A MATEMÁTICA ENTRE A FLORESTA E O RIO: UMA EXPERIÊNCIA DE ETNOMATEMÁTICA EM CLASSES MULTISERIADAS NO MARAJÓ-PA. Franz Kreüther Pereira Secretaria Executiva de Estado de Educação-SEDUC/PA [email protected] RESUMO No cotidiano de comunidades ribeirinhas no Pará encontramos práticas culturais que revelam a capacidade do indivíduo em buscar soluções criativas para suas necessidades matemáticas mais urgentes, e no embate entre a floresta e o rio ele constrói, desenvolve e/ou se apropria de saberes matemáticos que podem ser excelentes não são explorados em sala de aula. Palavras-chave: Etnomatemática, Unidades de Medidas, Cultura amazônica. Apresentação Este artigo foi elaborado com base na disciplina Teoria e Prática Docente e em três Trabalhos de Conclusão de Curso-TCC que orientei entre 2004 e 2005, no município de Melgaço (Ilha do Marajó), durante o Curso de Formação de Professores para Educação Infantil e 1ª a 4ª série da Universidade do Estado do Pará-UEPA, e pretende apresentar os saberes matemáticos construídos pelas experiências do caboclo marajoara na sua (sobre)vivência entre a mata e o rio e seu aproveitamento por professores da rede pública melgacense que atuam em salas de aula multiseriadas. Por conta das incontáveis relações estabelecidas pelo sujeito com as diversas estruturas presentes no sistema social, a Matemática surge como um fenômeno que se desenvolve na comunidade, pela comunidade e para a comunidade. Para D’Ambrosio (1996, p.7) a Matemática é “uma estratégia desenvolvida pela espécie humana ao longo de sua história para explicar, para entender, para manejar e conviver com a realidade sensível, perceptível, e com o seu imaginário, naturalmente dentro de um contexto natural e cultural”. Quando assumido como linguagem, esse conhecimento torna-se um recurso fundamental no exercício de leitura da realidade, voltadas à elaboração de soluções aos problemas cotidianos na caminhada pela melhoria da qualidade PEREIRA, F. A Matemática entre a Floresta e o Rio: Uma Experiência de Etnomatemática em Classes Multiseriadas no Marajó-PA. In Anais do SIPEMAT. Recife, Programa de Pós-Graduação em Educação-Centro de Educação – Universidade Federal de Pernambuco, 2006, 11p. 2 de vida. Portanto, o cotidiano de toda comunidade humana, desde seu alvorecer, está impregnado de Matemática como um artefato ou mentefato 1 , ou seja, como uma ferramenta pela qual e com a qual o homem transforma o mundo e a si mesmo. Assim, ao investigar como os habitantes de regiões ribeirinhas da Amazônia, mormente o caboclo marajoara, que no embate entre a floresta e o rio constrói, desenvolve e/ou se apropria de saberes matemáticos que satisfaçam suas necessidades cotidianas, buscamos explicações de como lidam com o ambiente usando os instrumentos materiais e intelectuais que são próprios de sua cultura e como aplicar esses saberes em sala de aula. O Município de Melgaço Melgaço é um município muito pobre e carente localizado na mesorregião do Marajó e tem pouco mais de 3 mil habitantes na sede e quase 18 mil na área rural 2 . Sua origem oficial data de 1661 e sua história, a exemplo de outros municípios da região, está intimamente ligada aos jesuítas na Amazônia. O acesso, a partir de Belém, é feito por via fluvial num percurso que dura cerca de 18 horas. Segundo pesquisa do UNICEF, em 2002 o município apresentou os piores índices de IDH - desenvolvimento humano - (EDILSON et alli., 2005). Os dados da Secretaria Municipal de Educação informam existir 124 estabelecimentos de ensino 3 , dos quais 97,84% na zona rural, onde o ensino é multiseriado. A maioria desses estabelecimentos não passa de uma simples sala alugada ou um espaço compartilhado com outras atividades, quase todos sobre palafitas à beira rio. Em alguns casos encontramos situações em que a sala de aula “divide o espaço escolar com outras atividades” (EDIANE et. alli, 2005, p.13), como por exemplo uma fabriqueta de palmitos, um bar e uma residência. A Matemática da mata, do rio, da rua e da sala de aula Sabemos que o conhecimento matemático resulta das interlocuções estabelecidas pelo homem com os elementos culturais do contexto no qual é 1 Minhas reflexões sobre educação multicultural levaram-me a ver o ato de criação como o elemento mais importante em todo esse processo, como uma manifestação do presente na transição entre passado e futuro. Isto é, a aquisição e a elaboração do conhecimento se dão no presente, como resultado de todo um passado, individual e cultural, com vistas às estratégias de ação no presente projetando-se no futuro, desde o futuro imediato até o de mais longo prazo, assim modificando a realidade e incorporando a ela novos fatos, isto é, “artefatos” e “mentefatos”. D’Ambrosio, 1996, p.18. 2 Senso de 2000. Dados disponíveis em < http://www.ibge.gov.br/cidadesat> 3 Dados no TCC de Carvalho, Santos e Freiras (2005, p..35). PEREIRA, F. A Matemática entre a Floresta e o Rio: Uma Experiência de Etnomatemática em Classes Multiseriadas no Marajó-PA. In Anais do SIPEMAT. Recife, Programa de Pós-Graduação em Educação-Centro de Educação – Universidade Federal de Pernambuco, 2006, 11p. 3 produzido e que “existem medidas criadas/recriadas de maneira diferente pelos diversos grupos socioculturais” (Gusmão, 2003, p.217). Nessa teia do fazer cotidiano em que o indivíduo está imerso e que constrói e reconstrói incessantemente, despontam vez ou outra alguns nós que revelam particularidades na sua relação com o todo circundante. Ao observá-los podemos identificar as ferramentas (cognitivas, dialógicas ou concretas) que ele cria ou de que se apropria na tentativa de entender, explicar, problematizar e propor soluções. As relações entre as práticas sócio-culturais e a matemática dialógica dos caboclos ribeirinhos se evidenciam nesses elementos nodais, como nas unidades de medida a seguir: vendeu dez rasas de açaí; comprou um frasco ou paneiro de farinha; um litro de camarão; uma pêra ou cofo de caranguejo; uma mão de milho; uma tarefa para roçar; plantou uma carreira de eucalipto; “uma linha de arroz para apanhar”; “uma sucuri com 16 palmos de pé”. 4 Nossa proposta básica na disciplina Prática Docente era investigar os saberes matemáticos da cultura local e estabelecer relações entre a matemática escolar e a praticada nas atividades cotidianas dos alunos ribeirinhos. Em paralelo buscávamos contribuir na formação de novos professores-pesquisadores. Para auxiliá-los, e ao mesmo tempo servir de instrumento de avaliação da disciplina, todo o trabalho desenvolvido por eles em suas salas de aula seria registrado num “diário de bordo”, o Caderno de Registro da Prática Docente-CRPD. De início notamos que nossos professores-alunos não tinham idéia do que pesquisar. Sugerimos que, em grupos, realizassem um passeio pela cidade, observassem atentamente e ao encontrarem o que lhes chamasse a atenção focassem seus olhos nele. O resto viria por acréscimo. Com essa metodologia um grupo notou, por exemplo, que a cidade embora pequena contava com cerca de trinta (30) micro-comércios chamados tabernas (ou mercearias) e considerou ser essa uma quantidade relativamente grande em comparação a área urbana e ao número de habitantes. O comércio em tabernas é um elemento da cultura paraense e existe, principalmente, nas áreas mais carentes, onde a pessoa com minguados recursos financeiros ou sem renda fixa fica impossibilitada de comprar produtos nos supermercados da cidade. A partir dessas observações o grupo construiu PEREIRA, F. A Matemática entre a Floresta e o Rio: Uma Experiência de Etnomatemática em Classes Multiseriadas no Marajó-PA. In Anais do SIPEMAT. Recife, Programa de Pós-Graduação em Educação-Centro de Educação – Universidade Federal de Pernambuco, 2006, 11p. 4 seu corpus de pesquisa, realizada de agosto a dezembro de 2004 com alunos da 2ª, 3ª e 4ª séries, e que resultou no trabalho denominado “A Matemática das tabernas de Melgaço no contexto de sala de aula”, pois segundo eles: Vimos nessa atividade de compra e venda uma forma muito rica de se trabalhar a matemática em sala de aula, pois está diretamente ligada ao convívio do aluno, já que ele está a todo o momento tendo esse contato com esses estabelecimentos comerciais. (LIMA et alli, 2005. p.16) Para satisfazer as necessidades dessa clientela os taberneiros fracionam os produtos da cesta básica utilizando improvisadas unidades de medidas, daí que esse comércio é conhecido por “venda ou compra a retalho”. Nessa prática, para produtos líquidos “os comerciantes utilizam como medidas, pequenos copos” (LIMA et alli. 2005, p.37) que podem variar de tamanho e de material, dependendo do taberneiro. Os taberneiros disseram que: “Essas medidas são inventadas pela gente, na hora. A gente faz só se basear no valor total do produto, pensando já em quanto tem que ganhar em cima dele” (comerciante G). (op.cit, p.42) Por outro lado, nas balanças costumam usar “objetos como pilhas, cadeados, pequenas barras de ferro e outros, para fazer a pesagem dos produtos” (Idem, ibidem). Um dado interessante da pesquisa foi que a maioria desses comerciantes “desconhecem os múltiplos e submúltiplos das unidades de medidas como metro, grama e litro” (idem, ibidem), pois durante a pesquisa foram solicitados a responder algumas questões, tais como: • • • • Quantos gramas têm em uma quarta? Por que 500g é igual a meio quilo? Quantos mililitros têm em uma garrafa de cachaça? É mais ou menos que um litro? Quantos copos de 200 mililitros o senhor vende com um litro de cachaça? Mas, “diante dessas questões, eles mostraram-se inseguros em suas respostas (...) enquanto outros preferiram não se pronunciar” (op.cit. p.43). Por outro lado, “dependendo do dinheiro que dispõem, o vendedor cria uma espécie de ‘unidade de medida’” (idem,ibidem). Os professores-alunos orientaram seus alunos para realizarem o levantamento de preços de cinco (05) produtos mais vendidos em várias tabernas. A partir das informações coletadas elaboraram atividades em sala de aula, como por 4 Informações recolhidas na capital e em diversos municípios ribeirinhos. As duas últimas ouvimos no município de Tucuruí, sendo que a derradeira, por sua natureza antropométrica, parece-nos ser a mais antiga e indicar a influência indígena. PEREIRA, F. A Matemática entre a Floresta e o Rio: Uma Experiência de Etnomatemática em Classes Multiseriadas no Marajó-PA. In Anais do SIPEMAT. Recife, Programa de Pós-Graduação em Educação-Centro de Educação – Universidade Federal de Pernambuco, 2006, 11p. 5 exemplo: Se na taberna o quilo do charque custa R$ 7,00 e no mercantil R$ 5,20 qual é a diferença de preço nesses dois estabelecimentos? Nessa e noutras atividades alguns alunos “se confundiram na hora de armar a operação, mas quando perguntados sobre o resultado sem a armação do problema, ou seja, somente de cabeça, a resposta foi correta pela maioria” (idem), o que nos leva a considerar que seus “meios de estruturação” (LAVE, 2002, p.67) para os problemas apresentados em sala pelo professor não foram sistematizados pela escola. Segundo Lave (op.cit, p.68), “as pessoas, habitualmente, compram alimentos e praticam matemática ao mesmo tempo”, e na sua monografia os professoresalunos evidenciaram esse conceito ao observar que “a partir do momento que os pais pedem para os filhos comprarem algum tipo de produto ou mercadoria a retalho” (LIMA et alli, 2005. p.21), a criança estabelece uma relação no momento da compra e venda que possibilita desenvolver competências e habilidades para calcular o preço do produto e saber se vai ou não haver troco. As atividades de aprendizagem elaboradas a partir dos elementos e dados coletados nas pesquisas foram de natureza multidisciplinar, mas não trataremos disso aqui por razões de foco e espaço. Matemática à sombra dos açaizais Outra equipe observou a importância do açaí 5 tanto para a economia local quanto para a alimentação dos melgacenses, tendo em vista que essa planta se espalha por enormes áreas da zona rural, que muitas residências possuem touceiras de açaí no quintal e que a realidade de alunos e professores é diretamente afetada por essa palmeira. Nessa perspectiva elaboraram seu objeto de estudo e seu TCC, intitulado: “Extração, beneficiamento e comercialização do açaí no município de Melgaço: um estudo etnomatemático”. A partir da pesquisa também produziram atividades (dentro e fora de sala) buscando desenvolver o raciocínio e a capacidade de fazer cálculos estimativos, tais como: estabelecer a média de palmeiras por touceira ou de 5 O açaí é o fruto da palmeira Euterpe Olerácea. Isolado produz um impacto na cultura regional sem precedentes, associado com farinha ou peixe frito (pirarucu) constitui a base da alimentação de grande parte da população. PEREIRA, F. A Matemática entre a Floresta e o Rio: Uma Experiência de Etnomatemática em Classes Multiseriadas no Marajó-PA. In Anais do SIPEMAT. Recife, Programa de Pós-Graduação em Educação-Centro de Educação – Universidade Federal de Pernambuco, 2006, 11p. frutinhas por “vassoura de açaí” 6; 6 construír uma linha de tempo do açaí, do plantio da muda à obtenção do sumo. Noutro momento os professores-alunos se apoiaram em D’Ambrosio (2002) e fundamentaram suas atividades com relação a preços, quantidades e unidades de medidas empregadas no trabalho com o açaí, nomeadamente o litro e a rasa 7 , e conforme puderam registrar, o trabalho no açaí envolve toda a família. Enquanto a mãe fica tecendo o paneiro, a peneira e outros utensílios de arumã 8 , o pai sai com os filhos para o açaizal. É ele quem conhece quantas plantas frutíferas possui sua plantação e calcula quantas latas ou rasas irá render a safra; calcula os gastos com o combustível do barco que irá levar a colheita à cidade (levando em consideração a potência do motor, a carga e a distância), negocia o produto e retorna com mercadorias compradas com o dinheiro da venda do açaí. Para realizar suas estimativas o dono do açaizal deve conhecer todas as variáveis presentes, tais como a extensão de sua plantação, a quantidade de palmeiras com frutos por touceira, o número de cachos por palmeira, a altura média das árvores, o tempo de maturação dos frutos, o auge da produção e o momento de baixa, quando o açaí começa a rarear no mercado e seu preço tende a aumentar. Como se vê, o caboclo ribeirinho é capaz de modelar matematicamente todos esses fatores tendo por base conhecimentos empíricos. Ele sabe que deve plantar 25 mudas de açaí por tarefa 9 , com espaçamento de 4 metros. Em 2 anos cada muda resulta numa touceira com cerca de 12 plantas, a metade já com cachos a 1,5 m. de altura. Se cada açaizeiro tem 6 cachos (36 por touceira), em uma tarefa ele tem 300 pés e 1800 cachos. Se um cacho rende cerca de 4 a 4,5 litros de açaí em caroço, tem-se cerca de 450 rasas por safra/tarefa ou 900 por hectare 10 . Acompanhando o pai a criança vai adquirindo essa experiência, vai obtendo dele saberes matemáticos gestados em sua própria observação e prática. Tais saberes envolvem, entre outras habilidades, cálculos precisos de tempo e 6 7 Vassoura é o nome que se dá ao cacho de açaí. A rasa é uma medida equivalente a uma lata de óleo ou manteiga de 20 litros (CARVALHO et alli, 2005, p.47). A rasa é uma espécie de cesto feito com talas de arumã, da qual se faz também as peneiras para coar o açaí. 8 Arumã é uma planta de áreas alagadas que dá em touceiras e o caule é uma "cana" de colmo liso e reto, do qual se retiram finas tiras muito empregadas na cestaria indígena e artesanato . 9 Área de 50X50 m (CARVALHO et alii, 2005).. PEREIRA, F. A Matemática entre a Floresta e o Rio: Uma Experiência de Etnomatemática em Classes Multiseriadas no Marajó-PA. In Anais do SIPEMAT. Recife, Programa de Pós-Graduação em Educação-Centro de Educação – Universidade Federal de Pernambuco, 2006, 11p. 7 espaço, a construção de modelos para as estimativas, a competência em fazer especulações e prever o melhor momento para a colheita e venda. Ao todo, são processos cognitivos bastante complexos que não passaram pela banca escolar. Carvalho, Santos e Freitas relatam, ainda, que na área rural de Melgaço as crianças levam o açaí líquido em suas pequenas canoas, para vender nas balsas que passam ao largo transportando cargas diversas (automóveis, madeira, gado). Quando as balsas passam as crianças se posicionam ao seu lado e atiram ganchos “num processo semelhante ao que assistimos em filmes de piratas ao abordarem um navio” (2005, p.59). A bordo praticam o sistema de comércio conhecido por escambo, trocando o açaí por gêneros alimentícios que o balseiro carrega. Nessas transações são empregadas como unidades de medida a panela, que normalmente equivale a três litros, o saco plástico e o carote, um vasilhame de plástico equivalente a cinco litros. Há, também, os regatões e os vendedores de mingau de açaí. Os primeiros percorrem regiões onde não há o produto ou onde ele é escasso e vendem um açaí mais ralo e gelado; os segundos atuam nas feiras livres vendendo a cuia de açaí por R$ 0,50. O mingau é feito em uma panela de 5 litros, misturandose 3/4 de kg de arroz, sal, 1/2 de açúcar e 1/2 litro de açaí. Cada panelada rende cerca de 18 cuias de 300ml. Trabalhando com essa receita os alunos lidaram com quantidades, estimaram gastos e lucros e converteram um saber intuitivo em saber escolarizado. Na escola Zero na floresta Dez 11 Nosso terceiro grupo de orientandos estava constituído por três professoras que inicialmente pretendiam pesquisar um fato freqüente naquelas paragens ribeirinhas: o trabalho infantil como provocador da retenção e/ou abandono escolar. Seus trabalhos para a disciplina Prática (registrados nos CRPD), aconteceram entre os meses de agosto e dezembro de 2004, em cinco (05) escolas dos rios Tajapuru e Campinas. Essas escolas atendem a 141 alunos entre os 07 e 40 anos, dos quais apenas 1/5 não divide o trabalho com os 10 11 Dados retirados de Carvalho et alii, (2005) As autoras quiseram, propositalmente, fazer uma alusão a consagrada obra de T. Carraher, D. Carraher e Analúcia Schliemann, porque para elas como era possível que seus alunos se saíssem tão bem nas atividades de plantio, colheita, fabrico, pesca, extração etc, que exigem complexas competências e habilidades, mormente as matemáticas, e fossem tão mal sucedidos nas atividades escolares? PEREIRA, F. A Matemática entre a Floresta e o Rio: Uma Experiência de Etnomatemática em Classes Multiseriadas no Marajó-PA. In Anais do SIPEMAT. Recife, Programa de Pós-Graduação em Educação-Centro de Educação – Universidade Federal de Pernambuco, 2006, 11p. 8 estudos (SANTOS et alli. 2005). Esse trabalho é quase sempre ajudando o pai na roça de mandioca, na pesca, no balcão da taberna, na extração de madeira e/ou palmito. Nessas atividades os estudantes chegam a perder 1 ou 2 dias de aula por semana, mas na pesca do camarão perdem entre 2 ou 3 meses. Nesse universo foram selecionados 15 sujeitos para a pesquisa. A pesquisa demonstrou que nas atividades do labor diário em que lhes era exigido cálculos matemáticos eles apresentavam completo desembaraço e segurança. Assim surgiu a questão: Nessas circunstâncias de trabalho, em que aspectos se dava a relação entre a Matemática do mundo do trabalho e a da escola, se em sala de aula demonstravam enormes dificuldades e inabilidades para executarem as mesmas operações empregando os algoritmos tradicionais? Com esse foco e trabalhando com relatos dos alunos como base de discussões, leituras e dramatizações, as professoras, cada uma em sua escola, iniciaram a abordagem do tema e constituíram seu corpus de pesquisa. Tomaram, por exemplo, a situação de alunos que trabalhavam com os pais na extração de madeira e/ou palmito. A partir dos ganhos do trabalhador com a venda da madeira e/ou palmito, e de uma lista de mercadorias que ele compra do patrão 12 , elas trabalharam numa perspectiva interdisciplinar tendo a Matemática como eixo norteador dos problemas. Abaixo um exemplo retirado do CRPD da professora Ediane Santos: Na venda da madeira que Seu Malaquias fez ele apurou R$ 168,00. Seu Malaquias teve saldo ou ficou com débito, pois devia R$ 132,00 no seu patrão? Deve-se observar, no exemplo, que não basta ao aluno realizar uma simples operação de subtração. Ele necessita compreender os conceitos de saldo e débito e seus significados na situação apresentada. Isso nos leva a supor que são palavras e situações experenciadas com freqüência pelos atores da pesquisa. Noutra atividade as pesquisadoras observaram que para dar o troco corretamente o aluno que trabalha no balcão da taberna emprega o método aditivo e não o subtrativo. Por exemplo: Se a compra foi de R$ 3,70 e o cliente pagou com uma nota de R$ 5,00 eis como ele realiza a operação: R$ 3,70; R$ 12 Pessoa para quem o trabalhador do mato quase sempre está subordinado, seja como simples empregado ou como meeiro. O patrão é quem fornece o material para o trabalho e os gêneros alimentícios, descontando-os da parte do trabalhador, que via de regra fica sempre devendo ao patrão. PEREIRA, F. A Matemática entre a Floresta e o Rio: Uma Experiência de Etnomatemática em Classes Multiseriadas no Marajó-PA. In Anais do SIPEMAT. Recife, Programa de Pós-Graduação em Educação-Centro de Educação – Universidade Federal de Pernambuco, 2006, 11p. 9 3,80; R$ 3,90; R$ 4,00. Mais R$ 1,00 e temos os R$ 5,00 dados inicialmente. Mas quando pedido para realizar esses cálculos no papel ele não demonstrou a mesma confiança. Nas questões propostas em sala de aula a ênfase foi nas unidades de medidas não convencionais para área e volume, como a tarefa e o litro 13 . Apesar de proporem atividades em que os alunos manipulavam formas e volumes, as professoras se mantiveram na Aritmética. Na cubagem da madeira, por exemplo, mesmo propondo o emprego da modelagem matemática (embora não exatamente nesses termos) e trabalhando com cálculos relativamente complexos que envolvem o comprimento, a largura, a espessura, a área e o volume das peças, a Geometria não foi sequer apresentada. No caso da cubagem da madeira trabalharam uma forma de romaneio 14 onde o madeireiro mede o comprimento da tora e tira o rodo (o diâmetro da circunferência) no ponto médio do comprimento da peça, a exemplo do sistema Francon 15 (vide Biembengut, 1999). Outro elemento do contexto ribeirinho que rendeu uma excepcional pesquisa de campo e atividades de sala de aula foi o matapi 16 . Durante a pesquisa as professoras perceberam que muitas famílias que vivem da pesca do camarão compravam seus matapis por não saber fabricá-los. Então decidiram promover na escola um curso de confecção de matapi “como forma de melhorar a renda dessas pessoas” (SANTOS et alli. 2005, p.41), enquanto trabalhavam alguns conteúdos matemáticos presentes na atividade, tais como: Para construir um matapi usamos 42 talas no pano 17 , 56 nos funis e 5 na tampa. Quantas talas usamos ao todo? E se construirmos 6 matapis, quantas talas usaremos? (idem, p.42). Conclusões A interpretação e análise, sob o ponto de vista matemático, a respeito do conhecimento de pessoas que muito pouco ou nunca freqüentaram bancos escolares é um exercício interessante que, sem dúvida, nos permite conhecer 13 14 15 O litro é uma unidade empregada para medir farinha e camarão. Uma tarefa corresponde a 125 m2 (SANTOS et alli. 2005, p.26). Processo de somar as medidas da madeira em tora. O chamado de metro cúbico Francon é cerca de um quinto menor que o metro cúbico convencional. No município de Capitão Poço/PA encontramos uma variante do método Francon, mas aqui não é o caso de discutirmos esses sistemas. 16 Espécie de armadilha cilíndrica para a pesca do camarão. É confeccionada com talas de jupati e cipó. 17 Pano é o retângulo de talas que formará o cilindro. PEREIRA, F. A Matemática entre a Floresta e o Rio: Uma Experiência de Etnomatemática em Classes Multiseriadas no Marajó-PA. In Anais do SIPEMAT. Recife, Programa de Pós-Graduação em Educação-Centro de Educação – Universidade Federal de Pernambuco, 2006, 11p. 10 como a Matemática interage com a vida dos povos e vale como recurso de motivação para a aprendizagem. Acreditamos que nossos orientandos foram capazes de compreender que “quando se envolve a matemática através da formulação de problemas, a aprendizagem torna-se muito mais significativa” (CARVALHO et alli, 2005); que nas diversas atividades em que seus alunos participam seja na venda; na pesca, no plantio, coleta, beneficiamento e comercialização da mandioca, do açaí, do palmito e da madeira, há “conhecimentos e saberes complexos, desenvolvidos a partir da observação, da experimentação e da transmissão oral dos mais velhos” (SANTOS et alli, 2005, p.14), Finalmente, acreditamos que nossos professores-alunos, ao completarem o curso de Formação de Professores, aprenderam a criar condições para que seus alunos ribeirinhos fizessem uma nova leitura do mundo, reescrevessem sua história e a partir dela a história da comunidade onde estão inseridos usando os instrumentos materiais e intelectuais que são próprios à sua cultura. Referências D'AMBROSIO, U. Educação Matemática: da teoria à prática. Campinas: Papirus. 1996. BIEMBENGUT, M. S. Modelagem matemática e implicações no ensinoaprendizagem de Matemática. Blumenau: Ed. da FURB. 1999. CARRAHER, Terezinha Nunes, CARRAHER, David Willian e SCHLIEMANN, Analúcia Dias. Na vida dez na escola zero. SP: Cortez. 1988. 2ª Edição. CARVALHO, Carlos A., SANTOS, Hailton F., FREITAS, Kátia C.F. Extração, beneficiamento e comercialização do açaí no município de Melgaço: um estudo etnomatemático. UEPA: 2005.(Monografia). FERREIRA, Mariana K.L. (org.) Idéias Matemáticas de povos culturalmente distintos. São Paulo: FAPESP/Global Editora. 2002. HALMENSCHLAGER, Vera Lúcia da Silva. Etnomatemática: Uma experiência Educacional . São Paulo: Summus. 2001. LAVE, Jean. Do lado de fora do supermercado. in FERREIRA, Mariana K.L. (org.) Idéias Matemáticas de povos culturalmente distintos. São Paulo: FAPESP/Global Editora. 2002. PEREIRA, F. A Matemática entre a Floresta e o Rio: Uma Experiência de Etnomatemática em Classes Multiseriadas no Marajó-PA. In Anais do SIPEMAT. Recife, Programa de Pós-Graduação em Educação-Centro de Educação – Universidade Federal de Pernambuco, 2006, 11p. 11 LIMA, Edílson M., NOGUEIRA, Luiz C., RIBEIRO, Wilson S. A Matemática das tabernas de Melgaço no contexto de sala de aula. UEPA: 2005.(Monografia). SANTOS, Ediane S., SOUZA, Marciléia C., MOREIRA, Mª de A. Na floresta dez, na escola zero: a construção do conhecimento matemático na zona ribeirinha do município de Melgaço, Pa. UEPA: 2005.(Monografia).