A Ideia de “Progresso” como reflexo ao Desenvolvimento
da Agrobiodiversidade no Brasil:
o direito dos agricultores e os sistemas agrícolas
Patrícia Santos Précoma Pellanda (UEA)
Formada em Direito pela PUC/PR. Mestranda em Direito Ambiental
Bolsista CAPES. [email protected]
Resumo
Nos últimos séculos a biodiversidade agroalimentar e ecossistêmica tornou-se ainda mais ampla,
tendo em vista a diversidade dos vegetais, animais, insetos, microrganismos e ecossistemas
descobertos ou desenvolvidos a partir de novas ciências, como a biotecnologia. O presente artigo
limita-se à discussão da biodiversidade agrícola destinada à alimentação humana e aos principais
sistemas agrícolas. Nesse sentido, surgem os seguintes questionamentos: os novos sistemas
agrícolas desenvolvidos pela ideia do “progresso” científico e econômico objetivando o
desenvolvimento da agricultura no Brasil não estariam sendo impostos aos agricultores,
coercitivamente? Quando esses sistemas agrícolas são sopesados frente à preservação do meio
ambiente e ao direito à sadia qualidade de vida podem ser considerados como sendo os mais
benéficos? Com base nesses questionamentos a pesquisa tem por objetivo demonstrar que
algumas modernidades tecnológicas, ou mais especificamente biotecnológicas, podem não ser as
mais adequadas ao desenvolvimento da agricultura do país, principalmente quando essas novas
ciências se confrontam com o direito constitucional à sadia qualidade de vida e à preservação do
meio ambiente, bem como em razão do conceito e entendimento de “progresso” quando
considerado nesta seara. A metodologia se resume na pesquisa teórica e documental, por meio
da investigação em livros, revistas, periódicos e noticiários, tanto nacionais quanto internacionais,
utilizando-se, inclusive, de sítios da internet. Para ao final, demonstrar que a ideia de “progresso”
não é um conceito estático e determinado, devido a sua vasta diversidade. Afinal, o “progresso” da
agricultura dependerá do ponto de vista, dos interesses e das necessidades do indivíduo que o
observa.
Palavras-chave
progresso, sistemas agrícolas, agrobiodiversidade.
Introdução
A agrobiodiversidade é composta por elementos da biodiversidade relevantes à agricultura
e à alimentação, bem como por seus ecossistemas. Nos últimos séculos essa biodiversidade
agroalimentar e ecossistêmica tornou-se ainda mais ampla, tendo em vista o aumento da
diversidade dos vegetais, animais, insetos, microrganismos e ecossistemas descobertos ou
desenvolvidos a partir de novas ciências, a exemplo da biotecnologia1.
A presente pesquisa tem por objetivo demonstrar que algumas modernidades tecnológicas,
ou mais especificamente biotecnológicas, podem não ser as mais adequadas ao desenvolvimento
da agricultura de um país, principalmente quando essas novas ciências se confrontam com o
direito constitucional à sadia qualidade de vida e à preservação do meio ambiente ecologicamente
equilibrado, previstos no artigo 225, caput, da Constituição Federal de 19882. E ainda, em razão
do conceito e entendimento acerca do “progresso” quando considerados nesta seara.
Inicialmente faz-se uma breve análise a respeito do conceito de “progresso” e suas
variáveis em decorrência de fatores distintos, como cultura, idade, interesses sociais e
econômicos, dentre outros, bem como o histórico e percepção humana sobre o mesmo a partir da
Revolução Verde, marco inicial ao desenvolvimento da agricultura e alimentos ditos saudáveis e
em grande escala. A partir disso, traz-se à reflexão a possibilidade do homem, por diversas vezes,
ser induzido a considerar que novas tecnologias, constituídas a partir do entendimento prematuro
de “progresso” científico e tecnológico, resultam em benefícios à qualidade de vida e satisfação
pessoal, e, ainda, como potencial contribuição à preservação do meio ambiente.
Esse comportamento é resultado do jacente e predominante interesse econômico de
grandes empresas, com atuação na área da agricultura e da biotecnologia, as quais se
manifestam por meio da influência do chamado “merchandising verde”3. Tal instrumento contribui
para o lançamento de novas tecnologias agrícolas, eivadas de eficácia e benefícios aparentes,
uma vez que seus principais efeitos, maléficos e irreversíveis, só irão aparecer em longo prazo.
As denominadas tecnologias do “progresso” também são impostas aos consumidores, que
desconhecem a origem dos produtos adquiridos no mercado e posteriormente os consomem de
1
O termo biotecnologia foi utilizado pela primeira vez pelo engenheiro húngaro Karl Ereky, com a finalidade de designar todas as linhas
de trabalho pelas quais os produtos são produzidos a partir de uma matéria-prima com a ajuda de organismos vivos (NODARI;
GUERRA, 2004, p. 111).
2
Art. 225, CF/88. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações.
3
Merchandising refere-se a técnicas, ações ou qualquer material promocional utilizado em pontos-de-venda, que informam o
consumidor e dão mais visibilidade a produtos, marcas ou serviços, influenciando na decisão de compra. Ressalte-se que
Merchandising não se confunde com promoção de vendas, pois est acima desta e a usa como ferramenta para efetivar sua estratégia
(BUSSADA, s.l., s.d.). No que se refere às condutas de grandes empresas com a finalidade de influenciar as decisões dos
consumidores, e no caso em tela, dos agricultores, também é possível citar o chamado “marketing verde”: “O marketing verde tem
como finalidade orientar, educar e criar desejos e necessidades nos consumidores visando atingir os objetivos de comercialização das
organizações pelo aumento do consumo com um menor impacto ambiental. Assim o marketing verde é um composto de estratégias ou
políticas de marketing utilizadas para a comunicação de forma a conq uistar um determinado público, obter um aumento na
participação de mercado e firmar o seu posicionamento estratégico mediante a diferenciação de seus produtos e serviços oferecidos
(SILVA; FERREIRA; FERREIRA, 2009, p. 4).
forma inconsciente, como ocorre com os alimentos geneticamente modificados (OGMs ou
transgênicos), além de frutas e verduras carregadas de herbicidas.
A partir dessa problemática é possível afirmar que a ideia de “progresso” na atividade
agrícola brasileira não reflete os reais interesses de toda a coletividade, uma vez que o
entendimento de “progresso” é variável e as necessidades e interesses são distintos. Para alguns,
o “progresso” da agricultura se configura apenas no crescimento econômico do negócio, por meio
de plantações resistentes a agrotóxicos, de colheitas em períodos reduzidos e em maiores
quantidades. Para outros, no entanto, o “progresso” da agricultura se caracteriza na busca de
produtos de melhor qualidade e naturalmente produzidos, garantindo um alimento mais saudável
e isento de incertezas, almejando a preservação do meio ambiente e da sadia qualidade de vida
do homem.
Diante disso, há um visível confronto de interesses: onde de um lado está a atividade
econômica, com vistas ao “progresso” tecnológico e financeiro, a partir de um conceito estático. E
do outro os agricultores e os consumidores - observados o direito de opção pelo sistema agrícola
a ser adotado, bem como o direito à informação e livre escolha acerca dos alimentos que
consomem, respectivamente - diante do entendimento variável do “progresso”.
A partir dessa exposição, ao final ficará mais nítida a conclusão de que o conceito de
“progresso”, nos dias atuais, não pode ser estático, uma vez que pertencemos à uma sociedade
dinâmica, composta por diversidades culturais, biológicas e comportamentais. A imposição de
novas tecnologias ao sistema agrícola, como fonte de preponderância e domínio econômico, fere
o direito de liberdade e livre escolha dos agricultores e consumidores, além de violar o direito à
diversidade cultural prevista no artigo 215 e 216 da Constituição Federal de 19884.
1 O Progresso
Desde os tempos primórdios o homem trabalha em busca do seu progresso na sociedade,
visando o crescimento econômico, o bem-estar social e o desenvolvimento de novas tecnologias,
técnicas e sistemas, correspondendo aos seus interesses particulares. Essa corrida atrás de
objetivos específicos, impulsionados por valores eminentemente econômicos, gera atitudes
egoístas, em prol de resultados e benefícios somente individuais.
No decorrer da história foi possível observar que o progresso se estabeleceu diante de
interesses minoritários, induzindo a parte massiva da sociedade ao crescimento desenfreado,
acreditanto ser um acontecimento benéfico e inevitável. Porém, atualmente, toda a sociedade
4
Art. 215, CF. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e
incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. (...) Art. 217. Constituem patrimônio ccultural brasileiro os bens de
natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: (...) II - os modos de criar, fazer e viver; (...)
pode sentir os prejuízos trazidos por este tão sonhado “progresso”, que pode estar atingindo seu
ápice em razão da escassez dos recursos naturais e da destruição do meio ambiente.
O século XVII pode ser considerado o marco histórico para a corrida progressista mundial,
por ter sido marcado pela incessante busca de uma satisfação pelo homem, configurada
unicamente no “progresso econômico”. Entretanto, esse objetivo só seria alcançado à custa de
uma desarticulação social (POLANYI, 2000, p. 52), com consequências sentidas por toda a
coletividade.
Acredita-se, por vezes, que o progresso é inevitável, que ocorrerá de forma voluntária e
espontânea, de acordo com o desenvolvimento e o crescimento da sociedade como um todo. No
entanto, de acordo com as afirmações de Karl Polanyi (2000, p. 54): “a crença no progresso
espontâneo pode cegar-nos quanto ao papel do governo na vida econômica. Este papel consiste,
muitas vezes, em alterar o ritmo da mudança, apressando-o ou diminuindo-o, conforme o caso”.
Portanto, é possível concluir que o progresso deve ser controlado, sendo o seu ritmo limitado por
ações do próprio governo, para atingir um equilíbrio entre a sociedade e o crescimento
econômico.
A partir do marco histórico da era do progresso, com a Revolução Industrial, vislumbravase tão-somente benefícios à sociedade, tendo como principal fundamento o crescimento
econômico. Para Enrique Leff (2001, p. 83/84) esse processo decorre de uma racionalidade
econômica, a qual tem por base o pressuposto de agentes econômicos que, conduzidos por uma
“mão invisível”, traduzem suas condutas egoístas num bem comum, e a ética do trabalho, a
frugalidade e a poupança são associadas à reinversão de lucros e excedentes para acelerar a
acumulação do capital. Essa racionalidade econômica, trazida por Leff, além do direito privado,
geraram uma corrida desenfreada das forças produtivas, ignorando as condições ecológicas de
sustentabilidade da vida no planeta.
Assim, o almejado “progresso”, resultado da racionalidade econômica desenvolvida pelo
homem teve como consequências, não só a devastação da natureza, como também a
transformação e a destruição de valores humanos, culturais e sociais. E ainda que esse
desregrado crescimento tenha tido um início pontual, em locais específicos, seus efeitos negativos
foram gradativamente sentidos por toda a sociedade, em âmbito global.
De acordo com Karl Polanyi (2000, p. 61/62) o sistema econômico é dirigido por questões
não-econômicas, uma vez que a economia do homem está submersa em suas relações sociais.
Desta forma, o homem não age para salvaguardar seus interesses individuais na posse de bens
materiais, mas para salvaguardar a sua situação, exigência e patrimônio sociais, valorizando os
bens materiais na medida em que servem para o seu propósito.
O crescimento econômico desregrado e pensado de forma individual e egoísta, conforme
se vê, gerou a redução dos recursos naturais disponíveis, ameaçando a biodiversidade e os
ecossistemas naturais, sendo um fator negativo à toda a coletividade e à própria indústria, uma
vez que esta depende dos recursos naturais, como fonte e matéria-prima, para a sua produção.
Neste sentido, em recente palestra ministrada por Enrique Leff (2010) afirmou-se que a economia
para crescer precisa se alimentar da natureza, pois dela faz parte. No entanto, os processos da
natureza são irreversíveis e os recursos finitos.
Diante dos problemas trazidos pela racionalidade econômica, surgem as primeiras
preocupações com o meio ambiente, com a subsistência e preservação de seus sistemas
biológicos e as diversidades dos recursos naturais existentes. Por esta razão, Enrique Leff (2001,
p. 85) apresenta a transformação da racionalidade, passando a denominá-la de “racionalidade
ambiental”, a qual se funda numa nova ética, que se manifesta em comportamentos humanos em
harmonia com a natureza, em princípios de uma vida democrática e em valores culturais que dão
sentido à existência humana. Tais comportamentos se traduzem num conjunto de práticas sociais
que transformam as estruturas do poder associadas à ordem econômica estabelecida,
mobilizando um potencial ambiental para a construção de uma racionalidade social alternativa.
A partir disso, dá-se início a uma nova fase, resultado da necessária alteração da
consciência geral, acerca dos limites do crescimento econômico e tecnológico, em razão do
desequilíbrio entre a economia e a ecologia e de sua consequente destruição dos recursos
ambientais, indispensáveis à subsistência dos meios produtivos e à própria sobrevivência
humana.
Este momento histórico, de necessária transformação de consciência e racionalidade, é
chamado por Enrique Leff (2001, p.89/90) de “crise ambiental”, a qual rompe o mito do
desenvolvimento, levantando novos problemas globais gerados pelos efeitos do crescimento
econômico e da destruição ecológica. Associados à imposição de modelos tecnológicos e projetos
de
colonização
que
provocaram
migrações,
desemprego,
desnutrição,
condições
de
amontoamento e o desarraigamento de suas identidades culturais e abandono de práticas
tradicionais de uso dos recursos.
Portanto, o antigo mito do “progresso” dirigido tão-somente pelo crescimento econômico
ilimitado, passa a compor um novo prisma conceitual, podendo ser denominado de “progresso
ecológico-econômico”, resumindo-se pela seguinte fórmula: desenvolvimento econômico +
preservação do meio ambiente = manutenção da vida humana no planeta. Assim, para que a vida
do homem seja mantida, garantindo a sua subsistência na Terra através de melhor qualidade de
vida para as presentes e futuras gerações, é necessário o equilíbrio entre o desenvolvimento
econômico e a preservação do meio ambiente, aplicando o conceito de progresso de forma
harmônica, compondo ambos os interesses.
2 O Progresso e a Revolução Verde
A década de 60 e 70 foram marcadas pela Revolução Verde, a qual teve início com a
invenção e disseminação de novas sementes e técnicas agrícolas, inclusive, com a inserção de
insumos químicos no sistema (agrotóxicos), permitindo o aumento da produção agrícola,
especialmente em países pouco desenvolvidos. Era o início do “progresso” da agricultura.
Entretanto, juntamente com as inovações tecnológicas a Revolução Verde ocasionou
repentinos danos ambientais e culturais aos agricultores tradicionais5. Resultou numa constante
desvalorização da natureza pelo homem, que passou à acreditar numa independência por
recursos provindos da natureza de forma espontânea e à considerar certos fatores oriundos aos
ecossistemas como desnecessários à finalidade de uma considerável quantia e eficiente produção
agrícola.
Em contrapartida, torna-se dependente da indústria química e das novas tecnologias
disponibilizadas no mercado. Em poucos tempo, o próprio ser humano exclui-se da natureza, pois
acredita não necessitar mais dela para sobreviver, satisfazendo-se do ambiente artificial e das
novidades trazidas pelas indústria. No entanto, essa satisfação demonstra ser momentânea, uma
vez que encoberta de efeitos maléficos ao meio ambiente e ao próprio homem, porém
perceptíveis apenas em longo prazo.
Os efeitos gerados pela atividade antropológica já são notórios em todo o mundo, pois
devido a extensa e constante degradação do meio ambiente o homem passou a ser vítima de
suas próprias atitudes, sofrendo com as mudanças climáticas, que geram a escassez de água
potável; o aumento no preço de frutas e verduras, devido ao déficit gerado pelas altas
temperaturas; o aumento do nível das águas do mar, que aos poucos elimina a orla marítima de
grandes cidades litorâneas; o acúmulo de lixo doméstico, decorrente do consumo e descarte
irreponsáveis; frequentes e intensas tempestades geradoras de enchentes e desmoronamentos,
etc.
Portanto, as mudanças no sistema agrícola, que tiveram início com a Revolução Verde,
geram macro-efeitos, uma vez que englobam o setor alimentar, agrícola, industrial, cultural e a
própria sobrevivência humana, em que uma pequena atitude pode ter reflexos negativos globais.
Diante destes manifestos prejuízos, lentamente o homem percebe que também faz parte deste
meio ambiente e de que necessita dele para a sua própria subsistência.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE as mudanças na estrutura
e no desempenho do setor agropecuário, em especial na região amazônica, associados à
introdução de novas tecnologias, métodos e culturas refletem no ambiente natural da região e na
própria vida da população, afirmando que:
5
Como nos dizeres de Carlos Frederico Marés (2010) a modernidade excluiu a natureza e com ela também despachou as culturas
humanas.
Associada ao processo de expansão da fronteira agrícola, a distribuição
espacial das áreas desmatadas, assim como dos focos de calor, reflete,
diretamente, o crescimento de atividades intrinsecamente articuladas a
esse processo, tais como a extração de madeira e a abertura de
pastagem, que compõem, juntamente com a expansão do cultivo de grãos,
um mosaico de usos diferenciados do espaço amazônico que vêem
alterando, de forma radical, a dinâmica tradicional de ocupação da
Amazônia brasileira. (...) Acumulam-se, assim, evidências sinalizadoras de
importantes mudanças na estrutura e desempenho do setor agropecuário
nessa região muitas das quais associadas à introdução de novas
tecnologias, métodos e culturas no campo, cujos efeitos afetam o ambiente
natural - via desmatamento, erosão e poluição hídrica, entre outros - assim
como recaem sobre a geração de renda, emprego e condições de vida
geral de sua população.
O incentivo à monocultura, por meio da expansão de cultivares agrícolas priorizando os
grãos de alta produtividade, como a soja e o milho, também contribuem para a extinção de
diversas espécies, sejam elas milenares ou que ainda não foram descobertas, mas que poderiam
ser utilizadas, inclusive, na alimentação humana. Neste sentido, cabe mencionar a seguinte
acertiva:
O uso de poucos cultivares na agricultura priorizados pela alta
produtividade, pode influir na disponibilidade de variedades naturais, fruto
de milhares de anos de evolução. Diminuindo-se a diversidade genética,
as variações ambientais geradas a médio e longo prazo podem trazer
prejuízos às lavouras comerciais, aumentando sua vulnerabilidade ao
ambiente. O número de espécies usadas na alimentação humana é
relativamente pequeno, embora exista grande disponibilidade de plantas
comestíveis na natureza. A expansão da biotecnologia agrícola pode
contribuir para a redução de diversidade genética, em escala global, caso
o plantio fique concentrado em um número reduzido de cultivares (...)
(Tripp, 1996 apud MENDONÇA-HAGLER; MINARÉ; LAGENBACH, 2006,
p. 150)
As sementes transgênicas, desenvolvidas por novas tecnologias, por meio das técnicas do
DNA recombinante, também impulsionam a expansão da monocultura da soja e do milho, bem
como aumentam o consumo de agrotóxicos pelos agricultores. A soja transgênica RR, da
Monsanto, por exemplo, é resistente ao herbicida glifosato, podendo ser alvo do herbicida, mas
sobreviver a este devido à nova tecnologia empregada.
À princípio parece ser benéfica, inclusive ao meio ambiente, por meio da suposta redução
de aplicações de herbicidas, sendo mais eficaz à eliminação de plantas daninhas, resultando
numa colheita de boa qualidade. Segundo Paulo Afonso Brum Vaz (2006, p. 56), o volume
de agrotóxicos empregado nas plantações talvez seja de fato menor. Em contrapartida, a
nocividade do agrotóxico é consideravelmente maior, pois o Roundup®6 é muito mais
forte do que os agrotóxicos comuns.
Além disso, não se pode falar em uma queda significativa no uso de agrotóxicos
por conta dessas plantas transgênicas, mas sim na queda das vendas de herbicidas dos
concorrentes de uma única multinacional, uma vez que a mesma empresa é responsável
pela fabricação da semente da soja RR e do glifosato (cuja semente é resistente) e,
ainda, é detentora da patente destas duas tecnologias - recebendo royalties. Dessa
forma, estima-se que no Brasil o plantio da soja RR representará aumento no consumo do
herbicida glifosato, de 2 (dois) milhões para 20 (vinte) milhões de litros por ano. (VAZ,
2006, p. 57/58).
Em razão dessa nova tecnologia, de acordo com Juliana Santilli (2009, p. 56), os
interesses da indústria da transgenia em ampliar suas vendas impulsionaram também o
mercado de fertilizantes químicos, o que levou muitos agricultores à abandonar as
práticas de fertilização orgânica dos solos. Os fertilizantes químicos estão, aos poucos,
substituindo os fertilizantes naturais, como o húmus e o esterco.
Diante disso, verifica-se que o “progresso” agrícola gerado pela Revolução Verde,
com aparência inicial benéfica, aos poucos, representou diversos prejuízos ao meio
ambiente e à saúde humana, além da interferência nas culturas dos agricultores
tradicionais. A ideia do progresso a partir do crescimento econômico sem limites, por meio
da aplicação de novas teecnologias, até então questionáveis acerca de seus efeitos, deve
ser repensada.
Para que a sociedade atinja os preceitos constitucionais à sadia qualidade de vida
e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, outros sistemas agrícolas devem ser
desenvolvidos e incentivados, ainda que sejam baseados em métodos tradicionais e com
pouco tecnologia, o que não é sinônimo de falta de eficácia e geração de poucos
alimentos, como será observado no próximo capítulo.
6
É o composto ativo de alguns hebicidas que provoca a morte de plantas daninhas, inibindo a atividade da enzima enolpiruvilchiquimato 3-fosfato sintetase. O termo Roundup® é o nome comercial deste herbicida conhecido como glifosato. (BORÉM; VIEIRA,
2005, p. 92).
3 Os Sistemas Agrícolas e o Direito dos Agricultores
A agrobiodiversidade, ou diversidade agrícola, constitui uma parte importante da
biodiversidade e engloba todos os elementos que interagem na produção agrícola (SANTILLI,
2009, p. 92). A partir dessa diversidade biológica e do desenvolvimento das técnicas e meios de
produção, foram desenvolvidos, no Brasil, dois modelos agrícolas: a agricultura camponesa (e
familiar) e a agricultura patronal, atualmente chamada de agronegócio.
A agricultura camponesa se caracteriza no modelo em que a família, ao mesmo tempo, é
proprietária dos meios de produção e assume o trabalho no estabelecimento produtivo. Já o
agronegócio, se caracteriza pela produção, baseada na monocultura de produtos com valores
ditados pelas regras do mercado internacional, como: soja, milho, algodão, café etc., com a
utilização intensa de insumos químicos e máquinas agrícolas (SANTILLI, 2009, p. 82/83).
Havendo esses dois modelos de produção agrícola, os quais englobam diversos sistemas
com características próprias, verifica-se a existência do direito dos agricultores ao livre arbítrio e
opção pelos meios de produção que considerem como mais adequado. Esse direito de opção
decorre do conceito subjetivo de cada agricultor, que resulta da ponderação entre conhecimento,
técnicas, cultura e tradição, que resultará na alternativa mais adequada àquela pessoa específica.
Esta variabilidade, que decorre de diversos fatores e resulta no direito de opção e livre
arbítrio dos agricultores, pode ser verificada em diversas áreas no decorrer de toda a história,
refletindo nas decisões tomadas pelo homem, bem como no desenvolvimento e no uso dos
recursos naturais e tecnológicos disponíveis. No que se refere à variabilidade, Claude LéviStrauss (1989, p. 15/16) explica que há séculos além dos animais, as plantas eram classificadas
em espécies de acordo com o seu observador. Fosse um indivíduo indígena ou um indivíduo mais
urbanizado, a classificação se daria de acordo com as necessidades daquele que as explora.
As espécies úteis eram nomeadas e as que não lhes interessavam eram denominadas
apenas não úteis ou espécies daninhas, de forma genérica. Esclarecendo essa afirmativa, LéviStrauss (1989, p. 23) traz o seguinte exemplo:
Os produtos naturais usados pelos povos siberianos para fins medicinais
ilustram, por sua definição precisa e pelo valor específico que lhes é dado,
o cuidado, a engenhosidade, a atenção ao detalhe e a preocupação com
as diferenças que devem ter empregado os observadores e teóricos nesse
tipo de sociedade: aranhas e vermes engolidos (itelmene e iakute esterilidade); gordura de escaravelho negro (ossete - hidrofobia); barata
esmigalhada, fel de galinha (russos de Surgut - abcessos e hérnia)...
Portanto, vários conceitos trazidos pelas ciências não podem ser considerados fixos, pois
podem variar de acordo com o conhecimento, a cultura, a tradição e demais fatores que
influenciam o cotidiano e a vida de uma determinada comunidade ou indivíduo. Da mesma forma
isso ocorre com a preservação do meio ambiente, no que tange à escolha do sistema agrícola a
ser utilizado por um determinado agricultor.
Devido às técnicas existentes e o direito subjetivo de escolha, um agricultor pode optar por
sistemas agrícolas que compõem o agronegócio, o qual é composto por novas tecnologias,
máquinas e insumos químicos, seguindo os interesses de uma racionalidade eminentemente
econômica, com os problemas trazidos pela Revolução Verde, conforme exposto no capítulo
anterior. Por outro lado, o agricultor pode optar por sistemas agrícolas que compõem a agricultura
familiar, utilizando técnicas tradicionais e de baixo impacto ambiental e à saúde humana.
Esse direito de escolha e livre arbítrio dos agricultores reflete diretamente nos efeitos
gerados ao meio ambiente e à saúde humana. No entanto, são contaminados pela falta de
informação e pela inexistência de certezas científicas a respeito dos potenciais danos que podem
surgir a partir do uso de novas tecnologias, influenciando na decisão do agricultor, bem como nos
efeitos gerados por ele.
Algumas empresas oferecem seus produtos e tecnologias expondo aos agricultores
apenas seus benefícios, tanto ao meio ambiente quanto à saúde humana, o que acaba por
influenciar a substituição dos sistemas agrícolas tradicionais por novas tecnologias, baseando-se
na ideia estática de “progresso”, com fundamento meramente econômico. Desta forma, o
agricultor além de se auto-excluir da natureza, apropriando-se de meios artificiais de produção,
acaba por eliminar sua cultura e seus conhecimentos tradicionais.
Além disso, atualmente, as novas tecnologias e sistemas agrícolas acabam sendo
adotados de forma indireta e inconsciente por alguns agricultores, a exemplo de plantações
baseadas em plantas com capacidade de polinização cruzada, também chamadas alógamas7
(como é o caso do milho). Uma plantação fundada em novas tecnologias, como ocorre com as
plantas transgênicas (milho Bt, por exemplo) pode acabar polinizando uma plantação
convencional próxima, isso ocorre de forma involuntária, decorrentes de fatores naturais, como
vento, insetos e umidade. Desta forma, há duas preocupações:
a) grandes empresas são detentoras da propriedade intelectual de sementes transgênicas
e têm o direito de receber royalties por sua utilização. Este fato pode justificar a
cobrança de royalties de agricultores com plantações transgênicas involuntárias;
b) os agricultores adeptos aos sistemas agrícolas tradicionais e naturais - como é o caso
da agricultura orgânica - expostos à ocorrência da polinização cruzada, ficam sujeitos a
7
É a planta que se reproduz por fecundação cruzada, a qual ocorre por meio da transferência do pólen da antera de uma flor para o
estigma receptivo de outra, em plantas diferentes (SOUZA, 1973, p. 08 e 90). Segundo Helms (1998, p. 40), polinização cruzada é
“pollination by a genetically diferent plant – note as a outcross is a cross between unrelated individuals”.
prejuízos, descaracterizando a qualidade do produto proveniente do sistema agrícola
tradicional, transformando, coercitivamente e sem qualquer controle, a planta
convencional em transgênica (no caso do exemplo citado).
Já foi confirmado que nem sempre a produção agrícola baseada em novas tecnologias é a
mais benéfica e produtiva. Um estudo comparativo confirmou que a agricultura orgânica produz
rendimentos comparáveis aos métodos convencionais de milho e soja. E esses sistemas
tradicionais, com baixos insumos externos, renderam 13% a mais que a soja geneticamente
modificada. De acordo com trecho do estudo abaixo:
Organic and low-external-input methods (which use reduced amounts of
fertilizer and pesticides compared to typical industrial crop production)
generally produce yields comparable to those of conventional methods for
growing corn or soybeans. For example, non-transgenic soybeans in recent
low-external-input experiments produced yields 13 percent higher than for
GE soybeans, although other low-external-input research and methods
have produced lower yield. Meanwhile, conventional breeding methods,
especially those using modern genomic approaches (often called markerassisted selection and distinct from GE), have the potential to increase both
intrinsic and operational yield. Also, more extensive crop rotations, using a
larger number of crops and longer rotations than current ecologically
unsound corn-soybean rotations, can reduce losses from insects and other
pests (GURIAN-SHERMAN, 2009, p. 03).
No que se refere a plantas geneticamente modificadas, foco do crescimento do
agronegócio mundial, Hugh Lacey (2006) adverte que o referido setor é o principal favorecido,
uma vez que prioriza o crescimento econômico e a expansão do mercado em curto prazo,
deixando de lado os riscos e efeitos que podem surgir ao longo do tempo, através da utilização
desenfreada e mal fiscalizada dessa nova tecnologia. Ressalte-se também o fato de que o
agronegócio é baseado na monocultura, a qual se caracteriza como um vilão ao equilíbrio do meio
ambiente, conforme já mencionado. Sendo assim, Rubens Onofre Nodari (2010) conclui que o
sistema agrícola brasileiro deve ser alterado, priorizando a policultura, uma política agrícola
ambiental que permita a subsistência de várias espécies em um mesmo local.
Em pleno século XXI, é possível verificar o conflito entre dois direitos: onde de um lado
estão as grandes empresas e uma parcela de agricultores, protegidos pelos princípios da ordem
econômica e financeira, previstos no artigo 170 da Constituição Federal; e do outro os
consumidores e a parcela restante de agricultores, na busca da sadia qualidade de vida e do meio
ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum de todos, devendo ser preservado e
protegido por toda a coletividade, conforme determina o artigo 225 da Constituição Federal.
Esses dois direitos deveriam ser observados e aplicados de forma harmônica, pois, nos
dizeres de Cristiane Derani (2008, p. 57/58), estes direitos “não só se interceptam, como
comportam, essencialmente, as mesmas preocupações, quais sejam: buscar a melhoria do bemestar das pessoas e a estabilidade do processo produtivo”, em função dos direitos constitucionais
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade de vida.
Com esse mesmo entendimento, Enrique Leff (2001, p. 86) traz considerações a respeito
do equilíbro entre o crescimento econômico e a conservação da natureza, no sentido de que:
O conceito de ambiente implica, pois, além de um equilíbrio entre
crescimento econômico e conservação da natureza, a possibilidade de
mobilizar o potencial ecotecnológico, a criatividade cultural e a participação
social para construir formas diversas de um desenvolvimento sustentável,
igualitário, descentralizado e autogestionário, capaz de satisfazer as
necessidades básicas das populações, respeitando sua diversidade
cultural e melhorando sua qualidade de vida. Isto implica a transformação
dos processos de produção, dos valores sociais e das relações de poder
para construir uma nova racionalidade produtiva com a gestão participativa
da cidadania.
A ética ambiental vincula a conservação da diversidade biológica do planeta ao respeito à
heterogeneidade étnica e cultural da espécie humana, com o objetivo de preservar os recursos
naturais e envolver as comunidades na gestão de seu ambiente. Destaca-se também o direito
humano em conservar a própria cultura e tradições, o direito de forjar seu destino a partir de seus
próprios valores e formas de significação do mundo, com os princípios da gestão participativa para
o manejo de seus recursos de onde as comunidades derivam suas formas culturais de bem-estar
e a satisfação de suas necessidades. (LEFF, 2001, p. 93/94)
Finalmente cumpre ressaltar a resiliência majoritária da sociedade civil. Ainda que seja
escassa, há a divulgação de certos malefícios causados por novas tecnologias, sendo
consideradas como inadequadas ao consumo humano e à preservação do meio ambiente, como é
o caso dos agrotóxicos em frutas e verduras, diariamente consumidas. Entretanto, predomina
apenas o discurso no que tange ao repúdio a esses alimentos, mas não se vê na prática a
eliminação destes como forma de manifestação para melhoras no atual sistema alimentar.
Esse fato pode ser verificado no trabalho de Renata Menasche (2004) que sintetiza a ideia
de que o homem não se alimenta apenas para suprir suas necessidades nutricionais, mas
também do seu imaginário, da valorização simbólica que atribui aos alimentos. Apesar da autora
constatar a associação que a maioria das pessoas faz de que alimentos industrializados,
compostos por conservantes, acidulantes e demais aditivos são “sujos”, e, portanto, impróprios
para o consumo, por serem pouco saudáveis, verificou-se que os cardápios e produtos
consumidos pelas famílias de agricultores - que valorizam os alimentos produzidos em sua própria
propriedade - não deixam de ter à mesa produtos que lhe trazem satisfação e que não podem ser
produzidos de forma artesanal, a exemplo de refrigerantes, sopas pré-preparadas e chás.
Ao final conclui que, mesmo havendo a rejeição de produtos industrializados, em razão da
composição e origem desconhecidas, o ser humano habitualmente os consome. Esta também
seria a tendência ao consumo de alimentos transgênicos, tendo em vista que mesmo havendo
visível rejeição desses produtos, eles podem não deixar de ser consumidos pela população,
incentivando a sua expansão no mercado.
Conclusão
E acordo com todo o exposto, o “progresso” não pode ser considerado um conceito
estático e determinado, pois seus fundamentos decorrem da evolução e das necessidades
sobrevindas a uma população, a qual está em constante alteração de acordo com o
desenvolvimento e a cultura de cada indivíduo ou de cada região, por si só, considerada.
Os sistemas agrícolas utilizados como forma de desenvolvimento da agrobiodiversidade
brasileira são compostos por diversos métodos, sejam eles tradicionais (decorrentes da agricultura
familiar) sejam patronais (pertencentes ao agronegócio). Essa variedade justifica o direito de
escolha e o livre arbítrio dos agricultores em optarem pelo modelo agrícola a ser aplicado em sua
propriedade, cuja escolha resultará de fatores, como conhecimento, cultura, tradição,
antecedentes familiares etc. Em contrapartida, essa opção irá refletir em benefícios ou impactos
danosos ao meio ambiente e à saúde humana.
Sendo assim, utilizando-se de uma racionalidade ambiental, objetivando o “progresso
ecológico-econômico” os agricultores não devem ser coagidos, mas sim incentivados à
manutenção de sua cultura e conhecimentos tradicionais, em prol da preservação do meio
ambiente e da qualidade de vida para sobreviver, princípios previstos na Constituição Federal de
1988.
Ocorre que, atualmente, o que se verifica é a imposição de novas tecnologias agrícolas,
até mesmo de forma involuntária como é o caso das plantas alógamas, substituindo o
desenvolvimento biológico natural pela expansão de uma agricultura artificial, como se fossem o
resultado de um progresso inevitável. Entretanto, basta observar a história e constatar que o
progresso desenfreado e mal regulado pode gerar consequências desastrosas e não benéficas,
ocasionando a perda irreparável da biodiversidade nativa, das culturas e das próprias etnias.
Portanto, o conceito de “progresso” deve ser visualizado com mais cautela, respeitanto as
diversidades ambientais e culturais existentes. Como exposto neste trabalho, deve ser aplicado
em equilíbrio ao crescimento econômico e a preservação do meio ambiente, para assim garantir a
subsistência humana, através da sadia qualidade de vida - reflexo de um meio ambiente
ecologicamente equilibrado e devidamente preservado pelo próprio homem.
Afinal, a ideia de “progresso” da agricultura dependerá do ponto de vista, dos interesses e
das necessidades do indivíduo que a observa.
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