O masoquismo e a relação com o feminino* TheodorReik Tradução: Renato Carvalho F reud afirma que o masoquismo tem uma íntima relação com o feminino. Na conduta do masoquista masculino se encontram, certamente, numerosos traços que justificam esta asserção. A passividade na conduta sexual é o fator mais visível: mas há outros ainda mais importantes. As fantasias do gpsoquista giram em torno do tema de ser sexualmente dominado, de ser engravidado. Isto pode parecer grotesco, mas a psicanálise demonstra que a inadequação anatômica desempenha um papel considerável nas fantasias masoquistas. Sem dúvida, há outras características que não confirmam que a relação com o feminino seja tão intensa como supõe Freud. Esta relação de modo algum é tão simples como no homossexual passivo. A passividade pode não ser facilmente separável da sexualidade feminina, mas o fato de experimentar dor, ser golpeado e agrilhoado, ou a vergonha e a humilhação, não formam parte, certamente, das finalidades sexuais da mulher normal. Quando tais idéias aparecem visivelmente na superfície psicológica e se convertem em condições da satisfação sexual, deve chamar-se masoquista à mulher em questão. Ainda que se incline a supor que estas características estão incluídas, de algum modo, no quadro da sexualidade feminina normal, em nenhum caso dominam a cena, como ocorre nos indivíduos masoquistas. E tampouco se coaduna com a conduta feminina habitual a preferência da zona anal como centro erógeno. Dito de outro modo: o masoquismo, olhado de certo ângulo, pode ser a expressão de uma inclinação feminina no homem, mas a conduta feminina em si não constitui, certamente, a expressão de sentimentos masoquistas. Outra vez experimentamos aqui, como tão freqüentemente ocorre na observação dos fenômenos do masoquismo, uma sensação de absurdo. O masoquista que desempenha o papel feminino em suas fantasias e cenas, parece ao mesmo tempo zombar de si próprio com a deformada apresentação de suas características. O que mostra é menos um quadro da feminilidade do que uma paródia ou caricatura. Esta mofa é freqüente nos adolescentes, que a empregam conscientemente. Um enfermo recordava uma atitude similar de quando era menino. O que ele gostava especialmente era de • 156 El masoquismo en ei hombre moderno. Editorial Nova, Buenos Aires, 1949, cap. XV. LETRA FREUDIANA-Ano XI-n a 10fl 1/12 O masoquismo e a relação com o feminino pronunciar certas palavras, acompanhando-as de gestos e movimentos particulares do corpo. Dizia esta frase romântica: "Este querido menino, tão impetuoso!" Mais tarde o enfermo descobriu, por si própio, a origem desta exclamação. Provinha de um dos livros de uma irmã adolescente. Neste livro as palavras eram pronunciadas por uma menina que pensava ternamente em um homem ausente. Ao fazer a exclamação virava-se para outro lado, tímida e ruborizada. O menino havia lido esta passagem do livr€f e mais tarde reproduzia a cena diante de um espelho, repetindo a frase em voz alta e acompanhando-a de gestos expressivos. Imaginava o esvoaçar da saia da menina ao virar-se recatadunente. Eis aqui, pois, mna nova cena frente ao espelho: Poderíamos afirmar justificadamente que o menino, que mais tarde se converteu em masoquista, revelava uma tendência feminina em sua atitude zombeteira? Certamente não. Nos atrevemos a conjeturar o motivo original deste jogo. O menino deve ter desejado que uma jovem formosa se comportasse deste modo ao pensar nele. Reconhecemos assim uma fantasia encenada em uma representação de dois papéis. Só mais tarde, depois que algo mudou na sua relação com as meninas, a cena adquiriu o matiz de farsa. A fantasia, que revelava primitivamente alguns dos desejos do menino, transformou-se logo em expressão de impulsos zombeteiros contra as meninas da idade da sua irmã. Sua timidez para aproximar-se do outro sexo torna explicável que, finalmente, adote a atitude da raposa da fábula -que recusa as uvas que não pode alcançar por serem ácidas demais. A conduta do masoquista reflete traços femininos, mas não sem desvirtuá-los; o feminino não é tanto representado quanto é desfigurado; não é tanto caracterizado quanto é deformado. A interpretação do significado original, secreto, da cena diante do espelho trouxenos algo mais acerca do elemento feminino do masoquismo, embora não o suficiente. Talvez ajude-nos aqui uma comparação: em certa oportunidade tive ocasião de observar um professor de dança rechonchudo, vivaz e calvo, enquanto dava lições a algumas senhorítas jovens. Depois de ensinar a suas discípulas os passos e figuras dá nova dança, tratava de dançar com cada uma delas. Naturalmente, as conduzia. Mas ocasionalmente, quando uma das moças se mostrava demasiado desajeitada, adotava o papel feminino para servir-lhe de modelo. Portanto, imitava intencionalmente o porte, passo e atitude que devia ter a companheira de dança. Era um espetáculo bastante pitoresco, por certo, ver o corpulento e atarracado professor de dança retroceder uns passos, alçar com delicadeza as abas de seu paletó como se fossem a cauda de um traje de noite, e avançar logo com passos miúdos em direção à sua companheira. O homem estava tremendamente sério; evidentemente sentia-se fatigado, mas procurava manter fixo no rosto o sorriso estereotipado de seu papel, e levava a cabo seu trabalho, literalmente, com o suor de sua fronte. Como se explica que esta forçada representação produzisse uma impressão muito singular sobre a maior parte dos espectadores? Em grande parte pelo contraste de sua figura com a de uma mulher, mas depois de algumas repetições da mesma cena as pessoas tornaLETRA FREUDIANA - Ano XI - nB 10/11/12 157 O masoquismo e a relação com o feminino vam-se sérias, inclusive tristes. Resultava óbvio que só por necessidade o homem representava papel tão tragicômico. O processo da fantasia masoquista deve ser aproximadamente o contrário: a cena surge da necessidade sexual. É primitivamente séria e leva todos os signos da frustração e da derrota, e só mais tarde adquire a nota de farsa e de paródia. A cena do rapaz diante do espelho e a atitude do professor de dança têm um fator comum que os faz comparáveis às fantasias e cenas masoquistas: a meta original que com ela se persJfue. A natureza da representação é determinada pelo inequívoco desejo de que o objeto feminino imite essas ações. O jovem da cena que comentamos angia que uma jovem confesse ruborizada seu carinho por ele, e o professor de dança quer que as discípulas imitem suas posturas e passos. Para expressarmos de forma mais direta: o masoquista se conduz de um modo feminino ao indicar à mulher a atitude em que deseja vê-la; o que faz tem o caráter de uma representação; é uma espécie de cena. Esta cena parece algo assim como uma paródia para os que a observam de fora. Digo "parece" porque nenhum psicanalista ou psicólogo examinou, até agora, este elemento de paródia. O que ocorre na verdade é que um homem reproduz a conduta sexual de uma mulher, não obstante, o ponto principal, tanto na fantasia como na situação perversa, é que o homem atua para ela, pois em geral há uma mulher que presencia sua representação. Faz-se uma troca de papéis. Se a situaçãoutem efetivamente um sentido oculto em relação à mulher, este só pode consistir em oferecer uma representação que traduza o seguinte pensamento: o que me fazes quero fazer a ti; ou bem: quisera ver-te neste papel passivo e de sofrimento. Pelo que sei, este sentido da cena e fantasia masoquista não foi compreendido até agora. Concorda plenamente com os processos descritos acima, de inversão e demonstração, mas seu significado vai muito além. A fantasia e prática masoquista é de índole sádica, embora este sadismo se expresse por inversão, se represente pela situação oposta. Creio haver demonstrado suficientemente este ponto no que se refere ao masoquismo sexual. Sem dúvida, mesmo onde o masoquismo deixa de ser um fenômeno definitivamente sexual e adota, ao contrário, um caráter social, sua natureza permanece em essência a mesma. A suposição de que o masoquismo mostra só a fachada, que não é mais do que uma aparência, seria errônea. Constitui, principalmente, a reflexão de um processo que no interior se verifica em direção contrária. Empregando uma expressão de Goethe, denominei a este procedimento, em outro livro*, uma "reflexão recorrente". Contem* 158 Surprise and lhepsychoanalist (Londres e Nova York, 1937). Goethe tomou esta designação da origem dos entóptioos. O poeta escreveu acerca de algumas passagens críticas do seu Fausto: "Posto que temos tantas experiências que não podemos expressar e comunicar simplesmente, adotei o método de revelar seu sentido oculto aos leitores atentos por meio de imagens confrontadas e que estão, por assim dizer, refletidas uma na outra". É evidente que este método de elucidação recíproca deve ser convenientemente modificado para sua aplicação no campo da psicologia. LETRA FREUDIANA - Ano XI - n» HV11/12 O masoquistno e a relação com o feminino plando os fenômenos do masoquismo social desde este ângulo, comprova-se também aqui a apresentação das tendências primárias através de inversões. A ilimitada submissão expressa uma rebeldia inconsciente; a renúncia, a obstinação, o servilismo, o desafio, a auto-humilhação e a ignorância. Mas, como nasce este caráter inconsciente burlão ou de paródia que, secreta, embora distintamente, adota a fantasia ou prática masoquista? Este caráter se origina em drffersas fontes. Aqui quero limitar-me a assinalar o aspecto histórico, que se revela ao observador psicanalítico simplesmente observando os fenômenos durante o tempo suficiente e com baftpnte atenção. Este aspecto não o explica todo, mas esclarece um bom número de traços grotescos e burlões de algumas práticas e idéias masoquistas. Estas cenas e fantasias não são somente inversões dè idéias sádicas, mas também uma reanimação e reprodução das figuras infantis em relação às atividades sexuais dos adultos. Retorna inconscientemente às idéias infantis sobre o curso da relação sexual. A grotesca mescla de verdade e erro destas teorias sexuais infantis reaparece aqui na teoria e na prática. O caráter infantil, a que se apega inconscientemente o homem adulto, se traduz m i A vezes em alguns detalhes destas fantasias e ações. Exemplo disto é a parte importante que desempenham neles os excrementos e a urina, assim como a falta de vergonha ou de asco que só aparecem tardiamente na criança, como conseqüência da educação. Assim, o elemento da paródia se origina em idéias infantis já esquecidas há muito tempo, como por exemplo a de que a mulher é tratada com crueldade pelo homem, que este urina ou defeca sobre ela, etc. Em todas estas idéias, invertidas como aparecem na prática masoquista, existe a vibração de uma nota agressiva e violenta. A mulher aparece como um ser dominado, sofredor, submetido à vontade do homem. Quero provar esta suposição com um só exemplo significativo que trago à memória do leitor. Referi-me a ele ao descrever o masoquismo feminino na discussão da teoria de Freud. Trata-se do enfermo cuja satisfação sexual consistia em colocar-se em certa posição vestindo, para a execução desta cena, um par de calças negras. Discuti previamente a origem psíquica de suas condições específicas para o prazer, ou seja a inversão de uma cena infantil. O menino havia irrompido no banheiro de sua mãe no momento em que esta, com as pernas cobertas de lama, se inclinava para levantar algo do solo. À vista das nádegas de sua mãe, o menino sentiu um impulso de dar-lhe uma palmada. Isto eqüivaleria a uma ação sádica, manifestação de um precoce impulso agressivo e sensual. Além disso, o menino se identificava assim com seu pai, que costumava fazer a mesma carícia em sua mãe ou na criada. Nos encontramos, pois, diante de uma atitude definidamente masculina no mesmo menino que mais tarde, na cena masoquista, adota outra inteiramente passiva e feminina. Nesta cena desempenha o papel feminino, e em lugar de bater faz com que batam nele. Mas estaria já esclarecido o significado da cena perversa? Não, é preciso aprofundar algo mais. O que faz o enfermo é desempenhar o papel que, segundo seus desejos e idéias, a mulher deveria representar. Ele o representa em lugar dela. É aqui que devemos buscar a conexão como feminino, e a inversão nos resulta compreensível. LETRA FREUDIANA - Ano XI - a» 10/11/12 159 O masoquismo e a relação com o feminino O caráter primitivo da representação é um convite à dança. Por outro lado, a origem infantil da idéia masoquista não pode ser posta em dúvida. É este o papel que a mulher anseia para si mesma? A resposta é um decisivo "não..." seguido, sem dúvida, por estranho que isso pareça, de um tímido "sim". Quer dizer: segundo as reações que o menino podia observar nas mulheres de sua casa, e era permitido supor que as mulheres, em geral, não se opunham de todo a semelhante tratamento. E se é que se opunham, sua resistência, muitas vezes, não era de kxttséria e era acompanhada de risinhos ou de riso franco. Mas ainda que se admita que este tipo de carícias não seja muito desagradável para as mulheres^ indiscutível que a imaginação do menino exagerava demasiadamente as coisas. Tomava uma introdução pela ação completa. Em sua fantasia a pancada era o elemento essencial e verdadeiramente prazeiroso do misterioso procedimento sexual dos adultos. Mais tarde, depois de haver-se tornado masoquista, o mesmo golpe, aplicado em circunstâncias especiais, bastava para provocar o orgasmo. O erro está em supor que a mulher tira prazer dessa pancada, e que este prazer é suficiente para produzir satisfação plena. Esta crença era res^fcdo das concepções infantis sádicas e antes concordava com os próprios desejos violentos do menino do que com os da mulher. A forma feminina de satisfação sexual não coincidia com o fato de apanhar, embora possa existir alguns pontos de contato entre ambos. A origem sádica desta cena ficou demonstrada plenamente durante a psicanálise, quando foi substituída, mais adiante, por outra cruamente sádica. A inversão desapareceu. Quando o enfermo agora percorria as ruas em passeios noturnos, imaginava-se como um assassino sexual, à espreita de suas vítimas femininas. Quando saía para passear com uma garota, sentia às vezes o impulso de converter um movimento de carinho em outro brutalmente ofensivo. Quando lhe rodeava o pescoço com os braços, perguntava-se se em realidade não queria estrangulá-la. O masoquista abriga secreta e inconscientemente a idéia de que a mulher consideraria agradável o tratamento a que ele se submete; que inclusive o angustia. O pouco de verdade que jaz no fundo desta idéia é tremenda e grotescamente exagerado. As mulheres não desejam ser castigadas, insultadas, atormentadas ou flageladas, mas sim querem ser amadas. Podem apreciar um pouco de audácia no momento apropriado e que não se tome muito a sério sua resistência; o que seria uma prova de energia masculina e do desejo do homem de possuí-la. Sem dúvida, a quantidade aceitável de rudeza masculina tem seus limites. O erro psicológico do masoquista, se pudéssemos chamá-lo assim, consiste em crer que a satisfação sexual feminina implica um disfarce do sofrimento e da vergonha. Recordemos o enfermo que experimentava excitação sexual à vista de figuras medievais de mártires e se identificava com elas em suas fantasias. Pensava que certa figura de São Lourenço torturado não era "convincente", porque o rosto do santo tinha uma expressão tranqüila, suave, em lugar de um gesto estático em que a dor se mesclasse com o mais intenso prazer. Se o masoquismo, como sustenta Freud, é a expressão do feminino, é certamente uma expressão deformada e caricatural. Como tal, tem sem 160 LETRA FREUDIANA-Ano X ] - n s 10/11/12 O masoquismo e a relação com o feminino dúvida o significado de uma representação: "isto é o que eu gostaria de fazer a uma mulher, e ela se comportaria então de tal e qual modo". É uma representação plástica de um desejo invertido. Qual é este desejo original? O que traduz esta frase: trate-as com dureza e faça com que elas gostem. Não quero senão indicar aqui que a fase de evolução intermediária, durante a qual o indivíduo desempenha desta maneira inconsciente os dois papéis, é seguida pelo masó^uismo pleno e franco. A fantasia inconsciente reveste tal importância para esta satisfação instintiva que a realidade como tal é insuficiente, se não se apoia nela. E bem, na fantasia o masoquista não abandona seu caráter masculino, apesar de sua conduta aparentemente feminina. Outro traço corrente nestas cenas: o masoquista se imaginando como um animal, submetido à vontade de sua dona, favorece também esta opinião. Muitas vezes imagina que é um cavalo de raça cavalgado por uma mulher. Os admiradores de Goethe recordarão o poema "O parque de Lily", onde o poeta se compara a um urso que é golpeado por sua amada e que se inclina diante dela, "até certo ponto, naturalmente". O poema conclui com o rogo aos deuses de que o liberem desta escuridão, seguido destas palavras: "sem dúvida, oxalá não me enviareis nenhuma ajuda; não de todo em vão posso todavia estirar meus ombros! Sinto, juro, que no entanto possuo alguma força". Em minha opinião, o contraste entre o poder e o fervor masculino de que o masoquista conserva consciência, e sua manifesta submissão e debilidade, contraste exagerado na fantasia, contribui consideravelmente para o seu prazer. A inconsciente relação com o homem, dissimulada na cena com a figura da mulher, que aparece em primeiro plano, deve ser considerada como outra expressão de feminilidade. Em um caso citado anteriormente era a idéia do homem, que ameaçava tornar-se consciente, à vista do manto de pele que pôs fim à perversão. Sempre que se mantenha recalcada, a fantasia constitui uma das condições importantes da satisfação masoquista. A pele, conhecida como atributo da cena perversa desde Sacher-Masoch, as botas altas, o látego ou vara, todos estes são atributos reveladores. Na realidade, só são emprestados à mulher, pois pertencem ao equipamento do homem sádico, que permanece no fundo durante o curso da cena perversa. Desde este ponto de vista há uma transmutação da fantasia sexual passiva: "sou utilizado e espancado por meu pai". Esta transferência, comparável a uma transposição de uma escala maior a outra menor, fica excluída da consciência. Só se aceita esta idéia quando está suficientemente desfigurada e desligada da própria pessoa, de maneira que é impossível compreender seu verdadeiro significado. Um masoquista pensa, por exemplo, que as gravuras em que aparecem as alunas de um colégio de meninas no momento de serem espancadas por uma professora, nas nádegas desnudas, são extraordinariamente excitantes. Isto constitui uma transferência ao sexo oposto. A fantasia primária foi invertida, se lhe fez fazer uma rotação de 180 graus. O enfermo só aceita a uma mulher como pessoa ativa, e rechaçaria qualquer fantasia em que o castigo fosse levado a cabo por um homem. LETRA FREUDIANA - A n o XI -n» 10/11/12 161 Q masoquismo e a relação com o feminino Mas porque e como aparece o homem na cena masoquista? O que significa esta aparição, ainda que permaneça no fundo e na obscuridade? Adotemos por um momento o ponto de vista psicanalítico. O conteúdo da fantasia original era o seguinte: "sou amado e castigado por meu pai". Depois começamos a perguntar-nos por que razão nem o carinho, nem o amor do pai ou seu substituto feminino aparecem na cena do castigo, onde só se revelam sua severidade e crueldade. A resposta é a seguinte: tanto na cena quanto na fantasia, o erotismo homossexual coincide com a satisfação dos sentimentos inconscientes de culpa. Com quê estão ligados estes sentimentos de culpa? Com os desejos incestuosos do menino, que reconhece como proibidos, e com os impulsos hostis que nascem da rivalidade com o outro homem, ou seja, primitivamente o pai. A cena masoquista seria assim a reação contra o castigo e a expiação dos impulsos instintivos da situação do Édipo. De modo que a fórmula "sou amado e castigado por meu pai" agregaria outra quase reversão, seria um substituto tardiamente transformado de uma fantasia mais antiga: "Quero possuir a mulher e matar o rival". A ordem de sucessão das mudanças é uma ordem histórica, correspondente a diferentes extratos psicológicos. Esta interpretação da conduta feminina do masoquista como resultado de uma atitude carinhosa passiva em relação ao pai é respaldada por Freud e seus discípulos. Seu fundamento psicológico é inquestionável; mas existe também outro problema: o da valorização psíquica das diferentes motivações. É aqui, precisamente, onde me separo dos demais psicanalistas e começo a caminhar por trilhas diferentes. O fator da secreta inclinação homossexual me parece menos importante do que o sentimento de culpa mesclado à satisfação. Para expressá-lo de outro modo: o castigo conseguido mediante a precipitação do desenlace, e que alivia o masoquista de sua ansiedade, é mais fundamental para ele do que o fato de ser amado. Não é tanto o carinho quanto a ansiedade que faz que o homem se ofereça inconscientemente como objeto homossexual. A idéia grotesca "quero ser amado pelo meu pai como uma mulher" não expressa unicamente uma disposição feminina, mas também o desdenhoso rechaço desta. Se há aqui amor por um homem, este amor zomba de si mesmo e não sabe até que ponto. "Que homem foi cortejado desta maneira?" Gostaríamos de perguntar, como Ricardo III. Assim, pois, esta forte resistência corresponde a uma luta contra a idéia de ser amado e castigado pelo pai. A resistência se manifesta logo que a idéia em questão vai se aproximando da consciência, por exemplo, se em lugar de figuras imaginadas se adianta ao primeiro plano a própria pessoa de alguém em uma clara relação com outro homem. A certa altura do tratamento psicanalítico, o enfermo, cujas idéias de sacrifícios astecas mencionamos tantas vezes, resistia com todas suas forças à necessidade de comunicar certas idéias que acabava de associar durante a psicanálise. Aos meus repetidos pedidos, manifestou, por último, que preferia que eu o torturasse, ou ainda que o matasse, antes que revelasse a fantasia que acabava de elaborar. Sem dúvida, tive que admitir imediatamente que com esta mesma atitude havia deixado transparecer o conteúdo de seus pensamentos. Em sua fantasia havia comparado o diva em que estava 162 LETRA FREUDIANA-Ano XI-n 9 10/11/12 O masoquismo e a relação com o estendido durante a psicanálise com o altar dos sacrifícios. Viu-se como o prisioneiro colocado ali na qualidade de vitima, e por último me identificou com o calvo sumo sacerdote que devia levar a cabo a execução. Que luxuosa e supérflua delicadeza de sentimentos, ocultar uma fantasia tão transparente! Não cabe aqui abrigar a menor dúvida com relação à existência e influxo da idéia homossexual passiva no masoquismo, mas, pode-se duvidar, e muito, que tenha uma importância fundamental. Esta idéia não aparece regularmente e nem sempre se reveste da mesma significação. Uma das fantasias do enfermo, que acabamos de mencionar, era a seguinte:rapazesjovens e vigorosos são postos à venda publicamente no mercado e adquiridos por senhoras de certa idade a quem devem servir sexualmente. Estas senhoras, necessitadas de amor, pagam somas consideráveis ao Estado por estes escravos, dos quais só uma pequena quantidade é entregue aos homens. Esta é a situação geral imaginada e a fantasia propriamente dita começa na resistência de um novo escravo, que não quer satisfazer sua recente compradora. Se a ereção não é suficiente para o ato sexual, os jovens são chicoteados pela mulher até que esta obtenha o resultado desejado.,Neste exemplo se manifestam com toda evidência as inversões e desfigurações do pensamento básico: as senhoras de certa idade são substitutos da mãe, a ordem de cumprir o ato sexual, inversões da respectiva proibição. É igualmente evidente que o castigo estava dirigido primitivamente contra a ereção e não contra o fracasso em produzi-la. Sem dúvida nenhuma, é a geração dos pais que reage, desde o fundo, com ameaças de castigo contra os impulsos incestuosos. Até agora nossa concepção concorda, em geral, com a de quase todos os psicanalistas; mas pensamos que se oculta, por trás da fachada, a atitude homossexual feminina em relação aos pais. Esta não se reveste, sem dúvida, de uma importância decisiva. Com isto nos achamos novamente na questão da valorização psíquica deste fator. A atitude erótica em relação ao homem tem menos importância que o castigo. Isto significa que se interpõe a visão ameaçadora do pai, ou seu substituto, dificultando o desejo pela mulher. Por último, resulta em parte admitida, em parte rechaçada, essa forma peculiarmente combinada da mulher com atributos masculinos. Em conseqüência, pois, esta figura do pai, apesar de permanecer invisível, penetra na esfera da cena masoquista, converte-se em uma parte da adivinhação, que deste modo encerra a pergunta: onde está o homem? O pai que, segundo se supõe, há de amar é menos importante do que o que há de castigar, castigar pelo desejo proibido e antecipando-se a sua realização que, paradoxalmente, torna possível este mesmo castigo. O que aflige ao masoquista não é senão isto: quer que se lhe aplique o castigo "por trás dele mesmo", como se expressava um perverso que obtinha seu prazer quando o golpeavam no traseiro. O castigo deve aplicar-se de tal modo que permita alcançar o prazer proibido. Admitindo isto, designa um lugar secundário, ou historicamente mais recente, à satisfação do sentimento de culpa inconsciente. O elemento principal não é o castigo, mas o logro da finalidade pulsional. Só que o castigo é o único caminho que conduz ali. A situação psicológica é muito complicada, e simplificá-la eqüivaleria a uma fraude intelectual. Na confusão que ameaça nos prender nesta situação emaranhada cujos LETRA FREUDIANA -Ano XI - a s 10/11/12 163 O masoquismo e a relação com o feminino deslocamentos e inversões a tornam tão difícil de compreender, brilha uma luz, como se nos chegasse de um farol distante para indicar-nos o caminho. É o conteúdo essencial da fantasia e cena masoquista em que uma mulher golpeia ou mortifica um homem. Daqui poderia nascer uma espécie de tradução do pensamento inconsciente para a linguagem da consciência: "Se devo ser golpeado, humilhado, castigado, que seja ao menos por uma mulher". A idéia do castigo é admitida, mesmo aceita com agrado, mas sob a condição de que a ponha em prática uma mulher, não um homem. Este permanece excluído, ao menos, da superfície do pensamento consciente, e sua mera aparição é suficiente para que desapareça a excitação sexual. O enfermo tantas vezes mencionado tinha um ciclo de fantasias em que virgens formosas acariciavam os órgãos genitais de um prisioneiro algemado até que por fim, contra sua vontade, se produzia a ejaculação. Esta satisfação "apesar de tudo" se produzia na fantasia "sincronizada" de masturbação. Uma vez surgiu esta idéia no curso da fantasia: "E se a mão acariciadora fosse de um homem...!" O pensamento foi tão perturbador que toda a excitação se desvaneceu. O masoquista se aferra à relação com a mulher, o antigo objeto é conservado. Poderíamos inctasive descobrir que o antigo fim perseguido não deixa de estar presente, ainda que invertido e em último plano. Sem dúvida alguma, a mulher que castiga substitui o pai. Assumiu o poder executivo, mas continua sendo sem dúvida, o verdadeiro objeto dos desejos, objeto pelo qual se suportam alegremente, inclusive com prazer, tanto sofrimento e humilhação. Não é a dor o objeto perseguido, mas sim a subseqüente satisfação sexual. Por último, o castigo não só produz uma reação antecipada por uma ação proibida, mas além disso produz o prazer. Os masoquistas que põe em prática sua perversão se caracterizam também por uma atitude similar em relação às mulheres. O masoquista, como ninguém parece ter reparado até o presente, é hiper-idealista ou ainda um romântico. O sofrimento lhe é doce não por si mesmo, mas como condição prévia de uma recompensa. Desfruta de suas dores tal como Don Quixote gozava com suas derrotas... pelo amor de sua dama. Nas formas mais sublimadas do masoquismo, um ideal abstrato passa a ocupar o lugar da mulher desejada. Assim São Francisco acolhia alegremente seus sofrimentos, pelo amor de sua dama: a Pobreza. Uma engenhosa vienense expressou-se certa vez assim: "Os homens são jovens enquanto uma mulher pode fazê-los felizes ou desgraçados. Quando só pode fazê-los felizes é porque alcançaram a idade madura, e se não pode fazê-los nem felizes nem desgraçados é que chegaram à velhice". Agora bem, deixando de lado a questão da idade, em que categoria devemos fazer entrar o masoquista? É um homem a que uma mulher pode fazer feliz só no caso de fazê-lo desgraçado. Depois de haver considerado, examinado e posto tudo isso na balança, subsiste ainda uma dúvida. Esta poderia suprimir-se em prol da simplificação e facilidade ou a fim de que a exposição resulte mais bonita e elegante. Mas a sinceridade mental constitui o dever, tanto quanto a glória, do investigador psicanalítico. Esta sinceridade nos obriga a não ceder à tentação de tal trapaça intelectual. A dúvida que permanece 164 LETRA FREUDIANA - Ano XI - n810/11/12 - O masoquismo e a relação com o feminino de pé é a seguinte: considerado geneticamente, o extrato mais antigo do masoquismo, como fantasia e ação, não retorna, depois de tudo, à relação mãe-filho como a uma realidade histórica? Nos referimos a uma idade em que ainda não se produziu a situação do Édipo e em que a educação deve cumprir, todavia, tarefas distintas da de dominar os impulsos incestuosos. Nesta época da infância a mãe é verdadeiramente a autoridade de poder ilimitado que deve inculcar na criança o asseio, a pontualidade e a obediência, e o ameaça, por certo, ocasionalmente, com castigos. O masoquismo representaria assim uma recordação tardia das dificuldades de adaptação a uma realidade que resultava desagradável à criança. A sucessão de submissão e desafio, de castigo e satisfação pulsional, seria, pois, um eco das dificuldades, esquecidas, da educação materna. Nessa época a mãe deve ter sido temida como objeto de quem provinha a ameaça do castigo e a perda de amor. Levanta-se diante dos olhos de nossa imaginação uma procissão de deusas mães cruéis, de culturas antigas: a Kali hindu, com seus braços múltiplos; a Istar babilônica, deusa da guerra, da caça e da prostituição; a destruidora Astarté dos assírios; a deusa minóica das serpentes, como igualmente muitas outras, todas personificações do formoso e do terrível. A atormentadora feminina tem para o masoquista o mesmo encanto irresistível destes ídolos; é a deusa Astarté dos tempos modernos. Este é quiçá o lugar adequado para mencionar a extensa sucessão de figuras femininas místicas de característica crueldade, tais como Salomé, Brunilda, Turandot, as quais ameaçavam matar ou decapitar o homem, e que são os substitutos da mãe primária, tal como concebida na fantasia masoquista. A evolução individual poderia, portanto, ser um reflexo da pré-história humana. A disciplina e severidade do pai, atuante no fundo da cena masoquista, não representam senão a continuação do poder pedagógico da mãe, tal como o domínio do pai sucedeu ao matriarcado mais primitivo. A esfinge, que classificamos como representação plástica de extratos históricos, seria assim uma figura primitivamente feminina à qual se acrescentaram posteriormente as partes masculinas. Estará, portanto, certo Heine, ao afirmar: "A figura da verdadeira esfinge é idêntica â de uma mulher ... e a adição do corpo do leão com garras não é mais que uma troça". De nenhum modo contradiria semelhante hipótese o fato de que a cena masoquista é de origem posterior e sofreu múltiplas desfigurações, pois sempre é possível que as formações posteriores retomem os moldes antigos. Para empregar uma comparação: a posição dominante das mulheres na vida social e cultural da América pode interpretar-se, certamente, como resultado de condições históricas. Por exemplo, foi condicionada pelos efeitos do período pioneiro, quando mulheres enérgicas deviam ocupar-se muitas vezes de obrigações e fainas próprias dos homens. Isto não exclui a possibilidade de que possa constituir, além disso, um retorno parcial à organização social da sociedade primitiva. Se esta hipótese fosse certa, se manifestaria no masoquismo alguma hostilidade e desafio contra as mulheres; como um eco e resíduo de sentimentos parecidos da criança contra a mulher que desempenhava papel tão predominante nos primeiros anos de sua Ü T R A FREUDIANA - Ano XI - n* 10/11/12 165 O masoquismo e a relação com o feminino vida. Mas, por outro lado, deixando de lado a questão de se a hipótese é acertada ou não, reconhecemos no masoquismo traços de ressentimento e mofa contra a mulher. Sem dúvida, a impressão decisiva é que o secreto desafio, a inconsciente sabotagem, dirige-se principalmente contra o homem como autoridade interditora. Esta impressão é confirmada ainda nos mesmo casos em que tornam-se visíveis os impulsos agressivos e zombeteiros em relação à mulher, pela maneira diferente que se adota frente a esta e frente ao homem. É como se ameaçar alguém com o indicador e a outro com o punho. 166 LETRA FREUDIANA -Ano XI -n»10/l 1/12