Masoquismo feminino & um
para além da lógica fálica
Ângela Batista
Ne lisa Pinheiro
que pensar do masoquismo feminino como uma questão central presente nos
textos pós-freudianos de algumas autoras que o identificavam como masoquismo da mulher?
Será a partir do texto freudiano e nos equívocos de sua interpretação que se situará
a produção da noção de masoquismo feminino nestas autoras. Dirá Lacan, depois, que,
além dos equívocos da interpretação, deveria haver uma razão intrínseca à estrutura
do gozo para que esta noção fosse mantida, tal como um véu, que encobre e sugere
uma outra lógica do gozo, que não a fálica
Nos perguntamos que motivos mantém esta mesma noção, até hoje, referida à
mulher, como se a mulher fosse estruturalmente masoquista ou como se não lhe
restasse outro destino enquanto mulher, se não o de torna-se masoquista.
O
Masoquismo feminino em Freud
Retomando o artigo "O problema econômico do masoquismo"1; encontramos aí a
descrição mais completa que Freud nos dá do masoquismo. Postula o masoquismo
primário ou erógeno, de onde são derivados os dois outros: masoquismo feminino e
masoquismo moral. É onde apresenta o masoquismo sobre três formas -como moção
imposta à excitação sexual, como expressão do ser da mulher, e como norma de
comportamento na existência (behavior).
Restringe suas observações relativas ao masoquismo feminino aos homens, por ser
esse o material de que dispõe quanto ao conteúdo manifesto das fantasias em questão:
ser amordaçado, amarrado, espancado, sujado e aviltado2. O masoquista deseja ser
tratado como uma criança pequena, desamparada, e mais particularmente como uma
criança travessa; o que vai indicar uma posição caracteristicamente feminina significando ser castrado ou ser copulado ou dar à luz a um bebê. Ainda no texto, aponta3
para uma equivalência entre o infantil e o feminino.
No artigo sobre "Sexualidade feminina"4, Freud se refere ao masculino e ao
feminino como conceitos que descrevem modos de expressão da libido. Há uma única
libido, e o que vai importar é o destino da pulsão.
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Cita aí algumas analistas mulheres, tais como Jeanne Lampl de Groot e Helen
Deutsch, comtftendo sido capazes de perceber mais facilmente a expressão desse tipo
de masoquismo, ao lidarem com pacientes mulheres que se achavam em tratamento
com elas e que sustentavam, pela transferência, uma substituta materna adequada5.
Masoquismo da mulher e um equívoco na psicanálise
Situaremos nos textos pós-freudianos a contribuição de algumas analistas mulheres,
com o objetivo de sublinhar os equívocos relativos à compreensão da fantasia masoquista. Vejamos:
Em Marie Bonaparte, observa-se todo um imaginário corporal marcado pela
anatomia fantástica que não ultrapassa a biologia. O corpo aparentemente orgânico
recusa o simbólico. O real tinha de se inscrever, assim como os dois gozos da mulher,
tinham de ser conseguidos e demonstrados.
Durante sua análise com Freud, teria tocado a questão da construção da cena
primária sádica, como a que encontramos em seu artigo "Passividade, masoquismo e
feminilidade", que comentaremos a seguir. Foi um trabalho lido no 139 Congresso de
Psicanálise em Lucerna (1934). Tal cena primária aparece aí como central na determinação de uma posição masoquista, que contracenaria com a posição sádica, e seria
igualada à posição de ser agressivamente penetrada. Dessa vertente masoquista da cena
primária, sairia o erotismo feminino e a possibilidade ou não de erotização da vagina,
e de transformação do masoquismo em passividade. Sendo o pênis associado à
destrutividade, deveria haver uma dissociação do coito como prazeroso, em relação às
outras funções desprazerosas das mulheres: defloramento, menstruação, gravidez e
parto.
Toma o masoquismo feminino no sentido da dor da mulher. Coloca-se ao lado de
Helen Deutsch quanto ao masoquismo constante no desenvolvimento da mulher, para
quem a sexualidade se associaria a uma dose de dor.
Haveria um instinto biológico de auto-conservação responsável pela reação da
mulher à penetração; uma bissexualidade biológica correspondente às duas zonas
erógenas (clitóris e vagina) e um complexo biológico de castração, associado a uma
humilhação narcísica6.
Em 1953, como trabalho "Sexualidade feminina"; esboça uma teoria biológica da
bissexualidade - há aí um capítulo sobre masoquismo feminino, marcado pela discordância em relação à Helen Deutsch, quanto ao caráter primordial da bissexualidade no
erotismo da mulher.
Um Édipo positivo, passivo e masoquista, pode gerar a recusa através do protesto
masculino, ou a frigidez numa aceitação temerosa, ou a negação de qualquer sexualidade.
Em Helen Deutsch, a colocação da constituição da mulher como passiva e masoquista contraria a posição freudiana. A teoria pulsional indica que a pulsão é, por
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natureza ativa, e os conceitos de masculino e feminino não podem fazer referência a
um ou a outro sexo. Aqui parece importante sublinhar o equívoco quanto ao que foi
denominado de masoquismo feminino. Para HeJen Deutsch, a anatomia é o destino
desde o início, contradizendo a posição subjetiva do masoquista na fantasia como uma
posição de feminilidade. Ao condenar a mulher como masoquista na sua constituição,
equivoca-se quanto à posição subjetiva, que não é determinada unicamente pelo sexo
biológico.
Assim é que o sujeito, na posição masoquista, manifesta algo da ordem da posição
feminina e não um embricamento da dor no prazer. Será no cenário perverso do
masoquismo que Freud vai situar uma expressão do ser da mulher. Em "Bate-se numa
criança", é a fantasia perversa que está em questão.
Resumindo, para se levar em conta os caminhos da sexualidade feminina, segundo
Helen Deutsch7, deve-se conjugar passividade, inibição e masoquismo, desde os laços
com o primeiro objeto de amor até a maternidade.
Convém sinalizar, como apontamos no início, que o equívoco se mantém presente
na compreensão de toda uma linha de pensamento psicanalítico pós-freudiana. A
confusão parece residir no ponto manifesto das atitudes femininas, referidas à sua
incompletude constitucional, desprezando o conteúdo da fantasia fundamental. As
mulheres não são masoquistas, mas o masoquista arremeda, na posição de objeto de
gozo do Outro, a suposição de um gozo feminino.
Em Jeanne Lampl de Groot8, a fantasia masoquista é enunciada a partir da
percepção da diferença sexual, que se dá juntamente com o período masturbatório. A
frase da fantasia é: um dia, tive um pênis, mas me tiraram como castigo à masturbação.
No texto, coloca que a menina vai buscar um prazer, cuja representação é masoquista,
com o objetivo de compensar o dano narcísico. A ferida narcísica produz raiva e fúria,
e a agressão não enviada para o exterior volta-se para o interior, produzindo prazer
masoquista. A autora retoma o texto freudiano "Bate-se numa criança", cujo tempo
"soo batida por meu pai" aponta para o conteúdo de gozo - "me ama", sobrepondo-o
à frase "tiraram meu pênis como castigo à masturbação". Sinaliza diferentes tempos
na fantasia: um da fase pré-edipiana, e outro da fase edipiana, sendo que o primeiro
tempo não traz inscrição de culpabilidade (responsabiliza a mãe pela perda do pênis e
a representação disto prepara a menina para a entrada no Édipo). A passagem para o
segundo tempo se faz com a presença de uma representação masoquista: "como castigo
à masturbação, me castraram".
Jeanne L. de Groot faz uma observação interessante quando diz que a fantasia
masoquista proveniente do Édipo seria mais fácil de trabalhar analiticamente. Ao passo
que a fantasia constituída para evitara ferida narcísica é fixa, e resistente à análise. Na
sua contribuição, percebe-se uma diferença em relação às outras analistas de sua época:
a questão se desloca do polo constitucional-biológico para a ordem simbólica - o
masoquismo é visto como uma fantasia feminina que revela a mulher como não - toda
e aponta para a fixidez da fantasia fundamental.
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Masoquismo feminino: uma fantasia do homem
Em 1958, Lacan escrevia seus "Propôs directifs pour un Congrès sur Ia sexualité
féminine"1, preparando a temática do que viria a ser trabalhado em 1960, no Colóquio
Internacional de Psicanálise em Amsterdam. Segundo ele, a dita "fase fálica" na mulher
(Freud: 1927-35) teria dado origem a deslizamentos conceituais, e aquilo que permanecia obscuro sobre o gozo feminino havia suscitado mirabolantes explicações (como
as que vimos anteriormente em M. Bonaparte e H. Deutsch), e nem mesmo as analistas
mulheres conseguiram dizer senão metáforas sobre o assunto. Nesse artigo, Lacan
retoma uma posição conceituai básica (freudiana ainda) que situa tal impasse teórico
na impossibilidade de abordagem do real, e define a sexualidade como metáfora do
desejo, ophallus simbolizando a falta-a-ser. A demanda engendra uma falta-a-ter que
o clitóris viria preencher até sucumbir na competição - aí, o desejo precipita novos
objetos na direção da metáfora sexual.
Quando se pergunta se a mediação fálica drenaria todo o pulsional na mulher, Lacan
lembra o problema do masoquismo feminino, dizendo que não pode ser só homônimo
de passividade porque já é metafórico. O assim chamado "masoquismo feminino"
apontaria para algo além da mediação fálica e para algo além do par masculino-feminino como ponto de partida.
A castração supõe a subjetividade do Outro enquanto lugar de sua lei, e a alteridade
homem-mulher funciona de modo a que a mulher se torne o grande Outro para si
mesma e para o homem. O masoquismo feminino é posto na fantasia do homem, como
em Freud, e Lacan formula a questão: se a perversão masoquista se deve à invenção
masculina, pode-se concluir que o masoquismo da mulher é uma fantasia do desejo do
homem?
A representação da mulher como vítima exclusiva da castração serviria tão somente
para mascarar uma duplicidade do sujeito. A barra colocada sobre S faz surgir uma
falta e o desejo de (preservar) umphallus: a sexualidade feminina vem evidenciar um
esforço de gozo na sua contingência de tentar dar o que não tem (Lacan toma aí como
exemplos o amor ideal e a homossexualidade feminina).
No Seminário da Angústia10, Lacan enuncia sua primeira fórmula quando tematiza
sobre o objeto a: reconhecer-se como objeto de seu desejo é sempre masoquista. O
masoquista se encarna como objeto na cena e no contato com sèu parceiro. Além do
masoquismo estruturante e da perversão masoquista, Freud também apontou a fantasia
masoquista e falou de três masoquismos: erógeno, moral e feminino, equiparados por
Lacan a - "il v a ce verre, t/y a Ia foi chrétienne, etily a Ia baisse de Wall Streef.
Homem: ser sexuado, amarrado por um nó à função fálica e à limitação da castração.
Mulher: o Outro sexo, onde o nó é mais frouxo porque a confrontação é com o
desejo do grande Outro, e apenas secundariamente com o papel que aí tem o objeto
fálico.
Para o homem, a mulher é feita desta costela de Adão que foi uma parte sua, um
objeto perdido cuja perda tem de ser ocultada e obturada pela mulher. Sobre isto, Lacan
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diz que o masoquismo feminino toma um sentido irônico: a ocultação do gozo deste
Outro que traz em si uma angústia incontestável.
Ainda neste seminário da Angústia, Lacan recoloca o masoquismo feminino como
uma fantasia masculina - É por procuração, em relação a esta estrutura imaginária
sobre a mulher, que o homem faz sustentar seu gozo.
Masoquismo feminino: um véu sobre a verdade do gozo
Vamos falar então da tapeação, ou do véu como às vezes prefere Lacan. Ele nos adverte
no Seminário 11, sobre os quatro conceitos fundamentais11, que é no domínio do amor
que a tapeação pode ter algum sucesso, inclusive no amor de transferência, e o analista
que se cuide para não ser enganado - desconhecendo que algo lhe falta, numa ilusão
imaginária de que tem justamente o que falta ao analisando. Seria como um A sem
barra, fonte de um saber completo e acabado.
As mulheres analistas mantiveram esse véu naquilo que escreveram sobre o
masoquismo feminino. Ao recolocá-lo também nesse Seminário 11 como fantasia
masculina, Lacan comenta:
"... aí há algum consentimento das mulheres, o que não quer dizer nada — nos limitaremos,
mais legitimamente, nós outros analistas, às mulheres que fazem parte do nosso grupo. É
notável ver que as representantes desse sexo no círculo analítico são especialmente dispostas
a entreterem o crédito basal ao masoquismo feminino. Sem dúvida que aí talvez haja um véu
que convém não levantar depressa demais concernente aos interesses do sexo".
Na formulação freudiana dos opostos masculino-feminino, quanto à sexualidade,
faltaria a representação do A como um 32 termo. Termo relativo ao simbólico,
precisamente aquele que propicia o surgimento do significante indicador do sujeito:
evocado no campo do A, o sujeito surge como resultante do movimento de retorno da
pulsão, é um significante em relação a outro significante, destacado do real. Sujeito
dividido, vivo que vai morrer, parte de um ciclo reprodutivo.
"É somente aí que a relação dos sexos é representada no nível do inconsciente.
Para o resto, a relação sexual fica entregue ao aleatório do campo do A. Fica entregue às
explicações que se lhes dêem ".
Esse 3 a termo, lembra Lacan, Joan Rivière introduzira ao rotular a atitude sexual
feminina de "mascarada"...
"A_me vê, na forma em que me agrada ser visto".
Não há dois sexos: há um sexo fálico, e há o Outro sexo; há um gozo sexual e um gozo
do Outro - Há um gozo atrelado ao significante, metafórico; e um gozo que desliza de
significante em significante, metonímico. O primeiro é atribuído ao homem e o
segundo à mulher, enquanto duas posições face a uma impossibilidade do ser: uma
posição que mostra um simulacro do ser, e outra que aponta um véu revestindo a
impossibilidade.12
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Masoquismo feminino e um para além da lógica fálica
Para o homem: o objeto pequeno a onde se situa uma mulher desejada, aquela que
propicia um gozo fálico, sexual, do órgão. Para uma mulher: um gozo suplementar, do
corpo todo, do ser, de Deus (ser supremo), além do pequeno gozo do falo.
"Há um gozo dela, desse ela que não existe e não significa nada. Há um gozo dela sobre o
qual talvez ela mesma não saiba nada a não ser que o experimenta - isto ela sabe''.
"... há tempos que lhes suplicamos, que lhes suplicamos de joelhos. Eu falava da última
vez das psicanalistas mulheres — que tentem nos dizer, pois bem, nem uma palavra1."
Podemos concluir, então, por uma conjunção que o "Masoquismo Feminino" realizaria
entre o que é do gozo e o que é da mulher. O aparelho do gozo comanda por um
imperativo, vindo do Outro. Do lado do homem, esse Outro vira um outro ou uma
mulherzinha qualquer. Do lado de uma mulher, na fantasia do homem, é ela um objeto
servil ao seu gozo fálico - masoquismo feminino. Mas, Lacan avança e pensa sobre o
interesse das próprias mulheres em ficarem acomodadas - incomodadas neste lugar;
desconfia da produção das analistas:
"Nossos colegas, as damas analistas, sobre a sexualidade feminina, elas nos dizem algo,
mas ... não tudo. É absolutamente contundente. Elas não fizeram avançar de um dedo a
questão da sexualidade feminina. Deve haver uma razão interna para isto, ligada ao
aparelho do gozo".
Temos do lado de uma mulher, no esquema da sexualização, um gozo do falo na
posição de ^t, em busca do que lhe falta. Essa barra sobre A aponta para o que não se
pode dizer, algo barrado que não se articula ao significante. Mas uma mulher goza
também de um significante que indica o / : pode misticamente gozar de Deus, de um
significante do ser que supõe um outro ser em falta, ou um furo no saber sobre o ser.
É especificamente o saber analítico que tem a função de apontar esse não saber. O
conceito de Inconsciente deixa isso evidente. E, não podendo falar no que não se
inscreve como linguagem, tentamos falar da relação sexual no que ela tem de contingente e de impossibilidade.
Tirésias ao ser argüido sobre a verdade do gozo responde que o gozo amoroso se
compunha de 10 partes, a mulher dele obtinha 09 (nove) e o homem apenas 01 (uma).
Ou seja, Tirésias revela a mulher como sendo portadora de um gozo a mais. O que nos
faz pensar nas razões de ocultação deste gozo a mais, presentes na noção de masoquismo feminino, como na produção psicanalítica que analisamos.
Véu - Proteção de um gozo, sugerido mas vestido para cobrir seu horror. - Horror
do desconhecido, do inominável e da morte.
Referências bibliográficas
1. FREUD, Sigmund. O problema econômico do masoquismo, Ed. Standard Brasileira, 1924, vol.
XIX, p. 297.
2.
. Idem, p. 202.
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3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
188
. Idem, p. 203.
. Sexualidade feminina. Ed. Standard Brasileira, 1924, vol. XXI, p. 261.
, Idem, parte IV.
BONAPARTE, M. Prazer erótico na mulher, itens II e IV
DEUTSCH, H. Psiclogia de Ia mujer - Masoquismo Feminino - Passividade Feminina.
LAMFL-HE-GROOT,J.SouffranceetJ(missance-MasochismeetNarcissisme, 1936.
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LACAN, J. Seminário Livro \\-Os4 conceitos fundamentais da psicanálise, pp. 182,188,253.
LACAN,J.SeminárioLivro20-^/aw,aiWa-12,79,100-101,105.
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