativa de diminuir as crescentes desigualdades sociais e reorganizar as economias nacionais destroçadas no pós-guerra. Tem-se a partir daí a intervenção estatal cada vez maior nas atividades sociais e econômicas, e em conseqüência disso uma redução da liberdade e da autonomia privada, agora limitada por normas de ordem pública. Nesse sentido, o Estado passa a intervir na liberdade de contratar e na utilização da propriedade. Como melhor reflexo disso, tem-se a Constituição de Weimar, de 1919, que é um dos primeiros textos constitucionais a dispor a cerca da função social da propriedade. Na conhecida forma do seu art. 153, dispõe que “a propriedade é garantida pela Constituição. Seu conteúdo e seus limites serão fixados em lei. A propriedade acarreta obrigações. Seu uso deve ser igualmente no interesse geral”[5]. A Constituição de Weimar é sem dúvida um marco quanto a essa questão, pois a partir dela, várias constituições passam a conter limitações ao direito de propriedade em seus textos, afastando-se da idéia de propriedade absoluta, advinda do liberalismo do século XVIII e XIX, o que vai acontecer de forma ainda mais expressiva principalmente a partir do fim da II Grande Guerra. Antes da Constituição de Weimar convém assinalar também a Constituição Mexicana de 1917. Se a Constituição mexicana não foi tão longe como a de Weimar, teve o mérito de abolir o caráter absoluto e sagrado da propriedade privada, ao estabelecer a distinção entre propriedade originária pertencente à Nação e a propriedade derivada que pode ser atribuída aos particulares. Conforme informa FÁBIO KONDER COMPARATO, submeteu-se o uso da propriedade, incondicionalmente, ao bem público, uma vez que a Nação a qualquer tempo tinha o direito de impor à propriedade privada as determinações ditadas pelo interesse público.[6] Mas se a expressão de Função social da Propriedade é em princípio bastante vaga isso não implica que deve ser entendido como um conceito volátil, que varia de acordo com quem o interpreta. Por outro lado, a análise que se fez até agora do instituto propriedade não é suficiente para que compreenda o que quer dizer Função social da propriedade. Por esta razão, na esteira do método usado por ORLANDO GOMES[7], passa-se a análise da expressão através da sua decomposição, para que se tenha uma melhor compreensão do tema. A começar pelo vocábulo função. Contrapondo-se ao termo estrutura, que trata da forma ou disposição com que um grupo de elementos ou partes compõem um todo, o termo função não diz o que é, mas ao que se presta ou qual a serventia de alguma coisa. Conforme alvitra RODOTÀ, “o termo função, contraposto ao termo estrutura, serve, de fato, para definir o concreto modo de operar de um instituto ou de um direito de características morfológicas particulares e manifestas”[8]. Para FRANCISCO AMARAL, recorrer à análise funcional permite maior compreensão do fenômeno jurídico, e isso revela a íntima ligação existente entre a teoria estrutural do direito e a abordagem técnico jurídica de um lado, e a teoria funcional e o estudo sociológico de outro. “Esta conexão é característica dos estudos jurídicos contemporâneos, considerando-se essencial para o jurista saber não apenas como o direito é feito, mas também para o que serve, vale dizer, a sua causa final. Aparece assim, o conceito de função em direito, significando o papel que um princípio, norma ou instituto desempenha no interior de um sistema ou estrutura”.[9] A funcionalização do direito demonstra que a sociedade e o mundo jurídico passam a se interessar pela efetividade das normas e dos institutos vigentes, extrapolando-se a visão do direito unicamente como instrumento de controle social, mas chegando também a uma visão inovadora, que atribui ao direito um papel mais atuante, “abandonando-se a costumeira função repressiva tradicionalmente atribuída ao direito, em favor de novas funções, de natureza distributiva, promocional e inovadora, principalmente na relação do direito com a economia. Surge, assim, o conceito de função no direito, ou melhor, dos institutos jurídicos, inicialmente em matéria de propriedade e, depois, de contrato”.[10] Essa funcionalização do direito importa em uma nova leitura da norma jurídica ou de um instituto, no sentido da análise de sua positivação, para se reconhecer limites que o ordenamento jurídico estabelece para o exercício de direitos subjetivos em cada caso concreto tendo em vista a finalidade desenhada para este instituto. Passa-se agora a analise do vocábulo “social”. A primeira vista, diversas idéias podem decorrer da expressão, que comporta várias acepções. Diz respeito a algo relativo à sociedade, ou do interesse dela. Quando se fala em função social, a expressão pode comportar vários significados, mas todas remetendo necessariamente a algo do interesse de um todo. Assim por mais ambíguo e amplo que seja o termo “social”, o que dificulta até certo ponto a sua conversão em um conceito jurídico, não há que se colocar em xeque que a expressão “social” retira o foco do individual para situá-lo no plano de interesses de uma coletividade. Nesse sentido, tem-se aqui o complemento da expressão, pois com o acréscimo do termo “social” ao termo “função”, estabelece-se então incisivamente qual deve ser a finalidade do direito em questão. A finalidade da propriedade privada, com sua função social, deverá ser atender também o interesse da coletividade. 3. Entre a Autonomia Privada e os interesses sociais. Importante salientar aqui que, todo direito é imbuído de uma função social, pois, afinal, esse é o papel do direito. No entanto, não se trata de redundância, atribuir uma nova “função social” ao direito de propriedade. A propriedade, enquanto privada, também exerce o seu papel social, ao atender os interesses do proprietário. Mas, quando se fala em função social aqui, quer se dizer uma função, direta, imediata, que há de impregnar todos os atos do proprietário, e não atender os interesses da coletividade obliquamente. Isso não quer dizer invadir a esfera do direito subjetivo do proprietário, ou de alguma forma suprimi-lo. Mas, antes forçar um direcionamento da atuação do proprietário em toda a extensão do seu direito subjetivo, no sentido de não só evitar que a satisfação dos seus interesses pessoais não venha a colidir com o interesse da coletividade, mas também que, na medida do possível, ambos dirijam-se num mesmo sentido. “O que mais se deve enfatizar, entretanto, é fato de que o princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário – ou a quem detém o poder de controle, na empresa – o dever de exercê-lo em benefício de outrem e não, apenas, de não o exercer em prejuízo de outrem. Isso significa que a função social da propriedade atua como fonte de imposição de comportamentos positivos – prestação de fazer, portanto, e não, meramente de não fazer – ao detentor do poder que deflui da propriedade. Vinculação inteiramente distinta, pois, daquela que lhe é importa mercê de concreção do poder de polícia.”[11] Essa idéia é exatamente o que vai gerar a principal diferenciação entre a idéia de função social da propriedade e a teoria do abuso de direito aplicada ao direito de propriedade. A teoria do abuso de direito não diz qual deve ser a finalidade da propriedade. O abuso do direito de propriedade se dará na medida em que o proprietário aproveite-se da sua condição e faça uso da propriedade além do seu limite social e econômico intrínseco. No entanto, quando se fala em função social aqui, fala-se na função social que todo comando jurídico possui, que todo direito subjetivo possui. Assim, nenhuma prerrogativa que a norma jurídica dá, pode ser usada em malefício de outrem. Em primeiro passo, deve ser identificado o abuso de direito e, uma vez identificado, reconhece-se apenas uma função corretiva que permitirá ao julgador invalidar e desconstituir aquela conduta na parte específica onde houve a quebra de finalidade. No entanto, quando se fala em função social da propriedade, tem-se antes, a delimitação da conduta subjetiva, direcionando o modo de agir do proprietário, dizendo-lhe como proceder, não só no sentido de não prejudicar, mas também no sentido de beneficiar. Assim, a conduta do proprietário não vai encontrar um limite num segundo momento, mas desde logo, intrínseco, impregnando todas as suas faculdades, desde que as adquire. A função social da propriedade diz como deve ser o proceder do proprietário e por isso tem um alcance muito maior que a aplicação da teoria do abuso do direito de propriedade. “Não é de se analisar o exercício do direito de propriedade na costumeira regra do “neminem laedere”, ou seja, se a “posteriori”, o indivíduo causou ou não um prejuízo a outrem. A violação da função é que deve ser objeto do exame, pois se a propriedade permite ao ser humano a tranqüilidade, a segurança para o exercício da vida, o desenvolvimento de suas potencialidades e o desfrute da felicidade, metas gerais e últimas do Direito, não menos que elas só serão alcançadas numa ordem social justa e respeitada que atribua ao contexto social as mesmas possibilidades de acesso aos bens, à segurança e à felicidade.”[12] Por outro lado, importante salientar que, a proibição de atos abusivos quanto ao exercício de direitos, não implica numa maior sensibilidade social do direito. Muito pelo contrário, nascida no apogeu dos códigos liberais, incidindo somente nos casos do desvio de finalidade no exercício das “prerrogativas protegidas”, não contribui, e nem deve, em nada para o substrato do que são ou devem ser essas prerrogativas. Assim, o exercício individualista da propriedade, nem sempre encontra óbice na teoria do abuso de direito, pois a propriedade também exerce uma finalidade social quando atende ao indivíduo, dado que se a propriedade também tem essa finalidade social individual, não estará caracterizado propriamente um desvio de finalidade. Somente com a função social, que implica em dar uma nova roupagem ao direito de propriedade, uma nova finalidade com sensibilidade social, é que terá como alcançar essas situações, inclusive podendo se valer da teoria do abuso de direito, pois essa função social da propriedade também tem uma função diretriz, uma função promocional. Conforme Perlingieri, “A função social, construída como um conjunto de limites, representaria uma noção somente de tipo negativo voltada a comprimir os poderes os poderes proprietários, os quais sem os limites, ficariam íntegros e livres. Este resultado está próximo à perspectiva tradicional. Em um sistema inspirado na solidariedade política, econômica e social e ao pleno desenvolvimento da pessoa o conteúdo da função social assume um papel de tipo promocional, no sentido de que a disciplina das formas de propriedade e as suas interpretações deveriam ser atuadas para garantir e promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento. E isso não se realiza somente finalizando a disciplina dos limites à função social.”[13] É essa função diretriz, que impregna a propriedade de forma imanente é que será a grande responsável pelas transformações no conteúdo estrutural da propriedade, transformando as faculdades de usar, gozar dispor e reivindicar, sempre de forma a dar-lhes sensibilidade social e também dando um novo rosto aquelas características de direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo. Nesse ponto talvez tenha-se a grande diferença entre a propriedade de outrora e a propriedade contemporânea. Alguns autores afirmam que a propriedade nunca foi um direito absoluto, mas antes limitado, como já acontecia com a admissão da usucapião na antiguidade, e mesmo, as limitações urbanísticas e com respeito a direitos de vizinhança já existentes no direito romano. No entanto, há que se fazer algumas observações e a diferenciação entre absoluto e ilimitado. Em primeiro lugar, as limitações que ocorreram ao longo do tempo eram limitações específicas, pontuais, fundadas em motivos de interesse público. Agora, tem-se uma limitação geral a toda forma de propriedade, e que, vale dizer, parte do próprio conceito jurídico de propriedade, e por isso diz-se que foi relativizada. Antes o direito era chamado absoluto, posto que somente ao proprietário cabia decidir sobre a destinação que dava ao seu bem. Um direito absoluto, limitado circunstancialmente, em função de alguma necessidade de ordem pública, mas cuja validade nunca era questionada. Agora, não é só questão de se falar em propriedade limitada, uma vez que esse adjetivo ela recebe desde tempos longínquos, mas em direito relativo, em contraposição a essa adjetivação absoluta, visto que o exercício do direito de propriedade passou por uma verdadeira desconstrução e agora encontra uma limitação em si mesmo, ante uma função diretiva de sua função social. É verdade que somente no século XVIII, com o advento do liberalismo a propriedade conseguiu feições individualistas tão exacerbadas e que antes a história registra situações diversas de limitações à propriedade privada. No entanto, essa limitação era externa e sempre partia de um segundo momento contra um direito já conformado. Com a relativização promovida quanto ao direito de propriedade, o seu vínculo a uma finalidade que deve obedecer, faz com que surja uma limitação interna, no direito mesmo, e isso vai fazer parte da própria conformação do direito de propriedade. 4. A propriedade Privada no Ordenamento Constitucional Brasileiro. A Constituição da República Federativa do Brasil, vigente desde 1988, a exemplo do que fez a anterior, também traz a função social da propriedade como princípio da ordem econômica e a propriedade privada como garantia individual. Além disso a propriedade é objeto da norma constitucional em vários situações especiais, que só vem a corroborar com a idéia de que a propriedade não pode mais ser encarada apenas do ponto de vista individual, mas com o foco num todo social. A Constituição consagra a tese, que tem bases principalmente na doutrina italiana, onde se tem uma noção pluralista do instituto, de forma que a propriedade não constitui uma instituição única, mas várias instituições diferenciadas, em correspondência com os diversos tipos de bens e seus titulares. Assim o direito de propriedade além de ser garantido de forma geral, como ocorre no art. 5, mas há também referência a vários estatutos proprietários, como ocorre com a propriedade urbana (art. 182, § 2.º) e a propriedade rural (art. 5, XXVI e arts. 184, 185, 186), de forma que se pode falar não em “propriedade” mas em “propriedades”. Não é difícil de compreender tal situação, se levarmos em consideração que a propriedade deixou de ser uma instituição do Direito Civil, dado que há muito se entende que seus efeitos extrapolam as relações meramente intersubjetivas e que, a determinação do conteúdo da propriedade, dependerá de centros de interesses extraproprietários, os quais vão ser regulados no âmbito da relação jurídica de propriedade.[14] Conforme assevera RICARDO LIRA, “a propriedade assegurada em nossa Constituição como um direito individual (art. 153, § 22), cuja função social é declarada como um dos princípios da Justiça Social (art. 160, III), apresenta-se como instituição diferenciada, no sentido de poder variar de conteúdo, conforme o tipo de bem que lhe serve de objeto e a natureza do titular, exatamente por ser uma função social e um dos instrumentos da Justiça Social.”[15] Passa-se a análise da propriedade privada e a forma como foi concebida pela Constituição. Em primeiro lugar, tem-se a propriedade privada inserida no âmbito dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo: “Art. 5. - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros, e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade, nos termos seguintes: (...) XXII – é garantido o direito de propriedade; XXIII – a propriedade atenderá sua função social;” Em um próximo ponto, tem-se a propriedade novamente referida nos princípios gerais da atividade econômica: “Art. 170. – A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano, na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observando-se os seguintes princípios: (...) II – propriedade privada; III – função social da propriedade;” Assim, numa análise imediata do dispositivo, tem-se a propriedade privada como instituição constitucionalmente protegida, constando como direito fundamental na constituição vigente. Da mesma forma, atrelada a ela, e com a mesma posição normativa, o comando constitucional que ordena que a propriedade atenda a sua função social e isso traz algumas conseqüências. Antes de tudo, cumpre-se salientar que a propriedade privada foi reafirmada em nosso sistema também como garantia individual e como direito subjetivo do proprietário. Isso implica dizer que a mesma continua tendo como escopo a persecução das necessidades individuais do proprietário e que mantém um conteúdo mínimo enquanto direito subjetivo do proprietário. Contrariando a tese de Duguit, a inserção da propriedade entre os direitos e garantias individuais, bem como a menção à “propriedade privada” nos princípios da ordem econômica força a concepção da propriedade como um direito subjetivo do proprietário, de modo que ela continua a deter um conteúdo mínimo que permite ao proprietário usar, gozar, dispor e reivindicar de quem injustamente a possua. Esse conteúdo mínimo traz a própria essência da propriedade privada e sua mantença impede que o instituto se desnature. “Do inteiro quadro constitucional deriva que a propriedade privada não pode ser esvaziada de qualquer conteúdo e reduzida à categoria de propriedade formal, como um título de nobreza. Ela representa não um desvalor, mas um instrumento de garantia do pluralismo e de defesa em relação a qualquer tentativa de estatalismo”.[16] Por outro lado, há que necessariamente se fazer a leitura conjunta dos dispositivos constitucionais, que darão novos contornos a essas faculdades do proprietário, de forma imanente. A função social da propriedade não pode ser concebida como um elemento externo à propriedade, mas sim como um elemento componente, na medida em que é intrínseco a propriedade, um elemento qualificador, na medida em que vai trazer transformações ao conteúdo e características da propriedade, de forma que ela atenda a essa finalidade social, e mais ainda como elemento validante, na medida em que o texto constitucional estabelece como circunstância sujeitadora do direito de propriedade, o atendimento a essa função social. JOSÉ AFONSO DA SILVA chega à mesma conclusão, na medida em que afirma que “...não há como escapar ao sentido de que só se garante o direito de propriedade que atenda sua função social.”[17] Assim, a propriedade só constitui direito subjetivo do proprietário se atende a sua função social. “Os conservadores da constituinte, contudo, insistiram para que a propriedade privada figurasse como um dos princípios da ordem econômica, sem perceber que, com isso, estavam relativizando o conceito de propriedade, porque, submetendo-o aos ditames da justiça social, de sorte que se pode dizer que ela só é legitima enquanto cumpra sua função dirigida à justiça social.”[18] Nesse sentido, a opinião de Maria Elizabeth Moreira Fernandez: “O conteúdo do direito de propriedade privada assume naturezacomplexa, sendo qualificado, por via disso, como um direito fundamental de dupla face ou de duplo carácter. Com efeito, o direito de propriedade privada assume no seu conteúdo constitucional uma vertente ou dimensão objectivo-institucional (derivada da função social que cada categoria de bens se encontra obrigada a cumprir) e, simultaneamente, uma vertente subjectiva-individual que integra o conteúdo essencial desse direito. Essas duas vertentes do direito de propriedade privada não se opõem uma à outra, antes pelo contrário, a determinação do aspecto obectivo não visa senão reforçar o aspecto subjectivo do mesmo”.[19] Por outro lado, a previsão da propriedade como princípio da ordem econômica, vem a fortalecer a idéia há muito vigente de que a propriedade deixou de ser apenas um direito individual e uma instituição do Direito Privado. Mais do que isso, a propriedade privada e sua função social se transformam em uma instituição do direito econômico, e sua inserção naquele conjunto de princípios, faz com que ela constitua não só um alicerce basilar da ordem econômica, mas também um fim a ser perseguido, por meio da implementação dos seus ditames econômicos. Da propriedade inserida nos contextos onde estão, pode-se retirar o conteúdo final do que vem a ser função social da propriedade em nosso ordenamento jurídico, através da leitura que ele permite da qualificadora “social” da expressão “função social”. Em primeiro lugar, tem-se a idéia de “social” ligada a proteção da propriedade em função da utilização produtiva dos bens apropriados. Assim, a propriedade estaria cumprindo sua função social do ponto de vista econômico, quando produzisse aquilo a que se destina de forma “otimizada”. Essa leitura é possível e cabe dentro da concepção de propriedade do nosso ordenamento constitucional, vez que propicia uma economia nacional produtiva e de certa forma proporciona algum tipo bem estar da coletividade. E afinal é um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil “garantir o desenvolvimento nacional” (art. 3, II). Por outro lado, cabe também uma outra leitura, a qual o texto constitucional dá muito mais ênfase, quando se liga a expressão “social” à idéia de “promoção humana”. Nesse sentido, a função social assumiria um papel de perseguir relações sociais mais justas. Aqui é que se vai ter a verdadeira sensibilidade social da expressão função social da propriedade, posto que o objetivo é uma sociedade mais justa e menos desigual, ao invés da idéia tradicional e ineficaz de simplesmente se garantir que todos possam ter acesso a propriedade. Essa leitura do texto constitucional é consistente, pois essa leitura conforma valores como os que emanam do princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República, e ainda com outros valores e objetivos a se alcançar, estabelecidos na Constituição, como “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3, I); “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3, III); “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer formas de discriminação” (art. 3, IV). Conforme já mencionado alhures, tem-se a inserção da propriedade privada e sua função como princípios da ordem econômica, e nesse contexto, estão vinculados a persecução do fim de “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (art. 170, caput). As duas leituras não se contradizem, antes, se convergem num mesmo sentido e se completam, jungindo assim, objetivos de produção e desenvolvimento econômico, ao lado de valores que visam a promoção humana, como justiça social e solidariedade. Assim, a idéia de função social que pode se desprender do nosso ordenamento constitucional é ampla e de substrato rico. A inserção do direito de propriedade acompanhado da sua função social no art. 5 da Constituição de 1988, ainda traz outras conseqüências. Como já foi dito anteriormente, a reafirmação da propriedade como um direito fundamental. O direito fundamental pode ser definido sob dois pontos de vista diferentes. O primeiro é o ponto de vista formal, segundo o qual é direito fundamental tudo aquilo que Lei Fundamental consagra como tal, ou nos dizeres de JORGE MIRANDA, “toda posição jurídica subjectiva das pessoas enquanto consagrada na Lei Fundamental”[20]. O segundo é do ponto vista material, que o eminente constitucionalista define como “direitos inerentes à própria noção de pessoa, como direitos básicos da pessoa, como os direitos que constituem a base jurídica da vida humana no seu nível actual de dignidade, como as bases principais da situação jurídica de cada pessoa, eles dependem das filosofias políticas, sociais e econômicas e das circunstâncias de cada época e lugar”[21]. Partindo-se dessa idéia e da inserção da propriedade e sua função social como direitos fundamentais no ordenamento jurídico, e partindo da situação do direito de propriedade garantido ao proprietário, e também da função social da propriedade inserta no texto constitucional na qualidade de garantia, tal situação faz nascer aos não-proprietários como um todo e que, vai se enquadrar tanto no conceito formal quanto material de direito fundamental. É a garantia de que à propriedade de outrem não se dará um fim nocivo à coletividade e aos interesses sociais maiores, ou mesmo, que a propriedade cumprirá um papel tanto produtivo, no sentido econômico, como no sentido de promoção humana. Assim, como se tem um dever nas mãos do proprietário, como já salientado anteriormente, uma obrigação de fazer, motivada na idéia de propriedade dotada de função social, que é justificada pelos seus fins, nasce uma prerrogativa para a coletividade de se exigir a concretização deste fazer. Nesse sentido, FÁBIO CONDER COMPARATO afirma que “o direito contemporâneo passou a reconhecer excepcionalmente, uma ‘função social da propriedade’ isto é, a existência de deveres positivos do proprietário de certos bens, em relação a outros sujeitos determinados, ou perante a comunidade social como um todo.”[22] E conforme EROS GRAU, quando se fala em função, fala-se em um poder-dever que, traz ao Direito privado, algo até então tido como exclusivo do Direito Público: o condicionamento do poder a uma finalidade.[23] Contudo, observe-se que a Constituição protege a instituição propriedade privada. Nesse sentido, deve manter o conteúdo mínimo estrutural[24], que permita ao proprietário suprir as necessidades materiais suas e de sua família e ter na propriedade um instrumento de suas realizações. Assim, é importante que o proprietário tenha espaço para gerir sua propriedade conforme suas necessidades e interesses, desde que isso não seja nocivo ao conjunto social e nem se afaste dessa idéia de força promocional com a qual a função social trespassa o instituto da propriedade. O Estado Democrático de Direito deve garantir isso ao proprietário, na medida em que se protege a propriedade bem como garantir que o proprietário não seja molestado no exercício de suas prerrogativas protegidas pelo ordenamento jurídico. E afinal, essa garantia também representa uma faceta de promoção humana. No entanto, esse mesmo Estado, na medida em que assume compromissos via ordenamento constitucional, de busca de redução das desigualdades, desenvolvimento nacional e construção de uma sociedade justa, livre e solidária, e fundando-se em princípio da dignidade da pessoa humana, deve também transformar a propriedade num eficaz instrumento de justiça social, na medida em que é perfeitamente possível conciliar os interesses individuais e coletivos sobre a propriedade. 4. A Concretização da Função Social da Propriedade Privada. Uma vez definido os contornos do que vem a ser função social da propriedade, e mesmo, dos efeitos da mesma sobre as relações privadas, como a redefinição que a mesma faz do próprio instituto da propriedade, cabe agora analisar o modo de operacionalizar o conceito dessa função social da propriedade. Nesse sentido cabem duas orientações. A primeira concebe a função social da propriedade como uma cláusula geral do direito privado, funcionando como um eixo norteador para a conduta dos proprietários. Conforme STEFANO RODOTÀ, “é um princípio positivado e operativo em via geral, não apenas uma fórmula verbal indicativa de um complexo de obrigações a serem definidos em lei”[25], e como complementa FRANCISCO EDUARDO LOUREIRO que como é um princípio que se reflete na própria estrutura da relação jurídica, está apto a operar em qualquer situação de propriedade, independentemente de um explícito reclamo do legislativo inferior.[26] A segunda posição defende a idéia de que a função social sem definição e especificação legal é um conceito vago e sem auto-aplicação. É um conceito cujo conteúdo deve ser fornecido pela lei. Para JOSÉ LUIZ DE LOS MOZOS, que adota essa teoria, a propriedade se concebe como um direito de atribuição dos bens, sem mais limitações do que as estabelecidas em leis. Essa discussão parece se encerrar, pelo menos quanto ao ordenamento jurídico brasileiro, pela própria disposição constitucional, uma vez que, estando inserida no art. 5 da constituição, e portanto fazendo parte do rol dos direitos e garantias fundamentais, o próprio § 1.º do referido artigo é incisivo ao dispor que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” Além disso, negar a auto-aplicabilidade da “função social da propriedade” parece ser desnaturar o próprio conceito de “função social da propriedade”, já que sempre se admitiu restrições legais ao direito de propriedade. A negativa corresponderia, em negar qualquer tipo de efetividade, transformando a função social da propriedade em uma mera “declaração de intenções” constitucional, sem qualquer sentido jurídico próprio. Isso realmente parece não fazer mais muito sentido, uma vez que tem-se consolidada definitivamente a idéia de Constituição com força normativa, e seu papel determinante em relação à sociedade. Pois, “A constituição não configura, portanto, apenas a expressão de um ser, mas também de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas. Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social.[27] Toda essa discussão parece refletir o medo da discricionariedade que a idéia da função social parece dar ao julgador, de forma que ele possa interferir no âmbito da autonomia privada, ou mesmo que não se tenha uniformidade na aplicação do conceito. No entanto, a que se levar em conta que a função social da propriedade está submetida à mesma interpretação sistemática que deve pautar a aplicação de qualquer norma jurídica, inclusive sob os ditames que a Constituição Federal e os valores nos quais se funda. Além disso, a indeterminação do conceito de função social é proposital e motivada, na medida em que conforme assevera CLÁUDIA LIMA MARQUES, o direito deixa o ideal positivista (e dedutivo) da ciência, reconhece a influência social (costume, moralidade, harmonia, tradição) e passa a assumir posições ideológicas, a concentrar seus esforços na solução de problema. É um estilo de pensamento cada vez mais tópico, que se orienta para o problema, criando figuras jurídicas, conceitos e princípios mais abertos, mais funcionais delimitados sem tanto rigor lógico, pois só assumem sua significação em função do problema a resolver.[28] É próprio aqui discutir se a função social da propriedade é um princípio ou uma regra de direito. Para HUMBERTO ÁVILA, a qualificação da norma como regra ou princípio depende de conexões axiológicas que não estão incorporadas no texto legal, mas que são construídas pelo interprete na realização de seu trabalho, estando ele limitado aos valores e fins do ordenamento jurídico. Princípios, segundo a sua conceituação, são normas imediatamente finalísticas, por estabelecerem um fim a ser atingido. Eles instituem o dever de adotar comportamentos necessários à realização de um estado de coisas ou, inversamente, instituem o dever de efetivação de um estado de coisas pela adoção de comportamentos a ele necessários. Essa perspectiva de análise evidencia que os princípios implicam comportamentos, ainda que por via indireta e regressiva.[29] Nesse sentido, a Função social da propriedade também é um princípio, na medida em que apontam um estado ideal de coisas a ser buscado (valores), por meio da adoção de comportamentos necessários a realização desse estado ideal de coisas. Assim, quando por exemplo, a função social da propriedade orienta e direciona o julgador na aplicação da legislação infraconstitucional, ela tem a posição de um princípio. No entanto, quando você tem a função social da propriedade agindo como uma regra de conduta, no sentido de descrever um comportamento que constitui uma necessidade prática para progressivamente se atingir um determinado fim, como por exemplo, quando ela significa a vedação ao proprietário de fazer um uso nocivo de sua propriedade por ferir a interesses da coletividade, tem-se nesse caso a função social da propriedade funcionando como regra. Para ÁVILA, a regra significa a uma norma descritiva de conduta, cuja aplicação se vincula a uma finalidade que não está manifesta ou a princípios que lhe são axiologicamente sobrejacentes, aplicável a fatos concernentes àquela conduta.[30] Antes todo o exposto, é possível se apontar alguns modos da função social da propriedade se operacionalizar: a) Como “chave conformadora” entre os interesses individuais, consubstanciados no direito fundamental à propriedade privada e os interesses coletivos, legitimados em valores constitucionais como “justiça social” e “solidariedade”, funcionando como elo de ligação e como resposta incisiva aos receios da impossibilidade de conciliação de interesses; b) Como um comando dirigido ao Estado, no sentido de promover políticas públicas de forma a fazer com que as Propriedades (já que a constituição ao se referir a função social da propriedade não se refere a nenhuma delas especificamente), inclusive a Privada, se dirijam a um fim social que comportam, de forma a satisfazer também a interesses coletivos, e fiscalizem de forma eficaz e efetiva a destinação dessas propriedades. É também um comando dirigido ao Estado no sentido de se abster ele mesmo de condutas anti-sociais na destinação de suas propriedades, bem como dirigi-las a uma finalidade social; c) Como um comando dirigido diretamente ao Legislador, para orientá-lo na criação de mecanismos que aperfeiçoem e tornem efetiva a vinculação da propriedade a uma função social, como mecanismos de incentivos a comportamentos dos proprietários, bem como melhorar os mecanismos que vedem condutas socialmente nocivas. d) Como um comando dirigido ao julgador, como princípio orientador e fundamentador de suas decisões; e) A todos os indivíduos enquanto proprietários, no sentido de dirigirem suas condutas no sentido de consubstanciarem os seus interesses pessoais com os interesses coletivos na gestão de suas propriedades; e também de se absterem de condutas que lesem a interesses coletivos. Referências: AMARAL, Francisco. Direito Civil; introdução. 5. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2003. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 3. ed., São Paulo: Malheiros, 2004. BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 7. ed., São Paulo: Malheiros, 2004. CAMARA, Maria Helena Ferreira da. Aspectos do direito de propriedade no capitalismo e no sovietismo. Rio de Janeiro: Forense, 1981. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2003. COSTA, José Rubens. Este obscuro objeto do direito: a propriedade. Belo Horizonte. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, 1984. FERNANDEZ, Maria Elizabeth Moreira. Direito ao ambiente e propriedade privada; aproximação ao estudo da estrutura e das conseqüências das “leis-reserva” portadoras de vínculos ambientais. Boletim da faculdade de direito da universidade de coimbra. Coimbra: Coimbra, n. 57, 2001. GOMES, Orlando. Direitos reais. 18.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2002. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988; Interpretação e crítica. 6. ed., São Paulo: Malheiros, 2001. HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991. LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. Vol. VI. 5.ª ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001. LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao direito de propriedade. 2.a ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. 4. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV – direitos fundamentais. 3. ed., Coimbra: Coimbra, 2000. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed., São Paulo: Malheiros, 2005. TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2004. Notas: [1] CAMARA, Maria Helena Ferreira da. Aspectos do direito de propriedade no capitalismo e no sovietismo. Rio de Janeiro: Forense, 1981. [2] BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 7. ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p.67. [3] DUGUIT, León apud MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao direito de propriedade. 2.a ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. , p. 76-77. [4] DUGUIT, León apud LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. Vol. VI. 5.ª ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001, p. 295. [5] MALUF, Carlos Alberto Dabus. Op. Cit., p. 69. [6] COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 177-178. [7] GOMES, Orlando. Direitos reais. 18.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 107. [8] RODOTÀ, Stefano apud LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 108. [9] AMARAL, Francisco. Direito Civil; introdução. 5. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 366. [10] AMARAL, Francisco. Op. Cit., p. 367. [11] GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988; Interpretação e crítica. 6. ed., São Paulo: Malheiros, 2001, p. 269. [12] COSTA, José Rubens. Este obscuro objeto do direito: a propriedade. Belo Horizonte. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-graduação em Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, 1984, p. 155. [13] PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. [14] TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 317. [15] LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 161 [16] PERLINGIERI, Pietro. Op. Cit., p. 230. [17] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed., São Paulo: Malheiros, 2005, p. 270. [18] SILVA, José Afonso da. Op. Cit., p. 812. [19] FERNANDEZ, Maria Elizabeth Moreira. Direito ao ambiente e propriedade privada; aproximação ao estudo da estrutura e das conseqüências das “leis-reserva” portadoras de vínculos ambientais. Boletim da faculdade de direito da universidade de coimbra. Coimbra: Coimbra, n. 57, 2001, p. 177-178 [20] MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV – direitos fundamentais. 3. ed., Coimbra: Coimbra, 2000. p. 9. [21] MIRANDA, Jorge. Op. Cit., p. 10. [22] COMPARATO, Fábio Konder. Op. Cit., p. 351. [23] GRAU, Eros Roberto. Op. Cit. p. 269. [24] “Assim o direito de propriedade, assegurado na Constituição da República, é um direito cujo conteúdo pode variar, como verdadeira função social, nos termos e limites fixados pela lei, como expressão da vontade coletiva, desde que não seja ele esvaziado em seu conteúdo mínimo.” (LIRA, Ricardo César Pereira. Op. Cit., p. 161). [25] RODOTTÀ, Stefano, apud LOUREIRO, Francisco Eduardo. Op. Cit., p. 114. [26] LOUREIRO, Francisco Eduardo. Op. Loc. Cit. [27] HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, p. 15. [28] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. 4. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 178-179. [29] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 3. ed., São Paulo: Malheiros, 2004. p. 72. [30] ÁVILA, Humberto. Op. Cit., p. 70.