O masoquismo e a relação
com o feminino*
TheodorReik
Tradução: Renato Carvalho
F
reud afirma que o masoquismo tem uma íntima relação com o feminino. Na
conduta do masoquista masculino se encontram, certamente, numerosos traços
que justificam esta asserção. A passividade na conduta sexual é o fator mais
visível: mas há outros ainda mais importantes. As fantasias do gpsoquista giram em
torno do tema de ser sexualmente dominado, de ser engravidado. Isto pode parecer
grotesco, mas a psicanálise demonstra que a inadequação anatômica desempenha um
papel considerável nas fantasias masoquistas.
Sem dúvida, há outras características que não confirmam que a relação com o
feminino seja tão intensa como supõe Freud. Esta relação de modo algum é tão simples
como no homossexual passivo. A passividade pode não ser facilmente separável da
sexualidade feminina, mas o fato de experimentar dor, ser golpeado e agrilhoado, ou
a vergonha e a humilhação, não formam parte, certamente, das finalidades sexuais da
mulher normal. Quando tais idéias aparecem visivelmente na superfície psicológica e
se convertem em condições da satisfação sexual, deve chamar-se masoquista à mulher
em questão.
Ainda que se incline a supor que estas características estão incluídas, de algum
modo, no quadro da sexualidade feminina normal, em nenhum caso dominam a cena,
como ocorre nos indivíduos masoquistas. E tampouco se coaduna com a conduta
feminina habitual a preferência da zona anal como centro erógeno. Dito de outro modo:
o masoquismo, olhado de certo ângulo, pode ser a expressão de uma inclinação
feminina no homem, mas a conduta feminina em si não constitui, certamente, a
expressão de sentimentos masoquistas.
Outra vez experimentamos aqui, como tão freqüentemente ocorre na observação
dos fenômenos do masoquismo, uma sensação de absurdo. O masoquista que desempenha o papel feminino em suas fantasias e cenas, parece ao mesmo tempo zombar de
si próprio com a deformada apresentação de suas características. O que mostra é menos
um quadro da feminilidade do que uma paródia ou caricatura. Esta mofa é freqüente
nos adolescentes, que a empregam conscientemente. Um enfermo recordava uma
atitude similar de quando era menino. O que ele gostava especialmente era de
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El masoquismo en ei hombre moderno. Editorial Nova, Buenos Aires, 1949, cap. XV.
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O masoquismo e a relação com o feminino
pronunciar certas palavras, acompanhando-as de gestos e movimentos particulares do
corpo. Dizia esta frase romântica: "Este querido menino, tão impetuoso!" Mais tarde
o enfermo descobriu, por si própio, a origem desta exclamação. Provinha de um dos
livros de uma irmã adolescente. Neste livro as palavras eram pronunciadas por uma
menina que pensava ternamente em um homem ausente. Ao fazer a exclamação
virava-se para outro lado, tímida e ruborizada. O menino havia lido esta passagem do
livr€f e mais tarde reproduzia a cena diante de um espelho, repetindo a frase em voz
alta e acompanhando-a de gestos expressivos. Imaginava o esvoaçar da saia da menina
ao virar-se recatadunente.
Eis aqui, pois, mna nova cena frente ao espelho: Poderíamos afirmar justificadamente que o menino, que mais tarde se converteu em masoquista, revelava uma
tendência feminina em sua atitude zombeteira? Certamente não. Nos atrevemos a
conjeturar o motivo original deste jogo. O menino deve ter desejado que uma jovem
formosa se comportasse deste modo ao pensar nele. Reconhecemos assim uma fantasia
encenada em uma representação de dois papéis. Só mais tarde, depois que algo mudou
na sua relação com as meninas, a cena adquiriu o matiz de farsa. A fantasia, que
revelava primitivamente alguns dos desejos do menino, transformou-se logo em
expressão de impulsos zombeteiros contra as meninas da idade da sua irmã. Sua
timidez para aproximar-se do outro sexo torna explicável que, finalmente, adote a
atitude da raposa da fábula -que recusa as uvas que não pode alcançar por serem ácidas
demais.
A conduta do masoquista reflete traços femininos, mas não sem desvirtuá-los; o
feminino não é tanto representado quanto é desfigurado; não é tanto caracterizado
quanto é deformado.
A interpretação do significado original, secreto, da cena diante do espelho trouxenos algo mais acerca do elemento feminino do masoquismo, embora não o suficiente.
Talvez ajude-nos aqui uma comparação: em certa oportunidade tive ocasião de
observar um professor de dança rechonchudo, vivaz e calvo, enquanto dava lições a
algumas senhorítas jovens. Depois de ensinar a suas discípulas os passos e figuras dá
nova dança, tratava de dançar com cada uma delas. Naturalmente, as conduzia. Mas
ocasionalmente, quando uma das moças se mostrava demasiado desajeitada, adotava
o papel feminino para servir-lhe de modelo. Portanto, imitava intencionalmente o
porte, passo e atitude que devia ter a companheira de dança.
Era um espetáculo bastante pitoresco, por certo, ver o corpulento e atarracado
professor de dança retroceder uns passos, alçar com delicadeza as abas de seu paletó
como se fossem a cauda de um traje de noite, e avançar logo com passos miúdos em
direção à sua companheira. O homem estava tremendamente sério; evidentemente
sentia-se fatigado, mas procurava manter fixo no rosto o sorriso estereotipado de seu
papel, e levava a cabo seu trabalho, literalmente, com o suor de sua fronte. Como se
explica que esta forçada representação produzisse uma impressão muito singular sobre
a maior parte dos espectadores? Em grande parte pelo contraste de sua figura com a
de uma mulher, mas depois de algumas repetições da mesma cena as pessoas tornaLETRA FREUDIANA - Ano XI - nB 10/11/12
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O masoquismo e a relação com o feminino
vam-se sérias, inclusive tristes. Resultava óbvio que só por necessidade o homem
representava papel tão tragicômico.
O processo da fantasia masoquista deve ser aproximadamente o contrário: a cena
surge da necessidade sexual. É primitivamente séria e leva todos os signos da frustração
e da derrota, e só mais tarde adquire a nota de farsa e de paródia. A cena do rapaz diante
do espelho e a atitude do professor de dança têm um fator comum que os faz
comparáveis às fantasias e cenas masoquistas: a meta original que com ela se persJfue.
A natureza da representação é determinada pelo inequívoco desejo de que o objeto
feminino imite essas ações. O jovem da cena que comentamos angia que uma jovem
confesse ruborizada seu carinho por ele, e o professor de dança quer que as discípulas
imitem suas posturas e passos.
Para expressarmos de forma mais direta: o masoquista se conduz de um modo
feminino ao indicar à mulher a atitude em que deseja vê-la; o que faz tem o caráter de
uma representação; é uma espécie de cena. Esta cena parece algo assim como uma
paródia para os que a observam de fora. Digo "parece" porque nenhum psicanalista ou
psicólogo examinou, até agora, este elemento de paródia. O que ocorre na verdade é
que um homem reproduz a conduta sexual de uma mulher, não obstante, o ponto
principal, tanto na fantasia como na situação perversa, é que o homem atua para ela,
pois em geral há uma mulher que presencia sua representação. Faz-se uma troca de
papéis. Se a situaçãoutem efetivamente um sentido oculto em relação à mulher, este só
pode consistir em oferecer uma representação que traduza o seguinte pensamento: o
que me fazes quero fazer a ti; ou bem: quisera ver-te neste papel passivo e de
sofrimento.
Pelo que sei, este sentido da cena e fantasia masoquista não foi compreendido até
agora. Concorda plenamente com os processos descritos acima, de inversão e demonstração, mas seu significado vai muito além. A fantasia e prática masoquista é de índole
sádica, embora este sadismo se expresse por inversão, se represente pela situação
oposta. Creio haver demonstrado suficientemente este ponto no que se refere ao
masoquismo sexual. Sem dúvida, mesmo onde o masoquismo deixa de ser um
fenômeno definitivamente sexual e adota, ao contrário, um caráter social, sua natureza
permanece em essência a mesma.
A suposição de que o masoquismo mostra só a fachada, que não é mais do que uma
aparência, seria errônea. Constitui, principalmente, a reflexão de um processo que no
interior se verifica em direção contrária. Empregando uma expressão de Goethe,
denominei a este procedimento, em outro livro*, uma "reflexão recorrente". Contem*
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Surprise and lhepsychoanalist (Londres e Nova York, 1937). Goethe tomou esta designação da origem dos
entóptioos. O poeta escreveu acerca de algumas passagens críticas do seu Fausto: "Posto que temos tantas
experiências que não podemos expressar e comunicar simplesmente, adotei o método de revelar seu sentido
oculto aos leitores atentos por meio de imagens confrontadas e que estão, por assim dizer, refletidas uma na
outra". É evidente que este método de elucidação recíproca deve ser convenientemente modificado para sua
aplicação no campo da psicologia.
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O masoquistno e a relação com o feminino
plando os fenômenos do masoquismo social desde este ângulo, comprova-se também
aqui a apresentação das tendências primárias através de inversões. A ilimitada submissão expressa uma rebeldia inconsciente; a renúncia, a obstinação, o servilismo, o
desafio, a auto-humilhação e a ignorância.
Mas, como nasce este caráter inconsciente burlão ou de paródia que, secreta,
embora distintamente, adota a fantasia ou prática masoquista? Este caráter se origina
em drffersas fontes. Aqui quero limitar-me a assinalar o aspecto histórico, que se revela
ao observador psicanalítico simplesmente observando os fenômenos durante o tempo
suficiente e com baftpnte atenção. Este aspecto não o explica todo, mas esclarece um
bom número de traços grotescos e burlões de algumas práticas e idéias masoquistas.
Estas cenas e fantasias não são somente inversões dè idéias sádicas, mas também
uma reanimação e reprodução das figuras infantis em relação às atividades sexuais dos
adultos. Retorna inconscientemente às idéias infantis sobre o curso da relação sexual.
A grotesca mescla de verdade e erro destas teorias sexuais infantis reaparece aqui na
teoria e na prática. O caráter infantil, a que se apega inconscientemente o homem
adulto, se traduz m i A vezes em alguns detalhes destas fantasias e ações. Exemplo
disto é a parte importante que desempenham neles os excrementos e a urina, assim
como a falta de vergonha ou de asco que só aparecem tardiamente na criança, como
conseqüência da educação. Assim, o elemento da paródia se origina em idéias infantis
já esquecidas há muito tempo, como por exemplo a de que a mulher é tratada com
crueldade pelo homem, que este urina ou defeca sobre ela, etc.
Em todas estas idéias, invertidas como aparecem na prática masoquista, existe a
vibração de uma nota agressiva e violenta. A mulher aparece como um ser dominado,
sofredor, submetido à vontade do homem.
Quero provar esta suposição com um só exemplo significativo que trago à memória
do leitor. Referi-me a ele ao descrever o masoquismo feminino na discussão da teoria
de Freud. Trata-se do enfermo cuja satisfação sexual consistia em colocar-se em certa
posição vestindo, para a execução desta cena, um par de calças negras. Discuti
previamente a origem psíquica de suas condições específicas para o prazer, ou seja a
inversão de uma cena infantil. O menino havia irrompido no banheiro de sua mãe no
momento em que esta, com as pernas cobertas de lama, se inclinava para levantar algo
do solo. À vista das nádegas de sua mãe, o menino sentiu um impulso de dar-lhe uma
palmada. Isto eqüivaleria a uma ação sádica, manifestação de um precoce impulso
agressivo e sensual. Além disso, o menino se identificava assim com seu pai, que
costumava fazer a mesma carícia em sua mãe ou na criada.
Nos encontramos, pois, diante de uma atitude definidamente masculina no mesmo
menino que mais tarde, na cena masoquista, adota outra inteiramente passiva e
feminina. Nesta cena desempenha o papel feminino, e em lugar de bater faz com que
batam nele. Mas estaria já esclarecido o significado da cena perversa? Não, é preciso
aprofundar algo mais. O que faz o enfermo é desempenhar o papel que, segundo seus
desejos e idéias, a mulher deveria representar. Ele o representa em lugar dela. É aqui
que devemos buscar a conexão como feminino, e a inversão nos resulta compreensível.
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O masoquismo e a relação com o feminino
O caráter primitivo da representação é um convite à dança. Por outro lado, a origem
infantil da idéia masoquista não pode ser posta em dúvida.
É este o papel que a mulher anseia para si mesma? A resposta é um decisivo "não..."
seguido, sem dúvida, por estranho que isso pareça, de um tímido "sim". Quer dizer:
segundo as reações que o menino podia observar nas mulheres de sua casa, e era
permitido supor que as mulheres, em geral, não se opunham de todo a semelhante
tratamento. E se é que se opunham, sua resistência, muitas vezes, não era de kxttséria
e era acompanhada de risinhos ou de riso franco. Mas ainda que se admita que este
tipo de carícias não seja muito desagradável para as mulheres^ indiscutível que a
imaginação do menino exagerava demasiadamente as coisas. Tomava uma introdução
pela ação completa. Em sua fantasia a pancada era o elemento essencial e verdadeiramente prazeiroso do misterioso procedimento sexual dos adultos. Mais tarde, depois
de haver-se tornado masoquista, o mesmo golpe, aplicado em circunstâncias especiais,
bastava para provocar o orgasmo.
O erro está em supor que a mulher tira prazer dessa pancada, e que este prazer é
suficiente para produzir satisfação plena. Esta crença era res^fcdo das concepções
infantis sádicas e antes concordava com os próprios desejos violentos do menino do
que com os da mulher. A forma feminina de satisfação sexual não coincidia com o fato
de apanhar, embora possa existir alguns pontos de contato entre ambos. A origem
sádica desta cena ficou demonstrada plenamente durante a psicanálise, quando foi
substituída, mais adiante, por outra cruamente sádica. A inversão desapareceu. Quando
o enfermo agora percorria as ruas em passeios noturnos, imaginava-se como um
assassino sexual, à espreita de suas vítimas femininas. Quando saía para passear com
uma garota, sentia às vezes o impulso de converter um movimento de carinho em outro
brutalmente ofensivo. Quando lhe rodeava o pescoço com os braços, perguntava-se se
em realidade não queria estrangulá-la.
O masoquista abriga secreta e inconscientemente a idéia de que a mulher consideraria agradável o tratamento a que ele se submete; que inclusive o angustia. O pouco
de verdade que jaz no fundo desta idéia é tremenda e grotescamente exagerado. As
mulheres não desejam ser castigadas, insultadas, atormentadas ou flageladas, mas sim
querem ser amadas. Podem apreciar um pouco de audácia no momento apropriado e
que não se tome muito a sério sua resistência; o que seria uma prova de energia
masculina e do desejo do homem de possuí-la. Sem dúvida, a quantidade aceitável de
rudeza masculina tem seus limites.
O erro psicológico do masoquista, se pudéssemos chamá-lo assim, consiste em crer
que a satisfação sexual feminina implica um disfarce do sofrimento e da vergonha.
Recordemos o enfermo que experimentava excitação sexual à vista de figuras medievais de mártires e se identificava com elas em suas fantasias. Pensava que certa figura
de São Lourenço torturado não era "convincente", porque o rosto do santo tinha uma
expressão tranqüila, suave, em lugar de um gesto estático em que a dor se mesclasse
com o mais intenso prazer. Se o masoquismo, como sustenta Freud, é a expressão do
feminino, é certamente uma expressão deformada e caricatural. Como tal, tem sem
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O masoquismo e a relação com o feminino
dúvida o significado de uma representação: "isto é o que eu gostaria de fazer a uma
mulher, e ela se comportaria então de tal e qual modo". É uma representação plástica
de um desejo invertido. Qual é este desejo original? O que traduz esta frase: trate-as
com dureza e faça com que elas gostem.
Não quero senão indicar aqui que a fase de evolução intermediária, durante a qual
o indivíduo desempenha desta maneira inconsciente os dois papéis, é seguida pelo
masó^uismo pleno e franco. A fantasia inconsciente reveste tal importância para esta
satisfação instintiva que a realidade como tal é insuficiente, se não se apoia nela. E
bem, na fantasia o masoquista não abandona seu caráter masculino, apesar de sua
conduta aparentemente feminina.
Outro traço corrente nestas cenas: o masoquista se imaginando como um animal,
submetido à vontade de sua dona, favorece também esta opinião. Muitas vezes imagina
que é um cavalo de raça cavalgado por uma mulher.
Os admiradores de Goethe recordarão o poema "O parque de Lily", onde o poeta
se compara a um urso que é golpeado por sua amada e que se inclina diante dela, "até
certo ponto, naturalmente". O poema conclui com o rogo aos deuses de que o liberem
desta escuridão, seguido destas palavras: "sem dúvida, oxalá não me enviareis nenhuma ajuda; não de todo em vão posso todavia estirar meus ombros! Sinto, juro, que no
entanto possuo alguma força". Em minha opinião, o contraste entre o poder e o fervor
masculino de que o masoquista conserva consciência, e sua manifesta submissão e
debilidade, contraste exagerado na fantasia, contribui consideravelmente para o seu
prazer.
A inconsciente relação com o homem, dissimulada na cena com a figura da mulher,
que aparece em primeiro plano, deve ser considerada como outra expressão de
feminilidade. Em um caso citado anteriormente era a idéia do homem, que ameaçava
tornar-se consciente, à vista do manto de pele que pôs fim à perversão. Sempre que se
mantenha recalcada, a fantasia constitui uma das condições importantes da satisfação
masoquista. A pele, conhecida como atributo da cena perversa desde Sacher-Masoch,
as botas altas, o látego ou vara, todos estes são atributos reveladores. Na realidade, só
são emprestados à mulher, pois pertencem ao equipamento do homem sádico, que
permanece no fundo durante o curso da cena perversa. Desde este ponto de vista há
uma transmutação da fantasia sexual passiva: "sou utilizado e espancado por meu pai".
Esta transferência, comparável a uma transposição de uma escala maior a outra menor,
fica excluída da consciência.
Só se aceita esta idéia quando está suficientemente desfigurada e desligada da
própria pessoa, de maneira que é impossível compreender seu verdadeiro significado.
Um masoquista pensa, por exemplo, que as gravuras em que aparecem as alunas de
um colégio de meninas no momento de serem espancadas por uma professora, nas
nádegas desnudas, são extraordinariamente excitantes. Isto constitui uma transferência
ao sexo oposto. A fantasia primária foi invertida, se lhe fez fazer uma rotação de 180
graus. O enfermo só aceita a uma mulher como pessoa ativa, e rechaçaria qualquer
fantasia em que o castigo fosse levado a cabo por um homem.
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Mas porque e como aparece o homem na cena masoquista? O que significa esta
aparição, ainda que permaneça no fundo e na obscuridade? Adotemos por um momento
o ponto de vista psicanalítico. O conteúdo da fantasia original era o seguinte: "sou
amado e castigado por meu pai". Depois começamos a perguntar-nos por que razão
nem o carinho, nem o amor do pai ou seu substituto feminino aparecem na cena do
castigo, onde só se revelam sua severidade e crueldade. A resposta é a seguinte: tanto
na cena quanto na fantasia, o erotismo homossexual coincide com a satisfação dos
sentimentos inconscientes de culpa.
Com quê estão ligados estes sentimentos de culpa? Com os desejos incestuosos do
menino, que reconhece como proibidos, e com os impulsos hostis que nascem da
rivalidade com o outro homem, ou seja, primitivamente o pai. A cena masoquista seria
assim a reação contra o castigo e a expiação dos impulsos instintivos da situação do
Édipo. De modo que a fórmula "sou amado e castigado por meu pai" agregaria outra
quase reversão, seria um substituto tardiamente transformado de uma fantasia mais
antiga: "Quero possuir a mulher e matar o rival". A ordem de sucessão das mudanças
é uma ordem histórica, correspondente a diferentes extratos psicológicos.
Esta interpretação da conduta feminina do masoquista como resultado de uma
atitude carinhosa passiva em relação ao pai é respaldada por Freud e seus discípulos.
Seu fundamento psicológico é inquestionável; mas existe também outro problema: o
da valorização psíquica das diferentes motivações. É aqui, precisamente, onde me
separo dos demais psicanalistas e começo a caminhar por trilhas diferentes.
O fator da secreta inclinação homossexual me parece menos importante do que o
sentimento de culpa mesclado à satisfação. Para expressá-lo de outro modo: o castigo
conseguido mediante a precipitação do desenlace, e que alivia o masoquista de sua
ansiedade, é mais fundamental para ele do que o fato de ser amado. Não é tanto o
carinho quanto a ansiedade que faz que o homem se ofereça inconscientemente como
objeto homossexual. A idéia grotesca "quero ser amado pelo meu pai como uma
mulher" não expressa unicamente uma disposição feminina, mas também o desdenhoso rechaço desta. Se há aqui amor por um homem, este amor zomba de si mesmo e não
sabe até que ponto. "Que homem foi cortejado desta maneira?" Gostaríamos de
perguntar, como Ricardo III. Assim, pois, esta forte resistência corresponde a uma luta
contra a idéia de ser amado e castigado pelo pai.
A resistência se manifesta logo que a idéia em questão vai se aproximando da
consciência, por exemplo, se em lugar de figuras imaginadas se adianta ao primeiro
plano a própria pessoa de alguém em uma clara relação com outro homem. A certa
altura do tratamento psicanalítico, o enfermo, cujas idéias de sacrifícios astecas
mencionamos tantas vezes, resistia com todas suas forças à necessidade de comunicar
certas idéias que acabava de associar durante a psicanálise. Aos meus repetidos
pedidos, manifestou, por último, que preferia que eu o torturasse, ou ainda que o
matasse, antes que revelasse a fantasia que acabava de elaborar. Sem dúvida, tive que
admitir imediatamente que com esta mesma atitude havia deixado transparecer o
conteúdo de seus pensamentos. Em sua fantasia havia comparado o diva em que estava
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O masoquismo e a relação com o
estendido durante a psicanálise com o altar dos sacrifícios. Viu-se como o prisioneiro
colocado ali na qualidade de vitima, e por último me identificou com o calvo sumo
sacerdote que devia levar a cabo a execução. Que luxuosa e supérflua delicadeza de
sentimentos, ocultar uma fantasia tão transparente!
Não cabe aqui abrigar a menor dúvida com relação à existência e influxo da idéia
homossexual passiva no masoquismo, mas, pode-se duvidar, e muito, que tenha uma
importância fundamental. Esta idéia não aparece regularmente e nem sempre se reveste
da mesma significação. Uma das fantasias do enfermo, que acabamos de mencionar,
era a seguinte:rapazesjovens e vigorosos são postos à venda publicamente no mercado
e adquiridos por senhoras de certa idade a quem devem servir sexualmente. Estas
senhoras, necessitadas de amor, pagam somas consideráveis ao Estado por estes
escravos, dos quais só uma pequena quantidade é entregue aos homens. Esta é a
situação geral imaginada e a fantasia propriamente dita começa na resistência de um
novo escravo, que não quer satisfazer sua recente compradora. Se a ereção não é
suficiente para o ato sexual, os jovens são chicoteados pela mulher até que esta obtenha
o resultado desejado.,Neste exemplo se manifestam com toda evidência as inversões
e desfigurações do pensamento básico: as senhoras de certa idade são substitutos da
mãe, a ordem de cumprir o ato sexual, inversões da respectiva proibição. É igualmente
evidente que o castigo estava dirigido primitivamente contra a ereção e não contra o
fracasso em produzi-la. Sem dúvida nenhuma, é a geração dos pais que reage, desde
o fundo, com ameaças de castigo contra os impulsos incestuosos. Até agora nossa
concepção concorda, em geral, com a de quase todos os psicanalistas; mas pensamos
que se oculta, por trás da fachada, a atitude homossexual feminina em relação aos pais.
Esta não se reveste, sem dúvida, de uma importância decisiva.
Com isto nos achamos novamente na questão da valorização psíquica deste fator.
A atitude erótica em relação ao homem tem menos importância que o castigo. Isto
significa que se interpõe a visão ameaçadora do pai, ou seu substituto, dificultando o
desejo pela mulher. Por último, resulta em parte admitida, em parte rechaçada, essa
forma peculiarmente combinada da mulher com atributos masculinos. Em conseqüência, pois, esta figura do pai, apesar de permanecer invisível, penetra na esfera da cena
masoquista, converte-se em uma parte da adivinhação, que deste modo encerra a
pergunta: onde está o homem? O pai que, segundo se supõe, há de amar é menos
importante do que o que há de castigar, castigar pelo desejo proibido e antecipando-se
a sua realização que, paradoxalmente, torna possível este mesmo castigo. O que aflige
ao masoquista não é senão isto: quer que se lhe aplique o castigo "por trás dele mesmo",
como se expressava um perverso que obtinha seu prazer quando o golpeavam no
traseiro. O castigo deve aplicar-se de tal modo que permita alcançar o prazer proibido.
Admitindo isto, designa um lugar secundário, ou historicamente mais recente, à
satisfação do sentimento de culpa inconsciente. O elemento principal não é o castigo,
mas o logro da finalidade pulsional. Só que o castigo é o único caminho que conduz
ali.
A situação psicológica é muito complicada, e simplificá-la eqüivaleria a uma fraude
intelectual. Na confusão que ameaça nos prender nesta situação emaranhada cujos
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O masoquismo e a relação com o feminino
deslocamentos e inversões a tornam tão difícil de compreender, brilha uma luz, como
se nos chegasse de um farol distante para indicar-nos o caminho. É o conteúdo essencial
da fantasia e cena masoquista em que uma mulher golpeia ou mortifica um homem.
Daqui poderia nascer uma espécie de tradução do pensamento inconsciente para a
linguagem da consciência: "Se devo ser golpeado, humilhado, castigado, que seja ao
menos por uma mulher". A idéia do castigo é admitida, mesmo aceita com agrado, mas
sob a condição de que a ponha em prática uma mulher, não um homem. Este permanece
excluído, ao menos, da superfície do pensamento consciente, e sua mera aparição é
suficiente para que desapareça a excitação sexual.
O enfermo tantas vezes mencionado tinha um ciclo de fantasias em que virgens
formosas acariciavam os órgãos genitais de um prisioneiro algemado até que por fim,
contra sua vontade, se produzia a ejaculação. Esta satisfação "apesar de tudo" se
produzia na fantasia "sincronizada" de masturbação. Uma vez surgiu esta idéia no
curso da fantasia: "E se a mão acariciadora fosse de um homem...!" O pensamento foi
tão perturbador que toda a excitação se desvaneceu. O masoquista se aferra à relação
com a mulher, o antigo objeto é conservado. Poderíamos inctasive descobrir que o
antigo fim perseguido não deixa de estar presente, ainda que invertido e em último
plano. Sem dúvida alguma, a mulher que castiga substitui o pai. Assumiu o poder
executivo, mas continua sendo sem dúvida, o verdadeiro objeto dos desejos, objeto
pelo qual se suportam alegremente, inclusive com prazer, tanto sofrimento e humilhação. Não é a dor o objeto perseguido, mas sim a subseqüente satisfação sexual. Por
último, o castigo não só produz uma reação antecipada por uma ação proibida, mas
além disso produz o prazer.
Os masoquistas que põe em prática sua perversão se caracterizam também por uma
atitude similar em relação às mulheres. O masoquista, como ninguém parece ter
reparado até o presente, é hiper-idealista ou ainda um romântico. O sofrimento lhe é
doce não por si mesmo, mas como condição prévia de uma recompensa. Desfruta de
suas dores tal como Don Quixote gozava com suas derrotas... pelo amor de sua dama.
Nas formas mais sublimadas do masoquismo, um ideal abstrato passa a ocupar o lugar
da mulher desejada. Assim São Francisco acolhia alegremente seus sofrimentos, pelo
amor de sua dama: a Pobreza.
Uma engenhosa vienense expressou-se certa vez assim: "Os homens são jovens
enquanto uma mulher pode fazê-los felizes ou desgraçados. Quando só pode fazê-los
felizes é porque alcançaram a idade madura, e se não pode fazê-los nem felizes nem
desgraçados é que chegaram à velhice". Agora bem, deixando de lado a questão da
idade, em que categoria devemos fazer entrar o masoquista? É um homem a que uma
mulher pode fazer feliz só no caso de fazê-lo desgraçado.
Depois de haver considerado, examinado e posto tudo isso na balança, subsiste
ainda uma dúvida. Esta poderia suprimir-se em prol da simplificação e facilidade ou
a fim de que a exposição resulte mais bonita e elegante. Mas a sinceridade mental
constitui o dever, tanto quanto a glória, do investigador psicanalítico. Esta sinceridade
nos obriga a não ceder à tentação de tal trapaça intelectual. A dúvida que permanece
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- O masoquismo e a relação com o feminino
de pé é a seguinte: considerado geneticamente, o extrato mais antigo do masoquismo,
como fantasia e ação, não retorna, depois de tudo, à relação mãe-filho como a uma
realidade histórica? Nos referimos a uma idade em que ainda não se produziu a situação
do Édipo e em que a educação deve cumprir, todavia, tarefas distintas da de dominar
os impulsos incestuosos. Nesta época da infância a mãe é verdadeiramente a autoridade
de poder ilimitado que deve inculcar na criança o asseio, a pontualidade e a obediência,
e o ameaça, por certo, ocasionalmente, com castigos. O masoquismo representaria
assim uma recordação tardia das dificuldades de adaptação a uma realidade que
resultava desagradável à criança. A sucessão de submissão e desafio, de castigo e
satisfação pulsional, seria, pois, um eco das dificuldades, esquecidas, da educação
materna. Nessa época a mãe deve ter sido temida como objeto de quem provinha a
ameaça do castigo e a perda de amor.
Levanta-se diante dos olhos de nossa imaginação uma procissão de deusas mães
cruéis, de culturas antigas: a Kali hindu, com seus braços múltiplos; a Istar babilônica,
deusa da guerra, da caça e da prostituição; a destruidora Astarté dos assírios; a deusa
minóica das serpentes, como igualmente muitas outras, todas personificações do
formoso e do terrível. A atormentadora feminina tem para o masoquista o mesmo
encanto irresistível destes ídolos; é a deusa Astarté dos tempos modernos.
Este é quiçá o lugar adequado para mencionar a extensa sucessão de figuras
femininas místicas de característica crueldade, tais como Salomé, Brunilda, Turandot,
as quais ameaçavam matar ou decapitar o homem, e que são os substitutos da mãe
primária, tal como concebida na fantasia masoquista. A evolução individual poderia,
portanto, ser um reflexo da pré-história humana. A disciplina e severidade do pai,
atuante no fundo da cena masoquista, não representam senão a continuação do poder
pedagógico da mãe, tal como o domínio do pai sucedeu ao matriarcado mais primitivo.
A esfinge, que classificamos como representação plástica de extratos históricos, seria
assim uma figura primitivamente feminina à qual se acrescentaram posteriormente as
partes masculinas. Estará, portanto, certo Heine, ao afirmar: "A figura da verdadeira
esfinge é idêntica â de uma mulher ... e a adição do corpo do leão com garras não é
mais que uma troça".
De nenhum modo contradiria semelhante hipótese o fato de que a cena masoquista
é de origem posterior e sofreu múltiplas desfigurações, pois sempre é possível que as
formações posteriores retomem os moldes antigos. Para empregar uma comparação:
a posição dominante das mulheres na vida social e cultural da América pode interpretar-se, certamente, como resultado de condições históricas. Por exemplo, foi condicionada pelos efeitos do período pioneiro, quando mulheres enérgicas deviam ocupar-se
muitas vezes de obrigações e fainas próprias dos homens. Isto não exclui a possibilidade de que possa constituir, além disso, um retorno parcial à organização social da
sociedade primitiva.
Se esta hipótese fosse certa, se manifestaria no masoquismo alguma hostilidade e
desafio contra as mulheres; como um eco e resíduo de sentimentos parecidos da criança
contra a mulher que desempenhava papel tão predominante nos primeiros anos de sua
Ü T R A FREUDIANA - Ano XI - n* 10/11/12
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O masoquismo e a relação com o feminino
vida. Mas, por outro lado, deixando de lado a questão de se a hipótese é acertada ou
não, reconhecemos no masoquismo traços de ressentimento e mofa contra a mulher.
Sem dúvida, a impressão decisiva é que o secreto desafio, a inconsciente sabotagem,
dirige-se principalmente contra o homem como autoridade interditora.
Esta impressão é confirmada ainda nos mesmo casos em que tornam-se visíveis os
impulsos agressivos e zombeteiros em relação à mulher, pela maneira diferente que se
adota frente a esta e frente ao homem. É como se ameaçar alguém com o indicador e
a outro com o punho.
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LETRA FREUDIANA -Ano XI -n»10/l 1/12
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