“Vencer na América”: O projeto político amoroso alicerçado na fantasia contingente e imprevisível do desejo. Márcia Barros Ferreira Rodrigues Maria Cristina Dadalto Este artigo analisa a história da imigração italiana no Espírito Santo, originada principalmente da região da chamada “Terceira Itália”, constituída pelas regiões de Toscana, Umbria, Marche, Emilia-Romagna, Veneto, Friuli-Venezia Giula e TrentinoAlto-Adige., que no final da década de 1970, surpreendera o mundo ocidental com um vigoroso crescimento de pequenas e médias empresas, formando o núcleo de prósperos Distritos Industriais ou clusters. Suas principais características eram a descentralização produtiva, a integração social, a concentração espacial da produção conotando a especialização setorial no qual predominavam as indústrias de setores mais tradicionais como a têxtil, vestuário, móveis, dentre outros. Características similares verificar-se-iam na região Centro-Norte do Espírito Santo. Ali, famílias italianas, marcadas pelo patriarcalismo, chegadas ao Brasil no final do século XIX, adentram no estado, organizam-se em pequenas glebas de terra e assentam sua base econômica na produção do café. A crise do produto, na década de 1960, promoveu uma reestruturação na região. Dessa maneira, os descendentes dos imigrantes italianos vieram a repetir o mesmo gesto de seus antepassados ao sair da Itália em busca de uma alternativa e demarcaram um novo começo em suas vidas, desta vez fazendo nascer pequenas indústrias que se organizam em clusters. A experiência vivida alhures também povoa o sonho dos filhos assentados no novo mundo. Nosso foco é perceber como essa experiência apresenta a fantasia de manutenção do projeto de “vencer na América” dos antepassados. A questão principal será analisar as marcas do desejo na formação identitária, na percepção da diferença e na assimilação à cultura nacional. Procurar-se-á apontar os processos psíquicos envolvidos nas significações, na perduração e na interpretação dos fatos passados e seus desdobramentos na esfera sócio-econômica. Para tal vamos nos valer das reflexões de Berlinck (2000), segundo qual o corpo humano, incluindo, o aparato psíquico, ainda que este não se distinga daquele, pode ser visto como um território a ser protegido de invasores virulentos indesejáveis. Combatêlos requer recursos psíquicos que podem, aparentemente, coincidir com o individualismo, mas que não são necessariamente individualistas. Esses recursos são, entretanto, úteis para aumentar a suficiência imunológica e proteger o corpo contra ataques virulentos externos. No caso da experiência estudada, verifica-se essa suficiência psíquica. Destarte as inúmeras semelhanças, há de se observar que na então província do Espírito Santo o processo imigratório europeu ocorre de forma distinta ao de São Paulo, principal centro receptor de migrantes do país. No território capixaba a imigração era parte da estratégia governamental para promover o povoamento de grande parte do território, ampliar a fronteira agrícola e fomentar o desenvolvimento regional por meio da produção de riquezas. Com a erradicação dos cafezais, repetia-se nos anos 60, em novos moldes e com outra característica, o processo de transformação para os descendentes daqueles que vieram construir Vida Nova no Novo Mundo. Esse fato provocaria duas conseqüências: a abertura de novos limites comerciais concorrenciais, exigindo que fundassem empresas com diferentes atributos competitivos e de exposição ao mercado; e segundo, a relativização da centralidade que historicamente os caracterizara, e que apontava agora para a indústria e para o investimento de políticas públicas. Para fazer face a esta alteração, aquela população teria de encontrar um novo sentido na sua relação com o uso urbano da cidade, construindo outras possibilidades de realização sociopolítica e econômica. Dessa maneira, assentados na região CentroNorte, representado no recorte desse estudo por residentes da cidade de Colatina, criaram inúmeros empreendimentos no setor industrial composto prioritariamente pelos segmentos de confecções e de móveis. No processo de formação e desenvolvimento desses pequenos empreendimentos industriais se destacam o crescimento em rede familiar e de amigos, a cultura associativa de reciprocidade, a troca de informação, a abertura de fábricas nas residências e a gestão auto-suficiente. Retomando a tese da suficiência psíquica sabemos que a defesa psíquica não é nem indiferente, nem passiva, ainda que estas características sejam recursos defensivos à disposição do psiquismo. O humano defende-se do pathos (sofrimento) com o psiquismo, tornando-se, desta forma, autor de um mundo de representações objetais. O humano é assim, sujeito. Por isso, os colonos e filhos de colonos que percorreram uma longa trajetória, tiveram que construir um novo cotidiano. A ordem da cidade obrigavaos a reinventar suas tradições. Como empreendedores, incorporaram tanto a idéia de urbanidade quanto à de comunidade em suas práticas produtivas. Ernst Bloch (2005) assevera que as utopias têm seus roteiros e constituem-se princípios esperança latentes que se manifestam em determinadas épocas históricas. Assim, a esperança está em constante movimento, projetando-se no futuro, onde se localiza o desejo. Nessa perspectiva pode-se dizer que a projeção da força do desejo destes imigrantes italianos que vieram à procura do Novo Mundo, aliado às possibilidades de sua concretização histórica, só pôde ser dado pela fantasia que estruturou o real desses imigrantes, fornecendo as garantias necessárias à realização plena da aventura na América. Ao empreender, buscaram superar a identidade de imigrante, do sentido de um tempo e de um espaço vivo e distinto do que viviam e começaram a não se ver, a não se perceber e a não se denominar como tais permitindo a elaboração do sentido de ser um cidadão ítalo-brasileiro. Essa dimensão inscrita num projeto político amoroso possibilitou a estes homens e mulheres irem à procura de seu destino, ser sujeito, sobretudo, de seus empreendimentos. É possível concluir que os ítalo-brasileiros, empreendedores, desejaram o projeto de seus antepassados, e encontraram na cultura comunitária o suporte para superar as adversidades e realizar esse projeto amoroso. O longo processo inaugurado, desde a viagem oceânica até a fundação dos clusters, ganhou um novo rosto para desfilar sua continuidade. De permanecer na dissolução, de criar novos roteiros e potencializar novos sonhos em meio à vertigem, ao frenesi de mudanças anunciadas na contingência do desejo. REFEREÊNCIA BIBLIOGRÁFICA BLOCH, E. 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