USO DE GÊNEROS TEXTUAIS NO ENSINO DE LEITURA:
DA TEORIA AOS MODELOS DIDÁTICOS
Marta Cristina da SILVA
(Universidade Federal de Juiz de Fora)
ABSTRACT: Having as guideline some basic principles of genre theories, this paper aims at discussing their
pedagogical implications for the teaching and learning of reading in English as a foreign language. Although
the concept of genre has been widely studied in recent years, teachers still need some support for planning their
reading classes and assessments according to genre-based approaches. Data were collected in an ethnographic
research carried out at a Brazilian state school and our current analysis focuses on the social and cultural
aspects of “advertisements”, one of the several genres presented to the students. We conclude with suggestions
for further research on the use of genres in the English learning context, mainly when the reading process is
concerned.
KEYWORDS: genre theories; reading; foreign language teaching/learning
1. Introdução
Este trabalho é um recorte de um projeto de pesquisa cujo objetivo geral é investigar
em que medida os gêneros textuais podem funcionar como instrumentos de ensinoaprendizagem da leitura em língua estrangeira, compreendendo-se aqui tal processo em
sentido amplo, das atividades de pré-leitura à integração com o processo de produção escrita.
Esse objetivo pode ser desdobrado nas seguintes perguntas de pesquisa: (1) De que modo os
gêneros textuais têm sido efetivamente tratados nas aulas de leitura em língua estrangeira (em
termos de suas propriedades lingüístico-textuais e discursivas, propósitos comunicativos,
conteúdo temático, suporte e situação de produção)?; (2) Que características dos gêneros estão
sendo priorizadas, de fato, em situações de ensino-aprendizagem? (3) As chamadas
“atividades de compreensão” ou “de interpretação” (post-reading activities) permitem saber
como o aluno/leitor seria capaz de responder ao gênero em suas práticas sociais?; (4) Que
propostas pedagógicas poderiam ser apresentadas para um uso mais adequado dos gêneros no
contexto de sala de aula?
Se falar sobre o uso de diferentes gêneros na escola tornou-se até um “modismo” (no
Brasil, a partir do final dos anos 90, em especial), é preciso ainda analisar de que forma essa
perspectiva tem-se concretizado pedagogicamente, ou seja, as reflexões sobre o conceito de
gênero como objeto de ensino não são absolutamente novas, mas ainda hoje se justificam
porque o problema da transposição didática permanece. Com foco na escola pública, numa
pesquisa de cunho etnográfico, esta investigação se baseia nos aportes teóricos de abordagens
sócio-retóricas (Swales, principalmente) e de abordagens sócio-discursivas (visão bakhtiniana
de gênero e desdobramentos da Escola de Genebra).
2. Fundamentação teórica
Há sem dúvida um interesse crescente no trabalho com gêneros por parte da escola no
Brasil, motivado, em grande parte, pela normatização legal do conceito por meio de
documentos oficiais como os PCNs, mas a relação entre o uso da noção de gênero e o ensino
de leitura, especialmente em língua estrangeira, é ainda um campo de pesquisa muito pouco
explorado. Pode-se afirmar que a maior parte dos trabalhos, aliás, focaliza a produção de
textos, e não a compreensão leitora. Além disso, questões teóricas ligadas ao próprio conceito
1570
de gênero ainda permanecem em aberto, o que torna particularmente difícil a sua transposição
para o contexto escolar.
No que se refere às teorias de gênero, para buscar responder às minhas perguntas de
pesquisa, trabalhei com pressupostos baseados principalmente nas perspectivas adotadas pelos
seguintes autores:
Swales (1990, 1992, 1993, 1998, 2001), com seus conceitos-chave de propósito
comunicativo e comunidade discursiva, que o próprio autor retoma e reavalia no curso de sua
história de pesquisa, mas sempre reafirmando a utilidade e relevância de tais construtos
teóricos;
Bakhtin (1929/1995, 1953/1997), com as concepções de compreensão responsiva
ativa, de dialogismo, que perpassa toda a sua obra, além, naturalmente, de sua própria noção
de gênero, que, rompendo com uma longa tradição de estudos que consideravam apenas os
gêneros literários, incluiu os gêneros do cotidiano, tanto da língua falada quanto escrita,
tomando-os como formas específicas de uso da língua, estreitamente ligadas às várias esferas
de atividade humana;
finalmente, o chamado Grupo de Genebra (Bronckart, 2003, Schneuwly & Dolz,
2004), que, partindo das premissas bakhtinianas, busca discutir teoricamente a questão da
transposição didática e apresentar propostas, considerando o gênero como um instrumento de
mediação entre as práticas sociais e os objetos escolares.
Ao longo do trabalho, sempre procurei estabelecer uma articulação entre essas
vertentes teóricas. O diálogo entre a abordagem sócio-retórica de Swales e a visão sóciohistórica de Bakhtin não apenas mostrou-se possível como certamente contribuiu para uma
discussão mais aprofundada em torno da noção de gênero textual. Como afirma Rojo (2005),
mesmo as reflexões que focalizam mais a descrição da composição e da materialidade
lingüística dos textos no gênero, estabelecem, de alguma forma, um diálogo com o discurso
bakhtiniano. No caso específico da minha pesquisa, houve essa necessidade de
complementaridade de aportes teóricos porque, ao questionar se o ensino da leitura em língua
estrangeira permite ao aluno responder ao gênero, estou empregando responder não apenas
como a realização de um ato ou uma reação objetiva e imediata a uma dada situação, numa
leitura mais pragmática do contexto, mas num sentido amplo, bakhtiniano, como a capacidade
de agir no mundo com a linguagem, de acolher ou rejeitar a palavra do outro, de confirmá-la
ou aprofundá-la, de reagir, enfim, de forma adequada às mais diversas práticas sócio-culturais
de que o leitor participa em sua vida cotidiana.
3. Metodologia e cenário da pesquisa
De acordo com as questões que pretendia investigar, optei pela pesquisa qualitativa, de
base etnográfica, realizando o estudo longitudinal numa escola pública federal de Juiz de
Fora, MG, no período de maio a dezembro de 2003. A escolha de tal cenário se justifica pelo
fato de a escola adotar a abordagem instrumental para leitura e assumir que o gênero já estaria
sendo usado como um eixo norteador do programa de língua inglesa.
Após entrevistas com professores, escolhi uma turma de 8ª série, na qual os 32 alunos
tinham um perfil bastante homogêneo (em relação à faixa etária, classe social e nível de
conhecimento da língua). Os dados foram coletados tanto nas aulas de trabalho com textos
quanto nas aulas em que foram aplicadas as provas, buscando-se também verificar se haveria
uma inter-relação entre o processo de ensino-aprendizagem da leitura e as avaliações formais.
É preciso esclarecer que a seqüência de aulas em torno de um mesmo texto
compreende sempre as seguintes etapas (descritas pela própria professora na primeira
entrevista realizada): 1) Pre-text (ativação de conhecimento prévio); 2) getting closer to the
text (análise de ilustrações, identificação de fonte, autor, gênero); 3) on the text (general
1571
reading e specific reading); 4) on the lexicon (ênfase nas categorias semânticas “que façam o
aluno perceber que a língua é regular”); 5) on the grammar (estudo das estruturas mais
recorrentes, “justificando dentro do gênero”); 6) outside reading (opinião do aluno,
“recuperando a realidade e saindo do texto”); 7) production (sempre uma produção escrita no
final da seqüência didática).
As provas de leitura seguem exatamente o mesmo roteiro. Por esse motivo, optei por
analisar, a seguir, a 3ª prova aplicada para a turma naquele ano. Devido aos limites deste
trabalho, selecionei algumas questões e aspectos teóricos que foram objeto de discussão (para
uma análise mais aprofundada, ver SILVA, 2004).
4. Análise dos dados
Gênero: Propaganda (da instituição United Nations High Commissioner for Refugees)
Fonte: Revista Time (os alunos receberam o texto fotocopiado)
Datas: 22 e 24 de setembro de 2003
O texto publicitário (ou propaganda)∗, focalizado nesta prova, é um dos gêneros mais
usados no ensino de leitura e produção de textos. Se examinarmos manuais de ensino de
línguas e mesmo materiais elaborados pelo próprio professor, veremos que esse gênero
normalmente aparece já nas primeiras aulas de cursos de leitura.
Que critérios fundamentariam essa escolha? Razões diversas podem ser apontadas.
Um dos motivos é que o gênero em questão apresenta-se em geral rico em elementos de
linguagem não-verbal, que, se bem explorados, podem ajudar significativamente o leitor no
processo de compreensão do texto. Basta lembrar que diferentes efeitos de sentido podem ser
alcançados por meio do planejamento gráfico, que inclui: cores, tipo de letra, imagens,
distribuição dos elementos na página, relação entre imagem e texto verbal (MORAES, 2002).
Outra razão que justificaria a seleção da propaganda entre os gêneros usados na escola
para o trabalho com textos diz respeito aos seus usos sociais. Freqüentemente, em situações
concretas de comunicação, estamos em contato com textos publicitários, nas suas mais variadas
formas e suportes, seja na mídia impressa (jornais, revistas, cartazes, prospectos, folhetos), seja na
mídia eletrônica (cinema, televisão, internet), e precisamos estar preparados para responder
adequadamente aos propósitos desse gênero. Se, como dizem Schneuwly & Dolz (2004), é por
meio do gênero que se estabelece a articulação entre as práticas sociais e os objetos escolares, o
aluno deve ser confrontado com gêneros que sejam (ou venham a ser) relevantes para a sua vida
social.
Dentre os vários tipos de publicidade e propaganda, Moraes (2002) focaliza a
propaganda social impressa, que tem sido utilizada por um número crescente de empresas que
objetivam atrelar seu nome às causas sociais, para assim ganhar a simpatia e o respeito do
público-alvo e melhor “vender” sua imagem junto à comunidade. De modo geral, as
propagandas sociais estão ligadas a grupos que não visam à obtenção de lucro financeiro
direto com as idéias que veiculam, como instituições filantrópicas, hospitais, grupos religiosos
e órgãos públicos, por exemplo. O argumento central ou proposição básica dessas campanhas
publicitárias, assim como os apelos utilizados para sensibilizar os destinatários, são
trabalhados de modo a atingir seu propósito: não primeiramente vender um produto, nesse
caso, mas antes despertar a atenção dos leitores através de um tema social (MORAES, 2002,
p. 80). Mais do que conscientizar, porém, o objetivo é promover a instituição. Naturalmente,
pode-se questionar se não haveria sempre interesses subjacentes, por parte dos enunciadores,
em qualquer tipo de propaganda.
∗
Segundo Moraes (2002), a tendência que se verifica no universo publicitário atual é a de não se fazer uma
distinção clara entre os termos “publicidade” e “propaganda”.
1572
Conclui-se, portanto, que a questão dos propósitos comunicativos envolvidos precisa
ser muito bem situada quando se trabalha o gênero anúncio em sala de aula. Pode parecer, a
princípio, ser mais fácil descrever suas marcas lingüísticas em comparação a outros gêneros.
No entanto, há muito o que ser explorado no nível da interpretação e da reflexão crítica por
parte dos leitores.
Vejamos, então, de que modo a publicidade ou propaganda é abordada nesta avaliação de
leitura em particular; se o tratamento dado ao gênero contempla suas características sóciodiscursivas, seu propósito comunicativo, ou se fica limitado a suas propriedades formais. Além
disso, nesta prova, os alunos tiveram que responder a um tipo específico de anúncio publicitário.
É preciso verificar se essas peculiaridades, que produzem efeitos de sentido diferentes, foram, de
alguma forma, enfatizadas.
Já na seção pre-text, a tarefa proposta toca diretamente na questão do gênero, ainda que
sem nomeá-lo de forma específica, classificando-o como “convite”: Tente lembrar dos convites
feitos a vocês para participarem de campanhas filantrópicas ou sociais e determine as principais
características destes convites quanto a forma de apresentação, linguagem, fonte, etc. Como o
enunciado permite observar, o propósito comunicativo do gênero já foi definido na própria
elaboração da questão: “convidar o leitor à participação em campanhas filantrópicas ou sociais”.
Ao mesmo tempo, procura-se estimular o aluno a fazer a articulação desse propósito com as
demais características do gênero: “apresentação, linguagem, fonte, etc”.
Essa questão de pré-leitura não recebe pontuação. Os alunos nem precisam escrever uma
resposta. Trata-se de um aspecto muito positivo, muito próximo da idéia de avaliação formativa.
Sob esse aspecto, nota-se que a professora busca trabalhar no sentido de que não haja divergência
entre o que se faz nas aulas de leitura e o que se testa nas provas. Lamenta-se apenas que, pelo
fato de não ser atribuído à questão um valor quantitativo, os alunos dêem pouca atenção a essa
etapa. Como pude observar durante a realização da prova, a maioria passa diretamente para a
resolução das questões seguintes. As concepções tradicionais sobre avaliação parecem tão
arraigadas que afetam os próprios alunos. Ao contrário da avaliação formativa, que pretende ser
menos seletiva e estar integrada à ação pedagógica cotidiana, a avaliação tradicional, “não
satisfeita em criar fracasso, empobrece as aprendizagens e induz, nos professores, didáticas
conservadoras e, nos alunos, estratégias utilitaristas” (PERRENOUD, 1998, p. 18).
Outro aspecto a se considerar é a inter-relação do que é proposto na avaliação em termos
da caracterização do gênero com o que foi ensinado nas aulas de leitura. Revendo os dados
coletados através da observação das aulas, constatamos que o gênero utilizado nesta avaliação não
tinha sido objeto de ensino (pelo menos, não nas aulas de inglês dessa turma). Se não houve
anteriormente um trabalho específico de compreensão de textos de propaganda, é possível que a
professora contasse com conhecimentos prévios adquiridos em aulas de Língua Portuguesa ou
ainda com um conhecimento pré-teórico por parte dos alunos, com base em suas vivências e
experiências compartilhadas em comunidades interpretativas.
Feita essa contextualização inicial, foram formuladas perguntas mais específicas sobre o
gênero em getting closer to the text, conforme analisamos a seguir.
Destacamos principalmente a primeira questão: 1 - Pelo formato do texto, como ele pode
ser tipificado?
Já sabíamos que a professora não havia trabalhado com os alunos a distinção entre gênero
e tipo textual, por isso, ao perguntar como o texto poderia ser tipificado, estava esperando, na
verdade, a identificação do gênero. Chama-nos a atenção a ênfase dada na pergunta ao formato do
texto, como se apenas esse critério pudesse dar conta da definição do gênero. Na verdade, muitas
vezes, a dificuldade de definir um gênero reside justamente na multiplicidade de critérios
envolvidos, conforme elenca Bronckart (2003, p. 73): critérios referentes ao tipo de atividade
humana implicada; critérios centrados no efeito comunicativo visado; critérios referentes ao
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tamanho e/ou à natureza do suporte utilizado; critérios referentes ao conteúdo temático abordado.
Além desses, complementa o autor, vários outros critérios são ainda possíveis.
Apesar dessa diversidade, pode-se eleger certos aspectos como sendo centrais para
qualquer tentativa de classificação. Em outras palavras, de acordo com a linha teórica adotada,
diferentes características podem ser privilegiadas como determinantes. Na prova em questão, o
foco recaiu sobre o formato, que é certamente um dos critérios que podem ser legitimamente
utilizados para a definição do gênero. Nas nossas práticas de leitura cotidianas, o formato é
importante, sim, na medida em que nos permite decidir se determinado texto pode nos interessar
ou não, isto é, pelo formato, podemos provavelmente chegar à identificação do propósito
comunicativo. Por exemplo, ao folhear uma revista, o leitor consegue identificar, através do
formato, o que é uma propaganda, podendo antecipar, antes mesmo de começar a leitura, quais as
finalidades normalmente associadas a essa espécie de texto.
De qualquer modo, é preciso considerar que não há uma relação de dependência mecânica
entre formato e propósito comunicativo. Pelo próprio caráter de mobilidade dos gêneros, pode-se
sempre subverter certas convenções, quebrar expectativas. Ainda usando o exemplo da
propaganda, diferentes formatos podem ser usados visando a um mesmo objetivo: só a título de
ilustração, um produto pode ser anunciado através de um convite, de uma carta, de uma história
em quadrinhos, de um texto científico (para conferir maior credibilidade à propaganda). Portanto,
se o formato é um critério importante, pode não ser o bastante para levar à identificação dos
propósitos. Por essa razão, acreditamos que o aluno não pode ser induzido a pensar que o formato
é o único critério definidor do gênero. Além disso, ainda que o aluno reconheça facilmente o
gênero valendo-se apenas do formato, que sentido há no mero reconhecimento? Será suficiente
que o aluno responda que, “pelo formato, o texto pode ser tipificado como uma propaganda”, por
exemplo? Assim, à primeira pergunta formulada em getting closer to the text, poder-se-ia
acrescentar uma outra que focalizasse especificamente a questão dos propósitos comunicativos:
Pelo formato, que tipo de texto você acha que é? Para quê ele foi escrito?
Em relação à identificação do gênero, vários alunos que obtiveram bons resultados na
prova responderam que “o texto é um panfleto”. A professora aceitou essa forma de classificação.
Pensamos que o rótulo dado ao gênero é o que menos interessa na questão. Concordamos com
Machado (2004) quando afirma que a necessidade de nomeação pode levar a uma discussão
estéril, na medida em que há vários gêneros que não têm nome estabelecido, há gêneros que têm
diferentes nomes e há casos, ainda, em que um mesmo nome abarca gêneros diversos. Em outro
trabalho, a autora defende que “a identificação dos gêneros apenas pelos nomes que lhes são
socialmente atribuídos é problemática, não é transparente, não está aí pronta ou dada de forma
indubitável ao analista e/ou ao professor (MACHADO, 2002, p. 140).
O que mais nos interessa observar, de fato, é que a pergunta da prova, tal como formulada,
não avança além do nível da identificação. Fosse a resposta publicidade, propaganda, panfleto ou
qualquer outro rótulo, o que realmente importaria verificar seriam os elementos levados em conta
pelo aluno para chegar a tal classificação. Por exemplo, teriam os alunos considerado, na verdade,
apenas a formatação, a composição textual, ou teriam pensado também nas finalidades, nos
propósitos comunicativos do texto?
Continuando a análise da prova, entendemos que as questões 3 e 4 estavam intimamente
relacionadas: 3- Qual é a possível fonte do texto? 4 - Quem é o responsável pela produção do
texto? Como você chegou a esta conclusão?
Essas perguntas poderiam ter dado abertura para uma reflexão mais profunda acerca da
situação de produção e circulação do texto. Sem perder de vista, evidentemente, que não se deve
esperar do aluno a resposta de um analista de gênero, seria interessante que as respostas
ultrapassassem o nível da mera identificação, que foi o que ocorreu nas provas a que tive acesso.
Os alunos não tiveram dificuldade de identificar a “fonte” como revista (ou jornal) TIME e o
“responsável pela produção” como uma organização ligada às Nações Unidas. Entretanto,
1574
deixaram de ser abordadas algumas questões importantes para a compreensão do texto, por
exemplo: Por que a UNHCR escolheu veicular sua mensagem num periódico de grande
circulação? O fato de a propaganda ter sido produzida pela UNHCR confere ao texto maior
credibilidade? Dito de outro modo, em termos bem simples: Depois de ler o texto, você se sentiria
motivado a contribuir com a campanha dessa instituição? Para uma compreensão responsiva
ativa, faltou aqui, em suma, uma análise da situação de interação entre enunciador e destinatário,
considerados não só do ponto de vista físico, mas também de seu papel social. Veremos que a
questão dos interlocutores será recuperada de certa forma na segunda parte da seção on the text.
A terceira etapa da prova (on the text), bastante longa, começa com perguntas de múltipla
escolha, pedindo a interpretação do que a professora considerou como “títulos”, que sintetizavam
o argumento central da propaganda: Words like these have lost their meaning to many refugees. /
It’s our job to give them meaning again. Pela forma como foi elaborada, acreditamos que essa
questão teve mais o objetivo de ajudar os alunos do que propriamente de avaliar a sua
compreensão. Visto que a materialidade lingüística do texto é um fator a ser considerado com
especial atenção na avaliação da leitura em língua estrangeira, não vemos nisso, a princípio, algo
negativo, embora haja autores que criticam a utilização da múltipla escolha como estratégia para
facilitar a resposta para o aluno. Coracini (1995), por exemplo, postula que o emprego de
perguntas facilitadoras mostra bem “como o professor assume o papel tradicional que lhe é
imputado de facilitador da aprendizagem, exigindo do aluno que apenas realize uma escolha
simples” (p. 78), não oportunizando-lhe desafios. É claro que nem sempre se trata de “uma
escolha simples”. Dependendo do modo como a questão é formulada, é possível requerer do
candidato outras habilidades além do conhecimento passivo, do mero reconhecimento, o que
ocorre, por exemplo, quando a resposta exige inferências, reconstituição de informações difusas,
estabelecimento de relações ou uma operação de atribuição de sentidos que incida sobre o texto
em sua globalidade. Seja como for, nesta prova as questões iniciais de múltipla escolha deram
subsídios ao aluno para responder às perguntas seguintes, que giraram em torno do apelo feito ao
destinatário.
Julgamos que a segunda questão é um ótimo exemplo de trabalho com o gênero
propaganda, ainda que, mais uma vez, o gênero não tenha sido explicitado:
2 – A titulação do texto é finalizada com a expressão And yours.
a) Qual é o significado desta expressão?
b) Qual foi o objetivo da instituição promotora do texto em usá-la?
c) Por que ela foi sublinhada?
Essa tarefa ilustra bem a idéia de que tanto a dimensão mais lingüística quanto a dimensão
social do gênero devem ser exploradas conjuntamente. O objetivo da questão é levar o aluno a
refletir sobre o uso da expressão and yours não só do ponto de vista estritamente lingüístico, mas
também discursivo, dando ênfase ao propósito do enunciador e ao efeito (ou efeitos) de sentido
que se pretende produzir no destinatário. Para que se tenha uma noção do nível de compreensão
alcançado pelos alunos, segue um exemplo de resposta para cada item:
a) Literalmente a expressão significa “E seus”, mas quer passar a idéia “É sua missão
também”.
b) Ao usar a expressão And yours, a instituição quis dizer que a missão de ajudar é nossa,
reforçando o convite.
c) Ela foi sublinhada para ser destacada e chamar a atenção dos leitores.
1575
Como pude observar pelas respostas dadas, os alunos, de modo geral, perceberam bem o
tipo de apelo emotivo utilizado por essa propaganda social para atingir os leitores.
Essa preocupação com as condições de produção do texto está em consonância com a
perspectiva do interacionismo sócio-discursivo. Seguindo esse viés teórico, Bronckart (2003)
salienta a importância da interação comunicativa, que, ao lado do contexto físico, compõe o que o
autor define como contexto de produção: o “conjunto dos parâmetros que podem exercer uma
influência sobre a forma como um texto é organizado” (p. 93). Um dos parâmetros principais da
interação comunicativa, que implica o mundo social e o mundo subjetivo, é justamente o objetivo
(ou os objetivos) dessa interação: qual é, do ponto de vista do enunciador, o efeito (ou efeitos) que
o texto pode provocar no receptor? (BRONCKART, 2003, p. 94). A nosso ver, essa segunda
questão da seção on the text, através de perguntas simples, consegue levar o aluno a pensar sobre
a situação de interação que envolve produtor e destinatário, permitindo avaliar se esse aluno é
capaz de compreender o propósito comunicativo do gênero propaganda e, particularmente, neste
caso, da propaganda social.
A questão seguinte, depois de pedir aos alunos para grifarem os cognatos, apresenta um
quadro para ser preenchido com informações específicas sobre a UNHCR (nome da instituição,
data da criação, tipo de ajuda prestada, número de pessoas envolvidas no projeto). Ao responder
sobre o tipo de projeto desenvolvido e o número de pessoas engajadas, o aluno terá compreendido
informações que são fundamentais para se conseguir a adesão do leitor à campanha social em
favor dos refugiados. Esse nível de compreensão detalhada prepara o aluno para a quarta questão,
que novamente explora o propósito comunicativo do texto:
4 – O texto nos faz um convite.
a) Que tipo de convite é este?
b) Transcreva a parte do texto que comprova a sua resposta.
Como já assinalei anteriormente, de acordo com a minha visão de que é importante
avaliar como o aluno reagiria ao gênero, penso que dever-se-ia acrescentar: Depois de ler o
texto, você responderia ou não a esse convite? Ou, em outros termos: Você participaria dessa
campanha de alguma forma?
As questões 5 e 6 verificam a compreensão do conteúdo, o que naturalmente precisa
ser objeto de avaliação numa prova de leitura. A quinta questão é uma pergunta aberta (Quais
são os principais problemas enfrentados pelos refugiados descritos no texto?) e a sexta, mais
uma vez, é uma questão de múltipla escolha, que focaliza um aspecto central desse tipo de
anúncio publicitário: afinal, se o leitor resolver responder ao texto no sentido de aderir à
campanha social que está sendo promovida, como deverá proceder? A pergunta foi
exatamente a seguinte: Para ajudar o projeto, o que as pessoas devem fazer? Embora o
enunciado peça para marcar a alternativa correta, a professora oralmente explicou que havia
mais de uma possibilidade:
( ) contate a UNCHR internacional por e-mail
( ) contate a UNCHR nacional por telefone
( ) contate o escritório da UNCHR nacional
( ) procure uma agência voluntária no seu país
( ) procure uma agência voluntária internacional de refugiados
( ) procure uma agência voluntária que atenda a refugiados.
Entendo que a técnica de múltipla escolha, se bem utilizada, pode ser uma das opções
de tarefas propostas numa avaliação de leitura, mas há que se reconhecer suas limitações. O
foco da atenção do aluno é direcionado, sem dúvida, muito mais para a compreensão das
1576
alternativas do que do próprio texto. Neste caso específico, o grande número de alternativas e
a maneira como foram formuladas revelam a intenção da professora de não tornar a resposta
correta óbvia, mas é possível que os alunos tenham ficado confusos para resolver a questão,
mesmo que tenham compreendido “o que as pessoas devem fazer para ajudar o projeto”.
A questão 7 pede que o aluno aponte duas “dicas” que permitam concluir que a
UNHCR é uma instituição ligada às Nações Unidas. Trata-se de uma questão interessante, na
medida em que avalia a capacidade do aluno de manusear informações contidas na perigrafia
do texto. Esse tipo de experiência em leitura é de fundamental importância quando se está
lidando com o gênero propaganda.
A última questão da seção on the text focaliza o léxico do texto. O aluno tem que
correlacionar as colunas (palavras em inglês de um lado e suas traduções de outro), numa
clara intenção de tentar minimizar possíveis dificuldades lingüísticas. Julgamos que é uma
preocupação válida, embora nunca seja demais reiterar que, para se dominar uma língua, do
ponto de vista discursivo, o lingüístico é, sem dúvida, fundamental, mas não suficiente,
constituindo-se a linguagem verbal de outros elementos além dos exclusivamente lingüísticos
(NERY, 2003, p. 26, grifo da autora). Com base no que venho discutindo até aqui, fica claro
que o conhecimento do vocabulário, assim como de outros aspectos manifestos na superfície
lingüística do texto, não é suficiente para a compreensão do propósito comunicativo da
propaganda. O aluno teria que conhecer, em primeiro lugar, os objetivos do enunciador, a
situação de produção e demais características próprias do gênero.
A seção seguinte, on the grammar, teve como foco o uso do present perfect tense, que
vinha sendo estudado há duas aulas. Vale ressaltar que a introdução e a prática desse tópico
gramatical não tinha se dado a partir de nenhum texto até então, mas somente através de
exercícios. Pelo que observamos, não houve, de fato, uma contextualização adequada para seu
ensino. Entretanto, é preciso assinalar que, tanto nas aulas quanto na avaliação, foi possível
perceber uma preocupação explícita de levar os alunos a refletirem sobre o uso dessa forma
lingüística.
A seção de outside reading teve uma proposta interessante: Quais outras palavras
poderiam ser acrescentadas no quadro-negro do texto [além de home, family, work, human
rights, future]? Liste pelo menos três exemplos. A questão se referia a palavras que, segundo o
texto, perderam sentido para muitos refugiados. Consideramos, contudo, que a proposta
poderia ter sido melhor explorada no sentido de aproximar-se mais da realidade dos alunos.
Se o texto trata especificamente da situação dos refugiados, os alunos poderiam pensar em
palavras que perderam sentido no contexto de sua própria vivência, de acordo com o seu
momento histórico-social. Além de citar exemplos, os alunos deveriam também justificar a
escolha dessas palavras, o que permitiria avaliar melhor o seu nível de compreensão do texto.
A última questão da prova, como sempre uma produção escrita, retoma a perspectiva
do gênero no trabalho a ser desenvolvido pelo aluno:
Sua escola está tentando ajudar a UNHCR. Bole um panfleto em inglês para ser
distribuído aos alunos desta escola com um convite de participação no projeto
descrito no texto.
Trata-se de um exemplo positivo de integração leitura/escrita via abordagem de
gêneros textuais. Além disso, independentemente do rótulo dado ao gênero, o que ficou em
foco foi seu propósito comunicativo, e a questão foi claramente formulada com o objetivo de
aproximar-se das práticas sociais dos alunos.
Para Bronckart, é isto que justifica a posição de se tomar os gêneros como
instrumentos mediadores da atividade dos seres humanos no mundo: “a apropriação dos
gêneros é um mecanismo fundamental de socialização, de inserção prática nas atividades
1577
comunicativas humanas” (2003, p. 103). A tarefa descrita acima exemplifica bem essa idéia
de uso do gênero como ferramenta de inserção nas práticas sociais.
Ao defender um trabalho de produção escrita alicerçado nas teorias de gêneros,
Bambirra (2004) enfatiza a necessidade de se privilegiar o aspecto sócio-interativo,
comunicativo, no processo de ensino-aprendizagem. Nessa direção, acredita que “o aluno
sentir-se-á muito mais motivado se for proposto a ele que escreva para um leitor possível,
integrante de sua realidade, e de uma forma mais natural e significativa” (p. 132, grifo
nosso). Na questão proposta aos alunos, conquanto uma participação efetiva no projeto da
UNHCR não fosse propriamente uma situação integrante de sua realidade, houve, sem dúvida,
a preocupação de que escrevessem com um propósito definido e para leitores possíveis.
Analisando a questão já pronta, podemos indagar se não poderia ser melhor elaborada
e até pensar em alternativas que se aproximassem mais de nossa visão teórica. Entretanto,
reconhecendo todas as dificuldades enfrentadas pelo professor para fazer elaborações
didáticas a partir da noção de gênero em sala de aula, prefiro reiterar que essa tarefa proposta
como produção escrita foi muito produtiva, assegurando aos alunos resultados satisfatórios.
Afinal, a idéia que fundamenta a questão é a de que os alunos não estariam escrevendo
apenas para serem avaliados, ao contrário do que normalmente se verifica nas avaliações
tradicionais.
5. Considerações finais
Apresento, a seguir, conclusões a que cheguei com a pesquisa etnográfica
desenvolvida, tentando sistematizar algumas das principais discussões levantadas ao longo da
análise. Lembro que o presente trabalho, focalizando o gênero propaganda, é apenas um
recorte de um projeto bem mais abrangente.
Como meu objetivo não foi fazer uma análise crítica da qualidade das aulas em si,
detive-me nos aspectos mais diretamente relacionados ao meu objetivo de investigação:
verificar de que modo o gênero textual estaria sendo trabalhado na prática pedagógica da
leitura, no contexto de sala de aula. Dentro dessa perspectiva, a análise mostrou que muitos
dos aspectos positivos que observei estão, de fato, relacionados ao ensino-aprendizagem da
leitura na perspectiva dos gêneros textuais. Por outro lado, o que foi analisado como menos
produtivo no trabalho com a leitura refere-se, muitas vezes, a situações em que o gênero não
foi suficientemente ou adequadamente explorado.
Dentre os aspectos positivos na turma de inglês observada, devo destacar a
diversificação dos textos apresentados. Os alunos foram expostos a gêneros variados, tais
como horóscopo, previsão do tempo, propaganda, canção e biografia, ainda que o gênero não
pareça ter sido, na verdade, um critério de seleção dos textos. Retomando-se o exame dos
dados, nota-se que a preocupação maior foi trabalhar com temáticas atraentes, que
garantissem a motivação dos alunos, ou com textos que permitissem contextualizar o ensino
de língua (de itens lexicais e estruturas gramaticais considerados relevantes para o programa
de inglês da 8ª série). Seja como for, os alunos tiveram a oportunidade de entrar em contato
com diferentes gêneros, tal como ocorre em sua vida cotidiana fora da escola.
Reconhecer os benefícios trazidos por essa diversificação não equivale a dizer que a
abordagem da leitura tenha se dado efetivamente através do gênero. Primeiramente, além de
apresentar gêneros mais prototípicos, mais estáveis, poder-se-ia ter dado mais espaço para que
o aluno tivesse também acesso a outras variantes que circulam socialmente e até a textos que
subvertem as regularidades próprias do gênero. Afinal, existe uma tênue fronteira entre um
gênero e outro, e é próprio do gênero apresentar essa maleabilidade, esse constante
movimento de renovação. Um bom exemplo para um tipo de abordagem que levasse a essas
reflexões é a propaganda da ONU que foi analisada no presente trabalho. Sempre tendo em
1578
mente que os alunos na escola não devem ser tratados como analistas de gêneros, sugiro que
poderiam ter sido exploradas as seguintes questões: Sob o rótulo geral de propaganda, que
espécies de textos podem ser agrupados? De que modo o referido texto se aproxima ou se
diferencia de outros também considerados como pertencentes ao gênero propaganda?
Em segundo lugar, se o gênero não foi o ponto de partida para a escolha dos textos,
isso naturalmente se refletiu na seleção de tarefas de pós-leitura. É importante lembrar que
foram usados vários tipos de atividades de compreensão, o que deve ser ressaltado também
como um aspecto positivo, e que encontramos nas aulas e nas provas exemplos muito
interessantes de tarefas que buscaram aproximar-se de situações reais vivenciadas pelos
alunos no dia-a-dia. Entretanto, o gênero em si mesmo não foi abordado de forma sistemática,
como algo a ser aprendido. Poucas vezes houve referências explícitas aos gêneros a que
pertenciam os textos ou questões que focalizassem aspectos específicos de cada gênero.
Ainda no que diz respeito às tarefas elaboradas em torno do gênero, o mais importante a
destacar, tendo em vista minhas perguntas de pesquisa, é que a dimensão sócio-cultural do gênero
foi muito pouco explorada em relação a outros aspectos. De modo geral, nos exemplos em que o
gênero em si mesmo recebeu maior atenção, valorizou-se especialmente o conteúdo dos textos e a
apropriação de características formais. A questão dos propósitos comunicativos, das finalidades e
usos sociais dos gêneros não foi propriamente objeto de reflexão. Esse tipo de abordagem do
gênero certamente interferiu na possibilidade de uma compreensão responsiva ativa por parte do
aluno, embora as etapas de outside reading e production, em especial, no roteiro de leitura
utilizado, tenham permitido aos alunos responder aos gêneros de alguma forma, levando-os a
considerar situações concretas de uso e sua circulação social.
Em suma, com base na prova aqui analisada, e em todos os outros dados coletados, não se
pode afirmar que o gênero tenha sido, de fato, o eixo orientador do projeto de leitura dessa turma.
Ainda assim, pelos benefícios anteriormente elencados, acredito que a noção de gênero, se
explorada em todo o seu potencial, pode contribuir significativamente para a compreensão (e
produção) de textos em inglês. Para isso, novas pesquisas se fazem necessárias. A transposição
didática, afinal, não é mesmo tarefa fácil.
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Anexo:
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Marta Cristina da SILVA - Programa de Pós