ENSAIO SOBRE A QUESTÃO ONTOLÓGICA DA LIBERDADE E SUAS RELAÇÕES COM A TOXICOMANIA: PERSPECTIVAS FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAIS Wânier Ribeiro1 CONCEITOS PRELIMINARES TOXICOMANIA: O QUE É? para si mesmo e pela qual o mundo existe para o homem. Eis o significado ontológico da liberdade (HEIDEGGER,1997). Toxicomania, drogadicção, toxicodependência, farmacodependência ou dependência química são termos utilizados para determinar comportamentos relacionados ao consumo compulsivo (força interna sem controle) de drogas, sejam lícitas ou ilícitas, nos quais sempre está implícita a existência de aspectos psíquicos e, algumas vezes, físicos (SILVEIRA FILHO, 1996, p.1). Assim, a relação entre sujeito e objeto configura uma patologia, pela sua intensidade ou pela sua preponderância (SILVEIRA FILHO, 1996, p.1). Esse conceito implica na existência de uma dependência psíquica implícita, que é caracterizada pelo impulso para utilizar a substância psicoativa periódica ou continuamente, com a finalidade de se obter prazer ou de aliviar uma tensão. Além disso, o uso pode acarretar uma dependência física, sendo que o sujeito, por ocasião da privação, pode sofrer de sintomas físicos e psíquicos, o que é denominado síndrome da abstinência. Entende-se, atualmente, que a toxicomania deva ser entendida numa perspectiva tridimensional, ou seja, a partir dos contextos psicológico, biológico e social do indivíduo (contexto biopsicossocial), posta a complexidade do problema (SILVEIRA FILHO, 1996, p.3). Entende-se, nesse contexto, que a liberdade do sujeito, diante da situação de dependência química, fica comprometida e é sobre essa relação que se propõe discorrer neste artigo. LIBERDADE E RELAÇÕES COM A TOXICOMANIA: UM ENSAIO LIBERDADE DO PONTO DE VISTA ONTOLÓGICO: O QUE SIGNIFICA? O aspecto da realidade no homem, pelo qual ele se ergue acima do “ser-resultado”, é a sua subjetividade. Isso significa dizer que o homem supera por sua subjetividade seu “ser-coisa”. O homem em si mesmo é um “eu”, um pertencer-se a si mesmo e esse eu é para a liberdade. A liberdade exprime, por si mesma, certa ausência de determinação. Logo, “ser-livre” significa “ser-si-proprio” , ser sujeito. No entanto, isso não significa ausência de ligação do sujeito com o mundo, muito pelo contrário, a liberdade se dá em situação. E liberdade e compromisso coexistem. O eu, como liberdade, é a luz (razão) pela qual o homem existe A dinâmica da existência humana tem seu fundamento na subjetividade como liberdade, entendendo-se que o homem não seja apenas o resultado determinado de processos e forças. O aspecto da realidade no homem, pelo qual ele se ergue acima de tal processo, se chama subjetividade. O homem, como sujeito, atestado por Heidegger (1997), é o lumem naturale, a luz pela qual alguma coisa existe. É, pois, pelo ser do homem como sujeito que se ultrapassa o “ser-resultado”, o ser simplesmente parte. O ser do homem como sujeito é “ser-livre”. Liberdade referente ao ser do homem no próprio nível do “ser-homem”, ou seja, numa perspectiva ontológica. A liberdade aqui discutida não é aquela que designa a propriedade de uma ação ou faculdade. Em Heidegger(1997), tem-se que o “ser-livre” do homem como sujeito deva ser compreendido positivamente como um ser com certa autonomia, independência, um pertencer-se a si mesmo, tendo como fundamento seu ser próprio e, por isso, não gerado, não resultado de processos e forças. Essa superioridade do ser homem como “ser-si-próprio”, sujeito de suas ações, constitui, simultaneamente, a sua racionalidade O sujeito manifesta-se como liberdade e essa se revela como razão, como modo de atribuir significados às coisas. (LUIJPEN, 1973) Ser sujeito significa ser livre, liberdade essa não absoluta, porque a subjetividade não se dá isoladamente. O eu somente se coloca em relação, é intencional e situado, é ligação com o mundo. A liberdade não é desse modo acósmica. O eu consciente, como auto-afirmação, apenas aparece com a consciência da realidade e com a afirmação da corporeidade e do mundo. Waelhens (1949) considera que a auto- afirmação do eu encontra-se num duplo nível: no cognitivo, o qual se dá o reconhecimento do eu e da realidade como realidade; e no afetivo, o qual se refere à afirmação do eu e da realidade. O sujeito, na afirmação, não é apenas cogito, mas volo (quero), que caracteriza o consentimento do eu e da realidade. Esse afirmar, reconhecer Revista de Psicologia - Edição 1 l 49 e consentir não se refere a juízos explícitos do sujeito, mas sim ao afirmar-se implícito ao próprio sujeito existente, que corresponde a certa realização e plenitude que se pode alcançar. Contudo a positividade da auto-afirmação não ocorre sem a negatividade, ou seja, sem a autonegação. Ambas se afetam mutuamente. O reconhecimento do eu inclui negatividade, assim o eu não é um tudo, mas uma positividade finita do ser. Cabe ressaltar que, como bem lembra Laing (1982), uma pessoa basicamente segura do ponto de vista ontológico enfrenta os riscos da vida com firme senso da realidade e identidade. Outras, as quais se situam numa ausência parcial ou quase total das convicções derivadas da segurança ontológica, podem buscar sanar tal ausência em objetos do mundo, na tentativa de se assegurarem, posto que se sentem incapazes de se sentirem seguras “em si mesmas”. Heidegger (1997) caracterizou esse modo de ser como inautenticidade objetiva. Laing (1982) retrata que caso o indivíduo tenha alcançado uma posição de segurança ontológica primária, as contingências comuns da vida não constituem ameaça constante à existência, caso contrário, as circunstâncias diárias constituem uma contínua e mortal ameaça. A não-aceitação da identidade real impele o indivíduo a buscar meios para tentar preservar com esforço sua identidade, para impedir a perda do próprio self. Com isso, percebe-se a liberdade de ser cada vez mais restrita. A dependência das drogas, pelo sujeito, parece poder ser entendida por esse ângulo. Depender de um objeto em demasia significa não conseguir ser livre dele, isso parece se relacionar com a falta de segurança do sujeito em relação a si mesmo, já que se busca um ancoradouro externo para se auto-afirmar. Ao caracterizar as formas de ansiedade enfrentadas pela pessoa ontologicamente insegura, Laing (1982), retrata: a) na absorção o indivíduo teme o relacionamento interpessoal e na verdade até consigo próprio, sua principal manobra para preservar a identidade é o isolamento, a solidão. Na situação de dependência química, a droga se constitui como centro do campo fenomenológico do indivíduo, o eu e os outros tendem a ser colocados à deriva. Daí os comprometimentos existenciais nas esferas inter e intrapessoal. b) na implosão, o indivíduo sente-se vazio, como o vácuo, mas esse vazio é ele próprio e, embora anseie preencher esse vazio teme a possibilidade de que isso aconteça, porque passou a achar que a única coisa que ele possa ser é esse imenso vácuo. Por mais que o indivíduo se proponha a preencher o vazio que se encontra, utilizando para isto o consumo compulsivo da droga, não atinge tal objetivo, posto que busca algo exterior a si mesmo para a auto-realização. Nessa busca frenética se percebe não realizado, “preenchido”, tornando o consumo um círculo vicioso. Além disso, pode acontecer que quanto mais se culpa pelo uso da droga, mais consome para se 50 l Revista de Psicologia - Edição 1 livrar da culpa que carrega, não acreditando que além de “não-ser” possa também “ser-si-próprio”. c) Por fim, na despersonalização, terceira forma de ansiedade, a pessoa não se permite reagir aos sentimentos do outro e talvez esteja disposta a considerá-lo e tratá-lo como se não tivesse sentimento. Tais pessoas inclinam-se a se sentir despersonalizadas e a despersonalizar os outros. Tem-se tornado lugar comum, na clínica da toxicomania, os próprios clientes e seus familiares relatarem que na situação de dependência química, o indivíduo tenda a subjugar a si e aos outros como meros objetos, não demonstrando amor por si próprios e pelos outros. Tendem a colocar a droga como centro da existência, sendo capazes de atrocidades contra si e contra os semelhantes, para resguardar o consumo da mesma. Denota-se, desse modo, um baixo nível de compreensão do seu próprio mundo (Eigenwelt) e do mundo das relações interpessoais (Mitwelt). Isso significa dizer que quanto menor for o campo compreensivo do sujeito em relação a si mesmo mais restrita será a sua vivência de liberdade. Pode-se entender, por esse ponto de vista, que a pessoa que se torna dependente química possa colocar em suspensão a sua liberdade de escolha do uso ou não droga, devido aos aspectos biopsicossociais envolvidos, e também de outros posicionamentos do seu existir. Deixa escapar, nesse processo, o seu próprio censo de consentimento do eu e da realidade. Se a droga se torna o centro, o referencial do eu, a auto-afirmação é sucumbida pela negatividade do eu. A dificuldade que a pessoa encontra para conviver com seus conflitos é atenuada pela plenitude efêmera que encontra nos efeitos que a droga lhe proporciona. Em contrapartida, a esta entrega é suspenso o seu “poder-ser” mais próprio: a liberdade de “ser-si-mesmo”. Não são incomuns as queixas de clientes dependentes químicos estarem relacionadas aos sentimentos de impotência diante das suas escolhas, se dizem assujeitados à compulsão pela substância, perdendo o poder de suas ações, se percebem como objetos da condição que se encontram. Apesar de que algumas pessoas reconheçam num nível cognitivo os prejuízos associados ao consumo da droga, se vêem atreladas à necessidade e desejo de tal consumo. Nesses casos, parece coexistir um duelo travado entre o querer e o desejar. Apenas saber de dada situação não coloca uma pessoa em situação de mudança, pode-se dizer que o querer é da ordem da razão, do saber, já o desejo advém de um modo irreflexivo, não planejado, não explicável. Daí as reelaborações existenciais não encontrarem seus percursos apenas no nível cognitivo, mas concomitantemente no afetivo. Frases como “Quero minha liberdade de volta” são comuns no processo clínico. Acredita-se que re-significar a vivência em dependência química requer o reencontro do indivíduo consigo mesmo, em seu “poder-ser”mais próprio, para que retome em suas mãos o seu existir de forma plena. A necessidade de se ancorar em objetos de sustentação que lhe são externos deve, na reestruturação do eu, ceder espaço para que o eu reassuma sua centralidade e isto se dará pela retomada da segurança ontológica. Percebe-se que se as questões afetivas não são reelaboradas,torna-se distante a possibilidade de abstinência da droga, pois é esta que, naquele momento, estrutura o ser, assegura sua existência. Heidegger (1997) se refere ao “ser-aí” dizendo que ele possui uma relação de ser, que é uma compreensão do ser (Seinsverstandnis) e é isso que caracteriza essencialmente o “ser-homem”. Afirma, desse modo, que o homem em seu ser cuida do que ele é e, neste cuidado são situados tanto os momentos positivos quanto os negativos. Quanto maior for a sua compreensibilidade de seu próprio existir, maior será a sua liberdade. O ser do homem é sempre “ser-no-mundo”, a cada maneira possível de existir corresponde a uma significação possível do mundo. Desse modo, nenhuma vivência de valor é tal que o dizer sim seja definitivo e isso se aplica a qualquer nível de intencionalidade. O homem, ao se aborrecer no constituído, tende a um novo futuro, já que além de lúmen natural e, ele é também desiderium naturale (desejo natural). Essas considerações tratam de uma liberdade como “ter-que-ser”, ou seja, o sujeito é busca constante de sua liberdade. O modo de ser dependente químico caracteriza a dificuldade que o homem possa ter de lançar mão do que lhe é próprio: sua liberdade, porém, em determinado ponto, o sujeito pode entender sua liberdade pelo uso excessivo de drogas como uma liberdade equivocada e aí clame a si próprio a liberdade que lhe constitui verdadeiramente como ser livre, a liberdade como “ter-que-ser” si mesmo, sem escapes. Considerar-se-á que nenhuma pessoa é apenas doente de modo efetivo, pois a própria doença inclui potencialidades. Isso porque a liberdade como “ter-que-ser” somente faz sentido, fenomenologicamente, pelo precedido “poder-ser”. Dá-se assim, porque o homem não é ser acabado, nem coisa, nem encargo, mas um sujeito em situação de liberdade e desejo, é projeto (Entwurf). O “poder-ser” constitui a realidade do ser factual, o “ainda não” constitui a realidade do já e o futuro constitui a realidade do passado. Isto quer dizer que o “poder-ser” abarca facticidades e potencialidades. Como atesta Heidegger (1997), o “poder-ser” não é apenas uma possibilidade lógica, mas um existencial, uma característica essencial do “ser-homem”. A facticidade do homem não é real sem o “poder-ser”. À medida que o homem é luz e desejo para a realidade, pela sua superioridade entitativa de sujeito, atribui-se a ele o “deixar-ser” pelo desvelamento, pela compreensão (Verstehen). E essa consciência se dá não apenas no reconhecimento de “ser-si-mesmo” de fato, mas de um “poder-ser”. Esse “poder-ser” é constituído por certa facticidade, ou seja, inclui determinadas possi- bilidades e exclui outras. Isso implica em dizer que a liberdade existe a partir da sua ligação a determinada situação concreta. CONCLUSÕES Concebe-se que a cada maneira possível de existir no mundo corresponda a uma significação possível de mundo, isto é, o projeto que o homem desenha para si, reflexivamente ou não, é ao mesmo tempo o projeto de seu mundo. Entendendo-se que os significados atribuídos à existência manifestem-se como direção, parece pertinente elucidar que o sujeito, ao se tornar dependente químico, se dirija a um pronunciamento silencioso de que ser independente (livre) lhe custa um preço muito alto, sem se dar conta, no entanto, que como a existência é em si liberdade, o preço maior será o de retomar para si o seu fundamento condenável: a liberdade. Neste sentido, o foco psicoterapêutico do tratamento da toxicomania deve se orientar, em primeira mão, não para a abstinência da droga pelo sujeito, como fim em si mesma, mas para o resgate da liberdade existencial do sujeito como possibilidade de “ser-si-mesmo”, de “ser-livre”. O resgate pelo sujeito, em relação a sua independência do consumo compulsivo de drogas, estaria, então, fundado na própria liberdade de se deixar “ser-si-mesmo”. REFERÊNCIAS HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petropólis: Vozes, v. I e II, 1997. LAING, R.D. O eu dividido: estudo existencial da sanidade e da loucura. Petrópolis: Vozes, 1982. LUIJPEN, W. Introdução à Fenomenologia Existencial. São Paulo: EPU, 1973. SILVEIRA FILHO, Dartiu Xavier. Dependências: de que estamos falando afinal? In: SILVEIRA FILHO, Dartiu Xavier; Gorgulho, Mônica (org). Dependência: Compreensão e assistência às toxicomanias: uma experiência do PROAD. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996. WAELHENS, A. Linéaments d’une interprétation phénoménologique de la liberte. Actes du IV Congrès dês Sociétés de Philosophie de langue française, Neuchatel, 1949, p.82. NOTAS DE RODAPÉ 1Professora Dra. do Curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva, supervisora de estágios clínicos, Coordenadora da CAMT- Clínica de Atendimento Multidisciplinar à Prevenção e ao Tratamento da Toxicomania. [email protected] Revista de Psicologia - Edição 1 l 51