1
Muraida
A tradição literária de viagens em questão
Por
Veronica Prudente Costa
Aluna do Curso de Doutorado em Letras Vernáculas
(Programa de Literaturas Portuguesa e Africanas)
Tese de doutorado apresentada à Banca Examinadora de
defesa do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas
da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito à obtenção do título de Doutor em
Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas)
Orientador: Professor Dr. Jorge Fernandes da Silveira.
Rio de Janeiro, 2013
2
COSTA, Veronica Prudente
Muraida: A tradição literária de viagens em questão./
Veronica Prudente Costa. Rio de
Janeiro, 2013
Tese de Doutorado em Letras Vernáculas Universidade Federal do Rio de Janeiro – Faculdade de
Letras. 2013.
158p.
Orientador: Professor Doutor Jorge Fernandes da Silveira
1.Literatura Portuguesa 2.Século XVIII - crítica
3.Henrique João Wilkens.
I. SILVEIRA, Jorge Fernandes da (orientador)
II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de
Letras
III. Título
3
COSTA, Veronica Prudente. Muraida: A tradição literária de viagens em questão. Tese de Doutorado
em Letras Vernáculas. Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________________
Prof Dr Jorge Fernandes da Silveira
UFRJ
(Orientador)
_____________________________________________________________
Profª Drª Camila do Valle Fernandes
UFRRJ
_____________________________________________________________
Profª Drª Cátia Monteiro Wankler
UFRR
____________________________________________________________
Profª Drª Ângela Beatriz de Carvalho Faria
UFRJ
____________________________________________________________
Profª Drª Luci Ruas Pereira
UFRJ
___________________________________________________________
Profª Drª Sofia de Sousa Silva
UFRJ
(Suplente)
____________________________________________________________
Profª Drª. Cláudia Maria de Souza Amorim
UERJ
(Suplente)
Tese defendida em 21 de março de 2014.
4
Agradeço sinceramente:
A Deus, por me conceder saúde para lutar todos os dias.
Ao meu orientador, Jorge Fernandes da Silveira, por toda paciência e dedicação
em corrigir meus erros e apontar novos caminhos.
Aos membros da banca examinadora: Camila do Valle Fernandes, Cátia
Monteiro Wankler, Luci Ruas Pereira e Ângela Beatriz de Carvalho Faria, pela
atenção e disponibilidade em participar deste momento tão importante para
mim.
À Universidade do Estado do Amazonas, em cuja experiência docente pude
amadurecer como profissional e como ser humano diante dos novos desafios.
À Marinha do Brasil, por ter me possibilitado cursar as disciplinas do
doutoramento no ano de 2010.
Aos professores Sérgio Nazar David e Cláudia Amorim, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, minha primeira casa acadêmica. Vocês despertaram
em mim o desejo de alçar voos na Literatura.
À minha sogra Jacira dos Santos, por me conceder moradia e atenção nos
últimos meses da tese no Rio de Janeiro.
Aos meus alunos, de ontem e de hoje, por serem o estímulo e a alegria de querer
ir mais além. Em especial Débora de Lima Santos e Robervânia Castro de
Oliveira por terem me acompanhado nas pesquisas sobre Muraida.
À Amazônia, minha nova casa desde 2011, e aos povos da floresta.
À Literatura, que me dá o pão e me inspira a conhecer mais o sabor da vida
através da aventura do saber.
5
Dedico:
À memória de meu pai, João de Deus, que desde cedo me ensinou a dor e a
alegria de ter objetivos na vida.
Aos meus amigos que por laços de sangue ou de afeto fazem parte da minha
caminhada para sempre, mesmo estando distantes: Alessandra Gomes Monteiro,
Aline Ripardo, Cristiane Oliveira, Lívia Alexandra Morais, Marcelo Silva da
Costa, Marcia Cristina Martins Ferreira e Margarete Baptista Dias.
6
Ofereço:
À minha família, por apoiar minhas escolhas, ir morar comigo no Amazonas,
compreender minhas ausências e ser meu porto seguro e base sólida para que eu
pudesse cumprir esse desafio e tantos outros...
Minha mãe Vera Prudente: minha base, minha amiga.
Meu segundo pai Nelson Javier: meu amigo
Meu amor Renato Silva de Almeida: companheiro, cúmplice, amigo,
amado e amante sempre...
Minha filha, Manuella, pedaço de mim que fica, razão de tudo, mesmo
sem entender ainda o que é tese e reclamar a minha ausência.
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SINOPSE
Militar português Henrique João Wilkens, a serviço
da Coroa portuguesa nas Comissões de Demarcação
dos Limites nos ―sertões‖ amazônicos. Reconciliação
e pacificação da Grande, e feróz Nação do Gentio
Muhúra.
Etnia
Mura,
qualificada
como
―abominável‖, ―feroz‖ e ―indomável‖ é o objeto do
―triunfo da fé‖ celebrado no poema de Wilkens.
Contraponto entre o colonizador e o colonizado,
privilegiando a imagem construída sobre o índio
Mura, a partir do olhar do colonizador e a construção
imagística que o colonizador fez sobre a Amazônia.
A literatura de viajantes e o diálogo com a obra Os
Lusíadas.
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COSTA, Veronica Prudente. Muraida: A tradição literária de viagens em questão.
Tese de Doutorado em Letras Vernáculas. Faculdade de Letras, Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2013, 158p.
RESUMO
Em 1785, o militar português Henrique João Wilkens, que estava a serviço da Coroa
portuguesa nas Comissões de Demarcação dos Limites nos ―sertões‖ amazônicos, escreve o
poema Muhuraida ou Triumpho da fé na bem fundada Esperança da enteira Conversão, e
reconciliação da Grande, e feróz Nação do Gentio Muhúra, no quartel da Vila de Ega, atual
cidade de Tefé- AM. Muraida é o primeiro texto poético, com estrutura épica, escrito em
Língua Portuguesa, sobre um tema relativo ao território que hoje se configura como
amazônico, e através desse épico podemos vislumbrar uma das faces dessa empreitada
colonial. A etnia Mura, qualificada como ―abominável‖, ―feroz‖ e ―indomável‖ é o objeto do
―triunfo da fé‖ celebrado no poema de Wilkens. Privilegiando as ideias de Eduardo Lourenço
sobre a colonização portuguesa no Ocidente, estabelecemos um contraponto entre o
colonizador e o colonizado, privilegiando a imagem construída sobre o índio Mura, a partir do
olhar do colonizador e a construção imagística que o colonizador fez sobre a Amazônia.
Discutimos o conceito de literatura de viagens e levantamos a hipótese de que Muraida pode
ser inserida nesta vertente do cânone lusitano, a partir das tensões, convergências e
divergências entre este épico e o mais importante texto de viagens da Literatura Portuguesa,
Os Lusíadas, de Camões. A partir dessa leitura comparada e das tensões analisadas,
defendemos que Muraida, assim como Os Lusíadas, configura-se como o olhar e a voz do
colonizador, ainda que pretensamente desenvolva perspectivas da voz do Outro.
Palavras-chave: 1. Muraida; 2. Os Lusíadas; 3. Colonização Portuguesa; 4. Amazônia; 5.
Literatura de Viajantes
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COSTA, Veronica Prudente. Muraida: A tradição literária de viagens em questão. Tese
de Doutorado em Letras Vernáculas. Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro, 2013, 158 p.
ABSTRACT
In 1785, the Portuguese military Henrique João Wilkens ,Who was in the service of
the Portuguese Crown in Commissions Demarcation of Boundaries in the "hinterlands"
AmazonwritesMuhuraida ou Triumpho da fé na bem fundada Esperança da enteira
Conversão, e reconciliação da Grande, e feróz Nação do Gentio Muhúra, in the barracks of
Ega village, current Tefé -AM . Muraida is the first poetic text with epic structure written in
Portuguese Language, on a topic on the territory that today is configured as Amazon, and
through this epic we glimpse one of the faces of this colonial venture. The Mura ethnicity ,
qualified as "disgusting" , " fierce " and " indomitable " is the object of the "Triumph of Faith
" celebrated in the poem Wilkens. Favoring the ideas of Eduardo Lourenço on the Portuguese
colonization in the West , we establish a counterpoint between colonizer and the colonized,
privileging the image built on the Indian Mura, from the colonizer perspective and the
colonizer imagistic construction about Amazon. We discuss the concept of travel literature
and hypothesized that Muraida can be inserted into this aspect in the Portuguese canon, from
the tensions and disagreements between this epic and the most important text of Portuguese
Travel Literature , The Lusiads byCamões . From this compared reading and analyzed strains,
we argue that Muraida , as well as The Lusiads, is told through the colonizer‘s look and voice,
although allegedly develop perspectives of one's voice .
Key words: 1. Muraida; 2. The Lusiads; 3. Portuguese colonization; 4. Amazon; 5.Traveler
Literature
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COSTA, Veronica Prudente. Muraida: A tradição literária de viagens em questão. Tese
de Doutorado em Letras Vernáculas. Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro, 2013,158 p.
ABSTRACTO
En 1785, el militar portugués Henrique João Wilkens, quien estaba al servicio de la Corona
Portuguesa en las comisiones de demarcación de límites en las "zonas de influencia " en
Amazon, escribe Muhuraida ou Triumpho da fé na bem fundada Esperança da enteira
Conversão, e reconciliação da Grande, e feróz Nação do Gentio Muhúra, en el cuartel de la
localidad de Ega, actual Tefé -AM. Muraida es el primer texto poético, con la estructura
épica, escrita en portugués, en un tema en el territorio que hoy se configura como Amazon, ya
través de esta epopeya que entrever una de las caras de esta aventura colonial. El étnico Mura,
calificado como " repugnante", "feroz " y "indomable" es el objeto del "Triunfo de la Fe"
celebrado en el poema Wilkens. Favorecer las ideas de Eduardo Lourenço en la colonización
portuguesa en el oeste, establecer un contrapunto entre el colonizador y el colonizado,
privilegiando construido sobre la imagen del Indio Mura, desde la mirada del colonizador y la
construcción imagistica hecho en Amazon. Se discute el concepto de la Literatura de Viajes y
la hipótesis de que Muraida se puede insertar en este aspecto del canon portugués, de las
tensiones y desacuerdos entre esta epopeya y el texto más importante de la Literatura de
Viajes portuguesa, Os Lusíadas, de Camões . De esta lectura comparada y las cepas
analizadas, sostenemos que Muraida , así como Os Lusíadas , tiene la forma de la mirada y la
voz del colonizador, aunque supuestamente desarrollar perspectivas de la voz de uno .
Palabras- clave: 1. Muraida; 2. The Lusiads; 3. Colonización Portuguesa;4. Amazon; 5. La
Literatura del Viajeros
11
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 14
2. A CHEGADA DOS EUROPEUS NA AMAZÔNIA: A DESCOBERTA DO
“OUTRO”........................................................................................................................... 26
2.1. A empreitada colonizadora, a resistência Mura e a conversão imposta ............ 30
2.2. A discussão sobre o cânone................................................................................ 53
3. SOBRE A LITERATURA DE VIAGENS E VIAJANTES .................................... 65
3.1. Sobre Viagens..................................................................................................... 65
3.2. Sobre Viajantes.................................................................................................... 72
3.3. Os viajantes na Amazônia.................................................................................... 78
3.4. Wilkens: viajante, militar e poeta........................................................................ 92
4. MURAIDA E SEUS (DES) ENCONTROS COM OS LUSÍADAS ............................ 101
4.1. Entre a Índia e a Amazônia................................................................................. 101
4.2. A estrutura camoniana em Muraida.................................................................... 105
4.3. Muraida e Os Lusíadas: Duas viagens, duas conquistas..................................... 115
4.4. O Mura Agigantado e o Gigante Adamastor....................................................... 124
4.5 O Velho do Restelo e o Velho Mura .................................................................... 135
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS OU
Muraida: Entre As Duas Margens Do Cânone, “A Terceira Margem Do
Rio”...................................................................................................................................... 146
6. REFERÊNCIAS ………………………......................................................................... 153
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O wonder!
How many goodly creatures are there here!
How beauteous mankind is! O brave new world
That has such people in it!
(William Shakespeare, The Tempest)
13
Uma homenagem aos povos da floresta:
Manôa
A ambição cruzou o mar
Trazida pelo invasor
A Espanha veio explorar
Pilhar e semear a dor
Amazônia Terra Santa
Dos igarapés, mananciais
Alimenta o corpo, equilibra a alma
Transmite a paz
Brilhou o Eldorado no coração da mata as guerreiras
Belezas naturais, riquezas minerais
O reino de Tupã ergue a bandeira
Êh! Manôa
Minha canoa vai cruzar o Rio Mar
Verde paraíso é onde
Iara me seduz com seu cantar
Força, mistério e magia
Fruto da energia o meu guaraná
A lágrima que o trovão derramou
A terra guardou semente no olhar
Maués, Anauê, cultura milenar
Anauê, Manaus, Mamirauá
Viva a Paris Tropical
Água que lava minh´alma
Ao matar a sede da população
Caboclo ê a homenagem hoje é
A todo povo da floresta um canto de fé
Se Deus me deu vou preservar
Meus filhos vão se orgulhar
A Amazônia é Brasil, é luz do criador
Avante com a tribo Beija-Flor
Cláudio Russo, Zé Luiz,
Marquinhos, Jessi e Leleco
14
1. INTRODUÇÃO
Na Dissertação de Mestrado discutimos a volta dos ―retornados‖ à casa portuguesa,1
após a independência das colônias em África. Na obra Fado Alexandrino, de António Lobo
Antunes, a pátria tem de configurar-se com uma nova ordem social e com o retorno
fracassado da colonização em África. Observamos uma problemática subjetividade em face
de outro Portugal que se impunha como única opção para esses indivíduos descentrados e
desterritorializados. Focalizamos a experiência colonial a partir da leitura da obra, cujo espaço
imaginário evocado é o de África e analisamos o caminho de volta e o enfrentamento de um
sujeito, perdido em si mesmo, pois o próprio sujeito era o outro de si mesmo, como se fosse
um outro desconhecido, diante de uma realidade precária que o aguardava. Na obra literária
antuniana, Portugal não representava um porto seguro de chegada, em oposição ao porto de
partida segura e gloriosa que fora séculos antes e cujo ―destino‖, de acordo com a ideologia
expansionista, ―era de estar sempre em eterna partida de si mesmo‖ (SILVEIRA, 1999, p. 13).
Nesta tese, realizamos um novo percurso: enveredamos pela experiência colonial
portuguesa em territórios da Amazônia e observamos como essa experiência materializa-se no
épico Muraida. Caminhando em direção a outro continente, analisaremos o caminho de vinda
1
Análise do romance português contemporâneo, Fado Alexandrino, da autoria de António Lobo Antunes,
publicado em 1983, e que se organiza em torno de três eixos básicos – temporais e simbólicos – relacionados à
identidade da pátria portuguesa: I- Antes da Revolução, II- A Revolução ( 25 de Abril de 1974) e III- Depois da
Revolução. Ao entrelaçar História e ficção, vida pública e vida privada, o romance em questão resgata as
histórias vividas pelos ex-combatentes portugueses em África e suas ―derrotas cruzadas em fundo de mar‖,
marcadas pela falta de raízes, estilhaçamento de identidades e perda de valores morais decorrentes do processo
histórico. A Dissertação propôs-se a focalizar a ambivalência e a modernidade, pertencentes à produção ficcional
selecionada, a partir, principalmente das reflexões críticas de Zygmunt Bauman e de Maria Alzira Seixo, visando
compreender o posicionamento do homem contemporâneo frente à problemática do não-lugar, ao caos moderno
e à falta de humanidade, dignidade e respeito do sujeito consigo mesmo e com o outro, constatando-se que não é
possível encontrar uma fórmula para se criar um sociedade perfeita. Ao ―perder o caminho para a casa‖, as
personagens masculinas deparam-se com personagens femininas que encetam relações amorosas, conjugais e
libidinais passíveis de refletirem a reconfiguração identitária inerentes à pós-modernidade. Caberá ao leitor
acompanhar as existências fadadas ao fracasso e as estratégias discursivas do autor. (COSTA, Veronica
Prudente. A perda do caminho para casa em Fado Alexandrino de António Lobo Antunes. Dissertação de
Mestrado em Letras Vernáculas - Literatura Portuguesa. Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2006, 127 p.)
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para o ―Novo Mundo‖. Um encontro entre os portugueses com um sujeito desconhecido nas
Américas: os indígenas. Estes, habitantes autóctones, foram obrigados a resistir a uma nova
ordem que se impunha em suas terras, objetivando tornar-se dona daquilo que até ―ontem‖ era
seu.
O objeto de estudo da presente pesquisa revela o olhar português sobre o espaço
geográfico a ser explorado e colonizado. Desta feita, escolhemos o épico que melhor
simboliza a resistência dos indígenas da etnia2 Mura, os quais foram subjugados em nome da
filosofia da colonização portuguesa: “dilatar o Império e a Fé cristã‖. Elegemos o poema
Muhuraida ou o triumfo da fé na bem fundada esperança da enteira conversão, e
reconciliação da grande, e feróz nação do gentio Muhúra (1785), do militar português
Henrique João Wilkens, como texto nucleador e inspirador para esta reflexão.
A primeira edição de Muhuraida foi publicada em 1819 pelo Padre Cypriano Pereira
Alho, pela Imprensa Nacional do Reino. Mais de um século depois, houve a edição de 1993
que foi a primeira edição brasileira publicada conforme os originais e com fac-símile dos
manuscritos de Wilkens3. Neste estudo, trabalhamos com a terceira e última edição, publicada
em 2012, com a língua portuguesa atualizada4. O manuscrito de Muraida encontra-se no
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa.
Muraida é um texto poético divido em seis cantos, cuja forma e intenção são cópias do
modelo camoniano. As estrofes se organizam em oitava rima camoniana e os versos são
decassílabos. O poema possui Dedicatória, Invocação, Proposição, Narração e Epílogo.
2
Segundo o dicionário Houaiss, ―coletividade de indivíduos que se diferencia por sua especificidade
sociocultural, refletida principalmente na língua, religião e maneiras de agir‖.
3
WILKENS, Henrique João. Muhuraida ou Triunfo da Fé. Manaus: Biblioteca Nacional / UFAM/ Governo do
Estado do Amazonas, 1993.
4
WILKENS, Henrique João. Muraida. Organizada por Tenório Teles e prefaciada por Marcos Frederico Krüger
Aleixo, Manaus: Ed. Valer, 2012.
16
Henrique João Wilkens foi um soldado português que veio para a região que hoje se
configura como Amazônia, em missão ordenada pelo Marquês de Pombal para demarcação
dos limites da coroa portuguesa a partir da assinatura do Tratado de Madri, em 13 de janeiro
de 1750. O Tratado de Madri foi celebrado entre Portugal e Espanha e estabeleceu os limites
entre as suas colônias na América do Sul, respeitando a ocupação realmente exercida nos
territórios e abandonando inteiramente a "linha de Tordesilhas". De acordo com esse tratado,
a colônia ganhou já um perfil próximo do que dispõe hoje.
A partir deste fato, o desafio de ocupação das possessões territoriais através da
colonização e exploração econômica se efetivou. Tal desafio foi o primeiro projeto que visava
fixar a colonização portuguesa e usufruir as riquezas da Amazônia. Assim, o Marquês de
Pombal lançou as bases do que seria um embrião do sistema que viria a ser chamado de
capitalismo em tempos posteriores. Tal projeto se estabelecia na colônia do Grão-Pará e
Maranhão.
Este tratado foi de fundamental importância para a política colonial portuguesa e para
a delineação do atual território brasileiro que seria estabelecido ulteriormente e teve como
objetivo solucionar os conflitos de fronteiras entre Espanha e Portugal em toda a América do
Sul:
Marco terminal da política de D. João V em relação à América do Sul, e,
particularmente à Amazônia, o Tratado de Madri, em sua lenta gestação e em seus
efeitos concretos, teve uma íntima relação com o desenvolvimento das ordens
religiosas missionárias, especialmente os jesuítas, na região dos rios Paraguai e
Uruguai (7 povos das missões), no extremo oeste do país e na região amazônica.
Num primeiro momento, a política portuguesa de consolidação das fronteiras e de
demarcação desses novos domínios, expandidos à custa de territórios originalmente
atribuídos à Espanha, teve o apoio integral dos jesuítas e de outras ordens religiosas
(carmelitas, mercedários, franciscanos) que expandiram suas missões por territórios
contestados, consolidando assim o domínio português. (NETO, 1993, p.36)
O contexto de conflitos por posse de terras, por interesses religiosos e mercantilistas e
na emergência da política indigenista pombalina que Henrique João Wilkens, entre tantos
17
outros soldados enviados para fazer cumprir a execução do tratado, chega ao território
amazônico e, posteriormente, produz o épico Muraida.
A partir das informações sobre a missão da comissão de limites em território
amazônico e do cenário que nos é apresentado no épico, percebemos que, desde a sua
descoberta, a Amazônia torna-se alvo de conflitos territoriais, devido não apenas à sua
natureza exuberante e exótica, mas às riquezas encontradas na região, principalmente, as
drogas do sertão.
É importante mencionar que o lugar que hoje chamamos de Amazônia abrange uma
imensa extensão territorial e passou por várias configurações político-geográficas.
Expressamos aqui algumas modificações sofridas pela região: em 1621, foi realizada uma
divisão das possessões portuguesas em duas colônias distintas: Estado do Brasil e Estado do
Maranhão e Grão- Pará com sede em São Luís. Portanto, tal região era vista como uma
colônia separada do Brasil e era administrada de forma diferenciada pela União Ibérica,
devido ao período em que Portugal ficou sob o domínio da Espanha, entre 1580 e 1640.
Com a assinatura do Tratado de Madri, em 1750, e a morte de D. João V, Portugal
fica sob o domínio do Marquês de Pombal, que transfere a administração da colônia para
Belém, modificando o nome da região para Grão- Pará e Maranhão. Em 1772, há outra
modificação que cria o Estado Grão- Pará e Rio Negro e Estado do Maranhão e Piauí. O
Estado do Grão-Pará e Rio Negro foi formado pela Capitania do Grão-Pará, com sede em
Belém e a Capitania de São José do Rio Negro, que tinha sua sede em Barcelos, mas era
subordinada ao governo do Pará. Apenas em 18 de agosto de 18235, os territórios que
5
A colonização portuguesa, que politicamente vai de 1600 a 1823, pode ser assim dividida: 1600 a 1700,
expulsão dos outros europeus e ocupação colonial; de 1700 a 1755, estabelecimento do sistema de missões
religiosas e organização política da colônia; de 1757 a 1798, criação do sistema de Diretorias de índios e esforço
para alcançar o avanço do capitalismo internacional; de 1800 a 1823, crise e estagnação do sistema colonial. Até
1757, o território português na Amazônia era chamado de Estado do Maranhão e Grão-Pará, composto por sete
capitanias: quatro pertencentes a donatários – Caetê, Cametá, Joanes(Marajó) e Cumã; e três diretamente
pertencentes ao Rei ─ Pará, Maranhão e Piauí. O Maranhão e o Grã-Pará contavam com duas cidades, Santa
18
correspondiam ao Estado do Grão-Pará e Rio Negro passam a pertencer ao Brasil, formando
assim o território brasileiro que temos hoje. Em 9 de novembro deste mesmo ano, foi extinto
o Estado do Grão-Pará e Rio Negro, ficando a capitania de São José do Rio Negro ligada ao
Brasil. Porém, esta ainda não foi reconhecida como Província do Império. Em 1832, foi
reduzida a Comarca do Pará e somente no ano de 1850 esse território passou a ser Província
do Amazonas, extinguindo-se, assim, a sua relação de subordinação ao Pará, em 1852.
A partir dessas informações acerca das diversas configurações políticas que a
Amazônia assumiu e da leitura atenta do texto literário, observamos relevantes dados
históricos e culturais que nos motivam a refletir sobre a chegada de portugueses e espanhóis
ao território amazônico.
A hipótese a ser comprovada nesta tese reflete sobre o conceito de Literatura de
Viagens e de Viajantes e solicita um lugar para Muraida nesta vertente do cânone lusitano. Da
mesma forma, faz-se necessária uma revisão crítica deste cânone que não reconhece a
produção dos viajantes que estiveram na Amazônia em nome da Coroa Portuguesa.
Levantamos essa hipótese mediante uma análise realizada a partir das tensões, convergências
e divergências entre este épico e o mais importante texto de viagens da Literatura Portuguesa:
Os Lusíadas, de Luís de Camões ─ obra que funda a nacionalidade portuguesa, ainda que o
conceito de nação ainda não fosse definido naquele momento.
De acordo com as reflexões de Eduardo Lourenço em A Morte de Colombo (2005),
analisamos a colonização portuguesa no Ocidente e estabelecemos um contraponto entre o
colonizador e o colonizado, privilegiando a imagem construída sobre o índio Mura, a partir do
olhar do colonizador e a construção imagística que o colonizador fez sobre a Amazônia.
Maria de Belém e São Luis do Maranhão, que sediavam bispados, e mais sete vilas e diversos lugarejos e
freguesias espalhadas especialmente na parte oriental do vale. Mas a consolidação administrativa do território
somente se daria durante o século XVIII, nas administrações dos Capitães-Generais João da Maia (1722-1728),
Alexandre de Sousa Freire (1728-1732), José da Serra (1732-1736), João de Abreu Castelo Branco (1737-1747)
e Francisco de Mendonça Gurjão (1747-1751). Em 1757 assume o fidalgo Francisco Xavier de Mendonça
Furtado, irmão do homem mais poderoso de Portugal, Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal.
(SOUZA, 1994, p.52)
19
Para subsidiar tal discussão, enveredamos pelo caminho dos estudos culturais e póscoloniais, com o apoio de determinadas reflexões críticas do teórico Homi K. Bhabha. Para as
reflexões sobre a Literatura de Viagens, nos orientam dois conhecidos ensaístas e professores
especialistas no assunto ─ ela, a portuguesa Maria Alzira Seixo, ele, o brasileiro Francisco
Ferreira de Lima. No que respeita, em suma, aos estudos sobre o Colonialismo, nos seus
aspectos filosóficos, sociológicos, antropológicos, históricos , linguísticos e, claro, políticos,
recorremos a textos fundamentais de Eduardo Lourenço, Edward Said, Pierre Bourdieu e
Tzvetan Todorov. Por ser a obra inserida no espaço sociocultural da Amazônia, Marcio
Souza, Neide Gondim, Auricléa das Neves e Francisco Jorge dos Santos são igualmente
importantes.
Acreditamos que uma das mais interessantes contribuições dos estudos culturais para a
análise crítica da literatura é a possibilidade de interpretar o objeto literário, considerando-o
como parte de uma dinâmica em que múltiplas leituras ampliam e transformam o seu sentido.
Desta forma, a revisão crítica que solicitamos do cânone faz-se possível ao encetar um novo
olhar sobre o texto literário a partir dos estudos pós-coloniais.
Faz-se necessário destacar como fonte bibliográfica desta pesquisa a primeira tese de
doutoramento desenvolvida sobre Muraida: “A construção épica da Amazônia no poema
Muhuraida, de Henrique João Wilkens”, do pesquisador Yurgel Pantoja Caldas (2007) que,
partindo da leitura dos poemas épicos da segunda metade do século XVIII – O Uraguay
(1769), de José Basílio da Gama, e Caramuru (1781), de Santa Rita Durão –, busca a inserção
do épico Muraida na tradição literária brasileira como texto fundador da literatura amazônica.
Segundo Caldas (2007, p.6):
Muhuraida instaura-se com particular interesse para a formação cultural daquela
região, marcada por um movimento constante de contradições e ambiguidades,
próprio do texto ficcional de Wilkens. Ao contribuir para que a obra épica de
Henrique João Wilkens seja inserida na nossa tradição literária, este trabalho
também se ocupa em articular os signos que circulam sob a forma de elementos
estético-literários, histórico-geográficos e político-ideológicos presentes tanto na
narrativa de Muhuraida quanto na pretensa objetividade da correspondência oficial,
entre os séculos XVIII e XIX, envolvendo o próprio Wilkens e outros atores do
20
extermínio dos índios Mura. A percepção dos diálogos entre ficção e História, que o
poema de Wilkens evoca, também auxilia no entendimento da construção ideológica
do colonizador sobre o índio, tido e havido como encarnação do Mal e do atraso
econômico da região.
A tese de Caldas é oriunda de um rigoroso trabalho de pesquisa em documentos da
época e é incontornável para quem se propõe a pesquisar sobre Muraida, constituindo-se num
referencial de suma importância para a presente tese que aqui desenvolvemos e em que
propomos um diálogo com o que já foi construído por outros pesquisadores. Ao defender que
o seu trabalho contribui para que a obra épica de Wilkens seja inserida na tradição literária
brasileira, Caldas participa da discussão sobre um cânone ainda em processo de formação ─ o
da literatura amazônica; e que gera uma ampla discussão, dadas as múltiplas especificidades
sobre o assunto, visto que muitos desses textos ficam localizados nas margens e periferias e,
por esse motivo, são pouco conhecidos e pouco explorados pelos pesquisadores que são
guiados apenas por uma concepção canônica de literatura. Ao longo desta tese, pretendemos
contribuir para essa discussão, questionando e refletindo também sobre a concepção canônica
de Literatura Portuguesa de Viagens.
A natureza ambivalente da linguagem, a qual gera uma semiose infinita, incorpora e
materializa as tensões entre o Eu e o Outro — a conhecida dialética entre identidade e
alteridade e seus possíveis desdobramentos: afirmação e negação; aquém e além; o velho e o
novo, a concepção de mundo europeia e a concepção plural de culturas indígenas. Tais
oposições fazem emergir conflitos e suscitam crises de identidade que apontam para a relação
entre os sujeitos e o mundo que os cerca, o que, consequentemente, nos remete ao desconcerto
desse mundo, há tanto tempo cantado por Camões em Os Lusíadas, texto a partir do qual
propomos um diálogo com o épico Muraida.
Ao conhecer o Amazonas e entrar em contato com a pluralidade cultural existente
neste estado, vários questionamentos surgiram no início deste processo de pesquisa, a saber:
21

Como os homens brancos, mais especificamente os portugueses e espanhóis,
imprimiram a sua concepção de civilização e urbanização nas terras amazônicas
através da empreitada colonizadora?

De quais formas a chegada desses conquistadores deflagrou todo um processo de
estranhamento cultural em relação aos povos que já existiam nesse local?

Como analisar o lema da empreitada colonizadora: ―Dilatar a Fé e o Império‖, cantado
em Os Lusíadas, em diálogo com a visão de alguns críticos da atualidade que a
classificam como um amplo processo de genocídio humano e assassinato cultural?

Para além da violência física, como ocorreu a violência simbólica imposta aos
indígenas?

De quais maneiras podemos observar, nos textos literários selecionados, um olhar
marcado pela concepção europeia de civilização?

Como a literatura, enquanto expressão do olhar do homem português sobre o Outro,
representa a etnia Mura?
A problematização mencionada acima será discutida ao longo desta tese e é fortemente
influenciada pela maneira como os colonizadores portugueses viam a colônia do Grão-Pará e
Maranhão, somada às dificuldades de colonização de um território de dimensões continentais,
cobiçado internacionalmente pela imensidão desse território que hoje constitui a Amazônia6.
Ao abarcar, atualmente, vários estados brasileiros e transbordar pelas fronteiras do Brasil, tal
região revela a dificuldade ainda atual de aceitação e de construção de um convívio pacífico
entre povos de diferentes culturas e origens, desde os primórdios da colonização europeia.
Desde o início das incursões colonizadoras em solo amazônico, a Amazônia foi vista
como um dos últimos espaços naturais do planeta, de onde surgiram várias representações de
6
A definição de ―Amazônia Legal Brasileira‖ – homologada pelo Governo Federal em 1966 – compreende, além
dos Estados do Amazonas, Pará, Amapá, Acre, Roraima, Rondônia e Tocantins, o norte de Mato Grosso e os
planaltos meridionais do Maranhão. A área total de toda essa região é de 4.990.520 km², segundo relatório do
CEDI de 1990 (cf. VICENTINI, 2004, p. 12). Mais extensa que isso, a Amazônia ainda está presente nos
territórios de Peru, Bolívia, Colômbia, Guianas, Suriname e Venezuela.(CALDAS, 2007, p.06)
22
um lugar exótico que precisava ser ―desvendado‖.
Desse ―desvendamento‖ surgiram
estereótipos negativos e concepções errôneas que indicavam que os povos que nela já se
encontravam seriam bárbaros, selvagens e portadores de nenhuma cultura e civilização. A
Literatura produzida pelo olhar etnocêntrico corroborou para tal classificação e, por isso,
interessa aos pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento desconstruir certos olhares e
conceitos registrados tanto no discurso histórico quanto no literário.
Assim como a Carta de Pero Vaz de Caminha é considerada tanto um documento
histórico sobre o descobrimento do Brasil quanto um texto literário, devemos ler os cronistas
viajantes como aqueles que deixaram um grande legado para a Literatura e para a História do
território que posteriormente seria anexado ao Brasil, porém estes relatos de viagens devem
ser compreendidos dentro da realidade do tempo em que foram escritos. A maioria deles traz
a visão de uma Amazônia mítica, que em muitos casos hiperboliza a imagem real da região, e
que, comparada a lugares ―civilizados‖, precisa ser conquistada para ter a possibilidade de ―se
tornar parte do mundo‖, colocando-a assim numa zona de classificação fronteiriça ou
marginalizada, fora de uma concepção de mundo civilizado, de acordo com a visão europeia.
O primeiro cronista a narrar sobre essas incursões foi Frei Gaspar de Carvajal,
escrivão de Cristóbal Acuña em Novo descobrimento do grande rio das Amazonas em 1541,
responsável por registrar as observações realizadas durante a viagem e a história que hoje é
conhecida como lenda das Amazonas.
Para ilustrar a construção imagística que o europeu faz das terras descobertas,
selecionamos um pequeno trecho da carta de Colombo sobre a sua primeira viagem:
[...] maravillas de la lindeza de la tierra y de los arboles [...] la más hermosa cosa del
mundo y salem pôr ella muchas riberas de aguas que descendian d‘éstas montañas
[...] y certifico a Vuestras Altezas que debaixo del sol no me parece que las pueda
aver mejores en fertilidade, em temperancia de frio y calor, em abundancia de aguas
buenas y sanas [...] era toda la gente más hermosa y de mejor condicion que
23
ninguna outra [...] quanto a la hermosura, no avia comparacion, asi em los hombres
como em las mugeres. (Colombo, Diário del primer viaje ) 7
Assim como os cronistas, Henrique João Wilkens estabelece em sua obra literária uma
voz poética que corrobora a visão do desbravador estrangeiro: aquele que vem de fora, não
faz parte da cultura local, não a compreende e a coloca num lugar de subalternidade, se
comparada a outros lugares e outros povos. De acordo com as reflexões de Spivak (2012)8, os
estudos pós-coloniais contribuem para observação dos grupos subalternos, formados a partir
das formulações de Antonio Gramsci, sobre as classes que são alijadas do poder por não
poderem ocupar uma categoria monolítica devido à sua inerente heterogeneidade.
Essa falta de compreensão sobre o espaço e sobre o homem que ocupava o espaço
amazônico, na época da colonização, fez com que os desbravadores não percebessem que os
habitantes autóctones possuíam culturas próprias de origens milenares. Porém, a ambição por
novas conquistas e riquezas impossibilitou um convívio pacífico e gerou a dizimação de
milhares de indígenas, através da violência em si, da escravidão, a partir de hábitos
alimentares diversos, das doenças trazidas pelos brancos e pela própria evangelização cristã.
O choque cultural, os conflitos de interesses e de povos ocorridos durante a colonização
reiteram a visão etnocêntrica portuguesa no épico Muraida.
Ao refletir, brevemente, sobre a política expansionista na época da colonização, o
Capítulo 2 estabelece uma interlocução entre o texto literário e os relatos factuais sobre a etnia
Mura, privilegiando as reflexões do ensaísta Eduardo Lourenço na obra A Morte de Colombo
7
Tradução: ―maravilhas da lindeza da terra e das árvores [...] a coisa mais linda do mundo e saem por ela muitas
correntes de água que desciam d'estas montanhas [...] e garanto a Vossas Altezas que debaixo deste Sol não há
melhor em fertilidade, temperança de frio e calor, abundância de águas boas e saudáveis [...] eram todas as
pessoas muito bonitas e em melhores condições do que nenhuma outra [...] Quanto à beleza, não havia
comparação, nem em relação aos homens nem às mulheres.‖ (Colombo, Diário da primeira viagem)
8
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.
24
(2005) sobre a colonização portuguesa no Ocidente e estabelecendo um contraponto entre o
colonizador e o índio Mura e a imagem construída sobre esse mesmo índio, a partir do olhar
do colonizador (civilizado X bárbaro).
O Capítulo 3 refere-se à discussão conceitual sobre a Literatura de Viagens e o diálogo
que se estabelece entre essa literatura e as viagens portuguesas ultramarinas, assim como a
construção imagística do colonizador sobre a Amazônia ─ o lugar do Eldorado.Da mesma
forma, elencamos alguns viajantes que escreveram sobre a Amazônia durante a colonização,
como, por exemplo, Frei Gaspar de Carvajal, Cristóbal de Acuña e Alexandre Rodrigues
Ferreira, com destaque para Henrique João Wilkens, cuja viagem era para fins militares.
O Capítulo 4, por sua vez, estabelece uma interlocução entre Muraida e Os Lusíadas,
apontando o segundo como um documento de identidade portuguesa e mais importante texto
de viagens da tradição lusitana. Ae a partir dele, levantaremos as tensões, as convergências e
divergências entre ambos, elegendo como os principais pontos de contato os episódios do
Velho do Restelo e do gigante Adamastor, e estabelecendo um contraponto entre o Mouro e o
Mura.
25
Uma denúncia sobre os povos da floresta:
Aos Povos da Floresta
Paulinho Tapajós
Por onde andam os índios desta terra?
O que era deles não é mais
Os homens invadiram as florestas
Como filhos que expulsam seus pais
Onde colher flores silvestres?
Queimaram os matagais
Secaram o chão
Prenderam águas, cachoeiras
Poluíram céu e mar
Sangraram o chão
O que será da terra?
O que será de nós?
Quem vai plantar o planeta outra vez?
Talvez os nossos peixes
Ou quem sabe os animais
Porque os homens só se esforçam por querer
Muita fama riqueza e poder
Sangraram o chão
O que será da terra?
O que será de nós?
Quem vai plantar o planeta outra vez?
Mas o verde vai voltar num sonho de criança
Que há de lembrar a cor da esperança
26
2-A CHEGADA DOS EUROPEUS E A DESCOBERTA DO OUTRO
Quero falar da descoberta que o eu faz do outro.
O assunto é imenso.
(Todorov)
A violência é a parteira de toda a sociedade velha
que leva em suas entranhas outra nova.
(Marx)
Acá pocas letras bastan,
porque es todo papel blanco...
(Padre Manuel da Nóbrega)
A questão que nos inquieta e que motiva a presente investigação é questionar a
formação identitária do sujeito e seu conflito com o Outro, a partir da análise dos textos
literários selecionados para esta pesquisa. Para tanto, faz-se necessário discutir a chegada dos
europeus e o embate cultural gerado a partir desse encontro. Segundo Todorov9, ao chegar ao
território batizado de América, Cristóvão Colombo presencia o encontro mais surpreendente
de nossa história. O autor afirma que na descoberta de outros continentes não houve o mesmo
sentimento de uma radical estranheza, uma vez que já se sabia sobre a existência da África ou
da China. O continente americano, no entanto, revela a existência de seres que constituem um
povo totalmente desconhecido e estranho aos olhos europeus:
Posso conceber os outros como uma abstração, como uma instância da configuração
psíquica de todo indivíduo, como o Outro, outro ou outrem em relação a mim. Ou
então como um grupo social concreto ao qual nós não pertencemos.‖ (TODOROV,
1999, p.3)
A própria escolha do nome com que foram batizados os nativos identifica esse
estranhamento em relação ao Outro: índios, aqueles que seriam habitantes das Índias, região
desejada pelos desbravadores ultramarinos por suas riquezas e especiarias. Coloca-se, então,
um primeiro problema: os habitantes descobertos recebem um nome relacionado a um lugar
ao qual não pertencem. E o que virá depois?
Um enorme estranhamento que leva
espanhóis,portugueses e demais povos que colonizaram as Américas a acreditarem que os
9
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América; a questão do outro. Trad. Beatriz Perrone Moisés. São Paulo:
Martins Fontes, 1988.
27
índios eram povos desprovidos de cultura. Da mesma forma que se apresentavam fisicamente
nus, foram considerados ―nus‖ espiritualmente: sem costumes, ritos ou religião. Logo nos
primeiros encontros com os habitantes da terra recém-descoberta, Colombo registra:
Pareceu-me que eram gente muito desprovida de tudo [...] Estas gentes são muito
pacíficas e medrosas, nuas, como já disse, sem armas e sem leis [...] Traziam pelotas
de algodão fiado, papagaios, lanças e outras coisinhas que seria tedioso enumerar...‖
(TODOROV, 1999, p.43-44).
A partir do registro, percebemos que Colombo não apenas não compreende os
aspectos culturais que presencia, como também desmerece a falta de ambição dos ameríndios
em relação ao ouro, o metal que representava a riqueza mais valorizada em todas as incursões
ultramarinas. O conquistador julga os habitantes autóctones como tolos pelo fato de oferecer
um pedaço de vidro quebrado ou qualquer outro objeto sem valor em troca de ouro e estes
aceitarem: ―Colombo não compreende que os valores são convenções – a mesma
incompreensão que demonstrou em relação às línguas, como vimos – e que o ouro não é mais
precioso do que o vidro em ―si‖, mas somente no sistema europeu de troca‖ (Todorov, 1999,
p.45-46).
Dessa suposta ingenuidade e ―generosidade‖ dos indígenas em relação ao amplo
processo de trocas que se estabelece entre eles e os brancos e ao total desapego material
demonstrado por eles, gera o que chamamos de ―falsa cordialidade‖: colonizado e colonizador
podem ser ―amigos‖ desde que o colonizado concorde não apenas com as trocas, mas com as
regras do jogo do colonizador. Caso contrário, a espada e o fogo serão utilizados para fazer a
empresa colonizadora valer a pena e gerar lucros.
A suposta ingenuidade do indígena dá uma enorme contribuição à teoria do bom
selvagem que só seria elaborada por Jean Jacques Rousseau em 1755, a partir dos ideais da
Revolução Francesa. Rousseau defendia que o homem por natureza é bom, pois todos nascem
livres, iguais e bem formados, porém sua maldade advém da sociedade, que em sua
28
organização civilizacional não apenas permite como impõe a submissão, a escravidão, a
tirania e várias outras leis que privilegiam as elites dominantes em detrimento dos mais
fracos; firmando assim a desigualdade entre os homens, enquanto seres que vivem em
sociedade. Desta forma, Rousseau faz uma crítica objetiva à sociedade moderna que privilegia
o ter em desfavor do ser.
A partir dos primeiros contatos com os ameríndios, o imaginário europeu relacionou
os povos recém-descobertos a bondades ingênuas, utilizando o termo ―naturais‖ para designálos. Outra obra que influenciou a propagação do conceito do bom selvagem foi a Brevísima
Relación de La Destrucción de las Indias, de Bartolomeu de Las Casas, cronista e teólogo
dominicano que acompanhou as expedições para a América.
Las Casas foi considerado um ―defensor dos índios‖, conforme nos diz Eduardo
Lourenço (2005), pelo fato de defender a dignidade dos mesmos. A luta do dominicano era a
favor de lidar com o ―gênero humano novo‖ recém-descoberto ou recém-achado:
O oceano foi mais fácil de atravessar do que o fosso de incompreensão aberto desde
o início das relações, e que não logrou ser preenchido nem ultrapassado até agora.
De um lado, uma civilização, uma cultura, que se veem e se leem como
naturalmente universais, ciosas da sua origem e da sua genealogia divinas; de outro,
uma nova humanidade cuja língua ainda não se conhece e cujo código se rejeita
quando se acredita adivinhá-lo ou conhecê-lo. (LOURENÇO, 2005, p.66)
Ainda segundo Lourenço (2005), Las Casas percebeu que o encontro entre indígenas e
europeus seria uma fonte de tragédia sem solução, pois, ao contrário de Colombo, ele não
havia partido para o Novo mundo em busca do Paraíso terrestre. Antes de chegar a Cuba e ver
sua concepção de mundo mudar radicalmente ao observar a crueldade perpetrada pelos
colonizadores espanhóis, Las Casas compartilhava dos mesmos interesses ambiciosos que os
outros colonos acalentavam ao partir para as Américas. No entanto, o dominicano defendeu o
direito de ―ser‖ humano dos indígenas diante dos reis de Espanha. Para o europeu, o Outro
29
não tinha lugar, e por isso Las Casas ―contra ventos e marés‖, instituiu-se como defensor da
humanidade e da dignidade dos indígenas.
Desde a sua ―conversão‖, de 1514 até 1550, a sua vida é uma sucessão de combates
teóricos contra toda a expressão escrita ou oral desfavorável ao homem indiano
como homem, ao mesmo tempo que intervém com memoriais, projectos,
proposições concretas de colonização pacífica, parte das quais tentará, junto ao
Conselho das Índias. Designado ―protector dos Índios‖ desde a sua primeira
intervenção na corte em 1516, Las Casas fará desse título, concedido por Cisneiros,
um uso ardente e jamais desmentido em favor da liberdade dos Índios, quer dizer,
converter-se-á em impugnador sem reservas da colonização tal como ela se
processava. A intransigência absoluta de princípios junta à acção concreta para os
fazer aplicar e que foi menos ineficaz do que muitos historiadores nos querem fazer
crer, dão ao personagem Las Casas um relevo único. (LOURENÇO, 2005, p.111)
A problemática questão de relacionamento com os indígenas nas Américas iniciou-se
a partir da descoberta de Colombo, do contato e dos registros feitos por ele e noticiados na
Europa. Falar de ―encontro‖ é, de certa forma, encobrir a barbárie, pois o que ocorreu foi a
dominação do mundo europeu sobre o mundo do indígena. Como falar de encontro se as
culturas dos autóctones foram excluídas e subjugadas diante da superior cristandade europeia,
numa atitude de desprezo ao ritos, deuses e costumes dos indígenas?
A partir da descoberta, novas expedições são organizadas por outros desbravadores
com a intenção de conhecer o ―Novo Mundo‖ e as ―novas gentes‖, usufruir das riquezas e
dessa relação com os habitantes da nova terra. A grande questão é que em todas essas
expedições, organizadas com a intenção de desbravar e colonizar, os pressupostos
imperialistas e a visão eurocêntrica de mundo estiveram presentes de maneira significativa, o
que gerou um grande problema no embate com outros povos.
Segundo Edward Said (2011)10, as culturas são estruturas de autoridade e participação
criadas pelo homem. Estas podem ser benévolas no sentido em que abrangem, respeitam,
validam ou incorporam outras culturas, porém são consideradas menos benévolas se excluem
ou rebaixam o outro. Foi o que ocorreu em toda a América do Sul, a partir da chegada de
portugueses e espanhóis, pois ambos chegaram com a intenção de criar colônias de
10
SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
30
exploração com a finalidade de enriquecimento da metrópole europeia. Ainda que não
houvesse naquele momento histórico um conceito de nacionalidade definido, concordamos
com Said quando afirma que: ―Em todas as culturas nacionalmente definidas, creio eu, existe
uma aspiração à soberania, à influência e ao predomínio.‖ (SAID, 2011, p.51)
Tal afirmação de Said se aplica à nossa análise quando refletimos sobre a maneira
como a colonização portuguesa se efetivou em terras amazônicas. Os vários encontros com o
Outro não foram pacíficos, fato que pode ser comprovado ao contrapor a leitura de nosso
objeto de estudo, o poema Muraida, e os fatos históricos da empreitada colonizadora,
conforme veremos a seguir.
2.1 A empreitada colonizadora, a resistência Mura e a conversão imposta:
O título original do épico cumpre a função de identificar a obra e informa sobre o
conteúdo para suscitar o interesse dos leitores, pois é muito explicativo no que diz respeito à
intenção do poeta: Muhuraida ou o triumfo da fé na bem fundada esperança da enteira
conversão, e reconciliação da grande, e feróz nação do gentio Muhúra. Percebemos que, ao
cantar uma aparente pacificação de toda a etnia, o poeta quer reafirmar a soberania da religião
cristã em relação à dos povos ditos ―não civilizados‖. Historicamente, sabemos que a
pacificação não ocorreu de maneira geral e pacífica como o poema quer afirmar, conforme
discutiremos mais adiante. O grupo de indígenas que foi pacificado não ultrapassou o número
de vinte indivíduos que sobreviveram à dizimação de um grupo maior. Nos versos abaixo, nos
é relatado o batismo:
No templo de Maria renascidos
Na graça batismal, os inocentes
Vinte infantes, alegres conduzidos
Pelos bárbaros pais foram contentes.
Na fé de mais progresso despendidos,
Se ausentam cumulados de presentes
Penhor levando da felicidade,
Em cada filho, de anjo a qualidade.
(Mur, VI, 19, grifos nossos)11
11
Ora em diante, usaremos nas citações: Mur para Muraida e Lus para Os Lusíadas.
31
De acordo com os versos grifados, observamos o Poeta nomear os pais das crianças
Mura como ―bárbaros‖ pelo fato de não terem tido o batismo cristão e pela conhecida
resistência dessa etnia ao contato com os brancos. A partir do batismo, os filhos passam ao
estado de felicidade e são nomeados como ―anjos‖ e de acordo com esse episódio, é possível
afirmar que Muraida canta o triunfo da fé católica sobre os Mura.
Outro fator a ser observado em relação à divulgação da obra é que, devido à
impossibilidade de publicação de livros na colônia, Muraida foi publicado apenas em 1819,
em Lisboa, pela Imprensa Régia Nacional, portanto, quase trinta depois de sua composição.
Lembramos que, até o final do século XVIII, os livros que chegavam até a colônia eram
trazidos por aqueles que estudavam na Europa e mediante autorização prévia. Tal
procedimento proibitivo em relação à imprensa na colônia revela as intenções do colonizador
em impor uma cultura externa que justificaria o domínio, a ocupação e a exploração. Somente
após a chegada da família Real ao Brasil, em 1808, a imprensa foi criada, mas não de maneira
livre, pois necessitava de proteção e iniciativa oficiais.
Devido a essas questões, a primeira edição de Muraida é portuguesa e teve sua
publicação a cargo do padre português Cypriano Pereira Alho, o que gerou certas
desconfianças de que ele teria tentado se passar por autor do texto ou de que a princípio o
texto teria sido escrito em língua aborígine. Com a descoberta dos manuscritos, foi
confirmada a autoria de Wilkens, assim como o fato do poema ter sido realmente escrito em
Língua Portuguesa.
A etnia Mura era, a princípio, habitante das margens do Madeira12. Os Mura se
tornaram amplamente conhecidos como índios de corso13, isto é, corsários do caminho fluvial,
por serem adeptos da pilhagem, da pirataria:
12
O Rio Madeira tem 1450 Km de extensão. Nasce com o nome de rio Beni na Cordilheira dos Andes, Bolívia.
Ele desce das cordilheiras em direção ao norte recebendo então o rio Mamoré-Guaporé e tornando-se o Rio
Madeira - que traça a linha divisória entre Brasil e Bolívia. O rio Madeira recebe este nome, pois no período de
chuvas seu nível sobe e inunda as margens, trazendo troncos e restos de madeira das árvores.
32
Viviam em suas próprias canoas, como se fossem suas casas, e se destacavam na
resistência à ocupação pelos não índios. Sua imagem é marcada por traços
guerreiros, destemidos, conhecedores de táticas sui generis de ataque e de
emboscada, o que atemorizava e lhes concedia uma enorme fama de ―perigosos‖,
principalmente nos idos dos séculos XVII a XIX, quando impediram, por sua
presença e força física, o avanço das missões, do comércio português e das ações de
cunho militar na Amazônia, especialmente na região compreendida pelos municípios
de Autazes, Itacoatiara, Careiro da Várzea, Careiro do Castanho, Borba e Manicoré,
Estado Amazonas. (PEQUENO, s.d, p.134)
Segundo Caldas (2010)14:
Considerado por Curt Nimuendaju como ponto inicial de dispersão dos Mura, o rio
Madeira serve como local de referência para detectar aqueles índios, de onde sairiam
para se transformarem, de acordo com muitos relatos do século XVIII, nos famosos
―gentios de corso‖. Segundo a ―Lettre datée du Belém du Pará, 30 octobre 1927‖17,
os Mura, em meados do século XVIII, se estendiam a oeste até a fronteira com o
Peru (70° long. O.), a leste até Oriximiná, no rio Trombetas (56° long. L.), ao sul, do
rio Madeira até o rio Jamari (8°30‘ lat. S.) e ao norte, no rio Negro (1° lat. N.). A
partir de então, o ―padrão Mura de ocupação foi classificado como nômade, e tal
ideia perdurou por todos os depoimentos dos séculos XVIII e XIX‖, garantindo para
esses índios a condição de ―tribo errante‖. (CALDAS, 2010, p.177).
Os Mura se espalharam ao longo do rio Solimões com a intenção de escapar e resistir
ao domínio lusitano. Embora o título do épico afirme em seu título original que canta a
inteira conversão e pacificação dos Muras ─ Muhuraida ou o triumfo da fé na bem fundada
esperança da enteira conversão, e reconciliação da grande, e feróz nação do gentio
Muhúra (grifos nossos) ─ sabemos que o poema foi produzido logo após a redução de um
pequeno grupo de índios Mura assentados no rio Solimões poucos meses antes da elaboração
do poema, conforme citamos anteriormente. Utilizamos como referência os estudos da
antropóloga Marta Amoroso (2009):
13
―Os corsários não se confundem com piratas – estes agiam tanto na guerra quanto na paz. Os corsários
recebiam dos reis patentes ou cartas de corso, que lhes davam o direito de apresar navios mercantes de nações
inimigas‖. Não é estranho que se transplante o conceito para denominar índios em estado de beligerância, mas é
curioso que se revele, por trás desta denominação, o sentido de guardiães que tinham os corsários incumbidos
oficialmente pelas monarquias europeias de proteger os mares contra a circulação de embarcações identificadas
com nações inimigas. Contudo, o sentido que veio impregnar expressões como ―gentio de corso‖ ou que veio
compor considerações sobre índios como os Mura, especificamente, designa a qualidade atribuída à pirataria, ou
seja, vida nômade de pessoas que tiram seu sustento fazendo guerras e saques. (Lello Universal, p.660 apud
Almeida, 1997)
14
CALDAS, Yurgel.―Eles são muitos e incontáveis: estratégias coloniais emigratórias dos índios Mura contra o
processo pombalino para o domínio amazônico, a partir de Muhuraida, de Henrique João Wilkens‖. Novos
Cadernos NAEA, v. 13, n. 1, 2010. p. 171-198.
33
Data de meados 1784 a criação dos primeiros aldeamentos leigos de índios Mura
―pacificados‖. Estes aldeamentos eram frequentados pelos Mura na época da
colheita das roças. O resto do tempo a população mantinha hábitos tradicionais de
pesca, caça e coleta, utilizando para tanto os furos e igarapés do sistema hidrográfico
do rio Madeira. Embora discutíveis do ponto de vista da eficácia da sedentarização
da população que diziam abrigar, estes aldeamentos marcaram, no entanto, uma
nova fase de convivência destes grupos nativos com a colônia. 15
Conforme já dissemos, Wilkens se serviu de fatos históricos ocorridos na região
amazônica para compor seu épico, fato que assinala uma forte tendência das primeiras
manifestações literárias produzidas sobre ou na região amazônica. Segundo Márcio Souza
(2010, p.73)16:
Quando João Wilkens escreveu o seu poema, a empresa colonial já havia fundado as
suas raízes no mundo descoberto, exigindo que sua expressão somente se arrebatasse
quando submetida à prova de comparação, isto é, somente quando o próprio feito se
concretizasse pela força do poder, pela cultura nacional ou, radicalmente, pela
ordem de El rei. A Muhraida é um desses momentos de comparação: trata da derrota
dos Muhra, ferozes guerreiros que jamais aceitariam a dominação branca de suas
terras e resistiram até o século XIX.
Neste sentido, podemos afirmar que o texto literário funciona não apenas como uma
proposta estética, mas como uma importante fonte de conhecimento histórico, político e
geográfico que reafirma o domínio imperial num espaço que não estava vazio de cultura, mas
que era forçado a se submeter ao domínio cultural introduzido pela empreitada colonizadora
portuguesa. Ao observar a interação entre índios e não-índios, o colonizador acreditou que
seria possível deflagrar um processo de aculturação e impor a sua cultura como única. No
entanto, a partir dos estudos antropológicos mais recentes, sabe-se que diferentemente do que
supunha essa teoria, os indígenas não perderam a sua identidade étnica e nem foram
assimilados pela sociedade branca como um igual.
De acordo com essa perspectiva, podemos afirmar que Muraida enceta uma discussão
a respeito da ideologia das relações estabelecidas entre índios e brancos no processo de
colonização. O índio, bem longe do arquétipo de herói nacional, nos é apresentado como
15
AMOROSO,
Marta
Rosa.
Instituto
Socioambiental
|
Povos
,http://pib.socioambiental.org/pt/povo/mura/print. (último acesso em 08/01/2014)
16
SOUZA. Márcio. A expressão Amazonense. Manaus: Valer, 2010.
Indígenas
no
Brasil
34
representação do Mal. Dessa forma, contrariando a teoria do bom selvagem citada
anteriormente, pois, se o índio Mura é Mal porque não se coaduna com a ideologia
portuguesa, com ―a sociedade civilizada‖, ele está em estado natural ou selvagem, logo
deveria ser considerado BOM. Mas não é isso que ocorre. Ele é considerado MAU justamente
pelo fato de rejeitar a luz trazida pelo milagre da graça divina:
Na densa treva, assim, da adversidade,
Do terror, do receio e da incerteza,
Vivia absorto o povo da cidade,
Das vilas, do sertão, em que a fereza
Dos bárbaros Muras, sem piedade,
Amontoando estragos, sem defesa
Achava o vigilante e o descuidado,
De todos sendo igual a sorte, o fado.
(Mur, II, 3)
Conforme observamos nos versos acima, enquanto habitante das ―trevas‖, os Mura
levavam horror ao povo da cidade. Para se salvar das densas trevas da gentilidade, os Mura
teriam que se adequar aos interesses expansionistas e aceitar o batismo católico para estar a
salvo da torpeza, pois afinal a doutrina católica de poder adotada por Portugal reforçava a
concórdia e a amizade para nascer a paz, mas para assegurá-la, a Coroa utilizava-se de
diversos expedientes violentos.
Segundo João Adolfo Hansen (1998)17:
Na ―política católica‖, as táticas e as estratégias adotadas na redução dos selvagens e
bárbaros são definidas como um direito e um dever, pois a subordinação ou a
extinção deles significa caridade para com os indivíduos e amor do bem comum. Na
propaganda fidei jesuítica, a alma do índio deve ser salva do inferno por meio da
conversão; pode-se mesmo obrigá-lo a ser salvo, pois é preferível que seja cativo e
tenha a alma salva a que viva a liberdade natural do mato com ela condenada ao
inferno. Na prática de Nóbrega, Anchieta, Luis da Grã e Cardim, no Nordeste, no
Espírito Santo, no Rio de Janeiro e em São Vicente, no século XVI, e na de Vieira,
No Maranhão e Grão-Pará, no século XVII, encontra-se, justificando as
intervenções, a afirmação reiterada de que a lei positiva das sociedades indígenas é
plenamente legal, como convenção humana que regulamenta a vida coletiva, pois o
direito canônico estabelece que as sociedades humanas não dependem da revelação
cristã para se instituírem politicamente. Mas o fato de as sociedades indígenas
estarem corrompidas pelas ―abominações‖ de costumes bárbaros e atrozes, que
17
HANSEN, João Adolfo. ―A servidão natural do selvagem e a guerra justa contra o bárbaro‖. In: NOVAES,
Adauto (org.). A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 347-73.
35
evidenciam a ação do diabo, impõe o dever de reduzi-las à primeira verdade
perdida ou talvez esquecida, a Palavra de Deus, legitimando-se sua participação
hierarquizada na divindade por meio dos sacramentos católicos, como o
batismo, que a tornam visível. Em, 1657, numa carta enviada do Estado do
Maranhão e Grão-Pará ao rei D. Afonso VI, de Portugal, Vieira escreveu que, nos
quarenta anos anteriores, os portugueses haviam matado 2 milhões de índios na
Amazônia. O maior horror, segundo ele, era pensar que tantas almas postas sob a
jurisdição de um reino que tinha por missão expandir a fé católica, haviam
morrido sem o batismo e ardiam no inferno. (p.352-353, grifos nossos)
Ainda a respeito do horror e do assassinato de milhões de indígenas denunciados por
Padre António Vieira, recorremos à tese sete de Walter Benjamin em ―Sobre o conceito de
História‖. O autor situa a barbárie no interior da cultura ou da civilização, recusando a
dicotomia tradicional do Ocidente que localiza a barbárie no Outro, situando-a no exterior:
Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal em que os
dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os
despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são os que
chamamos de bens culturais. Todos os bens materiais que o materialista histórico vê
têm uma origem que ele não pode contemplar sem horror. Devem sua existência não
somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima de
seus contemporâneos. Nunca houve um monumento de cultura que também não
fosse um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie,
não é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do
possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a
história a contrapelo. (BENJAMIN, 1994, p.225)
A tese benjaminiana coloca a barbárie não apenas como o avesso da civilização, mas
como o pressuposto dela. A própria civilização engendra a barbárie ao produzir-se como
cultura e ao se intitular como superior às demais culturas consideradas bárbaras. Dessa forma,
o elemento bárbaro não está no Outro, está no civilizado, em seu próprio movimento de
criação e transmissão da cultura. A partir da leitura de Benjamim, percebemos os episódios
históricos como testemunho da barbárie que se perpetrou ao longo dos séculos de colonização
europeia nas Américas. O horror é causado a partir da leitura de documentos que
testemunham e atestam o ―cortejo triunfal dos vencedores pisoteando os corpos dos
vencidos‖. O desafio dos estudos pós-coloniais está em desvelar o passado que foi silenciado
e ―ouvir‖ os testemunhos.
36
Nesse sentido, faz-se necessário ratificar que Muraida registra, sob o olhar do
colonizador português, um contexto histórico fortemente dominado pelas forças políticas e
econômicas portuguesas, e a subordinação não só dos índios, mas da colônia do Grão-Pará e
Maranhão aos interesses portugueses. Isto posto, precisamos olhar para outras áreas do
conhecimento para compreender os textos literários do período colonial:
Em efeito, sobretudo quando nos aproximamos ao conjunto de formações
discursivas observadas no Novo Mundo, entre os séculos XV e fins do século XVIII,
na América Hispânica e até o princípio do século XIX, no Brasil - a história
propriamente colonial -, a linguagem necessita desfazer as fronteiras disciplinárias e
assumir uma ampla visão cultural, em um espaço de fusão, de intersecção de
disciplinas, tais como: a história cultural, a sociologia da cultura, a história literária,
a história das idéias, a semiologia, a crítica literária ou a antropologia cultural e
simbólica, entre outras. (PIZARRO, 1993, p.19 )
No diálogo entre as áreas do conhecimento, percebemos que os estudos culturais
contribuem para a compreensão do texto literário no que diz respeito à realidade indígena de
fato, pois, se nos basearmos somente na voz do Poeta, o que teremos será uma reiteração da
visão europeia a respeito dos indígenas imposta desde a chegada de Colombo. Tal visão sobre
o indígena permanece até os dias atuais, e amplamente colabora para o massacre cultural e
para a perpetuação de uma negação identitária indígena. Segundo Marta Amoroso:
Os Mura acumulam uma longa história de contato com a sociedade envolvente.
Desde tempos remotos, colonos e missionários católicos construíram e
disseminaram fortes estigmas contra tal povo, a ponto de recusar-lhes até mesmo a
condição de seres humanos. Em meados de 1714 foram realizadas as primeiras e
totalmente frustradas tentativas de redução dos Mura aos aldeamentos da
Companhia de Jesus na região do Madeira. Desde então, foram vistos como ameaças
aos estabelecimentos implantados na região junto a outros povos, devido aos
frequentes ataques contra tais núcleos, bem como contra as embarcações comerciais
que atuavam nos cacauais nativos do rio Madeira. A história da Vila de Trocano,
nome colonial de Borba, a primeira vila da Amazônia, ilustra este período:
acossados pelos Mura, os jesuítas transferiram Trocano de lugar cinco vezes.18
A citação de Amoroso reitera a forte estigmatização dos indígenas como seres abaixo
da condição humana ou civilizacional e, apesar de a muitos parecer que o massacre terminou
18
AMOROSO,
Marta
Rosa.
Instituto
Socioambiental
|
Povos
http://pib.socioambiental.org/pt/povo/mura/print. (último acesso em 08/01/2014)
Indígenas
no
Brasil,
37
com o fim da colonização, basta observar como nos centros culturais brasileiros, no Rio de
Janeiro e em São Paulo, por exemplo, a figura do indígena ainda é apresentada pela mídia de
maneira controversa. Se, por um lado, o temos como símbolo de herói nacional, um dos
elementos fundadores de nossa identidade, por outro lado, observamos fatos que comprovam
que as culturas indígenas foram aniquiladas e são permanentemente segregadas da nossa
sociedade.
Mesmo que a partir da Constituição de 1988 se tenha a impressão de que haja um
respeito maior pelo índio, com a crescente extensão de terras demarcadas e o crescimento
demográfico e político-cultural do indígena, observamos que na prática os fatos não ocorrem
com tanta tranquilidade devido aos constantes conflitos por disputas de terra. São constantes
os conflitos por terras em regiões ainda habitadas por indígenas que disputam com os grandes
latifundiários o direito às suas terras e à preservação de sua cultura em pleno século XXI,
inclusive sendo ainda dominados por flagrantes interesses religiosos, políticos e, sobretudo,
econômicos.
Tal processo conflituoso foi iniciado durante o processo de colonização portuguesa,
quando os índios foram submetidos às ―guerras justas‖, ou seja, guerras contra os índios que
não se submetiam aos interesses religiosos, políticos e econômicos dos colonizadores
lusitanos. Em consequência dessas guerras, os índios tornavam-se escravos e eram vendidos
na sede do Grão-Pará, em Belém e em outras colônias. Podemos dizer, em última instância,
que o termo ―guerras justas‖ funciona como um eufemismo cínico para um amplo processo de
dizimação indígena ─ a aniquiliação do Outro.
Segundo Hansen (1998):
A legitimidade das ―guerras justas‖ contra os bárbaros do Brasil também pressupõe
Deus. Então, a ―guerra justa‖ é doutrinada e regrada reciclando-se tópicos medievais
do direito canônico. Ela é dada como uma situação de exceção relativamente à
centralidade do poder monárquico, tido pelos agentes colonizadores como natural,
legítimo e pacífico, porque o pacto que o estabelece está fundado na ética e na
metafísica cristãs. A caracterização da guerra como situação de exceção, contudo,
desloca e encobre o fato de que o próprio poder central, que se afirma natural,
38
legítimo e pacífico, é também um poder de exceção, uma vez que não há poder
naturalmente instituído. (p.349-350)
Vale ressaltar que a dizimação não foi iniciada a partir destas guerras, mas já vinha
sendo perpetrada desde os primórdios da colonização europeia e foi provocada através do
contato com o homem europeu, que trouxe a fome e as epidemias de gripe, varíola, sarampo.
No encontro entre o Velho e o Novo Mundo, populações indígenas densas foram vítimas do
colonizador que chegou sem considerar que esses povos eram possuidores de várias histórias
próprias a cada etnia de ancestralidade milenar. Reprimir o diferente e o discordante passou a
ser uma operação justificada, a tônica do processo de colonização portuguesa, em nome de
uma verdade fornecida pela razão colonialista europeia.
Conforme aponta Adélia Engrácia de Oliveira19, os Mura abrangeram uma grande área
de ação que se estendia da fronteira do Peru até o Trombetas, e se destacaram por seus
destemor em defender as suas terras usando técnicas especiais de ataque. Transformados em
―vilões‖ pelo discurso do colonizador: ―essa inversão de valores deve-se ao fato, já conhecido
por vários estudiosos das questões indígenas, da manipulação de estereótipos pelos
colonizadores, numa tentativa de justificar as ações expansionistas praticadas‖ (1986, p.2)
É certo afirmar que os Mura representavam um impedimento à livre circulação dos
portugueses e atacavam as canoas que iam ao comércio das drogas do sertão, como por
exemplo, o cacau. A autora comenta que, a partir da resistência dos Mura, a guerra contra o
indígena era considerada ―justa‖: quando ele atacava ou roubava o colono, quando se opunha
ao cristianismo e quando se recusava a auxiliar os portugueses contra outros grupos étnicos:
Sabe-se que com a finalidade de pregar o Evangelho e converter almas, os
missionários desciam índios do mato para aldeias que floresciam, tanto
compulsoriamente como pela persuasão, destribalizando-os e deculturando-os. Esse
processo, aliás, também ocorria com a procura de mão-de-obra que escravizou
muitos índios para o trabalho com os ―frutos da terra‖ e em serviços públicos e
19
CEDEAM. Autos da devassa contra os índios Mura do rio Madeira e nações do rio Tocantins (1738-1739):
fac-símiles e transcrições paleográficas. Introdução de Adélia Engrácia de Oliveira. Manaus: Universidade do
Amazonas; Brasília: INL, 1986.
39
domésticos como a construção de casas e igrejas, remeiros, salgações de peixe,
fabricação de manteiga de tartaruga e roçado, entre outros. (p.2)
Neste momento, recorremos às reflexões de Homi Bhabha20 a respeito do discurso do
colonizador e o modo como ele representa a alteridade, que está intrinsecamente ligado à
forma como o pensamento ocidental se encontra desdobrado nesses discursos, utilizando
estratégias de estigmatização e marginalização: ―O objetivo do discurso colonial se concentra
em construir o colonizado como população do tipo degenerado, tendo como base uma origem
racial para justificar a conquista e estabelecer sistemas administrativos e culturais‖ (1998,
p.181). O autor também observa que: ―Para que seja institucionalmente eficiente como
disciplina, deve-se garantir que o conhecimento da diferença cultural exclua o Outro.‖ (1998,
p.128).
Se, para Homi Bhabha, o discurso colonial procura legitimar-se por meio da exclusão
e da produção do saber estereotipado do colonizador sobre o colonizado é porque a linguagem
teórica utilizada para tal constitui-se como estratégia fundamental para atingir os objetivos do
colonizador.
Dessa forma, o discurso colonial funciona como aparato de poder que emerge
do colonizador, mas que frutifica no colonizado. Ao ser manipulado por forças opressoras que
negam a sua alteridade, o colonizado resiste até a morte ou se apropria do discurso do
colonizador, como veremos mais detalhadamente no Capítulo 4 deste estudo, quando o Mura
Jovem é persuadido pelo mensageiro celeste, um Anjo disfarçado de Mura, a seguir os
preceitos cristãos e convencer os demais membros de sua tribo a se converterem à fé católica.
O episódio de conversão narrado em Muraida e comprovado historicamente é uma
exceção em meio a tantos outros conflitos sanguinolentos que ocorreram entre os Mura e os
colonos portugueses após décadas de confronto.
20
BHABHA, Homi. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila; Eliana Lourenço de Lima Reis; Gláucia Renate
Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
40
Quando o Diretório Pombalino foi fundado em 1757, a liberdade formal aos índios
foi garantida, porém os Mura continuaram a ser uma exceção, uma vez que eram considerados
inimigos oficiais da Coroa. A Carta Régia de 1798 também excluiu os Mura dos benefícios da
Lei, juntamente com os Karajá e os Munduruku, etnias que também apresentavam resistência
à dominação portuguesa. Uma vez que essas etnias eram consideradas ―irredutíveis‖ e
―incivilizáveis‖, tornavam-se exceções às Leis de Liberdade, e o assassinato e a escravidão
eram impetrados contra essas populações de maneira oficial. Marta Amoroso21 diz:
Tais situações e visões passaram a fundamentar tanto a práxis da violência quanto as
leis de exceção para com os Mura. As primeiras denúncias contra tais povos se
deram na fase de hegemonia da Junta das Missões, entidade com atribuições
jurídicas, formada pelas ordens religiosas católicas atuantes no Grão-Pará até 1755.
Algumas dessas ordens tinham comprovado interesse mercantil no rio Madeira. Os
jesuítas, por exemplo, exploravam os seus cacauais nativos (Azevedo, 1919) e de tal
indústria extrativa efetuavam um volume significativo de exportações. Para esses
empreendimentos, a presença mura às margens do rio Madeira representava uma
ameaça que deveria ser combatida.
Apesar de dados históricos que apontam um amplo processo de ―limpeza étnica‖
para combater a ameaça Mura contra o comércio das drogas do sertão e para que o
colonizador pudesse levar a cabo o expansionismo, o texto de Wilkens enaltece o caráter
unificador da pacificação através da luz divina. O poema esvazia o caráter bélico dos embates
entre os Mura e os colonizadores e valoriza apenas os ataques dos Mura contra os brancos e
contra outras etnias sem nenhuma razão plausível, apenas por estarem investidos do Mal,
conforme podemos verificar no início do Prólogo que antecede o poema:
O feroz, indomável e formidável Gentio Muhura, ou Muhra, conhecido há mais de
Cinquenta Anos. Habitador dos densos bosques e grandes lagos do famoso rio
Madeira, confluente do célebre rio do Amazonas, no Estado do Grão-Pará, primeira
Capitania-Geral, e a mais Setentrional de todas as conquistas portuguesas na
América Meridional, sempre foi fatal aos navegantes do dito rio Madeira, no
comércio que o Pará cultivava com a capitania do Mato Grosso; sendo este Gentio
de corso igualmente cruel e irreconciliável Inimigo dos portugueses, dos índios, dos
bosques ainda habitadores, matando cruelmente e sem distinção de sexo, ou idade,
todos os viajantes e moradores das povoações, roubando-os, e levando as mulheres
moças e crianças, que do estrago escapavam, destinadas a um cruel cativeiro,
21
AMOROSO, Marta Rosa. Instituto Socioambiental | Povos
http://pib.socioambiental.org/pt/povo/mura/print. (último acesso em 08/01/2014)
Indígenas
no
Brasil
,
41
permitindo, contudo, a Divina Providência que nunca familiarizar-se pudessem com
o uso das armas de fogo, às quais tinham o maior horror; e achadas, ou totalmente
quebravam ou ao rio arrojavam; ou em pedaços reduziam para pontas de flechas, das
quais usam com grande destreza e força. (Mur, 2012, p.23)
Conforme diz o poeta, os Mura espalhavam o terror independentemente das ações
dos brancos, ―até que a Divina Providência, sempre tão inscrutável, como adorável em seus
desígnios e fins, foi servida no ano de 1784‖ (Mur, 2012, p.24). As razões da resistência Mura
não são discutidas no épico e a rendição ocorre como por encanto, por intervenção da Graça.
A começar pelo título, ―... na bem fundada esperança da enteira conversão, e reconciliação
da grande, e feróz nação do gentio Muhúra”, em que podemos observar como sutilmente é
sugerida a dizimação cultural e física contra esse povo que emperrava o processo de
colonização na segunda metade do século XVIII, sofrendo um largo processo de aniquilação
tribal que durou até o século XIX.
O historiador Francisco Jorge dos Santos (2002, p.26)22 afirma que: ―No século
XVIII, as modalidades de recrutamento da força do trabalho indígena continuavam, e sempre
acompanhadas por combates, massacres e aprisionamentos‖. Portanto, a milagrosa
pacificação e conversão cantadas no épico referem-se a episódios isolados, em que os Mura se
submetiam à dominação branca:
Data de meados 1784 a criação dos primeiros aldeamentos leigos de índios Mura
―pacificados‖. Estes aldeamentos eram freqüentados pelos Mura na época da
colheita das roças. O resto do tempo a população mantinha hábitos tradicionais de
pesca, caça e coleta, utilizando para tanto os furos e igarapés do sistema hidrográfico
do rio Madeira. Embora discutíveis do ponto de vista da eficácia da sedentarização
da população que diziam abrigar, estes aldeamentos marcaram, no entanto, uma
nova fase de convivência destes grupos nativos com a colônia. 23
Os descendentes Mura, que resistiram e sobreviveram, atualmente moram em
comunidades dispersas e em número bem inferior em relação à sua população do passado.
22
SANTOS, Francisco Jorge dos. Além das Conquistas e rebeliões indígenas na Amazônia pombalina. 2.ed.
Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 2002.
23
Fonte: http://noamazonaseassim.com.br/tudo-sobre-os-povos-indigenas-mura/ (acessado em 12-10-2013)
42
Alguns desses grupos lutam para reafirmar suas raízes; outros grupos são destituídos da maior
parte de seus costumes tradicionais.
Através da pesquisa realizada, foi possível perceber como os indígenas de diversas
etnias eram vistos como sujeitos indispensáveis aos interesses lusitanos, que tinham por
objetivo ocupar o território pertencente a eles após o Tratado de Madri. Dessa forma, o
indígena torna-se o ―ouro vermelho‖ e é colocado no centro da disputa de poder. Pelo grande
conhecimento da natureza local e pela força física, os índios seriam a força bruta dos
colonizadores. Portanto, criar uma mão-de-obra indígena naquele momento significava
estabelecer condições efetivas para a força de trabalho em prol da colonização da região.
Segundo Santos (2002), além de utilizar a força física dos índios, o objetivo era
dominá-los mentalmente e torná-los povos ―civilizados‖ pelo modelo de vida europeu.
Principalmente, no que diz respeito à imposição da Língua Portuguesa e da religião católica,
pois o cristianismo, devido ao seu caráter universal e de acordo com o pensamento
eurocêntrico, funcionava no sentido de anular o respeito às diferentes crenças.
Impor uma religião é desconstruir todo um sistema de crenças prévias e de referências
culturais que um determinado povo traz em sua tradição. Da mesma forma, a imposição de
uma nova língua, com a consequente negação da língua nativa, constitui a retirada da maior
referência de um povo, pois a língua é o maior sistema de referências e de símbolos que uma
cultura pode manter. Cabe lembrar que, desde a antiguidade grega, ―bárbaro é aquele que não
fala a mesma língua‖; portanto, para atingir o intento, seria necessário dominar pelo discurso
e impor a língua do colonizador. A língua constitui-se como um convite à reunião, à
organização de uma comunidade e traz em si toda a carga cultural que um determinado grupo
étnico acumulou através dos tempos. No caso específico dos Mura, eles falavam uma língua
própria, a língua Mura, mas ao longo do processo de colonização a foram perdendo:
43
Desde as primeiras notícias do século XVII são descritos como um povo navegante,
de ampla mobilidade territorial e exímio conhecimento dos caminhos por entre
igarapés, furos, ilhas e lagos. Em seu longo histórico de contato, sofreram diversos
estigmas, massacres e perdas demográficas, linguísticas e culturais. Originariamente
falantes de uma língua isolada, os Mura passaram a utilizar o Nheengatú (Língua
Geral Amazônica) no intercâmbio com brancos, negros e demais populações
indígenas.24
Em relação à violência engendrada contra os indígenas, apontamos não somente a
violência física perpetrada através dos massacres, mas também referimo-nos à violência
simbólica, conceito elaborado pelo sociólogo Pierre Bourdieu (2012)25. A violência simbólica
refere-se a uma forma de coação que se reconhece em uma imposição determinada, seja esta
econômica, social ou simbólica. Desta forma, percebemos como essa violência esteve
presente nas raízes de nossa colonização, já que através da visão europeia sobre o mundo
ocidental, uma extensa fabricação de crenças no processo de socialização induziu os indígenas
a se posicionarem socialmente seguindo critérios e padrões do discurso dominante e
legitimando esse discurso. Segundo Bourdieu (2012), a violência simbólica é um dos meios
de exercício do poder simbólico. Desta forma, a utilização da língua geral durante o processo
de colonização é uma das marcas dessa violência. Segundo Marta Amoroso,
A língua geral, arquitetada pelos jesuítas a partir das línguas Tupi-Guarani da costa,
foi até a expulsão dos jesuítas e a criação do governo laico do Diretório Pombalino
(1755), a língua oficial da colônia no Grão-Pará, imposta a todos os nativos nas
missões, nas relações comerciais e nos esforços de disciplinarização para o trabalho.
Até o século XIX, os Mura a utilizavam amplamente na comunicação com colonos,
missionários, escravos negros e outros povos indígenas. Isto, entretanto, não quer
dizer que houvessem abandonado a língua Mura. No século XX, o Nheengatu
perdeu para o Português o papel de língua franca intercultural. (AMOROSO, 2009,
s.p)
Segundo Bourdieu, tanto a língua quanto a religião constituem-se como sistemas
simbólicos estruturantes, e esses funcionam como instrumentos de conhecimento e de
24
AMOROSO,
Marta
Rosa.
Instituto
Socioambiental
| Povos
http://pib.socioambiental.org/pt/povo/mura/print. (último acesso em 08/01/2014)
25
Indígenas
no
Brasil,
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 16ª ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2012.
44
comunicação capazes de exercer um poder simbólico pelo fato de serem estruturados e porque
simbolizam instrumentos de integração social. Portanto, utilizando a dominação linguística e
religiosa ficaria muito mais fácil atingir os objetivos traçados pelos colonizadores
portugueses:
As ideologias, por oposição ao mito, produto coletivo e colectivamente apropriado,
servem interesses particulares que tendem a apresentar como interesses universais,
comuns ao conjunto do grupo. A cultura dominante contribui para a integração real
da classe dominante (assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus
membros e distinguindo-os das outras classes); para a integração fictícia da
sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das
classes dominadas; para a legitimização da ordem estabelecida por meio do
estabelecimento das distinções (hierarquias) [...] a cultura que une (intermédio da
comunicação) é também a cultura que separa (instrumento de distinção) e que
legitima as distinções compelindo todas as culturas (designadas como subculturas) a
definirem-se pela sua distância em relação à cultura dominante.
(BOURDIEU, 2012, p. 10-11)
Nesse processo de ocidentalização, o índio, como aponta Silviano Santiago26, é
duplamente despojado, pois o europeu impõe a sua história, mais precisamente o português
impõe a sua versão da história ao índio, vivendo-a no palco de sua própria terra. E por uma
ironia, chegando ao século XX, essa terra indígena já nem é mais sua, pois o colonizador a
tomou para si numa atitude de despojamento cultural e de propriedade. Para aqueles que eram
considerados ―tabula rasa‖ e agora são considerados hereges possuídos pelo Mal
resta
memorizar e defender como se fosse seu o discurso do outro, do colonizador. A conversão
indígena aos preceitos católicos significa uma dupla ação de violência cultural, pois, ao
mesmo tempo em que tenta eliminar a sua cultura original, impõe a história europeia como se
fosse a história do indígena:
Dentro dessa perspectiva etnocêntrica, a experiência da colonização é basicamente
uma operação narcísica, em que o outro é assimilado à imagem refletida do
conquistador, confundido com ela, perdendo portanto a condição única da sua
alteridade. Ou melhor: perde a sua verdadeira alteridade ( a de ser outro, diferente) e
ganha uma alteridade fictícia ( a de ser imagem refletida do europeu). O indígena é o
Outro europeu: ao mesmo tempo imagem especular deste e a própria alteridade
indígena recalcada. Quanto mais diferente o índio, menos civilizado; quanto menos
civilizado, mais nega o narciso europeu; quanto mais nega o narciso europeu, mais
exigente e premente a força para torná-lo imagem semelhante; quanto mais
26
SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e terra,
1982.
45
semelhante ao europeu, menor a força da sua própria alteridade [...] (SANTIAGO,
1982, p.15-16)
Dessa forma, faz-se necessário ressaltar um fator singular em relação ao exercício do
poder simbólico que foi capaz de engendrar a assimilação de milhares de indígenas: a atuação
dos padres jesuítas no processo de colonização. A Companhia de Jesus desempenhou papel
fundamental nesse processo, por não utilizar a violência física como método de coerção para
conseguir atingir seus objetivos. Além de constituir a elite religiosa da Igreja Católica, através
de uma ordem religiosa bem preparada e intelectualmente capaz de se comunicar com os
povos nativos, os padres jesuítas eram dotados de um grande poder de persuasão e
convencimento em relação aos povos indígenas. Percebemos, através dos versos de Muraida,
vários episódios que comprovam a forte presença das ordens religiosas na Amazônia. Por
exemplo, no Argumento inicial do Canto II, o poeta anuncia que as tentativas religiosas não
são suficientes para ―abrandar‖ os Mura:
Já frustrados os meios, que a brandura
Da religião e humanidade inspira,
Quando os da força desviar procura
Do Onipotente se suspende a ira,
Um paraninfo desce, ao feliz Mura,
Disfarçado, anuncia a Luz, que gira
Da Fé, na órbita eterna, sacrossanta;
O apóstata confunde; ao Mura espanta.
(Mur, II)
Desta forma, percebemos nos versos acima que após as frustradas tentativas religiosas,
apenas um milagre poderia resolver a resistência Mura. Então, o Mura celeste é enviado para
intervir no processo de pacificação.
Durante o processo de colonização, os jesuítas vieram para colonizar, catequisar e
dominar várias comunidades indígenas sob o discurso da moral cristã. Eles impuseram um
regime de disciplina e obediência jamais visto. Seguindo a doutrina dos jesuítas, e convertidos
ao catolicismo, os índios tornaram-se ―escravos‖ sem perceber que o eram e produziram
muitas riquezas para a Companhia de Jesus. Diante desse cenário, os índios em nada se
46
pareciam com a fama de preguiçosos e avessos ao trabalho, conforme apregoado por alguns.
Contra esse argumento de aversão ao trabalho, citamos Sérgio Buarque de Holanda (1994)27,
para lembrar a atuação dos jesuítas em relação aos indígenas:
Nenhuma tirania moderna, nenhum teórico da ditadura do proletariado ou do Estado
Totalitário, chegou sequer a vislumbrar a possibilidade desse prodígio de
racionalização que conseguiram os padres da Companhia de Jesus em suas missões .
(HOLANDA, 1994, p.11)
Portanto, a pretensa fama de avessos ao trabalho relacionada aos indígenas, na
verdade, revela um olhar preconceituoso do colonizador sobre o colonizado, pois o sistema de
valores do indígena é outro, diverso do caráter mercantil do colonizador. Da mesma forma
que Colombo estranhava os índios aceitarem objetos sem valor em troca de ouro, o sistema de
valores estabelecidos entre europeus em nada se parecia com o sistema estabelecido entre os
indígenas. O colonizador via o trabalho como forma de enriquecimento rápido, enquanto os
habitantes autóctones o utilizavam apenas para subsistência. Devido a esse impasse e à defesa
da não-escravização dos índios, tempos depois no processo de colonização, a mão de obra
tornou-se negra, para dar conta da vasta produção latifundiária implantada no Brasil.
Após as Leis de Liberdades, em 1755, os jesuítas foram expulsos pelo Marquês de
Pombal, já que os seus interesses atrapalhavam os do governo e representavam um obstáculo
ao projeto pombalino de trabalho indígena, devido à relação de trabalho e de comunidade que
os padres estabeleciam com os indígenas. Após essa expulsão, houve para os índios apenas
uma troca de senhores, porém senhores menos benevolentes que os padres que os protegiam
da escravidão e do massacre.
Segundo António Sérgio (1978)28:
A paixão maior de Pombal foi o ódio aos jesuítas, - que atacou, nem sempre com
os motivos com que nós hoje o criticamos, mas às vezes pelos motivos precisamente
contrários. Em setembro de 57 desferiu o Ministro o primeiro golpe, quando foi
demitido o confessor do rei, jesuíta, e proibidos os jesuítas de entrar na corte.
27
HOLANDA. Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. RJ: José Olympio, 1994.
SÉRGIO, António. Breve interpretação da História de Portugal. Lisboa: Livraria Sá da Costa editora, 8ª ed,
1978.
28
47
Depois, denunciou a Ordem perante o papa (Benedito XIV) que nomeou o cardeal
Saldanha, amigo de Pombal, ―visitador e reformador‖ da Companhia de Jesus. Este,
em 15 de maio de 1758, proibiu o comércio aos jesuítas. Uma tentativa contra o rei,
na noite de 3 de setembro de 1758, deu pretexto para mais afinco na supressão da
Companhia, que Pombal declarou cúmplice na tentativa de regicídio. Depois de
sumário julgamento, foram executados em Belém o duque de Aveiro, o marquês e a
marquesa de Távora, o conde de Atougguia e outras personagens, com requintes de
crueldade .Em 19 de janeiro de 59, eram confiscados os bens pertencentes à
Companhia; em 3 de setembro, expulsos de Portugal todos os seus padres; e ainda
quatro anos depois satisfazia Pombal o seu rancor, mandando queimar pela
Inquisição o pobre jesuíta Malagrida, velhinho doido, que escrevera e declamara
alguns dislates em prosa mística. A confiscação dos bens dos condenados deu
importantes somas ao Tesouro. (p.105-106, grifos nossos)
Com a saída dos Jesuítas, os colonizadores enviados às missões pelo Marquês de
Pombal vieram da Europa com uma enorme disposição para desbravar o ―Novo Mundo‖. Eles
precisaram de um grande espírito aventureiro para enfrentar o clima e as diversas variantes
dos trópicos. A ânsia pela prosperidade sem custo e sem trabalho demorado, a busca por
títulos honoríficos e por riquezas fáceis fizeram com que os colonizadores, seja pelo
argumento da religião seja pela ampliação do império ultramarino, viessem com toda a força
para a colônia do Grão-Pará e Maranhão.
Em contato com a cultura local, os portugueses mostraram grande capacidade de
adaptar-se ao meio e às condições adversas que o novo continente lhes apresentava.
Demonstrando disposição para a aventura, os portugueses foram colonizadores voltados para
a exploração:
O princípio que, desde os tempos mais remotos da colonização, norteara a criação da
riqueza no país, não cessou de valer um só momento para a produção agrária. Todos
queriam extrair do solo excessivos benefícios sem grandes sacrifícios. Ou, como já
dizia o mais antigo dos nossos historiadores, queriam servir-se da terra, não como
senhores, mas como usufrutuários, ―só para a desfrutarem e a deixarem destruída‖.
(Frei Vicente do Salvador Apud HOLANDA, 1994, p.21)
Em Raízes do Brasil, Sergio Buarque de Holanda analisa a colonização espanhola e
portuguesa na América através da analogia entre o semeador e o ladrilhador. Segundo o
autor, o semeador é o colonizador português e o ladrilhador é o colonizador espanhol; ele
aproxima e diferencia os vizinhos ibéricos no sentido de explicar como dois povos que
estiveram unidos em certos momentos da História ibérica puderam encetar diferentes formas
48
de colonização nas colônias americanas. Enquanto a Coroa espanhola fundava cidades no
interior de suas colônias, permitia a abertura de universidades e o uso da imprensa, a Coroa
portuguesa ―semeava‖ cidades pouco planejadas nos litorais e sem infraestrutura adequada,
cujo objetivo era o enriquecimento rápido e fácil. Quanto mais perto das águas, mais fácil
seria o escoamento das riquezas para a metrópole portuguesa.
Dessa forma, o colonizador português não demonstrava esforços para que a colônia
fosse uma extensão do Reino. As sementes eram jogadas de forma aleatória e sem a intenção
de permanência, atitude colonizadora que atualmente pode ser percebida em muitas cidades
que não tiveram nenhum planejamento de crescimento e permanecem desordenadas. Já o
colonizador espanhol era meticuloso em suas construções.
A respeito do modelo de colonização encetado pelos portugueses, recorremos também
às reflexões de Boaventura de Sousa Santos, em Entre ser e estar: raízes, percursos e
discursos de identidade29 para que possamos observar as variantes envolvidas no processo de
colonização portuguesa. Suscitamos aqui as relações que o autor estabelece entre Próspero e
Caliban30: Próspero, representando a figura do colonizador, e Caliban, a figura do colonizado.
Este último, nomeado como anagrama da palavra canibal, representa o estereótipo de
selvagem designado pelos brancos. Porém, Caliban é também aquele que sobrevive, aquele
que resiste ao domínio de Próspero, ainda que sua cultura seja massacrada e substituída pela
cultura branca. Estabelecendo relações sobre esses personagens e a conflituosa relação entre
os Mura e os portugueses, indagamos: afinal, não seria Próspero o verdadeiro bárbaro, aquele
que não respeita a cultura e o espaço do Outro? Retomaremos essa discussão no capítulo 4, ao
discutir as relações entre o Mura e o Mouro.
29
SANTOS, Boaventura de Sousa. ―Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e interidentidade.‖ In: Entre ser e estar: raízes, percursos e discursos de identidade (Orgs.) Maria Irene Ramalho e
Antônio Sousa Ribeiro. Porto: Edições Afrontamento, 2001.
30
Próspero e Caliban são personagens da peça A tempestade (The Tempest) de William Shakespeare. Próspero é
um mago de amplos poderes e habita uma ilha junto com sua filha Miranda. Próspero tem como escravo a seu
serviço Caliban, um homem adulto e disforme.
49
Boaventura Santos reflete sobre o colonialismo subalterno português devido à posição
semiperiférica de Portugal em relação aos demais países europeus. Tal modelo de colonização
―semeador‖ e de exploração gerou, segundo o autor, uma colonização incerta e de um
colonialismo duplo, pois, ao mesmo tempo em que Portugal colonizava, era de certa forma
colonizado pela Inglaterra, e que ―o subdesenvolvimento do colonizador, produziu o
subdesenvolvimento do colonizado‖ (p.28). O autor questiona: ―O enigma é, pois: Caliban
europeu pôde ser Próspero Além-mar?‖ (p.54)
Ao comentar sobre os jogos de espelhos entre Próspero (o colonizador) e Caliban (o
colonizado), o autor mostra-nos que:
(...) os portugueses nunca puderam instalar-se comodamente no espaço-tempo
originário do Próspero europeu. Viveram nesse espaço-tempo como que
internamente deslocados em regiões simbólicas que não lhes pertenciam e onde não
se sentiam à vontade. Foram objecto de humilhação e de celebração, de
estigmatização e de complacência, mas sempre com a distância de quem não é
plenamente contemporâneo do espaço-tempo que ocupa. Forçados a jogar o jogo dos
binarismos modernos, tiveram dificuldades em saber de que lado estavam. Nem
Próspero nem Caliban, restou-lhes a liminaridade e a fronteira, a interidentidade como identidade originária.( SANTOS, 2001, p. 53-54, grifos nossos)
No entanto, em oposição a essa condição semi periférica portuguesa, os portugueses
buscaram reforçar através da política expansionista a marca dos ―barões assinalados‖,
escolhidos por Deus para levar a cabo a dilatação de seu império. Para além de referências aos
feitos portugueses, daqueles que descobriram caminhos nos oceanos ou nos rios, desbravaram
matas e buscaram atingir a sua utopia, seja a pessoal ou a nacional. Recorremos às palavras de
Lourenço em que afirma:
O traumatismo histórico sem precedentes ocasionado pela descoberta e conquista
do Novo Mundo está longe de ter sido reabsorvido. Parece haver nele alguma
coisa contrária ao habitual embranquecimento póstumo das múltiplas tragédias
culturais que entretecem a violenta trama da História. (LOURENÇO, 2005, p.8384)
O traumatismo histórico mencionado por Lourenço está no cerne da questão
colonizadora: os portugueses almejavam o sucesso da colonização e os índios queriam
defender o seu território. Porém, o progresso e a fixação portuguesa desejados só seriam bem
50
sucedidos quando os indígenas aceitassem sobreviver da comercialização de mercadorias, e
do trabalho assalariado. Na estrofe a seguir, está claro o discurso persuasivo na tentativa de
convencer os Mura a praticar o comércio e se dedicar a grandes plantações para atender aos
interesses dos colonizadores que observavam a abundância natural das terras amazônicas e
seu grande potencial econômico:
Tereis nos povos vossos numerosos
Abundantes colheitas sazonadas,
Vereis nos portos vossos vantajosos
Comércios florescer, e procuradas
Serão as armas vossas: poderosos
Enfim sereis, amadas, invejadas
Serão vossas venturas; finalmente
Podereis felizes ser eternamente
(Mur, III, 8, grifos nossos)
No entanto, apesar da promessa de felicidade eterna caso os Mura aceitassem viver
conforme os colonizadores queriam, sabemos que o trabalho indígena poderia ser considerado
de semiescravidão, pois, muitas vezes, o salário não era pago em dinheiro e o trabalhador
tinha de cumprir dez horas de jornada diária. No caso específico dos Mura, eles não aceitaram
o modelo imposto pelos colonizadores e lutaram até o limite das suas forças para resistir à
dominação, apesar do poema de Wilkens tentar esvaziar a complexidade dos vários conflitos
existentes, em proveito de uma homogeneização que se quer feita sem nenhum tipo de
atribulação.
Ao longo de todo o poema, percebemos que a luta travada se dá entre Deus e o Diabo
e a fé cristã é a responsável pela conversão. Para os ―civilizados‖ daquele tempo, era normal
atribuir o triunfo sobre os indígenas às orações daqueles que estavam a serviço da pregação do
Evangelho da salvação e, não, aos ataques militares. Porém, ao analisar outras fontes
históricas, percebemos que os Mura pacificados eram membros de um grupo que não
conseguiu mais resistir aos ataques lusitanos, às epidemias trazidas pelas doenças dos
51
brancos, assim como em pequeno número era difícil lutar com arco e flecha contra as armas
dos brancos:
Do mesmo modo, se um dos mitos da colonização é pautado pela passividade ou
resistência inócua dos povos indígenas, o que se revela em livros como este, é
justamente o contrário mostrando que a política indigenista, os confrontos
interétnicos e os atos de protesto e rebelião constituíram elementos de singular
importância na construção da história da Amazônia. (SANTOS, 2001, prefácio)
Antes, durante e depois da administração pombalina ocorreram seguidos ataques
contra a etnia Mura. Inclusive, com a participação de nações rivais desses chamados ―índios
de corso‖, como, por exemplo, os Maués, os Parintintin e os Mundurucu. Tal situação
permanente de conflitos envolvendo diferentes populações indígenas levou a uma extensa
mortandade indígena, favorável aos interesses dos colonizadores.
O território imenso ocupado pelos Mura é um tema recorrente na história colonial
da Amazônia; ao qual se associou o temor de um levante generalizado de tal
povo contra a colonização. Para a maioria dos autores, isso explica as diversas
ações militares movidas contra o grupo ocorridas a partir de meados de 1774. Em
diversos contextos, os colonizadores retomavam os argumentos dos Autos da
Devassa e exigiam o completo extermínio deste povo para evitar a ruína da
―civilização‖ na Amazônia. (AMOROSO, 2009, s.p)
O envolvimento Mura em conflitos culminou na sua participação contra o poder
colonial, ao lado das milícias rebeldes, no movimento conhecido como Cabanagem ─ revolta
paraense de caráter popular contra a política imperialista brasileira ocorrida entre 1835 e 1840
─ o mais importante movimento nativista da história brasileira. Diante de tal estado de afetos,
não seria difícil supor que alguns dos povos inimigos dos Mura pudessem ter sido persuadidos
pela administração colonial para lutarem ao lado das forças conservadoras e naturalmente
contra os Mura, conforme sugere Yurgel Caldas:
Após o término da Cabanagem, a repressão colonial aos Mura continuou com
fôlego renovado e, somada às constantes epidemias, criou-se um quadro de
extermínio vertiginoso e até então inédito. A população mura decrescia de
maneira assustadora a ponto de o Mapa Estatístico dos Aldeamentos dos Índios
ter indicado, em 1856, a presença de 1.300 muras em toda a região referente ao
atual Estado do Amazonas – dado alarmante e sintomático para um registro de
um total de cerca de 60.000 indivíduos trinta anos antes. (CALDAS, 2002, s.p)
Segundo dados numéricos, foi somente após o largo processo de dizimação contra os
Mura, com várias expedições punitivas contra eles e massacre inestimável durante a
52
Cabanagem, que eles aceitaram ―coexistir pacificamente com os brancos depois das enormes
perdas populacionais ocorridas‖ (SOUZA, 1994, p.60). A dizimação de uma etnia em
números drásticos traz à tona as reflexões de Eduardo Lourenço (2005, p.13) sobre a
colonização do Novo Mundo, em que ele afirma que a Europa colonizou o mundo por razões
boas e más: ―Essa colonização irreversível nunca lhe será perdoada. É o pecado original, a
marca específica do seu destino.‖ Esta é a marca da barbárie humana em nome do progresso e
da ―civilização‖, conforme disse Walter Benjamin, é a marca da degradação da original visão
idílica de Colombo sobre o paraíso perdido, ―converteu-se no espelho invertido, mais do que
no espelho ampliado do continente de Colombo‖:
A história da América e, em particular, a da América latina, é a de degradação
rápida da original visão idílica de Colombo, quer dizer, a conversão do novo mundo,
objeto de predação sem grandes problemas de consciência, em sujeito da sua própria
História. Primeiro como recalcamento bem-sucedido da Conquista e, por fim, rasura
da própria Descoberta. Esse processo teve menos lugar entre a América submissa e
colonizada e a Europa colonizadora que no interior desse Mundo Novo partilhado
em dois entre a herança de Colombo e a de Cabral. Cedo a presença africana lhe
acrescentará um elemento exterior que, pouco a pouco, a colorirá de uma música
original. Com o índio, ao fundo, recalcado. (LOURENÇO, 2005, p.15)
A partir dessa citação, podemos afirmar que a experiência colonial portuguesa
transfigurou-se, trocou os objetos, índios por negros, mas continuou a perpetrar a sua
ideologia mercantilista e exploratória. A colônia do Grão- Pará, assim como o Brasil colônia,
foram vistos como local de enriquecimento fácil e ilícito.
Tanto no discurso histórico quanto nos versos de Muraida, percebemos uma insistente
referência à nação Mura como abominável. Em oposição, o historiador Francisco Jorge dos
Santos (2002) os denomina como admiráveis. Santos “os torna admiráveis ao reconstituir
algo da crônica de uma etnopolítica desse povo‖. O historiador lança o olhar sobre o povo
Mura com a perspectiva da História que valoriza o lado menos conhecido da experiência
colonial, o da resistência e da contestação por parte dos indígenas colonizados, pois já
sabemos que a versão do colonizador nos foi amplamente transmitida e divulgada pelos meios
53
oficiais. O posicionamento de Santos denuncia que não houve passividade na construção da
história da Amazônia:
As ações armadas pelos índios, até certo ponto, eram inversamente proporcionais às
agressões cometidas pelas tropas de resgates que reduziam povos inteiros ao
cativeiro, ou àquelas deflagradas pelas expedições punitivas que buscavam – ironia
da linguagem- ―pacificar‖ populações consideradas indômitas e ferozes. (SANTOS,
2002, p. 10)
No episódio da Cabanagem, Marta Amoroso relata que, apesar de todos os esforços
para vencer a força dos Mura, eles representaram uma presença marcante nos confrontos
armados ocorridos em todo o território da Amazônia brasileira e foram identificados como
―cabanos‖, termo que designava os inimigos das forças do governo. E por essa atitude
sofreram a represália da escravização, do extermínio e do desterro para outras regiões do
Império.
2.2 A discussão sobre o cânone
Em estudos sobre as origens da literatura amazonense de Mário Ypiranga Monteiro e
Márcio Souza, Muraida aparece como representante da literatura produzida durante o período
colonial, em estilo épico, pelo fato de retratar o espaço amazônico e uma das etnias que
viviam nesse espaço, apesar de ter sido escrito por um militar português. Até o final do século
XIX, os livros no Amazonas eram escritos, de um modo geral, por autores que não tinham
vínculo de nascimento com a terra. Na verdade, o primeiro poeta de fato nascido no
Amazonas foi Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha31.
31
“Bento Aranha é, de fato, o primeiro poeta e dramaturgo nascido em território, hoje, Amazonense. Nasceu em
Barcelos, em 1769; morreu em Belém, em 1811. [...] não teve tempo para ver sua obra publicada em volume.
Seu filho, corajoso aventureiro, político e ―literato‖ [...] foi seu primeiro editor e, como tal, pode ter selecionado
as peças literárias de seu pai que mais se adequassem aos propósitos de fundar uma literatura feita no Amazonas
antes de a própria fundação como província, de que – como já foi dito – seria o primeiro presidente. Desta forma,
as Obras de Bento Aranha, publicadas em 1850, em Lisboa, e reeditadas em 1899, no Pará, ambas (gêmeas)
organizadas por João Batista, seu filho, podem conter cortes de peças literárias inadequadas aos propósitos deste,
bem como a inclusão apócrifa de outras que cumpririam o papel político desejado para o momento histórico..‖
MATOS, Maurício. ―Sobre a busca de um eldorado tropical na Amazônia das obras de Bento de Figueiredo
Tenreiro Aranha‖. In: RIOS, Otávio (org.). Arquipélago Contínuo: literaturas plurais. Manaus: UEA Edições,
2011.
54
Diante da problemática questão sobre o pertencimento da literatura produzida no
período colonial, iniciamos uma discussão sobre cânone literário, levando em consideração o
que nos diz Pizarro (1993) sobre o problema da categorização dessa literatura que é produzida
além das fronteiras peninsulares de Portugal:
Dominação e submissão estabelecerão a ordem da cultura e ditarão o Canon da
literatura que desembarca, mudando para a ilegitimidade as manifestações
equivalentes das culturas originárias. O canon, então é dominado pela escritura e as
formações discursivas construídas a partir dela; o Canon é o gênero que se institui
de acordo com o modelo peninsular, o absoluto estético da identidade frente à sua
ocupação, desde sua perspectiva, indefinido e menor da alteridade. Este Canon rege
os critérios da história literária, como os da historiografia que o regulará mais tarde,
como disciplina que experimenta, recordando a expressão de Foucault, "uma
repugnância singular em pensar a diferença, em descrever os desvios e dispersões,
em dissociar a forma do idêntico". (PIZARRO,1993, p.20)
Muraida é um texto literário que, apesar de ter sido escrito a exemplo do modelo
peninsular, permanece `a margem do cânone e trata das relações de dominação e submissão,
marcas recorrentes na literatura do período colonial. O poema de Wilkens aponta os caminhos
e descaminhos que os colonizadores percorreram para cumprir seu ideal de exploração da
terra ―descoberta‖. Para além de Muraida, faz-se necessário mencionar que a etnia Mura
também ganha papel de destaque em outros textos literários igualmente deixados à margem
do cânone.
A etnia Mura é mencionada no romance Os Selvagens, do escritor português Francisco
Gomes de Amorim, que veio para Belém do Pará no século XIX, ainda no período em que a
região estava sob á égide do império colonial português no ultramar. Na obra de Gomes de
Amorim, percebemos a ideologia imperialista portuguesa, ao narrar a história dos irmãos
Goataçara e Porangaba, focalizando como a etnia Mura é confrontada com a etnia Mundurucu
sob o pano de fundo do episódio histórico da Cabanagem.
Da mesma forma, podemos observar a repercussão desse olhar português através de
autores brasileiros que também se propuseram a representar a etnia Mura na literatura, a
55
saber: Alberto Rangel, no conto ―A decana dos Muras‖, e Erasmo Linhares, no conto ―A
Mura‖. Nestes dois últimos, percebemos como os pressupostos imperialistas continuam a
influenciar a cultura do Ocidente ainda no século XX. Assim como em Muraida, nestes
textos, a etnia Mura exerce de alguma maneira um papel de resistência diante do processo de
fixação dos portugueses em solo amazônico e os desdobramentos dessa luta, que durou
muitos anos e reduziu drasticamente o número de indivíduos dessa etnia.
Apesar de ser ambientada na região amazônica e possuir elementos dessa cultura, a
expressão literária, que se revela no épico de Wilkens, reproduz a visão etnocêntrica do
colonizador português. Tendo em vista a leitura das tensões entre os dois épicos em análise,
defendemos que Muraida, se comparado a Os Lusíadas, configura-se como o olhar e a voz do
colonizador, pois o olhar camoniano, mesmo sendo paradoxal, reflete a importância do
império português sobre os gentios.
Por razões ainda não totalmente definidas, mas amplamente discutidas em encontros e
trabalhos acadêmicos, Muraida não está inserida nem no cânone da tradição literária
portuguesa nem da tradição literária brasileira, apesar de ter sido produzida no mesmo período
das obras O Uraguai (1769) e Caramuru (1781), de Basílio da Gama e Santa Rita Durão,
respectivamente. Cito como exemplo a tese de doutoramento de Caldas (2007), na qual o
autor pleiteia um lugar de destaque para esse épico no cânone brasileiro como texto fundador
da literatura amazônica:
Mais que inserir Muhuraida no percurso da crítica literária sobre o Brasil do século
XVIII, este trabalho tem como objetivo pensar sobre o modelo de formação do cânone
literário nacional, hegemônico e excludente por excelência. Dessa perspectiva, a
presença do poema épico de Henrique João Wilkens – que trata da conversão do
―bárbaro‖ Mura ao Catolicismo, no ano de 1785 – acaba por perturbar a estrutura do
próprio cânone e suas linhas rígidas de constituição, que se dá por meio da exclusão.
Ao enfocar as condições da redução da nação indígena Mura e o processo que a levou
à conversão à fé católica, o poema de Wilkens acaba por revelar a capacidade de
organização indígena na defesa de seus territórios.(CALDAS, 2007, p.16)
Dentre os motivos apontados por David Treece (1993) para a não inserção do texto de
Wilkens no cânone literário, o autor ressalta a ausência de um casal amoroso para valorizá-lo
56
como um texto canônico da épica árcade. Pois em Muraida não há conflitos amorosos, nem
sequer personagens formando pares amorosos como há nas outras duas obras da épica árcade
brasileira: Cacambo e Lindóia ou Paraguaçu, Diogo e Moema. Da mesma forma, nesses
outros textos literários existe uma tentativa de apresentar o índio na figura de herói nacional,
dando-lhe um lugar de destaque e as características do bom selvagem. No entanto, em
Muraida, devido à grande resistência Mura, a figura do índio é descrita como o mau selvagem
até o momento em que ele aceita a Luz divina e o batismo católico.
Outra questão a ser mencionada é o fato de o épico ter sido produzido numa região
que nem era reconhecida como pertencente ao Brasil no século XVIII, conforme já
mencionamos anteriormente, pois a região amazônica era administrada de forma separada do
restante do Brasil. Desta forma, questionamos: Como classificar um texto como Literatura
Brasileira se o mesmo foi escrito por um autor português e num território que ainda não
pertencia ao Brasil? Longe de querer reduzir esse impasse a uma questão simplista de
geografia política, buscamos refletir, sobretudo, sobre o fato de não haver naquele momento
uma identidade cultural e um sistema literário estabelecido na região que o identificasse com
a ideia de nação brasileira.
Segundo Benedict Anderson (2008, p.32)32, a ideia de nacionalidade (nation-ness) é
um artefato cultural particular. A nação é ―uma comunidade política imaginada e imaginada
como implicitamente limitada e soberana‖. Segundo o antropólogo, não se poderia aplicar o
conceito de nação antes do século XVIII, pois, enquanto artefato cultural imaginado, a nação
tem raízes em dois sistemas pré-existentes: a comunidade religiosa e o reino dinástico. As
afirmações de Anderson remetem às considerações de Ernest Renan 33 sobre a formação das
32
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008.
33
RENAN, Ernest. ―Que é uma nação?‖. Trad. Samuel Titan Jr. Plural, no4. USP, 1997. p.154-175, 1997.
57
nações. Renan afirma que a essência de uma nação está em que todos os indivíduos tenham
muito em comum e também que todos queiram viver juntos, apesar de possíveis diferenças de
línguas e etnias. E diante dessa afirmação, o autor afirma que as considerações étnicas não
foram importantes na constituição das nações modernas: ―Uma nação é uma alma, um
princípio espiritual, desejo de viver em conjunto. A vontade de continuar a fazer valer uma
herança que se recebeu íntegra.‖ (RENAN, 1997, p.173)
A investigação histórica traz de volta à luz os atos de violência que ocorreram à
origem de todas as formações políticas, mesmo daquelas cujas consequências foram
as mais benéficas. A unidade se faz sempre por meios brutais. (RENAN, 1997,
p.161)
Desta forma, o período em que Muraida foi produzida e a intenção poética desvelada
no poema não podem ser consideradas como fonte inicial de uma nação brasileira, conforme o
nosso entendimento. O poema de Wilkens é a representação da/na Amazônia do imaginário
português sobre a terra recém desbravada, por meio da conquista e expansão de territórios
ultramarinos em nome da Coroa Portuguesa. Tal fato não desmerece o texto como um texto
de representação da terra, porém não podemos afirmar que é um texto de formação de uma
nacionalidade, visto que a discussão sobre nacionalidade só aconteceria no século XIX e
ainda conforme a definição de Renan, ―a nação revela o desejo de viver junto‖, concepção que
não pode ser concebida nas complexas relações de colonização no período da Amazônia
pombalina.
Lembramos que o épico ficou ―esquecido‖ durante mais de um século e meio. Após a
publicação portuguesa em 1819, somente em 1993 foi realizada uma edição brasileira.
Portanto, a primeira publicação não ajudou na divulgação expressiva da obra, apenas com a
segunda edição, já no final do século XX, é que houve a iniciativa de divulgação e
58
reconhecimento do valor literário do texto. Em meados do século XX, surge o primeiro estudo
crítico sobre Muraida, o artigo ―A Muhraida‖ de Mário Ypiranga Monteiro34.
Wilkens, portanto, como um poeta à margem do sistema de recepção do texto, não
contribui para a construção de uma identidade amazônica, pois, segundo Barthes, o texto só
existe no espaço do leitor, da interlocução entre escrita e leitor. Bourdieu (2012) ainda nos
lembra que o texto sendo, em primeiro lugar, representação, depende tão profundamente do
conhecimento e do reconhecimento.
Recorremos ao conceito de recepção para embasar o argumento exposto. A estética da
recepção considera a literatura um sistema que se define por produção, recepção e
comunicação, ou seja, por um relacionamento dinâmico entre autor, obra e leitor. Assim, se
Muraida não era contemplada por esse relacionamento, logo não pode ser considerada um
texto de formação. O ato da leitura apresenta dupla perspectiva: uma, implicada pela obra;
outra, projetada pelo leitor de determinada sociedade. Daí seu interesse pelas condições sócio
históricas das diversas interpretações recebidas pelo texto. Portanto, de acordo com a estética
da recepção, consideramos que o discurso literário seja fruto do seu processo receptivo,
―enquanto pluralidade de estruturas de sentidos historicamente mediados.‖, pois, o texto
representa um sistema no qual se combinam elementos de linguagem com elementos de
sentido. Nesse sistema, não pode deixar de haver espaço para a participação daquele que vai
atualizar essas combinações: o leitor.
No triângulo formado pelo autor, obra e público (leitor), este último não constitui só
a parte passiva, mero conjunto de reações, mas uma força histórica, também
criadora. A vida histórica da obra literária é inconcebível sem o papel ativo que
desempenha seu destinatário. Somente por ação deste, a obra se incorpora ao
horizonte variável de experiências de uma continuidade, na qual se realiza a
transformação constante de simples recepção numa compreensão crítica, de
recepção passiva em recepção ativa, de normas estéticas aceitas numa criação nova
que as venha superar. Os caracteres histórico e comunicativo da literatura supõem
um diálogo (dinâmico e permanente) entre uma obra, o público e a nova obra, que se
pode entender como uma relação entre informação e receptor, entre estímulo e
34
Publicado no Jornal de Letras, n° 193/194, 1966.
59
resposta, entre problema e solução. Rompendo-se o círculo fechado de uma estética
de produção da representação, dentro do qual costuma se mover a metodologia
literária, chegar-se-á, por esse caminho, a uma estética da recepção, única solução
para o problema de como compreender a seqüência histórica das obras literárias no
conjunto da história da literatura. (JAUSS Apud PIRES, p.111-112)
De acordo com os pressupostos acima, reafirmamos que Muraida precisa ser pensada
dentro de uma gama de textos produzidos pelos primeiros desbravadores da Amazônia, mas
que ficaram esquecidos ou silenciados, à espera de um leitor que lhes desse sentido.
Por isso mesmo, recorremos a Antonio Candido para discutir a formação do cânone
brasileiro:
Levando a questão às últimas conseqüências, vê-se que no Brasil a literatura foi de
tal modo expressão da cultura do colonizador, e depois do colono europeizado,
herdeiro dos seus valores e candidato à sua posição de domínio, que serviu às vezes
violentamente para impor tais valores, contra as solicitações a princípio poderosas
das culturas primitivas que os cercavam de todos os lados. Uma literatura, pois,
que do ângulo político pode ser encarada como peça eficiente do processo
colonizador. [...]A literatura desempenhou papel saliente nesse processo de
imposição cultural, bastando lembrar que os cronistas, historiadores, oradores
e poetas dos primeiros séculos eram quase todos sacerdotes, juristas,
funcionários, militares, senhores de terras – obviamente identificados aos
valores sancionados da civilização metropolitana. Para eles as letras deviam
exprimir a religião imposta aos primitivos e as normas políticas encarnadas na
Monarquia; mas, mesmo quando desprovidas de aspecto ideológico ostensivo,
seriam uma forma de disciplina mental da Europa, que deveria ser aplicada ao
meio rústico a modo de instrução e defesa da civilização. (CANDIDO, 1997,
199-200, grifos nossos)
Nesta passagem, Candido refere-se ao período colonial anterior ao Arcadismo.
Durante o Arcadismo o autor considera que ocorreram os primeiros indícios de uma
identidade brasileira. Porém, apesar de Wilkens estar cronologicamente situado no século
XVIII, portanto, no período do Arcadismo, percebemos que Muraida enquadra-se na
definição de Cândido referente ao período anterior, numa perspectiva de autoria que ―do
ângulo político pode ser encarada como peça eficiente do processo colonizador‖. Dessa
forma, Wilkens está para uma concepção de colonialismo mais pertinente ao século XVII do
que ao século XVIII, um poeta totalmente voltado aos interesses da Coroa Portuguesa e
―identificado com os valores da civilização metropolitana‖. Outro fator a ser considerado para
60
situar Muraida ―como peça eficiente do projeto colonizador‖ é a presença de Wilkens num
cenário amazônico ―distante‖ do Brasil, por razões políticas, geográficas e ideológicas.
E mesmo em relação aos textos consagrados do Arcadismo, Candido problematiza que
―Basílio da Gama e Durão ―não foram tão poetas brasileiros quanto se pensa‖ [...] Por isso,
―literatura pátria‖, ―nossas letras‖, se referem sempre na sua pena à portuguesa.‖ (CANDIDO,
1975, p.342). De acordo com as palavras de Candido, durante o Arcadismo brasileiro há os
primeiros sinais de uma vontade de ler Literatura Brasileira, porém somente no Romantismo é
que veremos uma tentativa de nacionalidade mais manifesta. Antes desse período ―os nossos
autores nada exprimiam de diferente dos portugueses‖ (p.342). Até mesmo aqueles que eram
nascidos no Brasil colônia não poderiam ser chamados de precursores de uma ―certa‖
nacionalidade, pois não colocaram em seus versos nenhuma ideia tipicamente brasileira.
Até mesmo após a Independência do Brasil, a questão da identidade nacional não se
construiu rapidamente, poderíamos dizer que uma literatura tipicamente nacional só se
formaria na segunda geração do Modernismo, já no século XX. A problematização sobre
quando o Brasil passou a ter uma literatura independente é ampla: ―Na medida em que só nos
conhecemos quando nos opomos, a alguém ou a alguma coisa, esse diálogo reivindicatório
com Portugal foi um bom auxiliar de crescimento.‖ (CANDIDO,1975,p.343)
Candido faz a sua a análise sobre a construção da nacionalidade brasileira, porém
observando a questão Ocidental da universalidade: o desejo e a imposição de tornar universal
a cultura greco-latina.
[...]A nacionalidade brasileira e as suas diversas manifestações espirituais se
configuram mediante processos de imposição e transferência da cultura do
conquistador, apesar da contribuição (secundária em literatura) das culturas
dominadas, do índio e do africano, esta igualmente importada. Indo mais longe e
desenvolvendo uma afirmação feita há pouco, poderíamos mesmo dizer que os
padrões clássicos no sentido amplo, abrangendo todo o período colonial, foram
eficazes, por vários motivos e sob as suas diversas formas: Humanismo de
influência italiana, no século XVI, Barroco de influência espanhola, no século XVII,
Neoclassicismo de influência francesa, no século XVIII. Em qualquer dos casos,
tratava-se de uma disciplina intelectual coerente que levou a inteligência a se exercer
com rigor; isto lhe deu consistência e resistência na sociedade atrasada e por vezes
61
caótica do período colonial. Além disso, a convenção Greco-latina era fator de
universalidade, uma espécie de idioma comum a toda a civilização do Ocidente;
por conseguinte, na medida em que a utilizaram, os escritores do Brasil integraram
nesta civilização as manifestações espirituais de sua terra, dentro, é claro e como
ficou dito, do propósito colonizador de dominação, inclusive através da literatura.
(CANDIDO,1997, 213-214, grifos nossos)
Outrossim
recorremos também a Eduardo Portela35 no que respeita à produção
literária. Segundo o autor, percebemos que em termos de produção literária, Portela considera
que a Literatura Brasileira pode ser dividida em três grandes períodos: I- O longo início; II- A
formação em curso; III- A plena autonomia. Segundo o autor:
O primeiro período começa a assinalar uma regressão crescente do elemento
português e uma progressão também crescente do elemento brasileiro. Articula-se
essa etapa em torno do Barroco, do Rococó e do Arcadismo. Ela registra as
primeiras discordâncias ponderáveis entre os interesses da Colônia e os da
Metrópole. Discordâncias que se vão refletindo na poesia de Gregorio de Matos ou
na oratória de Vieira. [...] Mas os árcades da Escola Mineira, apesar da sua
participação revolucionária, ―inconfidentes‖ que foram, não criaram uma poesia
brasileira. Fizeram uma poesia predominantemente portuguesa. Estávamos no
término de um longo início. (PORTELA, 1975, p.34-35, grifos nossos)
Durante o período que o autor denomina de ―formação em curso‖, podemos perceber
elementos de uma dicção poética de nacionalidade. No entanto, apesar do próprio
Romantismo nascer em consonância com um momento de ruptura política e enaltecer
algumas características brasileiras, não podemos confundir autonomia literária com
independência política, pois se tivemos uma independência política da metrópole em 1822,
não tivemos de fato uma independência em termos de autonomia cultural e nem mesmo de
autonomia econômica, pois a nossa ―pseudo-independência‖ já nasceu com uma imensa
dívida externa, escamoteando uma ―pseudo-libertação‖ da metrópole portuguesa; com
vínculos culturais que só seriam realmente reavaliados e rompidos pelo Modernismo. Citamos
como exemplo a tentativa do Indianismo de enaltecer o índio:
Motivados pelo desejo ingênuo de ser tipicamente brasileiros, ostensivamente
brasileiros, os escritores indianistas terminavam por enfocar o Brasil de uma
perspectiva europeia ─ o Brasil como natureza. A perspectiva europeia consistia em
35
PORTELA, Eduardo. Literatura e Realidade Nacional. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 3ª ed, 1975.
62
observar no Brasil aquilo que era diferente dela. Estava seduzida pelo exótico.
Valorizava o índio e a selva. Mas por serem agentes de exotismo, por serem
discrepantes. (PORTELA, 1975, p.35-36)
Em Muraida não há essa tentativa de enaltecer o índio. Ele é o elemento exótico, o
diferente que precisa ser iluminado pela fé cristã. O índio aparece no segundo plano de uma
luta que é travada entre Deus e o Demônio e a vitória da Graça divina é enaltecida ao fim e ao
cabo. Em Muraida, não há, desta forma, elementos que possam apontar a descoberta de uma
linguagem que pudesse perceber a literatura como vivência de uma determinada
nacionalidade, fato que só seria realmente efetivado em 1922: ―A linguagem como pedra de
toque de um estilo nacional. Porque a linguagem é meio de apreensão e de expressão da
realidade.‖ (PORTELA, 1975, p.25)
Para enriquecer a nossa discussão, recorremos ao estudo realizado por Camila do
Valle36, em que a autora recorre às palavras de Pacale Casanova a respeito da questão
ocidental da universalidade:
O universal é de certa forma uma das invenções mais diabólicas do centro: em nome
de uma negação da estrutura antagonista e hierárquica do mundo, sob o pretexto de
igualdade de todos em literatura, os detentores do monopólio do universal convocam
a humanidade inteira a se dobrar a sua lei. O universal é o que declaram adquirido e
acessível a todos, contanto que se pareça com eles. (Casanova apud VALLE, 2012,
s.p)
A imposição de um modelo universal está presente em Muraida na medida em que
usa o épico camoniano como modelo e as referências clássicas presentes no épico. Sob o
pretexto de uniformizar ―as gentes‖ através da imposição de uma mesma crença e de uma
mesma língua, a cultura do Outro é negada em favor da homogeneidade Ocidental. Neste
sentido, a autora explicita que seja na África, na América ou na Ásia, em quaisquer ―regiões
estranhas do mundo‖ (citando Said) as diferenças locais não são consideradas, o centro
metropolitano desmerece as suas contribuições e as deixam na zona fronteiriça do centro de
36
VALLE, Camila do. ―Literatura da Amazônia - dificuldades do surgimento e classificação de um campo.‖
Plural Pluriel, v. 1, p. 1, 2012.
63
produção de um código que é ―a um só tempo, universal e universalizante‖. A paisagem local
é apenas uma ilustração, pois a leitura que se faz dela leva apenas em consideração a tradição
da leitura ―universal‖. O ―longe‖, o ―exótico‖, o ―não-europeu‖, a ―alteridade‖ são elementos
da paisagem que não alteram o discurso do colonizador e que não alteram o seu conceito de
―civilização‖, ou seja, civilização europeia, e que continuamente tenta fazer do Novo Mundo
uma extensão do Velho Mundo Europeu. Conforme afirma Eduardo Lourenço: ―um Ocidente
a ocidente do Ocidente‖.
Em Muraida, percebemos que a linguagem e o discurso empregados são meios de
expressar a vivência portuguesa em contato com o indígena, ao modo etnocêntrico europeu. A
linguagem utilizada é instrumento de apreensão do pensamento europeu etnocêntrico e
expressa a realidade de massacre à etnia que se interpunha contra os interesses da
colonização, ―o estilo é produto da visão do mundo do escritor. Nele se interferem elementos
pessoais e coletivos.‖ (PORTELA, 1975, p.29) Portanto, como pensar um estilo literário
identificado a um ideário de nacionalidade, ao levar em consideração os séculos de alienação
e de subserviência a um modelo euro-ocidental?
64
Navegar é Preciso
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".
Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo
e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.
Fernando Pessoa
65
3. SOBRE VIAGENS E VIAJANTES
“O múltiplo nos inebria
O espanto nos guia”
Sophia de Mello Breyner.
3.1 Sobre as viagens
A Literatura de Viagens é um gênero fronteiriço que abrange tipologias textuais
diversificadas. O principal fator na problematização deste gênero é a questão das margens
entre ficção e realidade. Caracterizar teoricamente o gênero viático é tarefa complexa devido
às inúmeras possibilidades em definir o fenômeno literário que, se utilizando da linguagem,
enceta a questão da mimese e a capacidade da linguagem de representar a realidade. A
Literatura de Viagens apresenta caráter ambivalente, pois, ao mesmo tempo que anuncia um
discurso por onde se entrevê a realidade, também anuncia o aspecto literário através do
trabalho com a linguagem.
A própria palavra ―viagem‖, vinda do Latim vaticum, sugere caminho, jornada e
aquilo que o viajante carrega consigo, a experiência. Nesse sentido, a Literatura de Viagens,
em seu caráter amplo e híbrido, expressa um relato de quem viveu uma experiência outra,
diversa da sua experiência original.
São diversas as nomenclaturas que os críticos literários utilizam para definir os textos
produzidos a partir da presença do viajante num espaço desconhecido e repleto de novidades
sobre o espaço observado e sobre o Outro. Estes textos podem ser denominados como ―textos
de viajantes‖, ―literatura de testemunho‖, ―crônicas de viagem‖, ―literatura informativa‖ ou
―escritos de viajantes‖. Em seu amplo sentido, a viagem confronta o exotismo e a
introspecção daquele que narra, o projeto do viajante e as surpresas do caminho em um
constante exercício de aprender com a diferença num ato de solidão e despaisamento. A
viagem é a realização de suposições e hipóteses, de sucessos e reveses do caminho. Segundo
Auricléa Neves (2011):
66
As viagens têm um profundo significado na história da humanidade, pois se
realizaram até para a preservação da raça humana. Inicialmente, no período da
coleta, as migrações foram feitas pela necessidade de buscar alimentos;
posteriormente, elas foram realizadas à procura de locais apropriados ao bem estar
da comunidade. Outros objetivos também suscitaram o deslocamento do homem: a
conquista de espaços territoriais, a exploração de riquezas, o conhecimento de novas
terras, o estudo de áreas territoriais específicas, ou simplesmente a viagem como
forma de lazer. (p.15)
O viajante é aquele que observa o Outro e seu modo de viver dentro de uma cultura
estrangeira que anuncia hábitos, atitudes e visões de mundo diferentes, pertencentes a uma
outra civilização. Neste processo de conhecimento, o viajante adquire conhecimento em
relação ao contato com uma cultura diversa da sua e atua sobre o inconsciente desafiador e
inconstante da raça humana. Segundo Maria de Fatima Outeirinho (2000)37, a Literatura de
Viagens é uma fonte importante para o estudo das imagens do estrangeiro ―por se constituir
como uma escrita da alteridade e, por consequência, se apresentar como domínio fecundo em
representações do Outro.‖ (p.102)
Segundo Éttore Finnazi Agrò38, os viajantes que vieram para o Brasil não eram
descobridores e sim inventores. O viajante reinventa o Outro na medida em que, ao chegar no
espaço alheio, encontra aquilo que ―já se sabe‖, inventa de acordo com seus pressupostos
anteriores alguém que já estava no lugar ―descoberto‖, alguém que já ―se sabia‖ enquanto ser
humano:
Seria bom considerar os grandes navegantes dos finais do séc. XV e/ou dos inícios
do séc. XVI, não tanto como descobridores, quanto como inventores: porque eles, na
verdade, não descobrem nada, mas acham ou encontram (inveniunt/inventant) aquilo
que ―está lá desde sempre‖, aquilo todavia, de que se perdeu o rumo certo, a via para
chegar. Daí o aspecto ―poético‖ do achamento [...] Não por acaso, nos primeiros
documentos, os verbos utilizados pelos espanhóis e pelos portugueses, em relação às
terras há pouco descobertas, são buscar e hallar ou achar. (p.54)
37
OUTEIRINHO, Maria de Fátima e MARTELO, Rosa Maria (Orgs). ―Representações do Outro e Identidade:
um estudo de imagem nas narrativas de viagem‖. In: Cadernos de Literatura Comparada. Porto: Granito
editores, 2000.
38
FINAZZI-AGRÒ, Ettore. ―A ilha maravilhosa: a invenção do Brasil pelos portugueses‖. In: Convergência
Lusíada, n.12. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, 1995.
67
O crítico italiano, nos apresenta em ― A ilha maravilhosa‖, uma reflexão a respeito do
contato entre portugueses e indígenas na ocasião da chegada dos portugueses ao Brasil.
Segundo o autor, o confronto entre culturas é um espaço híbrido em si, ―um lugar que não
pode ser identificado, de modo pleno, nem na categoria do Desconhecido nem naquela do
Conhecido, [...] sendo, enfim, o espaço circunscrito de um compromisso em que todas as
categorias se confundem e/ou se anulam dentro de um lugar definido‖. (1995, p.57)
Os primeiros textos sobre o ―Novo Mundo‖ estão inseridos dentro desse corpus das
viagens: as cartas de Cristóvão Colombo sobre a descoberta da América em 1494, as Cartas
de Américo Vespúcio, difundidas pela Europa a partir da sua publicação em 1512, a Carta de
Pero Vaz de Caminha sobre o ―achamento‖ do Brasil em 1500, Cristóbal de Acunã sobre a
Amazônia em 1641, entre tantos outros.
A partir dos ―descobrimentos‖ ou ―achamentos‖, os textos de viagens europeus tomam
fôlego entre os séculos XV e XVI em razão das viagens marítimas ao Novo Mundo e da
necessidade pragmática de registrar rotas, condições atmosféricas, acidentes da costa e todos
os elementos que pudessem facilitar a repetição e prosseguimento dos percursos. Dessa
forma, os roteiros e os diários de bordo, cartas e relatos de naufrágio, que se constituem como
documentos fundamentais para orientação náutica, são os antecedentes desta literatura, que
alarga o seu espectro e assume a forma de outros textos de natureza plural que inspiram a
escrita do viajante sobre novos temas e novas experiências; supera a função meramente
descritiva para apontamentos sobre o pitoresco que surgem da relação entre o sujeito
perceptivo e o mundo novo a ser desvendado.
Segundo Maria Alzira Seixo (1998), a Literatura de Viagens apresenta um vasto
domínio literário, no qual ―a investigação confronta-se muitas vezes com gêneros de discurso
específicos que em função desta matéria se constituíram, e que foram ou não consagrados, ao
68
longo da evolução histórica, pelos dispositivos diversificados do cânone literário.‖ (p.55). O
hibridismo da forma e a dificuldade em estabelecer limites entre realidade e ficção são fatores
que contribuem para que esta Literatura seja por vezes denominada como um:
subgênero literário compósito, o da Literatura de Viagens, articulando entre a
Literatura, História e a Antropologia. Circunstância esta que reclama para os textos
da Literatura de Viagem um estatuto de verossimilhança muito próximo do da
verdade histórica e antropológica, e o alargamento e personalização do
39
relacionamento narrador/narratário ao de autor/leitor‖. (SEIXO, 1998, p. 18)
Além de ser uma categoria que transita entre a História e a Antropologia, aliada à
problemática de classificação que o termo ―Literatura‖ carrega em si, a variedade de formas e
tipologias textuais sobre viagens impossibilitam uma definição dessa categoria de forma única
em relação ao gênero; só é possível estabelecer como traço comum a unidade de tema. Para
dialogar com a afirmação exposta, trazemos as reflexões de Maria Alzira Seixo a respeito da
Literatura Portuguesa, que ao proceder sobre novas formas de discurso, a partir dos
descobrimentos marítimos:
cabe justamente numa situação específica desta natureza que envolve propostas
genológicas diferenciadas, ora praticando processos de escrita técnica da arte da
navegação (diário de bordo), ora desenvolvendo um gênero pragmático (os roteiros)
que aumentam no entanto a componente descritiva numa relação directa com o
mundo empírico, ora ainda constituindo pequenos corpus de narrativas peculiares de
organização idêntica (os relatos de naufrágio) ou textos singulares de carácter
híbrido que só muito recentemente se encontram sancionados pela convenção
literária vigente (a Peregrinação). Tais fenômenos da produção literária, de
intenção pragmática ou marginal, não se integram na literatura erudita do
tempo, dominada pela problemática humanística classicizante, mas vêm ao
encontro de aspectos dessa mesma problemática, na medida em que se inspiram em
modelos de contar medievais mas fortemente tonalizados pela circunstância
cientifica e técnica coeva, numa espécie de prolongamento do tempo na resistência à
sua rotura surpreendente e quase absoluta, como modulações do polissistema
cultural que o período implica. Esta irregularidade de produção, emergente, de
outras formas, nas literaturas ocidentais, orienta-se na sua relação com os séculos
clássicos [...] (SEIXO, 1998, p.55-56, grifos nossos)
No estudo de Auricléa Neves (2011) sobre as viagens, a autora relembra a organização
que Antônio José saraiva & Óscar Lopes fazem em Caráter geral da literatura de viagens. Os
39
Fernando Cristóvão. ―O incipite o explicit nos diários e relações de viagem, e as razões da escrita e da
Expansão‖ In SEIXO, Maria Alzira, LABORINHO, Ana Paula (orgs.). A Vertigem do Oriente: Modalidades
discursivas no encontro de culturas. Lisboa: Cosmos, 1999.
69
autores dividem esses textos em três grupos. O primeiro é constituído pela produção de
literatura náutica, os chamados ―livros de marinharia‖ e destacam relatos das primeiras
viagens portuguesas, destacando as obras Diário da Viagem de Vasco da Gama, de Álvaro
Velho, e a Carta de Pero Vaz de Caminha. O segundo grupo é constituído por um conjunto de
obras, denominado ―narrativas de viagens‖, que tem como exemplo o Esmeraldo de Situ
Orbis, de Duarte Pacheco. O terceiro grupo é composto pelas narrativas de naufrágio, como a
História Trágico-Marítima. Os autores do tradicional História da Literatura Portuguesa,
destacam a importância de Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, pela qualidade da
narrativa e o entrelaçamento entre ficção e realidade:
Vem já da Idade Média o gosto por este gênero de livros, como se vê pelo sucesso
de Marco Pólo, cuja tradução portuguesa foi impressa em Lisboa, 1502. Os
precursores desta literatura devem ter servido de fonte a Gomes Eanes de Zurara,
primeiro cronista conhecido das viagens oceânicas. Durante todo o século XVI e
ainda no XVII multiplicam-se as crônicas, descrições e relatos.Uma parte dessa
produção não tem valor propriamente literário. É o caso, não só da literatura
propriamente náutica, como os livros de marinharia, escritos para pilotos, mas
também o de muitos relatos das primeiras viagens. Merecem, no entanto, especial
menção o Roteiro da Viagem de Vasco da Gama, por Álvaro velho, que nela
participou, e sobretudo a carta de Pero Vaz de Caminha que dá notícia ao rei Dom
Manuel do achamento do Brasil [...] No entanto, à excepção, como veremos, da
Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, a literatura de viagens portuguesa
quinhentista e seiscentista não passou de um nível de reportagem.(Saraiva &
Lopes,p.20, grifos nossos)
Conforme percebemos, ao encetar tal classificação, Saraiva & Lopes não estendem a
classificação sobre as viagens para os textos setecentistas, deixando de fora a produção sobre
a Amazônia, realizada a partir dos viajantes que foram para esse espaço em missões
ordenadas pela Coroa Portuguesa, como por exemplo, Alexandre Rodrigues Ferreira e
Henrique João Wilkens. Ao analisar estudos como o de Saraiva & Lopes, percebemos que os
textos sobre a Amazônia são excluídos da concepção canônica sobre as Viagens e nem sequer
são mencionados pelos autores.
Diante do exposto, pleiteamos neste estudo uma revisão crítica do cânone lusitano
sobre as viagens, pelo fato de ele ser excludente e não privilegiar a produção e o
70
conhecimento gerado por tantos viajantes que se dispuseram a representar os interesses da
Coroa Portuguesa nas terras amazônicas.
Um fator importante a ser abordado na discussão que ora levantamos é o fato de que a
Literatura de Viagens não se reduz apenas a informar. Muito ao contrário, a experiência e a
motivação daquele que escreve são fatores preponderantes para a classificação do texto. O
viajante, independente do formato do texto que escreve, quer revelar a sua relação com o novo
espaço, a nova cultura. A viagem permite o despertar da curiosidade, a avaliação de um novo
mundo a partir de pressupostos anteriores, a reflexão sobre novas formas de ver e a submissão
da realidade observada de acordo com o seu próprio ponto de vista.
Poderíamos afirmar que a imagem do viajante, que parte de sua terra e a leva
resguardada na memória, funde-se com o aparecimento da literatura ocidental?
Parece-nos que desde as páginas da Odisséia, escrita em tempos longínquos por um
Homero que ―mesmo sem existir nos criou‖, passando pelos bem mais sucedidos
poemas épico-nacionais da literatura portuguesa até a produção literária do século
XX, a viagem é tema recorrente, continuamente evocado e cultuado por aqueles que,
além de escritores, são viajantes do olhar. [...] a viagem inseriu-se na história da
civilização ocidental como possibilidade de metamorfose do mundo e da experiência
humana; sobretudo desde que a ventura lusitana das navegações dos séculos XV e
XVI alargou o espaço conhecido, tornou certo o que era incerto. (RIOS, 2009,
p.84)40
Desde a Odisseia de Homero, passando por autores da literatura universal como
Marco Pólo e As viagens, A volta ao mundo em 80 dias, Oitocentas léguas pelo rio Amazonas
e Viagem ao centro da Terra de Julio Verne, O mundo perdido de Conan Doyle, As Viagens
na Minha Terra de Garrett, Viagem ao redor do meu quarto de Xavier de Maistre, Os
Lusíadas de Camões, Crônica da Guiné de Gomes Eanes de Zurara, A Selva de Ferreira de
Castro, entre tantos outros, a temática das viagens encanta e registra experiências únicas sobre
o diferente, o olhar do viajante estrangeiro sobre o espaço desconhecido. São textos que
agregam eventos reais com elementos da fantasia e do maravilhoso, textos que sobrevivem ao
tempo a despertar o interesse de leitores e pesquisadores sobre a temática das viagens e por
esses motivos representam uma valiosa contribuição para os estudos literários.
40
RIOS, Otávio. ―O outro lugar: os viajantes descobrem o Paraíso‖. In: RIOS, Otávio (org.). O Amazonas
deságua no Tejo: ensaios literários. Manaus: UEA Edições, 2009. p.84-98
71
3.2 Sobre os viajantes portugueses
"Navegar é preciso; viver não é preciso".
Fernando Pessoa
Foi através da mistura entre admiração e espanto, e pela admiração ou aversão ao
exótico, que a visão sobre o novo continente foi divulgada ao restante do planeta através dos
relatos dos viajantes. Francisco Ferreira de Lima em O outro livro das maravilhas (1998) nos
remete ao sentimento de espanto trazido pelo Renascimento ao homem europeu recém-saído
da Idade Média, ao acordar de um sono profundo e contemplar um ―mar‖ de possibilidades a
explorar:
A outra face virava-se para o futuro, ou para o presente onde ele se ocultara, à espera
da revolução que, ensaiada já no século XV, ocuparia todo o século seguinte para o
desvelar. Descobriram-se incontáveis e exóticos recantos geográficos, tantos que ―se
mais mundo houvera, lá chegara‖, como dirá mais tarde o Poeta que emblematizaria
no seu inspirado poema épico a tentativa de conciliar as duas visões que dividiam o
homem da Renascença. A geografia do globo expande-se por todos os quadrantes,
evidenciando que o temor ante os perigos dos mares era em grande parte fruto das
superstições que tolhiam o homem medievo [...] (p.11)
Ao fascínio das ―descobertas‖ dos séculos XV e XVI, seguiu-se imediatamente a
conquista e a imposição de um poder político e cultural ocidental e o jugo europeu sobre o
território colonizado deu-se a partir das viagens. O Ocidente torna-se o grande legislador, o
mito. As descobertas marítimas e a ocupação das terras descobertas serviram para alargar as
fronteiras geográficas e econômicas da Europa e para transformar a História da Europa em
História Universal. Segundo Santiago (1982), as diferenças são abolidas a ferro e a fogo,
transformando-as em mundo narcisicamente construído, e, posteriormente, as diferenças são
suplantadas através do discurso vitorioso do vencedor. A desejada ―universalidade ou bem é
um jogo colonizador, em que se consegue pouco a pouco a uniformização ocidental do
mundo‖ (p.23). Na tentativa de descoberta do paraíso terrestre e a fonte da eterna juventude, a
religião cristã foi grande articuladora de conceitos e pré-conceitos que se estabeleceram na
chegada dos europeus:
72
De súbito, os europeus tomam consciência de não serem os únicos habitantes do
planeta, e de que outras gentes, de outra cor, linguagem e costumes, não raro ainda
mais antigas, reclamavam atenção e respeito, quando pouco pelas naturais vantagens
que daí pudessem advir. Em suma, o ―outro‖, com sua identidade própria, cultura
própria, algumas vezes mais adiantada, começava a existir, em diálogo com o
europeu que arrostara os oceanos cheios de ameaças para entrar em contacto com
ele. Era português, notadamente, esse europeu intemerato, que em frágeis
embarcações se atirava às águas do Atlântico em busca de terras e povos ignotos e
longínquos, de que se possuíam, quando muito, indicações breves, em mapas nem
sempre corretos. (LIMA, 1998, p.12)
O despertar para um Novo Mundo ocorreu após a assinatura do Tratado de não
agressão com Castela, em 1411, o qual definia que durante cem anos não haveria guerra entre
os dois reinos rivais: ―criou-se uma espécie de um vazio existencial na corte de D. João I, que
tinha na guerra uma de suas ocupações básicas‖ (LIMA, 1998,p.23). Foi a partir dessa lacuna
que a tomada de Ceuta foi planejada e a busca por ―cristãos e especiarias‖ tornou-se o mote a
desafiar o espírito de aventura dos portugueses e o adversário, a princípio, seria um velho
inimigo quase esquecido – o mouro. Desta forma, o espírito de cruzada que tomara a terra
firme em tempos anteriores, invade o mar. A tomada de Ceuta em 1415 é um episódio
histórico importante para compreender as bases do expansionismo português.
Segundo Lima (1998, p.28) ―Ceuta era um foco de ―infiéis‖, onde escravos cristãos
eram especialmente humilhados‖, esse era o motivo religioso. Porém o autor aponta outros
motivos que precisam ser mencionados para demonstrar a importância da conquista de Ceuta
naquele momento político. Portugal precisava impedir a pirataria praticada pelos norteafricanos no estreito de Gibraltar e nas costas do Algarve, pois essa atividade causava
enormes prejuízos a Portugal. Da mesma forma, era imprescindível separar os muçulmanos
dos dois continentes e deixá-los isolados da Europa com o intuito de estabelecer relações
comerciais com a região antes de Castela ―em função dos produtos africanos e asiáticos que
ali chegavam em grande quantidade‖ (p.29).
Para dar cabo desses acontecimentos, o espírito de cavalaria e de cruzada foram
fundamentais:
73
Não é nova a presença da ideia de Cruzada em Portugal. Interesses múltiplos –
conflitos por propriedade da terra, por exemplo – fizeram com que, por volta do
século XII, a harmonia existente entre muçulmanos e cristãos, longamente
construída, começasse a se transformar em guerra aberta. Retomou-se mais
decididamente por essa época a velha ideia de Reconquista. E com a ideia de
Reconquista renasceu o ódio mortal ao mouro infiel. Esse ódio, no entanto, é uma
construção que vem de fora da Península Ibérica. Como se viu tantas vezes depois,
Portugal tinha que se adequar ao ritmo do resto da Europa. E o resto da Europa vivia
tempos de ódio e guerra contra os ―infiéis‖ usurpadores da terra santa. As bulas
papais, a chegada das ordens religiosas e a presença dos cruzados em Portugal,
participando diretamente da luta contra os mouros, foram os responsáveis pela
introdução da nova maneira de ver este (quase esquecido) inimigo. Era a ―Cruzada
do Ocidente‖ que estava a se iniciar. (LIMA, 1998, p.29)
No entanto, a ―Cruzada do Ocidente‖ que estava a se iniciar através do mar trouxe
novos desafios e novas formas de luta, como por exemplo, o uso de material bélico e a
artilharia. Com essa alteração na forma de lutar, os cavaleiros da terra que ganhavam a honra
no ato de lutar face a face com o inimigo foi substituído pelo ―herói‖ que lutava de forma
cruel e desigual frente ao inimigo desarmado ou armado apenas com arco e flecha.
A vontade de ser herói de alguns portugueses ganhou a ajuda de muitos outros homens
comuns que também decidiram sair de Portugal e enfrentar os perigos e aventuras dos mares
desconhecidos para fugir da escassez e da miséria. Em um belo ensaio de Margarida Alves
Ferreira41, a autora nos faz refletir sobre o movimento de saída dos portugueses da Península
Ibérica rumo ao mar:
Nos mares do imaginário português parecem ter navegado sempre as naus do
Império. ―O olhar esfíngico e fatal‖ com que, no alvorecer da expansão, Portugal,
rosto da Europa, fitava o Ocidente, buscava ver ―claramente visto‖ o que mapas,
testemunhos, tradições e lendas contavam sobre o além daquele fixo horizonte por
trás do qual se escondia o mar Tenebroso. E, de medo em medo, de ilha em ilha, lá
foi o Sonho, como diz Fernando Pessoa... (FERREIRA, 1994, p.27)
A autora nos remete ao poema de Fernando Pessoa e ao que já disse anteriormente
Finazzi-Agró:
41
FERREIRA, Margarida Alves. ―Portugal e o naufrágio do império‖ In: América: ficção e utopias. José Carlos
Sebe Bom Meichy; Maria Lucia Aragão (orgs). São Paulo: EDUSP, 1994. p. 27-43.
74
Horizonte
O mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
Splendia sobre as naus da iniciação.
Linha severa da longínqua costa
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha.
O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp'rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte
Os beijos merecidos da Verdade.
O poema de Pessoa projeta a beleza poética do sonho de sair em busca da linha do
horizonte e encontrar novas terras e novos desafios. Mesmo antes da euforia do
expansionismo nos séculos XV e XVI, os portugueses já buscavam o mar, mas ainda sem um
plano concreto de expansão. Porém, no século XV, as forças do expansionismo
impulsionaram Portugal a querer ultrapassar o cabo Bojador e o das Tormentas até chegar ao
Oriente e depois ao Ocidente.
No entanto, essa vocação marítima portuguesa era questionada por aqueles que ainda
acreditavam na dimensão agrária de Portugal. No século XV, Portugal vivia majoritariamente
das exportações de vários produtos produzidos em suas terras, como o vinho, o couro, frutas e
azeite. Conforme Lima (1998):
Por essa época, o interior é auto-suficiente, não necessitando de quaisquer relações
com a costa para a sua manutenção. Como diz Boxer (1992:30) mesmo o camponês
que habita as proximidades de Lisboa ―só tem consciência do Atlântico quando
tenta proteger as suas vinhas das fortes brisas marítimas e das partículas de sal por
ela trazidas‖. Amplie-se essa noção para todo o interior, do Alentejo a Trás-osMontes, onde essas brisas e essas partículas não dão sinal de vida, e se terá a exata
medida desse distanciamento. [...] Embora o mar tenha representado para
Portugal, mais do que para qualquer outro país em qualquer tempo, o
caminho, a verdade e a vida, foi antes a vocação política, mais que a marítima,
a responsável pela viagem portuguesa pelo mundo. Com efeito, o fato de ter-se
unificado muito cedo como reino, livrou Portugal de viver a interminável série de
dissenções internas que arrasavam os outros países, inclusive seus vizinhos de
75
fronteira e permitiu-lhe preparar o salto futuro sem ter que sofrer sobressaltos
presentes. (LIMA, 1998, p.45-46, grifos nossos)
A vocação política que estimulou a saída ao mar era ao mesmo tempo vista com
excitação por uns e com desconfiança por outros, pois diferentes grupos da sociedade
portuguesa rivalizavam no cenário econômico português: a burguesia comercial-marítima e a
aristocracia rural conservadora. Ambas representavam forças antagônicas, porém essenciais
para a economia portuguesa. O Velho do Restelo camoniano, episódio que será analisado no
próximo capítulo deste estudo, sintetiza a contradição gerada entre esses grupos.
Para
compreender
o
antagonismo
dessas
forças
é
preciso
retrocedermos
cronologicamente ao século XIV. Recorremos a António Sérgio (1978). O autor aponta que
desde o reinado de Dom Fernando são estabelecidas as duas políticas que representam a
economia portuguesa: a política de Fixação (fixação da gente e da riqueza na terra) e a
política do Transporte (das viagens). Os reis portugueses da primeira dinastia se preocuparam
em fomentar a colonização interna através de incentivos ao cultivo da terra e fixando núcleos
de trabalho agrícola, principalmente ao norte de Portugal. No entanto, no reinado de Afonso
IV (1325-1357), a ausência de servos rurais é sentida no campo.
Ao passo que a lavoura se debatia em crises, a situação da costa portuguesa chamava
o país às lides marítimas. Os portos, baluartes da burguesia, tinham um caráter
cosmopolita. ―Lisboa é grande cidade, de muitas e desvairadas gentes‖, diz o
cronista Fernão Lopes. Havia residentes de muitas terras, e muitas casas de cada
nação: genoveses, lombardos, aragoneses, biscainhos, marroquinos, milaneses,
corsos, etc. gozando privilégios e isenções que lhes prodigalizavam os soberanos
[...]
Da importância desta forma de atividade dão testemunho impressivo outras
leis de D. Fernando, as leis protectoras do comércio marítimo. Revelam-nos o valor
da burguesia marítima, e mostram em germe o que veio depois: a revolução de 1383,
a grande empresa das navegações. (SÉRGIO, 1978, p.25-26)
A revolta da burguesia em Lisboa foi fator preponderante para o fortalecimento da
empresa marítima portuguesa. A vitória da revolução burguesa sobre o rei de Castela e a
aristocracia rural, conhecida como Batalha de Aljubarrota, prepara a missão histórica de
Portugal de expandir seu território pelo mar. De acordo com António Sérgio (1998): ―Em
76
Aljubarrota, mais que o embate de duas nações, há o choque de duas políticas e duas classes.‖
(p.29). Ainda de acordo com o autor, Aljubarrota simboliza a independência de Portugal e
uma nova orientação da sociedade – a queda da antiga aristocracia rural e a ascensão de
―gente nova‖, os burgueses. Essa vitória foi crucial para a conquista de Ceuta em 1415,
conforme dissemos anteriormente. A partir deste acontecimento, Ceuta torna-se um troféu de
conquista e a mola propulsora das descobertas portuguesas, pois ―não se pode ir ao longe sem
que se tenha ido primeiro ao perto. Só depois é que, a depender do que ele tenha a oferecer,
pode-se ampliar a viagem.‖ (LIMA, 1998, p.49)
Das forças políticas e econômicas antagônicas que marcavam a sociedade portuguesa
no século XV e das conquistas e descobrimentos que se sucederam, inicia-se o período de
apogeu da expansão ultramarina em Portugal, cujo lema é ―expandir a Fé e oImpério‖. Porém,
se a intenção fosse apenas cristã, quem quisesse converter almas bastaria enviar missionários
às terras da África, próximas a Portugal. Torna-se flagrante que o interesse comercial
sobrepõe-se ao religioso, e encontrar a rota para as Índias e mais tarde para as Américas seria
o objeto de desejo dos marinheiros portugueses.
Os descobrimentos do século XV foram uma façanha de gente metódica, dotada de
clara inteligência politica, de visão lúcida, muito precisa, dos escopos práticos a que
tendia, e do estudo minucioso dos meios adequados a tais escopos: em suma, um
vasto plano de conjunto, capacidades raras de organização: nada que se assemelhe
ao aventureirismo inconsciente com que a pintaram , depois, os românticos
celticistas do século XIX. (SÉRGIO, 1978, p.37)
Em seguida à descoberta das Índias, em 1498, Vasco da Gama torna-se herói e
exemplo de vitória, a despeito das inúmeras mortes e das calamidades que ocorreram em sua
viagem rumo ao Oriente. A figura do célebre Vasco da Gama, que será mais discutida no
próximo capítulo, foi imprescindível no cumprimento da missão que lhe foi dada. Pois, apesar
de ser pouco conhecido na Corte e filho de um nobre menor, demonstrou ter qualidades
suficientes para enfrentar a missão e ser reconhecido como um homem articulador e
77
excelente diplomata, disposto a negociar com reis, um líder que foi capaz de travar uma
Cruzada marítima em nome da Coroa Portuguesa.
Logo depois da viagem de Gama, em 1500, Pedro Álvares Cabral chefia as naus que
chegaram ao Brasil. São sucessivas as ―descobertas‖, mas também sucessivas as perdas, os
naufrágios, as mortes por doença em alto mar. Em nome da Coroa portuguesa, do ideal de ser
marinheiro, da superação dos próprios limites, o Homem das ―descobertas‖ foi capaz de por
em prática o projeto ideológico do Renascimento ─ assunto de que trataremos no Capítulo 4.
Segundo informações de Boxer (1992), na primeira metade do século XVII morreram
duas mil setecentas e trinta e três pessoas de um total de cinco mil e duzentas e vinte e oito
enviadas para as Índias, número que representa uma mortandade acima de cinquenta por
cento. Em que pese esse alto número de perdas, muitos homens dispunham suas vidas em
nome do desconhecido.
Segundo Isabel Allegro de Magalhães42, conceitos como ―imaginário de nação‖ e
―identidade nacional‖ só podem ser pensados em relação ao espaço e ao tempo, e são
definidos em relação ao Outro. A identidade nacional dos portugueses foi ―construída de
costas para Castela e todo voltada para o oceano‖, em séculos de história marítima. Na
problemática relação entre Portugal e Espanha, na eterna rivalidade entre coroas ─ ―Ser
português queria dizer, sobretudo, não ser espanhol‖, mas ser marinheiro:
Já no século XV, tendo os portugueses partido para a expansão marítima, a equação
―ser português é ser marinheiro‖ passou a ser uma das bases do ser português e um
dos pilares da identidade nacional. Esta ideia não só enraizou no nosso imaginário
como também no europeu, dando forma a uma outra faceta da identidade
portuguesa. Nesse momento, estabeleceu-se uma distinção entre a cosmovisão
feminina e a masculina: os homens partiam e as mulheres ficavam. (p.189)
42
MAGALHÃES, Isabel Allegro de. ―Aquém e Além: espaços estruturantes da identidade portuguesa?‖. In: O
sexo dos textos e outras leituras. Lisboa: Editorial Caminho, 1995.
78
Neste período, muitos homens que ainda resistiam à vida no campo, migravam para o
litoral, lançavam-se ao mar em busca de riquezas e poder. O campo esvaziava-se, as mulheres
ficavam solitárias e lamentavam a sorte de ter de sustentar as famílias sozinhas. Navegar por
si só já era viver. E se viver era navegar, levar uma vida longe dos desafios da navegação não
tinha importância. Então, através dos séculos, essa vocação se tornou a marca portuguesa de
descobrir ou encontrar novos continentes e novas condições de vida. Marcas que vieram a
constituir um ideário de nação portuguesa que só seria legitimado no século XIX.
A viagem portuguesa pelo mundo possui um caráter singular que a distingue de
todas as outras ações parecidas e a torna um dos maiores feitos até hoje realizados
pela humanidade em qualquer tempo. Embora pareça óbvio, trata-se do fato,
aparentemente simples, de ter ido e ter voltado. Com efeito, houvessem os
portugueses apenas ido, eles se teriam igualado aos grandes viajantes de todos os
tempos, que em todos os tempos os homens viajaram. (LIMA, 1998, p.46-47)
Na chegada ao desconhecido, a constatação de encontrar novas e diversas culturas
desafiavam o entendimento dos portugueses. ―Encontrar‖, ―inventar‖ ou ―descobrir‖ o Outro
era na mesma medida descobrir a si próprio ―E de modo recíproco, ao ser descoberto pelo
europeu, o nativo descobria o europeu e descobria-se a si.‖ (LIMA, 1998, p.61)
3.3 Sobre os viajantes na Amazônia
As viagens dos descobrimentos e as expedições de reconhecimento de um novo
território foram profícuas no que diz respeito ao encontro de diferentes povos. Na medida em
que os relatos deixados pelos viajantes permitiram mapear a descoberta do Outro, também
permitiram a percepção do espanto, da admiração, da perplexidade e da desorientação do
europeu ao se deparar com outros homens, na maioria das vezes nus, que desafiavam a
capacidade do colonizador em lidar com a alteridade.
A alteridade funciona como a demonstração do mito, que faz elos partidos e
perdidos reencontrarem-se numa totalidade, apaziguando desejos ancestrais.
Códigos, valores e parâmetros perdem sentido e função nesse momento. Os homens,
enfim, são um único e mesmo homem. O real perde sua configuração e assume uma
dimensão cintilatória. E o novo faz-se presente de maneira estonteante.
Por isso a visão é, por excelência, o sentido da alteridade. No momento em que
faltam palavras, uma vez que esse novo absoluto não pode ainda ser nomeado,
o olho é a língua. Isto porque ele faz ver o mito da fusão do eu com o outro,
79
desejo que só pode ser resolvido com o olhar. O júbilo dessa visão basta-se a si
mesmo, não necessitando nenhuma contribuição dos outros sentidos, os quais, aliás,
não poderiam fazê-lo, uma vez que se encontram desordenados, como numa
catástrofe.
Naturalmente, a duração do fenômeno de alteridade é mínima, e não poderia ser
diferente, já que se trata efetivamente de um gozo. Vivido esse estágio, retomam-se
os parâmetros, valores e códigos e a cintilação cede lugar à comparação, em que
se medem a superioridade ou inferioridade do descoberto. (LIMA, 1998, p.62,
grifos nossos)
De acordo com a problemática de aceitar a alteridade, discutimos a chegada dos
viajantes à Amazônia, a perplexidade em encontrar o exótico e o desejo de encontrar o paraíso
terrestre na terra. De militares a missionários, aventureiros a clérigos, geógrafos a cientistas,
são vários os viajantes que se dispuseram a desbravar a Amazônia.
As viagens para o vale amazônico apresentavam muitos perigos e incertezas. Tais
circunstâncias exigiram do desbravador adaptação a um novo clima e a uma nova
alimentação. De todas as classes, os portugueses desbravadores demonstraram que, apesar da
contradição entre desejar o novo e implantar modelos do Velho Mundo na mata fechada,
foram capazes de se adaptar a novas formas de vida, como dormir na rede, se alimentar de
farinha e buscar alternativas de transporte, entre outras habilidades desenvolvidas na nova
terra. Especificamente na Amazônia, adaptar-se naquele momento a viver nas entranhas da
selva, ainda que procurando refúgio nos beiradões dos rios, não era tarefa fácil nem para o
mais bravo viajante, pois a floresta nunca aceita ser domada.
Os relatos de viagens são reconhecidos e entendidos como fonte de conhecimento
sobre os encontros com seres humanos diferentes e com fenômenos naturais desconhecidos. O
detalhamento e a intensidade desses relatos, muitas vezes narrados de maneira hiperbólica,
suscitaram uma profunda influência na atitude das gerações futuras em relação aos indígenas,
pois até hoje algumas etnias carregam estigmas, como, por exemplo, o de que os Tupi são
canibais ou os Mura são cruéis.
80
Os relatos de viagens trouxeram diferentes imagens e histórias dessa ―descoberta‖,
enfatizando o caráter dos indígenas, a organização política e comunitária. Ao mesmo tempo
foram significantes nesses estudos os conhecimentos sobre a fauna, a flora, a hidrografia,
topografia e potencial agricultor na nova terra. Porém, grande parte do imaginário sobre a
Amazônia não foi construído a partir da chegada dos desbravadores, mas em período anterior.
Ao chegar a esse espaço, os viajantes já trouxeram consigo todo um imaginário
construído a partir da Índia e da história greco-romana. Até mesmo a mitologia indiana foi
significativa através das lendas e maravilhas que apavoravam os homens medievais. Desde a
primeira viagem ao Novo Mundo, tal imaginário anterior influenciou a visão do europeu.
Jorge Fernandes da Silveira (2008)43 ao citar Saraiva (1972), nos diz: ―A imaginação
dos poetas não sabia o que fazer dessa América saída abruptamente de um mar desconhecido,
chocando todas ideias estabelecidas sobre o feitio do mundo‖, mas o autor adverte que: ―o
imaginário americano pode estar antes e aquém do conhecimento da América. (p.38)
Foram várias incursões e muitas linhas escritas descrevendo a experiência com o
exótico, mas apesar da importância que esses textos possuem, por transmitirem o
conhecimento sobre o diferente, sobre o Outro, estes nem sempre tiveram o reconhecimento
ou a recepção devida. A publicação desses relatos muitas vezes era deixada de lado por
demandar investimento financeiro e interesse político pela publicação. É importante lembrar
que até a chegada de D. João VI ao Brasil, em 1808, a Coroa proibia a publicação de livros na
colônia. Antes dessa data, as publicações eram realizadas apenas pela Imprensa Régia em
Lisboa.
43
SILVEIRA, Jorge Fernandes da. O Tejo é um rio controverso: António José Saraiva contra Luis Vaz de
Camões. RJ: 7 Letras, 2008.
81
O encantamento pelo índio e o repúdio aos seus hábitos ―não-civilizados‖ estão
registrados nos textos dos viajantes que apresentam sua nudez sem pudor, o destemor e sua
forma de viver ―primitiva‖, o canibalismo e a crueldade contra os viajantes que ousavam
invadir o seu espaço. A descoberta feita por Colombo causou uma sensação de medo, de
mistério e a necessidade de explicação se instalou. Ao mesmo tempo, propagou-se o interesse
em catalogar, detalhar, descrever povos e novos climas e vegetações; a incrível possibilidade
de encontrar um mundo maravilhoso, que deu margem à ficção e à descoberta do fantástico.
Para além do que foi explorado nas primeiras escritas sobre a América do Norte, a escrita
sobre a região amazônica suscitou o imaginário do viajante europeu sobre os mistérios da
floresta e dos povos que ali habitavam.
Apesar da ocupação espanhola no território Inca ter ocorrido em 1530, as primeiras
incursões pelo Vale Amazônico ocorreram a partir da década seguinte. Os primeiros cronistas
que desbravaram essa região foram o frade dominicano Gaspar de Carvajal, o padre Cristóbal
de Acunã e o padre João Daniel.
Para inaugurar os relatos sobre a Amazônia, temos os escritos de Frei Gaspar de
Carvajal da Ordem dos Dominicanos. Nasceu na Espanha e veio para América. Fundou o
primeiro convento da Ordem Dominicana no Peru.
Carvajal acompanhou a viagem de
Francisco de Orelhana em 1541/1542 na condição de capelão e escrivão. Orelhana foi
governador da cidade de Santiago de Guayaquil e aventurou-se na expedição que batizou o rio
Amazonas. Carvajal relata o que foi observado durante o trajeto que partiu da nascente do rio
Amazonas no Peru até a sua foz no arquipélago de Marajó. A publicação desses relatos
ocorreu apenas em 1894 e recebeu o título de Descobrimento do Rio Grande das Amazonas.
Carvajal e Orelhana são considerados os primeiros a desbravar o vale amazônico. O
relato dessa viagem coloca Frei Gaspar de Carvajal numa condição comparável à de Pero Vaz
de Caminha da Amazônia. Resguardadas as devidas diferenças entre os dois cronistas na
82
forma de narrar e nas especificidades de cada lugar descoberto, Krüger (2003)44 afirma que a
―A mais relevante dentre todas talvez seja a que diga respeito às riquezas do Novo Mundo‖
(p.212), pois, enquanto Pero Vaz apenas supõe que deveriam existir riquezas na terra recémdescoberta, Carvajal descreve as riquezas observadas, as sociedades que habitavam suas
margens, a diversidade étnica e as maravilhas observadas ao longo da viagem. Assim como as
Viagens de Marco Pólo e a Peregrinação de Mendes Pinto, o texto de Carvajal é também um
livro de maravilhas, ao anunciar novidades factuais e levantar elementos fantásticos. A
maravilha se estabelece na medida em que há ―um ―eu‖ que se deslumbra com o que vê,
extasiado ante um real que excede todos os limites.‖ (LIMA, 1998, p.20) Citamos, como
exemplo, a lenda do Eldorado e a lenda das Amazonas, mulheres guerreiras da tribo das
Icamiabas que vieram lutar contra a expedição espanhola.
O mito das Amazonas versa sobre belas mulheres guerreiras e desde a antiguidade
povoa o imaginário dos desbravadores, pois se refere às integrantes de uma antiga nação de
guerreiras da mitologia grega. Entre as rainhas das guerreiras amazonas está Pantasilea ou
Pentesileia, filha de Otrera45, que teria participado da Guerra de Troia. Esta referência se faz
presente em Muraida, a deusa é mencionada no início da estrofe a seguir, quando o autor
menciona o rio das Amazonas:
Rio, que de Pantasilea a Prole
Habitando algum tempo, fez famoso,
Enquanto não efeminada, a mole
Ociosidade deu o valoroso
Peito, buscando agora quem console
A mágoa, no retiro vergonhoso,
Que fez aos densos bosques, em que habita,
Inconstante, e feroz, qual outro Cita.
(Mur, I, 6)
Há relatos de incursões das Amazonas na Ásia Menor na Antiguidade. Já na
Modernidade, o nome Amazonas tornou-se sinônimo para mulheres guerreiras.
44
De acordo
KRÜGER, Marcos Frederico. Amazônia: mito e literatura. Manaus: Editora Valer / Governo do Estado do
Amazonas, 2003.
45
SPALDING, Tassilo Orpheu. Deuses e Heróis da Antiguidade Clássica, dicionário de Antropônimos e
Teonimos vergiliano. São Paulo: Cultrix, 1974.
83
com Marcos Frederico Krüger (2003), o relato de Carvajal tende mais para a ficção que
propriamente para a história sobre as Amazonas, pois o confronto dos desbravadores com
essas guerreiras aconteceu na foz do rio Nhamundá, na adjacência do rio Madeira. Além
disso, o cronista traça o perfil das índias, relatando que estas moravam no interior da floresta.
Posteriormente, esse mito foi narrado por outros cientistas como Charles Marie de La
Condamine, Spruce e ao historiador Southey. Conforme citação a seguir:
A narrativa maravilhosa de Carvajal deixou como herança à grande maioria dos
viajantes, a história das Amazonas no império dourado de Canhori. Quase trezentos
anos depois, viajantes a serviço de seus países ainda perguntaram pelas guerreiras
solitárias, as Ycamiabas de Acunã. Os pontos controversos, as suposições, a
imprecisão, os temas inacabados, as pistas, foram deixados como acenos para a
aventura da descoberta de cada um dos viajantes a seus herdeiros. Acenavam com a
impossibilidade de a região imensa ser vasculhada totalmente e descobertos todos os
seus segredos. Cada um acreditava que podia abarcar o incomensurável, mas
registraram as mutações de uma natureza imóvel na aparência e profundamente viva
e móvel na intimidade. O exercício da escritura tem seu reforço e estímulo nas
descrições a que é tentado o viajante em eternizar momentos heterogêneos,
paradisíacos e infernais. (GONDIM, 2007, p.169).
Carvajal, assim como os outros viajantes que passaram por essa floresta, não fugiam
ao discurso teológico, visto que o poder da Igreja era soberano em Portugal e em Espanha.
Por isso é natural do ponto de vista do colonizador que as terras conquistadas por estes
seguissem a mesma doutrina teológica em que acreditavam.
Souza (1994) observa o crescimento da presença portuguesa na Amazônia durante a
União Ibérica:
Entre 1600 e 1630, os portugueses consolidaram o seu total domínio da boca do rio
Amazonas. Avançaram para o norte, sob a desconfiança dos espanhóis, e
atravessaram a linha do Tratado de Tordesilhas. Com a fundação do forte do
Presépio de Santa Maria de Belém (1616), os portugueses violaram deliberadamente
o tratado se aproveitaram do fato de Portugal estar sob o domínio espanhol.[...]
É interessante como esses primeiros passos dos portugueses na Amazônia são
coincidentes com o esforço de Portugal para não ser devorado pela Espanha. Apesar
de unidos sob o reino de Felipe IV, os portugueses jogaram na ocupação do grande
vale amazônico uma das cartadas decisivas para a manutenção de sua identidade
nacional. Os administradores portugueses agiram com grande sagacidade política,
fazendo letra morta do tratado de Tordesilhas (SOUZA, 1994, p.52-54)
84
Desta forma, durante o domínio filipino, outra expedição parte em nome de Filipe IV
de Espanha. Foi a expedição de Pedro Teixeira, ocorrida entre 1637 e 1639. Pedro Teixeira
era explorador sertanista e militar português, foi o primeiro a navegar pelo Amazonas com o
itinerário que iniciara no oceano Atlântico em direção aos Andes. O relato chamou atenção
pela disciplina, organização e nexo, com as quais os portugueses conduziram a viagem. O
Padre Cristóbal de Acunã fez parte dessa viagem e descreveu precisamente os povos que
habitavam as margens do Amazonas. Estes foram os primeiros a terem sua morada e seus
povos extintos, justamente pela localidade, o que facilitou a invasão.
Os jesuítas Cristóbal de Acuña e Andrés de Artieda foram incumbidos desta missão.
Essa expedição teve uma grande importância política, pois seu objetivo era integrar a armada
portuguesa que acabava de subir o rio Amazonas. Foi durante essa viagem que Acunã fez o
seu manifesto em defesa da liberdade indígena e acusou os portugueses de quererem dominar
os gentios através da crueldade. De acordo com a Companhia de Jesus, a colonização deveria
ser feita através da ação missionária e não da escravização e do assassínio. Diante dessa
atitude em defesa do indígena, Acunã corrobora o discurso de Bartolomé de Las Casas e
Padre Manuel da Nóbrega, no século anterior.
O relato da viagem de Acunã foi encaminhado ao Conselho das Índias para
conhecimento do rei espanhol, porém não houve uma recepção imediata ao material que
revelava o conhecimento sobre a viagem e sua publicação ocorreu após o fim da União
Ibérica.
Francisco Jorge dos Santos (2002) nos informa que, durante a viagem de volta, Padre
Cristóbal de Acunã relatou tudo sobre os costumes, fauna, flora e a geografia da região
Amazônica, transformando mais tarde essas informações na obra Novo descobrimento do
grande rio das Amazonas, publicado em 1641. A publicação dessa obra, porém, causou
85
preocupação tanto para Portugal quanto para Espanha, pois ambos temiam que a descoberta
das riquezas da Amazônia interessasse a outros países europeus. Os dois países, então,
suprimiram todos os exemplares, praticando a ―política do sigilo‖. Essa política era uma
maneira de guardar o colonizado em segredo, pois logo depois de sua descoberta, o Brasil
tornara-se alvo de saqueadores e piratas de diversas nacionalidades.
Tanto Carvajal quanto Acunã podem ser considerados como os escritores do período
da conquista da Amazônia, pois, o primeiro registrou os acontecimentos em ordem
cronológica, o segundo organizou por assuntos, mas ambos se debruçaram sobre o mesmo
objeto de interesse e deram uma significativa contribuição para pesquisas e viagens
posteriores:
De um lado há o estrangeiro, com valores e crenças estabelecidos em padrões da
oficialidade branca e, de outro, o nativo imerso num mundo mental primitivo,
mítico, com sua vida moldada na prática e na experiência de habitar numa região tão
singular, havendo por tudo isto a interferência no registro dos viajantes. As crônicas
de Carvajal no século XVI e de Acuña no século XVII representam as primeiras
impressões da Amazônia Luso-espanhola e reproduzem o olhar desse viajante
estrangeiro sobre a terra. (NEVES, 2011, p.147)
A partir dos textos de Carvajal e Acunã, foi possível observar as primeiras
experiências do europeu em solo amazônico e como essas experiências contribuíram para o
percurso de muitos outros viajantes. Tais descrições foram determinantes para a crença sobre
as pistas acerca das riquezas dessa região e a transmissão do perfil do índio como um ser
pagão que vivia longe dos preceitos divinos, de acordo com a ideologia cristã europeia. O
índio deveria então ser catequizado e moldado à cultura do europeu. Mesmo após o cessar das
guerras contra os índios, ainda permaneceram resquícios de uma época conturbada para os
povos indígenas, os quais ainda são vistos de forma preconceituosa por alguns. Tal imaginário
sobre o exótico e o selvagem na região Amazônica de alguma forma ainda persiste até os dias
atuais.
Segundo Hansen:
86
Quando lemos os textos de cronistas e jesuítas que atuaram no Brasil, observamos
que produzem um novo objeto chamado ―o índio‖. O novo objeto – chamado de
índio por causa do equívoco geográfico de Colombo, que acreditou ter chegado à
Índia, em 1492 – é construído por meio de um mapeamento descritivo de suas
práticas, ao qual se associam prescrições teológicas-políticas que as interpretam e
orientam segundo um sentido providencialista da história, que faz de Portugal a
nação eleita por Deus para difundir a verdadeira fé. Obviamente, não havia ―índio‖
nem ―índios‖ nas terras invadidas pelos portugueses, mas povos nômades, não
cristãos e sem Estado. (HANSEN,1998, p.351)
Conforme Souza (1994), ―quando os europeus chegaram nessa região, depararam-se
com comunidades populosas, as quais continham mais de mil moradores, lideradas por
tuxaua‖. Eles ficaram perplexos com o tamanho e a diversidade étnica encontrada. Tais
acontecimentos podem ser observados nas crônicas dos primeiros viajantes europeus na época
da conquista, cujos relatos, documentos e informações históricas colhidas pelos mesmos,
foram responsáveis em grande parte pelo modo como os europeus passaram a olhar a região
que haviam conquistado.
Outro cronista que se destacou foi o Padre João Daniel, pois produziu sua obra
Tesouro Descoberto no Rio da Amazonas, nos cárceres de Portugal, para onde foi conduzido
após a expulsão dos jesuítas da Amazônia:
O Padre jesuíta João Daniel em sua crônica “Tesouro Descoberto no Rio
Amazonas” representou uma corrente que aproximou-se do pensamento
Renascentista, mais humanista, fato que desagradou os interesses dos portugueses
vítima da perseguição pombalina, morrera na prisão. (SOUZA, 1946, p.36)
O Padre João Daniel, apesar de acompanhar a subjugação dos povos indígenas,
apresentava um discurso totalmente de cunho religioso. Por esse motivo compreendemos que
nesse panorama o índio nunca teria voz, pois até mesmo o padre que conhecia e denunciava a
violência praticada contra os indígenas acreditava que somente o Cristianismo pregado pela
Companhia de Jesus poderia libertá-los do paganismo e das ações consideradas demoníacas.
Santos (2002) relata as palavras do padre sobre os Mura:
Atiram as flechas com tanta força, e valentia que mui longe atravessam um boi, e
qualquer homem de parte a parte [...] a nação Mura também tem muita especialidade
entre as mais. É gente sem assento, nem persistência, e sempre anda a corso, ora
aqui, ora ali; e tem muita parte do rio Madeira até o rio Purus por habitação. Nem
tem povoações algumas com formalidades, mas como gente de campanha, sempre
87
anda em levante, e ordinariamente em guerras, já com as mais nações, e já com os
brancos, aos quais querem a matar, ou tem ódio mortal. E não só assaltam as mais
nações, mas ainda nas mesmas missões tem dado vários assaltos, e morto a muitos
índios mansos, de que não puderam livrar, por serem repentinas, e inesperadas as
investidas: e para as evitarem lhes é necessário fazerem cercas de pau-a-pique, e
estar sempre alerta; e tem essa contínua guerra, não porque coma gente, ou carne
humana, mas por ódio estranhável aos brancos, a que estes mesmos deram muita
causa. (p.67-68)
Em contrapartida, a opinião sustentada pelos lusitanos era a de que os índios deveriam
ser exterminados por resistirem e não se adequarem à nova realidade da selva. Nesse sentido,
―só deste ano de 1615 até 1652, os portugueses haviam matado para cima de dois milhões de
índios, fora os que chacinavam às escondidas.‖ 46.
Os indígenas nunca seriam vistos com bons olhos pelos desbravadores que traziam
em suas caravelas e na ponta de suas armas o discurso teológico. A forma como os índios
viviam e mostravam-se resistentes contrapunha-se aos interesses econômicos, políticos e
sociais dos europeus que vieram conquistar a região Amazônica. Portanto, os relatos
empíricos realizados pelos primeiros cronistas são de suma importância, pois expressam,
ainda que de maneira contraditória, a cultura dessa região.
Observemos o caso de Alexandre Rodrigues Ferreira, ―o único cientista que Portugal
se dignou mandar ao Novo Mundo‖, segundo as palavras de Manuela Carneiro da Cunha na
apresentação da obra sobre Alexandre Rodrigues Ferreira e Henrique João Wilkens 47.
O
viajante luso-brasileiro que esteve a serviço da coroa portuguesa entre 1783 e 1792 viajou do
interior da Amazônia até Mato Grosso e produziu a sua Viagem Filosófica pelas capitanias do
Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá (1792) e uma coleção biológica e etnográfica
excepcional. Destacamos as contribuições que ele registrou a respeito da agricultura, a fauna e
a flora, assim como as características físicas dos índios Tapuia, Cambeba e Mura, que aqui
nos interessam. Assim como Wilkens, Ferreira deixou registradas em cartas e outros
46
(Anais da Biblioteca Nacional, vol.95, tomo I., p.258.1975)
CUNHA, Manuela Carneiro da. Relatos da fronteira amazônica: Alexandre Rodrigues Ferreira e Henrique
João Wilckens. São Paulo: FAPESP, 1994.
47
88
documentos ―as formas de relação entre portugueses e índios; revezamento de alianças,
conflitos, parcerias, violência e sedução; as formas que a conquista imprimiu às relações dos
grupos indígenas entre si e com seu território.‖
Sem dúvida o cientista mais em evidência no Amazonas, no mesmo século, foi o
doutor Alexandre Rodrigues Ferreira, brasileiro, a serviço de Portugal. Cabe a ele
por antecipação e por justiça ao descortínio de antropólogo, o privilégio de haver
descoberto a Amazônia para a ciência, isto porque demorou-se por muitos anos a
pesquisar em todas as áreas aonde a sua curiosidade de sábio o arrastava, produzindo
a mais copiosa obra que já se escreveu no Brasil àquela época... (MONTEIRO,
1977, p.117)
A viagem de Rodrigues Ferreira foi de fundamental importância no que diz respeito à
observação dos indígenas. Citamos, como exemplo, as descrições realizadas sobre os Tapuia,
Cambeba e Mura. Segundo Ferreira, os Tapuia em sua maioria apresentavam a pele lisa e sem
pelos; os Cambeba apresentavam cabelos lisos e compridos – e desalinhados quando gentios;
os Mura apresentavam barba e cabelos crespos e pareciam amulatados: ―Entre os Muras os
dedos do pé esquerdo são maiores que o do direito por apoiarem entre eles as extremidades de
seus arcos na ação de expedirem as flechas‖ (FERREIRA,1974, p.82). Observa ainda que
entre os Tapuia são raras as deformidades físicas comumente observadas na Europa. Este
detalhe foi observado como um dado importante para reforçar a ideia de que os gentios
eliminavam as crianças que nasciam com algum tipo de deficiência física.
Para ilustrar as diferentes visões em relação aos Mura, recorremos a duas
representações imagísticas. É interessante perceber nas ilustrações as diferenças nos detalhes
da aparência física dos Mura. A ilustração 1, extraída dos Autos de Devassa (1986), está de
acordo com a descrição presente no primeiro canto de Muraida: dente de caititu nos lábios,
cabelo grande, olhar enviesado ou estrábico sugerindo uma interpretação agressiva a respeito
das feições do indígena, mais semelhante à descrição que Ferreira faz dos Cambeba enquanto
gentios: os cabelos desalinhados e o olhar confuso.
Entre nações imensas, que habitando
Estão a inculta brenha, o bosque, os rios,
89
Da doce liberdade desfrutando
Os bens, os privilégios e os desvios
Da sórdida avareza, e desprezando
Projetos de ambição, todos ímpios,
A bárbara fereza, a ebriedade
Associada se acha com a crueldade.
(Mur, I, 9, grifos nossos)
Nos versos do poema, observamos a descrição dos Mura indicando a resistência dos
membros dessa etnia aos projetos de ambição da colonização portuguesa. Os indígenas são
descritos pela crueldade e fereza.
Ilustração 1
Fonte: Autos da Devassa contra os índios Mura
Na ilustração 2, a gravura do ―Índio Mura inalando paricá‖, apesar de apresentar as
características indígenas como a do chapéu sem copa feito de fibra vegetal, as flechas e o
enfeite nos lábios, os traços de seu rosto e os cabelos alinhados nos lembram os traços físicos
europeus.
90
Ilustração 2
Fonte: Biblioteca Nacional (Brasil)
Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira
Ao observar as descrições sobre a etnia Mura no texto de Ferreira, é possível perceber
que os Mura ainda são retratados como perigosos e como ameaça aos colonizadores, apesar de a
Muraida cantar a suposta pacificação de todos os membros dessa etnia. A descrição dos Mura
revela que eles ainda seriam ameaça iminente aos colonos. Conforme Bhabha (1998), o
estereótipo torna-se a principal estratégia discursiva, do colonizador;
é uma forma de
conhecimento e identificação que vacila entre o que está sempre ―no lugar‖, já conhecido, o
lugar da ―fixidez‖. Segundo o autor, o aspecto ideológico da representação é uma estratégia
colonialista de construção de uma imagem negativa sobre os Mura.
Prosseguindo em sua análise, Ferreira compara negros e índios, afirmando que os
gentios são mais ágeis em tarefas na mata, pesca, caça e canoa. O negro seria mais lento,
91
porém mais forte nos trabalhos com a enxada, concluindo que os gentios, quando se viam
obrigados a trabalhar, se deixavam levar pela violência, enquanto os negros se resignavam, se
tivessem o seu sustento garantido através do trabalho:
A debilidade é o caráter de seus corpos e a frieza é o de suas almas [...] É tão
limitada a esfera de seus desejos e necessidades que na menor atividade praticada,
ficam amplamente satisfeitos, sem precisarem de se fatigarem para alcançar os
meios necessários à satisfação. (FERREIRA,1974,p.84)
Nas palavras de Alexandre Rodrigues Ferreira, o indígena não é movido pelas mesmas
motivações dos homens brancos, pois, a ambição em acumular os frutos do seu trabalho não
está presente na sua rotina e se satisfazem com o trabalho necessário para a
própria
subsistência. Em relação aos Cambeba, Ferreira os descreve com os cabelos desalinhados
enquanto gentios ─ ainda de acordo com sua visão etnocêntrica ─ o olhar revelado sobre o
índio Mura se perpetuou através de gerações. Como prova dessa afirmação, encontramos, já
no século XX, em um artigo jornalístico de 1923, o seguinte relato: “tradicional pelas
correrias, depredações e outras violências praticadas em vários pontos do Amazonas,
assunto que constitui a página triste da sua vida nômade e atribulada”(p.55) Segundo o autor
do artigo, os Mura do Aypuiá possuíam índole diferente dos que dominavam o rio Madeira e
o Solimões:
Não achamos que o indígena pratique maldades por um prazer nativo. Os atentados
que realizam são explosões de vingança ou represália a ultrajes recebidos. O coração
dos selvagens é propenso ao bem. O excursionista que chega à maloca é cercado de
todas as atenções, pelo tuxaua e sua família. Trate, porém, de respeitar as tradições
da tribo. Se não o fizer, sofrerá perseguições as mais cruéis [...] O ódio indígena fazse tão grande, como tão grande era o seu amor, a sua dedicação antes da ofensa
(p.56)48
Tal informação jornalística revela-se como um misto entre a teoria do bom selvagem e
a visão histórica sobre essa etnia, e confirma como os pressupostos imperialistas do
colonizador ainda se perpetuam no século XX.
48
Publicado em ―Jornal do comércio‖ de Manaus, de 30/10/1923 In: Mosaicos do Amazonas, 1966, Governo do
Estado do Amazonas, Agnello Bittencourt.
92
Assim como nos detivemos nos viajantes de fundamental importância para
conhecimento sobre a Amazônia, trataremos a seguir daquele que mais nos interessa neste
estudo, o autor de Muraida.
3.4 Wilkens: viajante, militar e poeta
Conforme já dissemos, Wilkens foi um soldado português que veio para a região
amazônica em missão ordenada pelo Marquês de Pombal para demarcação dos limites da
Coroa Portuguesa a partir da assinatura do Tratado de Madri, em 13 de janeiro de 1750. Como
fiel representante da Coroa, veio cumprir a missão de tomar posse e colonizar as possessões
portuguesas. Em meio ao contexto de guerras e conflitos de terra, Wilkens foi representante
dos interesses mercantilistas na emergência da política indigenista pombalina de assentamento
e formação de mão- de- obra indígena para o ―progresso‖ da Capitania do Rio Negro.
Wilkens, entre tantos outros soldados enviados para fazer cumprir a execução do
Tratado, chega ao território amazônico logo após a assinatura do mesmo. A biografia de
Henrique João Wilkens é restrita a informações sobre sua empreitada militar. A produção
ficcional de Wilkens é formada apenas pela Muraida e outros dois poemas ─ uma ode e um
soneto escritos em homenagem ao Frei Caetano Brandão49.
Apresentamos a seguir a biografia disponível de Wilkens, através de cartas e
documentos históricos que comprovam a sua presença na empresa colonizadora na Amazônia.
A primeira referência ao militar data de 7 de julho de 1755, através de uma carta do
Governador Francisco Xavier de Mendonça, enviada do arraial de Mariuá, hoje município de
Barcelos, no Amazonas:
Em observância da ordem de S.Maj. expedida em uma das cartas de V. Exa. datada
de 15 de março, mandarei logo passar patente de Ajudante-Engenheiro a Henrique
João Wilchens, que na verdade, me parece, um moço com boas disposições para se
poder aproveitar, e está encarregado ao Pe. Sanmartone e ao companheiro que o faz
49
Bispo do Pará em 1788. Wilkens recepcionou em Ega o bispo que estava em visita pastoral. Nessa ocasião,
Wilkens compõe os dois poemas e oferece ao prelado.
93
aplicar bastantemente. (Mendonça, 1963, v. 2:712 apud MOREIRA NETO, 1988,
p.41)
Segundo Moreira Neto (1988), José Landi revela em seu texto sobre ―o capitão e eu
embarcamos num bote novo, de 6 remos por banda, com 6 soldados. Em outra canoa forão o
alferes Manoel da Silva com o cabo de esquadra Henrique João Wilkens e o capellão, que era
padre Paganini, carmelita‖. Em 12 de Julho de 1755, o governador Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, em carta enviada o seu irmão Marquês de Pombal, comunica a
participação de Wilkens na comissão, que iria a Mato Grosso para demarcações de limites:
Pelo que acima digo se vê que a tropa que for ao Mato Grosso é a que deve dar
maior cuidado, [...] Como o Coronel Antônio Carlos Pereira de Sousa foi oficial da
Marinha, e o tenho por homem de honra, faço tenção de que seja o Primeiro
Comissário daquela tropa, [...] O astrônomo que deve ir é o Pe. Inácio Sanmartonyi
e por companheiro o nôvo Ajudante Henrique Wilckens, que é nascido e criado
em Portugal [...] Para fazer o mapa deve ir o Ajudante Filipe Sturm, que é hábil, e
tem a circunstância de ser casado em Lisboa com portuguesa e estar estabelecido
com casa e família naquela corte. (MENDONÇA, 1963, p.744-745, grifos nossos)
Conforme as informações acima, Wilkens tem confirmada não apenas a sua
nacionalidade como os vínculos com Portugal, sua presença na Amazônia é tão somente em
virtude de sua missão em nome da Coroa. Logo depois, em carta endereçada ao Marquês de
Pombal, no dia 13 de outubro de 1755, Mendonça Furtado refere-se com elogios ao militar
Wilkens:
Não me persuadia a que o ajudante Henrique Wilckens em tão tenros anos se tinha
adiantado tanto; fico de acordo na sua conduta, e pode dever estas habilidades a seu
mestre o Padre Sarmatone, porque depois que saiu do Pará o tomou debaixo da sua
proteção para ensinar e aqui se conservava com ele na mesma casa de cujo padre se
separou agora pela causa que abaixo direi.(MENDONÇA, 1963, p.749)
Ainda no ano de 1755, Antônio José Landi50 foi contratado pela comissão de limites
da Amazônia com o objetivo de entrar no rio Negro para fazer o descimento de índios ao rio
Marié por ordens de Mendonça Furtado. O percurso dessa viagem está descrito no ―Extrato do
diário da viagem ao rio Marié em Setembro de 1755 para o descimento prometido e
50
Naturalista bolonhês com ofício de desenhista e cartógrafo, a serviço da Coroa Portuguesa.
94
contratado pelos dois principais Manacaçari e Aduana por Antonio Landi‖, incluso na obra de
Alexandre Rodrigues, Viagem Filosófica ao Rio Negro.
É importante mencionar que até o fim do governo de Mendonça Furtado, em 1758,
não houve mais nenhum registro sobre a vida de Wilkens. A partir de agosto de 1764, há
novas referências sobre o militar. Neste mesmo ano, Wilkens foi nomeado ao posto de
ajudante de infantaria com ofício de engenheiro pelo rei D. José I, como reconhecimento ao
excelente trabalho realizado nas demarcações de limites.
Em 1769, há registros de que Wilkens auxiliava o engenheiro Henrique Antônio
Galluzzi na construção da grande Fortaleza de Macapá. Em seguida, Galluzzi falece eWilkens
assume o governo da Praça de Macapá. Nesta ocasião, Wilkens escreve uma carta de
agradecimento a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, muito provavelmente em
agradecimento pelas funções que este o confiou anteriormente. Em 1777, chega ao fim o
período pombalino, porém as demarcações de limites na região devido ao Tratado de Santo
Ildefonso prosseguiram.
Em 1781, Henrique João Wilkens, já nomeado sargento-mor, realiza uma expedição a
Japurá, onde faz o levantamento cartográfico. Esses relatos estão em formato de um diário de
viagem, disponível no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e publicado por Marta
Amoroso e Nadia Farage.
Em 1784, Wilkens substitui o segundo comissário, tenente-coronel Teodósio
Constantino de Chermont, devido ao fato de este ter contrariado os interesses de Portugal em
questões de limites. Através de registros de Alexandre Rodrigues Ferreira (1974), observamos
que Wilkens residia com sua família em Barcelos, mas naquele momento a sua sede oficial
encontrava-se na antiga Vila de Ega, atual município de Tefé, vizinho ao município de
Alvarães mencionado no poema, no quartel general do rio Solimões, onde se reuniam as
95
comissões de limites portuguesas e espanholas. E, de acordo com as informações do
manuscrito, presumimos que foi o local onde o poeta escreveu Muraida entre 1784 e 1785.
No mesmo ano em que conclui o manuscrito de Muhuraida (1785), Wilkens traça
um plano de defesa para o território das capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso
e Cuiabá, contra as nações vizinhas, mas buscando atingir claramente as posições
militares da Espanha naquela vasta região. Tal plano de defesa – que reforçava a
guarda das fronteiras por meio da permanência de um exército na área de conflito –
era uma demanda do comissário e tenente-coronel João Batista Martel, um dos
personagens do poema épico amazônico. Ainda em 1785, o recém-nomeado
governador da capitania de Mato Grosso e Cuiabá, João Pereira Caldas, que havia
ocupado o cargo de governador do Grão-Pará – outro personagem do poema, que lhe
é dedicado e o torna um ―herói‖ da pacificação mura – encarrega Wilkens de
elaborar orçamento da fortificação do Rio Negro, como parte da estratégia de defesa
da região. Como se vê, esse período parece ter sido um dos mais intensos dos quase
cinqüenta anos que o autor de Muhuraida viveria na Amazônia. (CALDAS, 2007,
p.8)
Moreira Neto (1988) expõe que a correspondência do Governador do Rio Negro
enviada a Wilkens inclui dezenas de cartas e ofícios de Wilkens entre 1790 e 1799,
conservadas no arquivo Público do Pará, as quais não foram anexadas à coletânea publicada
por Arthur Cezar sobre Lobo d‘Almada. Em 1791, Wilkens foi transferido por Lobo
d‘Almada para Tabatinga. Lá, Wilkens deveria comandar a tropa portuguesa, o posto e
fronteira. Em 1798, o então governador do Estado do Grão Pará, D. Francisco de Sousa
Coutinho afasta Henrique João Wilkens do serviço em Tabatinga devido a conflitos com Lobo
d‘Almada. Moreira Neto (1988) relata os últimos registros sobre a vida do tenente-coronel
através do registro do cônego André Fernandes de Souza, em Notícias Geographicas da
Capitania do Rio Negro no Grande Rio Amazonas::
Por seu falecimento foi governador interino o tenente-coronel José Antonio Salgado,
feito pelo General do Pará D. Francisco de Souza Coutinho, que o sustenta com
todas as forças. [...] chegou a sahir no decreto, na lista dos governadores, por
governo do Rio Negro. [...] governou interinamente quatro annos e meio. No seu
governo é que se pôz em practica a detestável agarração aos Indios nas aldêas para
os serviços, que depois se fez mais odiosa por ser executada por soldados de 1ª linha
[...] Urdiu as intrigas entre o Gama [Lobo d‘Almada] e D. Francisco, que foi causa
da morte d‘aquele; como também concorreu para o extermínio do tenente-coronel
João Henrique Wilkens para Mato Grosso, talvez por receio que lhe fizesse sombra,
empenhando-se com o general D. Francisco de Souza Coutinho. (SOUZA 1848:474
Apud MOREIRA NETO, 1988)
96
Segundo José Arthur Bogéa51, ―as informações biográficas sobre Wilkens são frágeis
e inconsistentes‖. Inclusive, o autor levanta suspeitas quanto à nacionalidade de Wilkens pelo
fato de uma das cartas revelar que ele dominava a língua inglesa e de seu sobrenome não ser
de origem portuguesa. Porém, após a dedicatória do poema a João Pereira Caldas, observamos
a autoria do poema ―Por um Militar Português‖.
A partir das informações que obtivemos sobre a missão de Wilkens na comissão de
limites em território Amazônico e do cenário que nos é apresentado no épico, percebemos que
desde a sua descoberta a Amazônia tornou-se palco de grandes disputas territoriais, devido
não apenas à sua natureza exuberante e exótica, mas às riquezas encontradas na região, como
as chamadas drogas do sertão, o ouro e outros metais preciosos.
Assim,
nota-se
que
a
biografia do tenente-coronel é relatada estritamente em função de sua empreitada militar.
O conhecimento sobre a natureza de sua vinda para o Grão- Pará torna-se relevante
pelo fato de comprovar que Wilkens entrelaçou a sua produção poética a relatos, documentos
e informações históricas que vivenciou durante sua trajetória e esses elementos convergem
para torná-lo um fiel representante dos interesses da Coroa Portuguesa. Através da leitura de
suas cartas e de seu diário, percebemos como o poema se assemelha a uma crônica de viagens
pelo caráter informativo a respeito dos acontecimentos da época,
Assim como o texto de Wilkens permaneceu no anonimato durante mais de cem anos,
outros textos de viajantes permaneceram silenciados, ―insulados‖ na Amazônia. A partir do
conceito de insulamento literário proposto por Gabriel Albuquerque52, refletimos sobre
Muraida.
Desde a Antiguidade existe um fascínio pelas ilhas: a ilha dos Amores de Camões, a
Ilha de Vera Cruz de Pero Vaz de Caminha, entre outras. Talvez esse fascínio pelas ilhas e
pelo aspecto exótico que elas suscitam, possamos compreender o insulamento literário de
51
BOGÉA, José Arthur. ―O mura e a musa‖. Passages de Paris 6. 2011. p. 135–166.
ALBUQUERQUE, Gabriel. ―Brasil, Brasis: insulamento e produção literária no Amazonas‖. In: O Amazonas
deságua no Tejo. Manaus: UEA edições, 2009.
52
97
certos textos fundamentais do relacionamento entre metrópole e colônia, como é o caso de
Muraida. Albuquerque reflete sobre a produção realizada na ou sobre a Amazônia e o fato
dessa produção ter mérito apenas local e ser ignorada pelo restante do país. O isolamento,
segundo o autor, é reforçado pela distância histórica entre a colônia Brasil e a colônia GrãoPará:
A formação da cultura brasileira obedece a um intrincado painel histórico e político
que só recentemente começou a ser pensado. Sabe-se que ―o governo da Amazônia
Portuguesa permaneceu separado do governo do Estado do Brasil por um período de
200 anos.‖ Esse processo de separação toma forma definitiva na administração
pombalina quando ―em 1751, extinguiu-se o Estado do Maranhão e Grão-Pará e, e
em seu lugar, foi instalado o Estado do Grão-Pará e Maranhão, sediado em Belém
[...] Somente em 1850, passados 28 anos da proclamação da independência, viria a
acontecer a elevação do Amazonas à categoria de província. O fato é que o
processo administrativo do Brasil colonial traz em sua base a distinção entre o
Brasil e a Amazônia, coisa que a passagem do tempo viria a confirmar. O
sentimento de isolamento e desconhecimento, que já se dava no período colonial, só
recrudesce à medida que o passado ilumina a presente: a trajetória que se desenha do
período colonial aos dias de hoje explica grande parte do que, a partir desse ponto,
se denomina insulamento. (p.49-50, grifos nossos)
Porém, ao transpor esse fascínio para a condição amazônica de insulamento,
iluminamos o questionamento de Gabriel Albuquerque: ―Como saímos da condição de
milhões de indivíduos para essa captação literária de seres isolados, ilhados nas paisagens
entrecortadas por rios pervagando nas solidões encharcadas?‖ (p.52-53) Ao levantar essas
questões, Albuquerque não distingue as diferenças entre centro e periferia, atualmente, ou em
metrópole e colônia, no passado, mas ―o problema reside no insulamento que comporta em
uma única braçada a identidade, o reconhecimento e a aceitabilidade.‖(p.54)
Albuquerque enceta tal reflexão a partir da análise do prefácio de Euclides da Cunha
em Inferno Verde, de Alberto Rangel, livro de contos ─ ou que pode ser lido como um
romance ─ cujos capítulos destacam episódios amazônicos, dentre eles, o conto ―A decana
Mura‖, já mencionado anteriormente.
No entanto, essa matriz se contorce em um vocabulário estranho àqueles que jamais
pisaram em solo amazônico e que, jamais estendendo os olhos para a alteridade,
poderiam considerar como exótico ou regionalista o que não lhes nasce no próprio
quintal ou na própria cidade. Que adviria daí? Em um primeiro momento, daí advém
o fato de que a língua materna não é suficiente para dar unidade a que quer que seja
98
e sua imposição não parece ter minorado o efeito da separação e do conflito. Para
Ribamar Bessa, no seu Rio Babel53, ―a Língua portuguesa entrou no Grão-Pará
levada por missionários, soldados e funcionários, determinando um novo
ordenamento linguístico em toda a Amazônia. [...] durante todo o período colonial,
no entanto, a língua portuguesa [,...] permaneceu minoritária, como língua exclusiva
da administração, mas não da população. Essa situação só mudou a partir da
segunda metade do século XIX. Existe, nesse contexto, uma separação geográfica e
linguística que faz do Brasil ao Sul um outro em relação ao Brasil das solidões
encharcadas. (ALBUQUERQUE, 2009, p.54-55)
Outro fator importante a ser observado é o longo título presente em seu manuscrito
─Muhuraida ou o triumfo da fé na bem fundada esperança da enteira conversão, e
reconciliação da grande, e feróz nação do gentio Muhúra ─, a exemplo da moda dos títulos
longos que a Literatura de Viagens haveria de explorar em demasia, anunciando não apenas o
tema a ser tratado no texto, mas os seus momentos heroicos mais importantes, neste caso, a
pacificação do gentio Mura. Ao informar a intenção do poeta, o título original do épico
cumpre uma dupla função, de identificar a obra e informar sobre o conteúdo. A descrição
revelada no título alicia o leitor, levando-o a entrar em contato com as maravilhas a serem
contadas a respeito do triunfo da fé, a vitória da ideologia do colonizador, e, no paratexto que
virá a seguir, uma longa explicação histórica reafirmará o que foi anunciado no título.
De acordo com os argumentos apresentados, pomos Muraida em rediscussão no
cânone português pelo fato de esse épico efetivar a presença portuguesa na Amazônia e
representar, através de um episódio de conversão isolado, o objetivo maior do discurso
colonial – a cristianização dos gentios. Nesse aspecto, buscamos uma unidade de tema e não
de gênero para pleitear um lugar na tradição de Viagens portuguesa.
Muraida se enquadra na definição de texto que representa uma tradição de Viagens e
que mescla elementos da literatura, da história e da antropologia, conforme citamos
anteriormente. Um texto rico que aborda questões antropológicas como o etnocentrismo
europeu e a ideologia expansionista que consegue conquistar o lugar de vencedora.
53
FREIRE, José Ribamar Bessa. Rio Babel- a história das línguas na Amazônia. Rio de janeiro: Atlântica, 2004.
99
Ao suscitar a pluralidade dessa vertente literária, que se identifica por possuir textos de
caráter híbrido e abarcar diferentes gêneros, observamos que, na mesma medida em que se
revela uma falta de homogeneidade na forma, há uma reafirmação constante da ideologia
expansionista europeia. É esse o elo que aqui nos interessa. É ele que nos faz defender
Muraida como um texto pertencente à tradição do cânone lusitano. Uma tradição que, em
nome dos pressupostos imperialistas de Portugal, deixou à margem alguns textos sobre as
missões de fixação portuguesa na Amazônia e deixou no esquecimento os viajantes que
desbravaram esse espaço.
Ao se inspirar no modelo épico camoniano e, por conseguinte, na tradição clássica
ocidental, Muraida revela tensões, convergências e divergências com o mais importante texto
de viagens da Literatura Portuguesa, Os Lusíadas, de Camões, as quais serão discutidas ao
longo do Capítulo 4. Mas, sobretudo, revela as tensões ocorridas entre colonizador e
colonizado em nome da fé e da expansão territorial. Por esses motivos ideológicos,
solicitamos um lugar para o texto de Wilkens nesta tradição que não considerou a produção
sobre a Amazônia de forma devida, deixando na subalternidade todo um acervo literário que
custou a vida e o empenho de muitos portugueses que se propuseram a representar os
interesses lusitanos na nova terra.
100
Lição de Escuridão
Caboclo companheiro meu de várzea,
contigo cada dia um pouco aprendo
as ciências desta selva que nos une.
Contigo, que me ensinas o caminho dos ventos,
me levas a ler, nas lonjuras do céu,
os recados escritos pelas nuvens,
me avisas do perigo dos remansos
e quando devo desviar de viés a proa da canoa
para varar as ondas de perfil.
Sabes o nome e o segredo de todas as árvores,
a paragem calada que os peixes preferem
quando as águas começam a crescer.
Pelo canto, a cor do bico, o jeito de voar.
identificas todos os pássaros da selva.
Sozinho (eu mais Deus, tu me explicas).
atravessas a noite no centro da mata.
corajoso e paciente na tocaia da caça.
a traição dos felinos não te vence.
Contigo aprendo as leis da escuridão,
quando me apontas na distância da margem,
viajando na noite sem estrelas,
a boca (ainda não consigo ver) do Lago Grande
de onde me fui pequenino e te deixei.
De novo no chão da infância,
contigo aprendo também
que ainda não tens olhos para ver
as raízes de tua vida escura,
não sabes quais são os dentes que te devoram
nem os cipós que te amarram à servidão.
Nos teus olhos opacos
aprendo o que nos distingue.
Já repartes comigo a ciência e a paciência.
Quero contigo repartir a esperança,
estrela vigilante em minha fronte
e em teu olhar apenas um tição
encharcado de engano e cativeiro.
Thiago de Mello
101
4. MURAIDA E SEUS (DES) ENCONTROS COM OS LUSÍADAS
4.1 Entre a Índia e a Amazônia
Ao tomar o maior texto de Viagens da Literatura Portuguesa - Os Lusíadas- como
modelo de composição, o poeta de Muraida insere seu poema no paradigma do gênero
épico.Os Lusíadas fazem um elogio a Portugal através da viagem vitoriosa de Vasco da
Gama, ―viagem que é encravada entre um passado a ser exaltado (e de fato o foi) e um futuro
possível de repetir tais glórias‖(ARÊAS, 1980, p.3)54. No épico camoniano, os portugueses
são os grandes Cavaleiros de Cristo a levar a ideologia do europeu colonizador até a ímpia
gente. O poeta canta ―as armas e os barões assinalados‖ e as ―memórias gloriosas‖, exaltando
o ―ilustre peito lusitano‖ e imortalizando os feitos deste povo como necessários para ―dilatar a
Fé e o Império‖ e para acentuar a máxima ―e se mais mundo houvera, lá chegara‖, na
conhecida estrofe que destaca as imponentes conquistas lusitanas - Ásia, África e América –
realizadas pela pequena casa lusitana:
Mas, em tanto que cegos e sedentos
Andais de vosso sangue, ó gente insana,
Não faltarão Cristãos atrevimentos
Nesta pequena casa Lusitana.
De África tem marítimos assentos;
É na Ásia mais que todas soberana.
Na quarta parte nova os campos ara;
E, se mais mundo houvera, lá chegara.
(Lus, VII, 14)
Wilkens escreveu um épico, a seu modo, que continua a cantar os feitos portugueses,
porém não mais nas Índias, mas na América – o Novo Mundo que se abre a novas
possibilidades de exploração e cristianização, a Amazônia. É nesse sentido que aproximamos
os épicos em questão, pois ambos os textos se tocam e se distanciam em relação à barbárie
54
ARÊAS, Vilma. ―Os Lusíadas ou a navegação desventurosa‖ In: Revista camoniana. São Paulo: Centro de
Estudos Portugueses da USP. 2ª série, v.III, 1980.
102
imperialista que se instaura ao denotar o contato entre culturas. Num jogo de tensões,
aproximações, semelhanças, e (des) encontros com o épico camoniano, buscamos neste
estudo pleitear para Muraida um lugar na tradição da Literatura de Viagens Portuguesa ─pois
são os textos de viagens aqueles que melhor representam o olhar do português sobre o Outro
─ a partir da unidade temática que a leitura do épico de Wilkens sustenta a favor dos
conceitos de expansionismo e etnocentrismo europeus ao se confrontar com o Outro, em outro
espaço geográfico, em uma realidade diversa da original, à semelhança d‘Os Lusíadas.
Os Lusíadas vêm cantar um país em viagem da terra para o mar, refletindo a exaltação
do homem português em sua busca por novas terras. Muraida canta a pacificação dos Mura
durante a saga de um militar em viagem pelos rios da Amazônia, ao se deparar com a floresta
e com novas gentes. Através do lema ―dilatar a Fé e o Império‖, o objetivo central do épico
camoniano é cantar o mercantilismo, a ampliação das atividades comerciais no além-mar,
expandir seus domínios territoriais e converter os infiéis ─ arriscamos talvez a dizer que seria
nesta ordem de importância.
Conforme Quesado55, o discurso literário presente no épico camoniano traz uma
imanência ideológica que nos leva a compreender a concepção de mundo do poeta que atua na
revelação do que seja a consciência social de seu grupo. Dessa forma, a enunciação literária
presente em Os Lusíadas revela a ideologia do Renascimento:
É necessário esclarecer que o artista do renascimento é o homem que assume a
consciência de seu papel na história do pensamento humano [...] Usa, assim do
código estético para melhor refletir a ideologia do seu século, calcada como
sabemos, numa posição de enfoque que torna o homem como centro de todas as
atenções. Esta concepção de época, que passou a se definir como antropocentrismo,
vai tirar o homem da condição de objeto em que se encontrava considerado na sua
visão fechada de mundo, e lhe atribuir a medida de sujeito num dimensionamento
que começa nele e se estende até o universo. O racionalismo é a linha demarcadora
desse trajeto homem/universo. Esta consciência de ser desperta o homem para a
tarefa histórica da superação de sua própria condição, através de todo um contexto
de progresso que impulsiona a humanidade vertiginosamente para além dos seus
limites, tendo como oponente a limitação e o desafio do desconhecido, e como
55
QUESADO, José Clécio Basílio. ―Personagens e projeto ideológico n’Os Lusíadas”. Revista de Letras. RJ. T.
A, 1:11-17, jul-set,1974.
103
adjuvantes a necessidade e o desejo de transcender as barreiras de sua condição.
(QUESADO, 1974, p.2)
Nesse sentido, Os Lusíadas são relatos da busca de superação humana através das
viagens marítimas e testemunham um momento grandioso da existência portuguesa. Ao
exaltar as glórias do povo português, transforma sua obra num mito cultural positivo ao
alavancar o expansionismo como via possível de fazer crescer o pequeno país ―à beira- mar
plantado‖.
Almeida56 ressalta a condição portuguesa de cumprir a missão anunciada na
Proposição ―os nunca de antes navegados‖, que repetidas vezes será confirmada ao longo do
poema em versos como: ―Não as romperam nunca pés humanos‖ (IV, 70), ―Da terra que outro
povo não pisou‖ (V, 36), ―Nunca arados de estranho ou próprio lenho‖ (V, 41) ―Por onde
nunca veio gente humana‖ (VII, 25). ―Por mares nunca de outro lenho arados‖ (VII, 30)
―Da‘te a imensa e mar não navegado‖ (IX, 86).
Na contínua repetição da missão portuguesa de chegar aonde ninguém mais chegou,
percebemos a ideologia humanista e renascentista de superação humana, e de levar a cabo,
através do expansionismo, a Cruzada marítima portuguesa, conforme já discutimos no
capítulo anterior.
Na confluência entre a História portuguesa e a viagem desventurosa, temos um
conjunto de ideias que dão um caráter espiritual e universal à obra camoniana e que se
perpetua em Muraida, através da ideologia do colonizador. De Colombo a Gama até chegar
em Wilkens, o impacto do ―encontro‖ com as demais culturas foi limitado pela fé religiosa
que os viajantes levavam consigo e que os fazia desmerecer antigas sociedades locais,
tratando-as como inferiores ou dispensáveis.
Vós, Portugueses, poucos quanto fortes,
que o fraco poder vosso não pesais;
56
ALMEIDA, Maria do Perpétuo Socorro Correia Lima de. ―Os Lusíadas e o discurso ideológico da expansão‖.
Convergência Lusíada, n. 7, 1980, p.93-102.
104
vós, que, à custa de vossas várias mortes,
a Lei da Vida Eterna dilatais:
assim do Céu deitadas são as sortes
que vós, por muito poucos que sejais,
muito façais na Santa Cristandade,
que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!
(Lus, VII, 3)
A marca de ―humildade‖ que assinala os barões portugueses ─povo assinalado por
Deus como descendente direto da linhagem de Cristo: ―pois os lusos são fiéis à sua filiação a
Cristo‖ (Arêas, 1980, p.5) ─ e habitantes do país menos rico e menos populoso da velha
Europa ─ esta é a marca que os distingue. Inversamente proporcional à sua pequenez e
humildade estão as qualidades de ―fortes‖ e destemidos, e como tal se sentem capazes de
dilatar a ―lei da vida eterna‖ ─ o cristianismo ─ entre as ímpias gentes, mundo afora.
Em suas leituras de Camões, Eduardo Lourenço e Saraiva concordam num aspecto:
―Camões não será apenas o maior de seus poetas [...], mas o seu herói nacional‖
(LOURENÇO, 1999, p.57), uma vez que somente ―o destino coletivo e a história do
imaginário português podem explicar a conversão do autor d‘Os Lusíadas em símbolo de
Portugal‖ (idem, ibidem).
O poema de Camões é classificado prioritariamente sob o signo do nacional, ou até do
―nacionalismo‖, ainda que esse conceito ainda não fosse possível no século XVI –, mas é
possível dizer que apresenta um forte apelo de identidade portuguesa em seus versos;
semelhante identidade à portuguesa que captamos em Muraida, apesar de supostamente
enaltecer a etnia Mura, para que a pátria do escritor seja valorizada.
De outro modo, a partir dos estudos pós-coloniais, a ideologia expansionista presente
em Muraida e n’Os Lusíadas é amplamente criticada pelo caráter de massacre cultural em
relação a outros povos não-cristãos. Muraida pode ser lida como uma obra de aspectos
negativos pelo fato de exaltar o genocídio de um povo e a conversão mediante a Graça divina,
cedendo a vitória ao colonizador e representando o assassinato cultural de uma etnia indígena.
105
Estabeleceremos um diálogo entre os épicos examinando os pontos de tensão e de
contato, a partir de seus aspectos formais e, em seguida, analisaremos episódios relevantes
como: o Velho do Restelo, o Gigante Adamastor e as semelhanças entre o Mouro e o Mura ─
paradigmas do Mal que precisam ser cristianizados e colonizados de acordo com os
pressupostos colonialistas europeus.
4.2 A estrutura camoniana em Muraida
Ao examinar os aspectos formais dos poemas e sua inserção no gênero épico, faz-se
necessário aludir ao conceito de épico segundo Bakthin (1990), para, posteriormente, observar
tais características nos épicos em questão. O autor faz uma leitura bastante interessante do
maior exemplo de gênero épico, a epopeia, caracterizando-a principalmente pelos três traços
constitutivos que a definem, a saber: 1. a extrema valorização de um passado nacional épico
ou de um ―passado absoluto‖ como objeto; 2. a lenda nacional como dispositivo formalconteudístico, de forma que o discurso se formule como inacessível a outras interpretações do
passado; e 3. o isolamento da contemporaneidade pela distância épica absoluta, sendo os
heróis épicos constituídos de um caráter acabado e não sujeito a reinterpretações.
Portanto, o contexto em que a característica épica se torna coerente é nas narrativas de
caráter nacionalista. Nestas, a cultura popular e o povo são identificados com o passado e são
inseridos elementos históricos para conferir verossimilhança ao que está sendo narrado.
Segundo Auerbach, esse estilo nascido de Homero exerceu influência constitutiva sobre a
representação europeia da realidade e constitui-se como modelo para os épicos produzidos
séculos mais tarde.
Em relação ao discurso, para todos os fins, na epopeia homérica ele tem a função de
manifestar ou exteriorizar pensamentos:
[...] mas o mais primordial deve residir no próprio impulso fundamental do estilo
homérico: representar os fenômenos acabadamente, palpáveis e visíveis em todas as
106
suas partes, claramente definidos em suas relações espaciais e temporais. O mesmo
ocorre com os processos psicológicos: também deles nada deve ficar oculto ou
inexpresso. Sem reservas, bem dispostos até nos momentos de paixão, as
personagens de Homero dão a conhecer o seu interior no seu discurso; o que não
dizem aos outros, falam para si, de modo a que o leitor o saiba. (AUERBACH,
1998, p.04)
O uso de adjetivos descritivos mostra os atributos que devem ser conhecidos dos
personagens. N’Os Lusíadas, a adjetivação relacionada aos lusos, corrobora ―o ilustre peito
lusitano‖ e os coloca na condição de heróis. Em Muraida, os adjetivos reiteram o aspecto
bárbaro dos Mura: ―o feroz, bárbaro peito/Do indômito Mura mitigando‖ (Mur, V,2). Após a
conversão, o processo de adjetivação se transforma: ― sincero, verdadeiro, respeitável‖ (Mur,
V, 20). No entanto, não são os próprios personagens que se autodefinem para o leitor,
conforme o épico homérico ─ as características que definem os Mura são provenientes da voz
do poeta narrador, comprometido com a ideologia expansionista cristã.
A partir dessas reflexões, chamamos a atenção para a característica deste gênero
narrativo, que diz respeito a um passado de origem remota e de considerável prestígio
cultural, cujas raízes são provenientes das mais antigas manifestações literárias da antiguidade
e relaciona-se com valores e referências culturais hoje desaparecidos. Por esses motivos, a
epopeia retorna ao tempo do mítico e do lendário e enaltece o passado do povo que está sendo
cantado. Em epopeias como a Ilíada, a Odisseia e Os Lusíadas, o fator histórico-comunitário
enuncia-se de forma contundente, porém na última este fator é exaltado pela força do título da
obra.
De acordo com Maria Lucia Wiltshire de Oliveira:57 ―A razão do canto épico
camoniano reside na essência histórica e imortal de um império, tematiza o destino nacional,
mas ainda não podemos problematizar com a questão específica da pátria. ―o interlocutor
ideal é a cristandade em geral‖ (2004, p.311)
Todavia, não é menor a sua importância, se procurarmos avaliar o alcance da sua
recepção noutros contextos literários, nomeadamente o português, pela variedade de
57
OLIVEIRA, Maria Lúcia Wiltshire. De Camões a Saramago: leituras da pátria portuguesa. Rio de Janeiro:
Book Link, 2004.
107
elementos que se manifestam no vasto espaço de tempo, possibilitando o aparecimento de
uma variada gama de fenômenos passíveis de análise, a partir de perspectivas múltiplas.
O conceito de genero épico, com as suas normas consideradas geralmente
inderrogáveis, condiciona a leitura dos poemas heróicos, pois a perfeição dum
poema é vista em função da sua adequação ao modelo teórico estabelecido para o
género. A obediência às suas regras e um critério de valorização. O que explica que
grande parte dos poemas épicos publicados nesta época (e foram muitos) seja
acompanhada de textos expositivos das regras do género e demonstrativos da
adequação da obra prefaciada a essas normas.(RODRIGUES, 1980, p.15)58
A exemplo do épico camoniano que em seu título enaltece os heróis lusitanos, em
Muraida, apesar do título pretensamente valorizar o povo Mura como vencedor, o percurso
histórico dos Mura simboliza um povo que lutou para não ser dizimado e que teve apenas
alguns de seus representantes convertidos à fé cristã. Outrossim, o poema escapa à
classificação acima por não trabalhar motivos arraigados na memória popular, não enaltecer a
cultura desse povo e nem tratar o ―herói‖ como um ser excepcional. Pois, apesar de
demonstrações de fereza e bravura, os indígenas, ao resistir ao processo de colonização
europeia, acabam, praticamente, dizimados. Reduzir o inimigo, denegrir a sua imagem e
enaltecer o lugar do vencedor são características determinantes do texto épico e que são
observáveis em Muraida. Porém, no que diz respeito à exaltação de um grande herói, fica a
pergunta: Quem é o herói neste épico?
Para refletir sobre a importância da figura heroica, recorremos a Auerbach (1998). O
autor aponta no momento em que a governanta descobre a cicatriz de Ulisses, a crise, a tensão
na poesia homérica, pois é neste momento que é revelada a identidade do grande herói, um
Ulisses longamente descrito por suas façanhas e pela heroicidade de seus atos.
Os Lusíadas, por exemplo, simbolizam o reconhecimento da força daqueles que
construíram um império ultramarino e venceram vários inimigos. Porém, ao contrário do
58
RODRIGUES, Maria Lucília Gonçalves. A crítica camoniana no século XVII. Lisboa: Instituto de Cultura e
Língua Portuguesa, 1982.
108
épico camoniano, em Muraida, apesar de o título sugerir que os Mura são os grandes
vencedores, os vencedores são os mesmos d’Os Lusíadas, os portugueses que conseguem
pacificar e cristianizar um grupo indígena, ainda que o poeta cante a glória do índio
cristianizado, pois após um longo período de lutas, o épico enaltece a rendição de alguns
guerreiros que são finalmente dominados e inseridos em uma nova ordem socioeconômica e
cultural, ocupando o lugar dos perdedores da História. Logo, sem o reconhecimento heroico.
Podemos inferir que o poeta, desde o título, enaltece os inimigos como estratégia
discursiva para glorificar ainda mais a vitória portuguesa. Estratégia que posteriormente seria
empregada no Romantismo: enaltecer o inimigo e vencê-lo – o ―inimigo é forte, mas eu sou
mais‖. Afinal, é um pressuposto do épico: o herói não pode lutar contra os fracos.
Apesar de parecer romper com o paradigma do cânone, dando o lugar de herói ao
Mura que defende o seu território, há uma reviravolta através do discurso e da interseção
divina. Não é uma vitória de humanos, mas divina, e por isso compactua com a ideologia
expressa no épico camoniano.
Considerando as características canônicas de uma epopeia, percebemos que Muraida
realmente a elas não corresponde, visto que, apesar de relacionar-se a um passado histórico de
formação nacional, fala de um povo que sempre esteve à margem da civilização, e sua súbita
conversão, narrada por Wilkens, não atinge a veracidade sobre o processo histórico do
território amazônico, em particular em relação aos Mura.
Outro fator a ser considerado, é o fato de o tempo do cantor não ser distante do tempo
épico. O mundo épico deveria estar distanciado do presente da narrativa, isto é, do tempo do
cantor, pois, desde o momento em que os portugueses tomam conhecimento dos Mura, por
volta de 1719, até o momento da pacificação, são decorridos pouco mais de cinquenta anos
109
apenas. O poema data de 1785 e segundo o Prólogo que antecede o poema, a pacificação
ocorreu neste mesmo ano:
ultimamente estando uma considerável partida dos mesmos Muras, com seus
principais no Lugar de Nogueira, onde então existia convalescendo o sobredito
tenente-coronel, primeiro comissário João Batista Martel, teve este o particular gosto
e a espiritual consolação de ver que, no dia nove de junho deste corrente ano de
1785, os ditos principais Muras e outros refugiados entre eles já murificados, por sua
livre, espontânea vontade, e motu próprio, sem preceder persuasão alguma, não sem
um particular toque da Mão do onipotente árbitro dos corações humanos, oferecem
vinte inocentes Muras, filhos dos ditos, pedindo o Santo Batismo. (Mur, 2012, p.26)
Como podemos observar, o Prólogo confirma o que será cantado no Canto VI do
poema:
Era do sexto mês, o nono dia,
E quarto neste povo de festejo,
Que o Mura se admirando do que via
Nos ritos e costumes; tal desejo,
Ardor irresistível percebia,
Que o temor, repugnância, inútil pejo
Desterrando o faz crer, que já demora
Ao astro luminoso a bela Aurora
(Mur, VI, 16)
O Prólogo cumpre a função de destacar os principais acontecimento do Canto. Nestes
versos, temos a data do batismo: nove de junho. Portanto, o distanciamento temporal entre o
cantor e o mundo épico é deveras pequeno, para não dizer inexistente.
A ausência de descrições de batalhas também pode ser apontada como uma das causas
que levam os críticos a não classificarem o poema dentro do modelo clássico de uma epopeia.
No discurso do colonizador não há enfrentamento por iniciativa dos brancos. O poema dá a
entender que todo esse processo de pacificação dá-se através de diálogos e tentativas de
reduzi-los e agregá-los à fé cristã. Os versos que narram relatos de atos de violência e
selvageria dos nativos contra outras etnias e contra os brancos navegantes são ataques dos
Mura, sem nenhum tipo de provocação a partir do colonizador.
O que há, de fato, é a conversão ―espontânea‖ dos Mura, reforçada pelo discurso do
colonizador, que promete aos gentios, além da previsível libertação das almas e a
entrega de donativos em troca da aceitação das condições coloniais de
confinamento, alguma participação nas relações comerciais que poderiam se
estabelecer por meio de um desejado tratado de paz. (CALDAS, 2007, p.189)
110
Citamos os versos do Canto II que demonstram as tentativas de jesuítas, mercedários e
carmelitas em efetivar uma comunicação com os Mura, através de intérpretes, com a
finalidade de levá-los ―as verdades da Santa Fé‖, porém o intento era frustrado. Tal afirmação
indica o fracasso das missões religiosas na Amazônia:
Não se cansava o zelo e a piedade,
De meios procurar mais adequados
A conversão de tal gentilidade.
Mas sempre os lamentava então frustrados.
Mil vezes co‘o fervor da caridade,
Das religiões os filhos, animada,
Entre perigos mil, e a mesma morte,
Se esforçavam buscar-lhes melhor sorte.
Mil vezes reduzi-los se intentava
Com dádivas, promessas e carícias;
Do empenho nada enfim mais resultava
Que esperanças de paz, todas fictícias.
Nada a fereza indômita abrandava;
Nada impedia as bárbaras sevícias.
A confiança achava o desengano
De mão traidora, em golpe desumano.
(Mur, II, 4-5)
Portanto, por não preencher as características discutidas, não podemos classificar o
poema como uma epopeia, mas talvez conforme Krüger afirma na introdução da última
edição de Muraida: uma ―A antiepopeia dos Muras‖. Além do épico não preencher as
características inerentes ao gênero, o texto assinala a derrota de um povo guerreiro que lutou
historicamente para não ser dominado pelos colonizadores, segundo a visão dos estudos póscoloniais sobre o processo de colonização portuguesa.
Em relação à estrutura épica de Muraida, podemos afirmar que é um texto poético
divido em seis cantos, cuja forma e intenção são cópias do modelo camoniano. As estrofes se
organizam em oitava rima camoniana e os versos são decassílabos. O poema possui
Dedicatória, Invocação, Proposição, Narração e Epílogo. Diferentemente do épico camoniano,
111
cada Canto é introduzido com um ―Argumento‖, o qual representa um breve resumo do
assunto que vem a seguir.
Assim como Os Lusíadas foram dedicados a Dom Sebastião, Muraida possui uma
dedicatória que não está presente no corpo do texto, mas é mencionada logo em seguida ao
título do épico:
Poema Heroico
Composto, e compendiado em Seis Cantos.
Dedicado e oferecido
Ao
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor
JOÃO PEREIRA CALDAS
(Mur, 2012, p. 17)
Wilkens oferece sua obra ao ex-governador geral do Estado do Grão-Pará e importante
executor do Tratado dos Limites na região amazônica. Pereira Caldas recebe a dedicatória e
também é elevado a uma posição de honra, pois, segundo o poeta, para atingir a ―pacificação‖
Mura, Deus foi o primeiro agente, mas, logo em seguida, Caldas é o responsável por esse
triunfo. Além do oferecimento a Caldas, Wilkens solicita o amparo de seu superior em um
texto que antecede o poema e também homenageia Matias Fernandes, diretor da aldeia onde
os Mura foram assentados após a pacificação:
Procura, pois, a Muraida a alta Proteção de Vossa Excelência. Entre afazeres e
cuidados, que a obrigação do serviço e do emprego atual me impõem, só o afeto e
respeito que a Vossa Excelência consagro; só o amor patriótico, e de bem público,
inspirar-me podiam este pensamento [...] Vossa Excelência, não foi mero
espectador, mas, sim, depois de Deus, o primeiro motor e agente dos oportunos
meios [...] ‖ (Mur, p. 20-21, 2012)
Ao final desse paratexto, Wilkens acrescenta:
Ilmo. e Exmo. Senhor João Pereira Caldas,
De Vossa Excelência
o mais reverente súdito fiel
H. J. W.
Quartel de Ega, no Rio Solimões
20 de maio de 1789.
(Mur, p. 21, 2012)
112
Podemos observar que a data do manuscrito presente no título do poema é 1785, mas
ao final da dedicatória consta o ano de 1789. Araújo Moreira Neto, afirma que:
uma ―série de imprevistos, entre os quais a morte dos portadores do poema ao
homenageado, fez com que o autor o encaminhasse finalmente ao governador João
Pereira Caldas em 24 de maio de 1789, provavelmente depois de uma revisão mais
demorada do texto‖. (MOREIRA NETO, 1993, p. 70).
Quanto à Invocação, o poema canta a predestinação própria dos cristãos desde o
início dos tempos. Desde o Prólogo, os argumentos são elaborados com a intenção de
justificar a necessidade de ―pacificação‖ e ―reconciliação‖ dos índios Mura com os brancos.
Transformar o espaço que era hostil em um espaço pacificado representaria um grande
sucesso para levar a cabo o projeto de modernização planejado para a região.
Com a finalidade de cumprir essa tarefa, Wilkens substitui a Invocação às Tágides ─
as ninfas do Tejo, presente em Os Lusíadas, pelo chamamento da ―Luz‖ e da ―Graça‖ de Deus
para cantar seus versos. E recorre à Musa Época para se referir ao tempo em que os Mura
ainda eram os incivilizados:
E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mi um novo engenho ardente
Se sempre, em verso humilde, celebrado
Foi de mi vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado
Um estilo grandíloco e corrente
(Lus, I, 4, grifos nossos)
Mediante a Luz e a Graça, que se implora,
De quem é dela fonte, Autor divino,
A musa Época indica que até agora
De horror enchia o peito mais ferino.
Do Mura a examinar já se demora,
Usos, costumes, guerras, e o destino,
Que, entre as informes choças, inaudito,
Ao prisioneiro dá, mísero, aflito.
(Mur, I, 1,grifos nossos)
Portanto, neste argumento do Canto I, percebemos, através da Invocação, que os
Mura viviam nas trevas e sob o domínio do Mal, de acordo com o entusiasmo da conquista
113
pela ampliação do mundo europeu. Somente a Luz divina poderia reverter tal estado de
barbárie, porém a ―luz‖ também é trazida através da sub-reptícia barbárie do conquistador:
Mandai raio da Luz, que comunica
Entendimento, acerto verdadeiro
Espírito da paz! que vivifica [...]
(Mur, I, 3, 1-3)
Invoco aquela Luz que, difundida
Nos corações, nas almas obstinadas,
Faz conhecer os erros e a perdida
Graça adquirir, ficar justificadas[...]
(Mur, I, 4, 1-4)
A Proposição, como apresentação do tema do poema a ser desenvolvido na Narração,
consiste em glorificar os feitos que ocasionariam a conversão dos Mura:
Canto o sucesso fausto inopinado,
Que as faces banha em lágrimas de gosto,
Depois de ver num século passado,
Correr só pranto, em abatido rosto
Canto o sucesso, que faz celebrado
Tudo o que a Providência tem disposto
Nos impensados meios admiráveis,
Que os altos fins confirmam inescrutáveis.
(Mur, I, 2)
À semelhança de Os Lusíadas, o poeta vem cantar o resultado da missão de dilatar a fé
cristã. Para ilustrar a necessidade de os portugueses atingirem seu intento de colonização, canta
o sucesso obtido depois de anos de ―abatimento‖. Afinal, para os lusitanos sempre estaria
reservado um futuro que se assemelha ao seu passado glorioso:
As armas e os barões assinalados
Que, da Ocidental praia Lusitana.
Por mares nunca dantes navegados,
Passaram além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo reino, que tanto sublimaram
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando:
Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
114
(Lus, I, 1- 2)
Após a Proposição, começa a Narração propriamente dita. Wilkens prossegue
cantando o percurso de lutas entre os portugueses e os Mura até a pacificação. Trataremos
mais especificamente do desenvolvimento da Narração no próximo subcapítulo deste
trabalho.
O Epílogo constitui a parte final do poema na qual os conflitos são resolvidos. Em
Muraida, ele pode ser observado nas últimas cinco estrofes do último Canto do poema:
Sobre princípios tais, tal esperança,
Fundamenta a razão todo discurso;
Em Deus se emprega toda a confiança;
Pende o Seu poder todo o recurso;
Os frutos já se colhem da Aliança,
Apesar dos acasos no concurso.
Sempre os progressos a cantar disposto,
Aqui suspendo a voz, a lira encosto.
(Mur, VI, 23, grifos nossos)
Nessa última estrofe de a Muraida, o poeta encerra seu discurso e encosta sua lira
cantando o triunfo da empresa colonizadora. Observamos, no Epílogo, a intenção do poeta em
demonstrar a ―homogeneidade‖ da pacificação, apesar dos conflitos existentes com a etnia em
outras localidades da Amazônia. Usa um eufemismo para referir-se à resistência dos Mura:
―Apesar dos acasos no concurso‖, dando a entender que a resistência foi um problema
pequeno a enfrentar.
De outro modo, em Os Lusíadas, o encerramento que o poeta canta no Epílogo
contrapõe-se ao desfecho de a Muraida. Cleonice Berardinelli (2000), em seu estudo dos
excursos camonianos, aponta que o Poeta do épico camoniano faz reflexões, exortações e
queixas através dos excursos. Entre os exemplos citados pela autora, destacamos a estrofe:
No mais, Musa, no mais, que a lira tenho
destemperada e a voz enrouquecida,
e não do canto, mas de ver que venho
cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
não no dá a pátria, não, que está metida
no gosto da cobiça e na rudeza
duma austera, apagada e vil tristeza.
115
(Lus, X, 145, grifos nossos)
Segundo a autora (p.47), o Poeta recorrera anteriormente duas vezes às Ninfas e duas
vezes à Calíope, primeiro com entusiasmo e depois com cansaço. Num ritmo descendente, em
suas últimas palavras à Musa da epopeia, Calíope, o poeta pede que lhe corte a voz, diz-lhe
que é momento de calar, pois sua voz não tem mais o tom alto e sublimado do início do épico,
pois a cítara que cobiçara de Homero, é ―lira destemperada‖.
Ambos os poetas soldados cumprem a missão de cantar o triunfo português. Cada um
a seu modo, desempenham a missão de cantar o expansionismo e o colonialismo nas novas
terras, entre os infiéis. Porém, diferentemente do épico camoniano, o sucesso cantado em
Muraida condiz apenas parcialmente com a análise dos fatos históricos, pois de acordo com o
poema, através de um supremo ato milagroso, o povo Mura se converteu à fé cristã e,
sobretudo, aos interesses dos colonizadores. Porém, sabemos que, historicamente, apenas um
grupo pequeno de indígenas foi subjugado, conforme veremos mais adiante.
4.3 Muraida e Os Lusíadas: Duas viagens, duas conquistas
As perspectivas teóricas atuais da Literatura, da História e da Antropologia têm
contribuído para novas interpretações dos textos produzidos pelos cronistas viajantes, padres e
militares que participaram das incursões colonizadoras no território que hoje constitui-se
como Brasil, lançando novos olhares sobre as relações estabelecidas entre índios, colonos e
missionários naquele tempo.
Faz-se necessário apontar que o modo de ver o mundo e as ideologias sustentadas em
textos do período colonial revelam o olhar e a consciência possíveis aos autores daquele
tempo. As viagens ultramarinas eram fortemente marcadas pelos braços da violência e da
religião, atuando juntas para conseguir atingir a construção de um império desejado pelos
europeus. Quando, por exemplo, Camões cantou os feitos dos reis portugueses que arrasaram
116
a África e a Ásia, isso não era interpretado como um ato de barbárie, como pode ser
considerado atualmente.
Camões também foi um poeta soldado, assim como Wilkens. Em ambos os épicos
analisados, percebemos um misto da ideologia militar fortemente marcada pela ideologia
religiosa de dilatar o Império e a Fé cristã. Em ambas, a conversão e redução dos inimigos
decorrem de uma dupla força da violência impetrada contra eles — a violência simbólica e a
violência real.
A imagem do índio Mura como um demônio foi construída por uma visão de Mal
trazida pelos europeus em seus navios e, tal representação imagética interessava aos
propósitos coloniais, conforme o historiador Santos (2002). Os povos da América e de outras
terras conquistadas pelos europeus não eram julgados a partir de seus próprios referenciais
culturais e ideológicos, ou pela forma como se organizavam social e economicamente. A
visão etnocêntrica do mundo deturpava o olhar sobre os indígenas e reforçava a ideia de
atuação do Diabo sobre esses povos. Deste modo, em Muraida, a luta que é travada é entre
Deus e o Diabo (BEM X MAL). Este último domina os Mura e os destitui da Graça divina:
Eia! Pois, filhos meus – Que assim vos chame
Não estranheis, pois vosso bem só quero –
O nosso Deus; a nossa fé se aclame;
Que Ele nos fortaleça sempre espero;
Que a Sua Graça sobre vós derrame.
Aterre-se esse monstro hediondo e fero,
Que em densas trevas, em vil cativeiro,
Vos aparta de Deus, bem verdadeiro.
(Mur, IV, 15, grifos nossos)
Neste sentido, devemos ler o Mal, não apenas como atribuição do Diabo, mas como
uma representação do real impedimento ao projeto pombalino de colonizar a Amazônia.
Dessa forma, na mente dos portugueses que chegavam à América, semelhante ―verdade‖
contra os mouros foi adaptada aos indígenas. O etnocentrismo europeu e sua dificuldade de
perceber e conhecer o Outro criaram uma conceituação generalizante sobre o índio,
117
classificando-o como um ser desprovido de cultura e crenças — descrito como antropófago,
preguiçoso ou selvagem — e não contemplava as diferenças de ordem cultural que marcavam
cada etnia indígena como única, dona de seus próprios ritos e conhecimento de mundo.
Neste sentido, é interessante observar a análise de Todorov (1998), sobre a atitude de
Colombo ao conhecer os índios. Na experiência do encontro, não se interessou pelo que a
realidade podia apresentar-lhe como novo, mas limitava-se a interpretá-la a partir de ideias
preconcebidas. Para Colombo, as novas experiências eram apenas ilustrações de ―verdades‖
que ele já possuía e fruto de uma longa tradição eurocêntrica sobre sua posição de ―Velho
Mundo‖ como o local originário da cultura e de uma consequente negação de outras culturas
além-mar.
Conforme já dissemos anteriormente, segundo Eduardo Lourenço (2005), a Europa
―colonizou o mundo por razões boas e más. Essa colonização irreversível nunca lhe será
perdoada. É o pecado original, a marca específica do seu destino‖ (p.13). Colombo ―deu
novos mundos ao mundo‖, conforme já afirmara Camões, e esse sentimento de superioridade
ou de ―hiperidentidade‖ — termo usado ironicamente por Lourenço (p.165) — fez com que os
portugueses impusessem sua língua, cultura e religião a povos que não eram desprovidos de
cultura, mas que foram violentamente oprimidos e violentados simbolicamente.
Com a intenção de analisar esse olhar etnocêntrico representado na literatura,
escolhemos neste capítulo discutir semelhanças e diferenças em vários episódios da Narração
de Muraida e d‘ Os Lusíadas. Pois, assim como Camões cantava os feitos gloriosos do povo
português, Wilkens quer celebrar a vitória dos portugueses contra os Mura. No clássico, toda
uma história do povo lusitano emerge ao lembrar de reis e viagens que construíram uma longa
história portuguesa de honras e glórias. Em Muraida, o retorno ao passado é necessário para
118
dar ao ouvinte a dimensão das dificuldades vencidas ao longo de mais de cinquenta anos de
luta contra os Mura:
Mais de dez lustros eram já passados,
Que a Morte e o terror acompanhava
Aos navegantes tristes, que ocupados
Estavam co‘o perigo, que esperava
A cada passo ter nos descuidados,
Segura presa em que se alimentava,
Despojo certo, e vítima inocente,
Na terra, ou mar, do rio na Corrente.
(Mur, I, 5)
A propósito de apresentar a empreitada colonizadora, Wilkens enfatiza a crueldade
dos Mura e o poder de pacificação do catolicismo. Antes de começar a Narração do poema,
Wilkens escreve um Prólogo para que sirva de instrução àqueles que irão ler o poema. Esse
prólogo é rico em detalhes sobre a etnia Mura e deixa claro o real motivo comercial de
exploração agrícola, por trás das Leis de Liberdade. Podemos observar o olhar do colonizador
em várias passagens do Prólogo; elas denotam as reais intenções de dominação. Logo de
início, percebemos a descrição de fereza e brutalidade das ações dos Mura, as quais impediam
que os interesses dos colonizadores se realizassem. O autor não poupa adjetivos para
descrever os Mura segundo a imagem de um bárbaro:
O feroz, indomável e formidável Gentio Muhura, ou Muhra [...] sempre foi fatal
aos navegantes do dito rio Madeira, no comércio que o Pará cultivava com a
capitania de Mato Grosso; sendo este gentio de corso igualmente cruel e
irreconciliável inimigo dos portugueses, dos índios, dos bosques ainda habitantes,
matando cruelmente, e sem distinção de sexo ou idade, todos os viajantes e
moradores das povoações, roubando-os e levando as mulheres moças e crianças, que
do estrago escapavam, destinadas a um cruel cativeiro, permitindo, contudo, a
Divina Providência que nunca familiarizar-se pudessem com o uso das armas de
fogo, às quais tinham o maior horror e, achadas, ou totalmente quebravam ou ao rio
arrojavam ou em pedaços reduziam para pontas de flechas, das quais usam com
grande destreza e força.
No ano de 1756 principiou o dito Gentio Mura a sair em corso pelos circunvizinhos
rios, passando até a fortaleza da Barra do Rio Negro, confluente do Amazonas.
Insensivelmente no ano de 1765, até o de 75, enchiam já de terror, espanto,
mortes e rapinas todos os rios confluentes do Solimões ou Amazonas, funestando
a navegação, o comércio, a comunicação e a população dos ditos rios.
(Mur, p.23-24, grifos nossos)
De acordo essa caracterização dos Mura, aproximamos a figura do Mouro no discurso
camoniano. Ambos são bárbaros, infiéis e precisam ser cristianizados. A respeito dessa
119
classificação, recorremos a Thomas Wolf (2004)59. O autor reflete a respeito da oposição
entre barbárie e civilização:
Quando um país, uma sociedade, ou uma cultura se identifica à civilização,
qualificando como bárbaros seus adversários, quase sempre é para justificar
iniciativas imperialistas menos recomendáveis. Há outro risco, simétrico ao anterior:
o de que uma pretensão à universalidade (a civilização é única, é a mesma para
todos e para toda a humanidade) ou, pior, de um objetivo expansionista (nós somos a
civilização, eles são a barbárie)[... ] É evidentemente tentador, com efeito, não
enxergar diferenças entre as duas posições. Já que cada um qualifica o outro de
bárbaro a fim de defender sua própria e única concepção de civilização, parece
sensato declarar que não existe civilização, pelo menos não uma ideia única de
civilização, apenas culturas diferentes; portanto, não existem bárbaros, tudo é uma
questão de ponto de vista, cada um chama de civilizado aquilo que ele mesmo é,
conhece, compreende, e de bárbaro o que lhe é estrangeiro ou desconhecido.
(WOLF, 2004, p.20)
No entanto, o próprio autor solicita a relativização desses conceitos, quando pensa em
três maneiras diferentes de ser conceituado como bárbaro. Numa dessas visões, o indígena
que andava nu pela selva pode ser visto como bárbaro em oposição a um conceito de
civilização urbanizada. Mas se pensamos nesse conceito de forma a analisar a destruição de
um patrimônio cultural, o que podemos dizer dos portugueses que chegaram destruindo
comunidades indígenas inteiras e seus respectivos patrimônios durante a colonização? E se
pensarmos na tomada de Ceuta e na transformação da maior mesquita da cidade em templo
católico? Quem é bárbaro?
Refletindo sobre esses conceitos, destacamos os versos que, de acordo com o olhar da
civilização europeia, os Mura são retratados de forma demoníaca, fato que por si só
justificaria a intervenção religiosa para retirá-los de tal condição:
Não mitiga o cruel, o feroz peito,
A tenra idade do mimoso infante,
Nem à piedade move, nem respeito
Do decrépito velho, o incessante
Rogo e clamor, só fica satisfeito
Vendo o cadáver frio, ou palpitante
O coração; o mar e a terra tinta
De sangue, que não deixa a raiva extinta
(Mur, I, 18)
59
WOLF, Thomas. ―Quem é bárbaro?‖ In: Novaes (org.) Civilização e Barbárie. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004. p.19-43
120
De acordo com esses versos, retomamos a reflexão elaborada no Capítulo 2 sobre a
tese 7 de Walter Benjamim: se a barbárie é intrínseca à civilização, o bárbaro é também o
português que quer civilizar o indígena e, em consequência, destrói os seus monumentos de
cultura. E assim é desde a História Antiga do Ocidente. O Ocidente se funda nesse dualismo
entre civilização e barbárie, Bem versus Mal, numa pretensa relação de opostos. A violência,
afinal, não está apenas no Outro, mas está também nos processos que fazem o civilizado
acreditar que é superior.
Observemos o emprego da palavra ―piedade‖ na estrofe acima, nos remete a uma
conhecida construção camoniana que reflete sobre o sentido de ―mover à piedade‖ – a morte
de Inês de Castro. Matar Inês não foi um crime bárbaro?
Traziam-na os horríficos algozes
Ante o Rei, já movido a piedade;
Mas o povo, com falsas e ferozes
Razões, à morte crua o persuade.
Ela, com tristes e piedosas vozes,
Saídas só da mágoa e saudade
Do seu Príncipe e filhos, que deixava,
Que mais que a própria morte a magoava
( Lus, III, 124)
A exemplo da morte de Inês, o que poderia mover a piedade, senão o Amor divino? A
crueldade presente na natureza humana, pode ser levada a cabo por ―bárbaros‖ ou
―civilizados‖. Os portugueses não eram cruéis quando dizimavam comunidades inteiras em
nome da colonização? O que dizer dos assassinos de Inês?
De acordo os atos de violência e o desejo permanente de derramar o sangue alheio, os
Mura são insistentemente considerados malignos, ideia reforçada pelo ponto de vista do
discurso colonial. Na estrofe a seguir, observamos, na descrição de suas ações ao capturar
prisioneiros, que mulheres e crianças também eram alvos da violência dessa etnia. Poderiam
ser escravizados para fins de trabalho ou assassinados, conforme nota explicativa do poeta
após os versos aqui citados:
Sem distinção de sexo, ou qualidade,
Ou tudo mata, ou leva maniatado
121
Em duro cativeiro, onde a maldade,
O trabalho combina, destinado
Aos diferentes sexos e à idade
Dos prisioneiros; sendo castigado
O negligente com tal aspereza,
Que prova é convincente da fereza.
(Mur, I, 19)
Wilkens demonstra a violência desse povo, a cuja crueldade que nem o ―frágil sexo‖
escapa, pois, ao fazer de mulheres suas prisioneiras, elas eram abusadas, e depois de mortas,
alvo das flechas dos Mura. Desta forma, os indígenas desta etnia são evocados como agentes
do mal que se multiplicam nas densas brenhas da floresta, ganham a fama de bárbaros em
oposição aos europeus ―civilizados‖. Segundo dados históricos, em algumas situações, as
mulheres e crianças de outras inimigas eram assimiladas pelo grupo Mura, num processo
denominado ―murificação‖.
Os Mura são apresentados como seres não-humanos, impiedosos e animalescos. Tal e
qual os mouros são apresentados como inimigos em Os Lusíadas. Os mouros, sob a ação de
Baco, representam aqueles que resistem ao domínio lusitano. Baco os leva à guerra, na
batalha do Salado, por este motivo são caracterizados como torpes e traidores:
Mas o Mouro, instruído nos enganos
Que o malévolo Baco lhe ensinara,
De morte ou cativeiro novos danos,
Antes que à Índia chegue, lhe prepara.
Dando razão dos portos Indianos,
Também tudo o que pede lhe declara,
Que, havendo por verdade o que dizia,
De nada a forte gente se temia.
(Lus, I, 97)
Os mouros, descendentes de Baco, são comparáveis aos Mura sob a ação do Demônio,
ambos são considerados como encarnação do Mal. Os mouros são levados a lutar e o Mal
leva os Mura a resistir:
A isto mais se ajunta que um devoto
Sacerdote da lei de Mafamede,
Dos ódios concebidos não remoto
Contra a divina Fé, que tudo excede,
Em forma do Profeta falso e noto
122
Que do filho da escrava Agar procede,
Baco odioso em sonhos lhe aparece,
Que de seus ódios inda se não dece.
E diz-lhe assi: – «Guardai-vos, gente minha,
Do mal que se aparelha pelo imigo
Que pelas águas húmidas caminha,
Antes que esteis mais perto do perigo!»
Isto dizendo, acorda o Mouro asinha,
Espantado do sonho; mas consigo
Cuida que não é mais que sonho usado;
Torna a dormir, quieto e sossegado.
(Lus, VIII, 47-48)
Em ambos os épicos, os portugueses surgem como benfeitores, como instrumentos de
Deus a serviço da salvação. De acordo com os versos do poeta, temos a medida exata do olhar
daquele que se julga superior, da posição do civilizado sobre o incivilizado, do emigrante
sobre o autóctone; olhar que vence pelo jugo do indígena à cultura recém-chegada. No nível
da enunciação, a presença portuguesa é marcante no que diz respeito à ideologia de sociedade
presente no poema. Nesse sentido, recorremos a Silviano Santiago:
Quanto mais diferente o índio, menos civilizado; quanto menos civilizado, mais
nega o narciso europeu; quanto mais nega o narciso europeu, mais exigente e
premente a força para torná-lo semelhante; quanto mais semelhante ao europeu,
menor a força de sua própria alteridade. (1982, p.16)
Dessa forma, observamos em Muraida a pressão da força colonizadora atuando sobre
os Mura. Após várias descrições do modo de vida dos índios, a rendição acontece ―por
encanto‖ e por obra da Graça divina. A luta travada é uma guerra moral entre a fé católica e a
gentilidade dos indígenas em questão, entre Deus e o Demônio. Enquanto os Mura estão sob o
domínio do Demônio, eles habitam as trevas e seus traços morais precisam ser modificados.
De acordo com o pensamento corrente na época, muito influenciado pelo discurso religioso, a
falta de razão estaria relacionada à fatal ausência do Bem, e o Bem, nesse caso, é Deus.
De acordo com o poeta, a violência presente no texto poético não é decorrente da
resistência ao colonialismo, mas engendrada pelo paganismo e pelas trevas. Esse paganismo é
quem cria a maldade que, por sua vez, amplia o caráter da violência praticada contra os
123
brancos e índios de outras etnias. Daí, a necessidade da pacificação daquela população
indígena. Conforme já citado anteriormente, os Mura guerreavam não só contra os brancos,
mas também contra as tribos inimigas, por isso são vistos como comandados pelo Demônio.
Multiplicavam-se entre os rios e furos amazônicos e impediam o comércio das drogas do
sertão, ambicionado pelos exploradores.
O propósito da necessidade de conseguir a pacificação desse povo, através do discurso
religioso, reforçaria o poder que a Igreja tinha nessa época ─ apesar da expulsão dos jesuítas
no período pombalino ─ e esconderia a violência perpetrada contra eles. Os habitantes
naturais das terras amazônicas viviam sob um clima de tensão entre o poder da Igreja e o
poder do Estado. Pois, conforme os interesses das forças do poder, ora poderiam estar unidos,
ora em conflito. Desta forma, Wilkens enfatiza o paganismo e a falta de religiosidade do povo
Mura para condená-las e enaltece a necessidade de conversão não só aos valores cristãos, mas
aos interesses mercantilistas dos brancos:
Entre nações imensas, que habitando
Estão a inculta brenha, o bosque, os rios,
Da doce liberdade desfrutando
Os bens, os privilégios e os desvios
Da sórdida avareza, e desprezando
Projetos de ambição, todos ímpios,
A bárbara fereza, a ebriedade
Associada se acha com a crueldade.
Nas densas trevas da gentilidade,
Sem templo, culto ou rito permanente,
Parece, da noção da divindade,
Alheios vivem, dela independente,
Abusando da mesma liberdade
Que lhes concede esse Ente Onipotente,
Por frívolos motivos vendo a terra
Do sangue tinta, de uma injusta guerra.
(Mur, I, 9-10)
Pela falta de conhecimento do Outro, pelo desprezo aos projetos de ambição e o
conflito entre diferentes estilos de vida - permanente e nômade, percebemos que os Mura não
124
tinham interesse em participar do sistema mercantilista europeu, projeto de capitalismo que
estaria por vir. Tal como desnudos andavam, andavam despidos da ambição dos brancos.
De acordo com David Treece (1993), a razão desse comportamento seria consequência
da influência dos antigos conquistadores. Segundo o autor, os índios não apresentavam
interesse pelo trabalho e pelo comércio como formas de enriquecimento devido ao fato de os
primeiros colonos não os terem preparado para o trabalho comercial. Sabemos que era natural
da cultura indígena não utilizar do comércio como forma de sobrevivência, só em casos raros
de exceção em algumas etnias, conforme já comentamos no Capítulo 2.
Apesar de o texto poético cantar que a conversão ocorreu por um milagre da luz
divina, historicamente, sabemos que a etnia Mura permaneceu lutando e tornou-se conhecida
por representar a maior força de resistência contra os colonizadores europeus, assim como os
Mouros lutaram contra os portugueses em diversas batalhas em nome da fé. Conhecidos como
índios de corso, os Mura habitavam tanto a terra quanto os rios e eram exímios remadores e
conhecedores das florestas, dos rios, furos e igarapés. Nas situações em que iam de encontro
aos portugueses, eles impediam qualquer tipo de extração florestal e de fixação no solo
amazônico. Dessa forma, o índio Mura ficou também conhecido como o ―Mura agigantado‖.
4.4 O Mura Agigantado e o Gigante Adamastor
Refletindo sobre a capacidade de locomoção e de impedimento que os Mura
apresentavam contra os portugueses, podemos compará-los ao Gigante Adamastor da obra
camoniana. Imagem que nasce do mito de Deméter60. Adamastor é altivo e soberbo, porém
60
Deusa da agricultura, Deméter (gr. Δημήτηρ) representava os frutos obtidos com o cultivo da terra, de forma
geral, e notadamente o trigo. Não deve ser confundida com Gaia, que representa a terra como princípio
cosmogônico. Ligada diretamente à fertilidade da terra cultivada, Deméter é uma antiquíssima deusa-mãe cuja
origem deve remontar, no mínimo, ao Neolítico. Não há menção a Deméter nas tabuinhas micênicas, mas é
possível que algumas pinturas murais se refiram a ela e há, também, uma inscrição minoica em linear A, ainda
não decifrada, a mencione. Em Homero, ela já aparece diretamente associada ao trigo (Il. 13.322).Para os gregos,
ela era filha dos titãs Crono e Réia, nascida logo depois de Héstia, e, portanto irmã de Zeus, Hera, Posídon e
Hades. (Extraído de www.greciantiga.org, acesso em 20 de fevereiro de 2014)
125
Vasco da Gama, a exemplo de Ulisses ―o facundo‖, vence o gigante através da maiêutica do
discurso, fazendo um elogio ao Ocidente que vence através da argumentação. Apesar de
Saraiva (1972) o chamar de um ―gigante choramingas‖ e, por assim dizer, diminuí-lo. Jorge
Fernandes da Silveira em O Tejo é um rio controverso (2008) discorda e nomeia Adamastor,
não apenas como uma figura grande que aparece no caminho do Oriente, mas como uma
―grande figura‖, uma alegoria da provação, simbólica das adversidades a ultrapassar:
A hipótese de que o futuro ainda está na aprendizagem de uma lição do olhar, vista
em todo o Canto V (―Vi, claramente visto, o lume vivo‖ – 18,1), e que encontra, no
aparecimento da ―figura disforme‖, a sua versão, literal e simbolicamente,
extraordinária: uma dura ―educação pela pedra‖, que, incompreendida por Saraiva,
ainda hoje faz escola entre os seus discípulos, que se negam a aprender a ver que é o
Adamastor quem ―domestica‖ o ―valeroso Capitão‖, primeiro maravilhando-o ―de
espanto‖ com o seu gesto medonho, depois, em resposta às ―primeiras perguntas
sobre os deuses‖ (―Quem és tu? Que esse estupendo/Corpo, de certo, me tem
maravilhado!‖ – Lus. , V, 48, 3-4), comovendo-o com o seu drama amoroso, para,
ao fim e ao cabo, duplamente enganado, pelos deuses e pelos homens, acabar
movido pelo astucioso Capitão, que em vez de espada lhe dava corda ao discurso
para que ele mesmo se imobilizasse, quer dizer, fosse atravessado pela nau capitânia
e desse ao inimigo, aprovado com arte no engenho do diálogo ditado pelo
humanismo neoplatônico renascentista (sem arroubos heroicos, porém), o epíteto
que, logo depois de tal feito, o iguala a Ulisses: o ―facundo Capitão‖ (Lus.,V, 90,1).
(SILVEIRA, 2008, p.121-122)
Adamastor está no meio do caminho, na metade da viagem ―entre o Ocidente e a
―desejada parte Oriental‖ (Lus, V, 69,8)‖ (p.24). Vilma Arêas, ao falar sobre as reflexões de
Jorge de Sena, diz:
Jorge de Sena observou que o Canto Quinto, estrofe 92, é o ponto nevrálgico do
poema, pois o presente da intriga se instala [...]. Parece-nos, no entanto, que sua
observação fica a meio do caminho, pois não se refere à outra intriga, qual seja, a
navegação poética: nesta, e exatamente no ponto indicado pelo crítico, o poeta toma
a palavra, desloca-se do narrador-personagem, para louvar, não a história de
Portugal, mas a verdade do canto. (Arêas, 1980,p.173)
Adamastor é o obstáculo, ―a figura que se agiganta, surgida da noite e da nuvem
tempestuosa, ao som do mar, é disforme em sua grandeza e fealdade. Passa-lhe Vasco da
Gama a palavra e ouve-lhe profecias e maldições‖ (BERARDINELLI, 2000, p.76)
Porém já cinco Sóis eram passados
Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca d' outrem navegados,
126
Prosperamente os ventos assoprando,
Quando ũa noute, estando descuidados
Na cortadora proa vigiando,
Ũa nuvem que os ares escurece,
Sobre nossas cabeças aparece.
Tão temerosa vinha e carregada,
Que pôs nos corações um grande medo;
Bramindo, o negro mar de longe brada,
Como se desse em vão nalgum rochedo.
– «Ó Potestade (disse) sublimada:
Que ameaço divino ou que segredo
Este clima e este mar nos apresenta,
Que mor cousa parece que tormenta?
Não acabava, quando ũa figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.
(Lus, V, 37-39)
Estrategicamente, o gigante é alevantado contra os portugueses na metade do Poema,
no Canto V, conforme observou Jorge Fernandes da Silveira:
Creio eu, igualmente, que o desfecho do encontro entre Vasco da Gama e o
Adamastor é o momento supremo do poema, a última aventura possível. Com ela
fica conclusa a primeira metade do grande quadro literário de Camões. Conclusão,
aliás, espetacular do primeiro ciclo épico no poema, onde todos os meios se juntam
concertadamente: num poema de dez cantos, no quinto, na estrofe cinquenta de um
total de cem, o Adamastor apresenta-se, ao responder às perguntas formuladas pelo
Capitão Gama. Por meio de uma retórica apurada, assiste-se à interlocução plena
entre o puramente formal e o conteúdo revolucionariamente novo. (SILVEIRA,
2008, p.52)
Geograficamente, o gigante camoniano representa o Cabo das Tormentas,
impedimento à navegação dos portugueses e obstáculo até então intransponível para chegar às
Índias:
No cabo se refugiavam os medos perseguidos pelas naus, mas conservados no fundo
de cada um dos que partiam ou ficavam. E esses medos assumiram, dentro da
tempestade, forma sobre-humana grande bastante para se opor à passagem dos
navegantes. (BERARDINELLI, 2000, p.79)
127
Simbolicamente, o gigante dá forma a todas as dificuldades da empreitada marítima.
Em que medida essa característica é comparável aos Mura? Se ele é agigantado, como isso se
representa no épico de Wilkens?
O ―Mura Agigantado‖ representa essa força geográfica, pelo fato de conhecer muito
bem o espaço amazônico, e torna-se um gigante pela bravura e habilidade na resistência
contra os brancos, colocando-se como um real impedimento no percurso, uma ―pedra no
caminho‖. Ultrapassar esse gigante representaria a vitória da retórica, julgando que pode ser
―concertada‖ a favor do bem, conforme nos lembra Cleonice Berardinelli.
Marta Rosa Amoroso dedicou-se amplamente aos estudos sobre a etnia Mura. A
antropóloga identifica essa imagem literária como marca fundamental da resistência e da
bravura Mura:
Este é o cenário no qual se germinou a criação dos Autos da Devassa contra os
Índios Mura do rio Madeira (1738-1739), que consistia em uma ação judicial
movida pelas ordens religiosas que atuavam na região do Madeira. A partir de então,
os Mura passaram a figurar como inimigos oficiais da Igreja e da Coroa portuguesa,
passíveis de serem mortos e escravizados. Durante todo o século XVIII, os
documentos sobre os Mura posteriores à Devassa repetiam e reforçavam imagens
fortemente pejorativas. Os registros históricos dão conta de ―populações selvagens,
tratáveis apenas através da guerra e do extermínio‖. [...] A imagem do “Mura
Agigantado” que consta do poema arcádico de Wilkens se originou neste
contexto, no qual o colonizador, perplexo diante de tamanha mobilidade,
passou a temer a floresta tropical por identificá-la com a “morada do gentio
mura‖. (AMOROSO, 2009, grifos nossos)
Através do olhar do colonizador, o texto poético revela a figura do ―Mura
Agigantado‖ para retratar a mobilidade desse povo ao longo dos rios Madeira, Solimões e Rio
Negro. De acordo com as imensas distâncias amazônicas, percorrer esses rios em pequenos
barcos a remo seria esforço somente para um povo forte realmente guerreiro, lutando para
escapar do processo de redução indígena e utilizando-se da violência para se proteger.
Nos versos abaixo, percebemos essa capacidade de locomoção através das palavras
―espalhado‖ e ―difuso‖. Elas dizem, a respeito dos Mura, que eram exímios remadores e que
128
remavam incansavelmente por quilômetros de distância nos rios amazônicos. Dessa forma,
vemos o Mura se tornar um ―gigante‖ para proteger os caminhos por onde passa, assustando a
qualquer passageiro que venha cruzar o seu percurso:
Tal do feroz Mura, agigantado
Costume é certo, invariável uso;
Que desde o rio Madeira, já espalhado
Se vê em distância tal, e tão difuso
Nos Rios confluentes, que habitado
Parece só por ele, e ao confuso,
Perplexo Passageiro intimidando,
Seus bárbaros intentos vai logrando
Assim deste gentio a formidável
Corte repartida, com destreza,
Em barcos tão ligeiros como informes,
Mais temíveis se fazem, mais enormes
(Mur, I, 14-15, grifos nossos)
Márcio Souza reforça essa imagem de exímios remadores e de guardiães do caminho
fluvial, ao dizer:
Autazes é uma região de igapós, furos e pântanos, entre o rio Solimões e o Madeira.
Ali, no labirinto de florestas submersas, os mura tornaram-se imbatíveis. Até hoje,
apesar de todas as carnificinas que sofreram, tanto dos portugueses quanto na época
da Cabanagem, os mura continuam lá, no mesmo lugar, numa demonstração de que
nunca se renderam ou foram derrotados.
Durante cinquenta anos os mura vão dar combate aos portugueses. Eles tinham
aprendido a não se apresentar de peito aberto contra as armas de fogo; organizavam
rápidos ataques ou emboscadas e eram brilhantes arqueiros, arte que dominavam
com criatividade, com a utilização de um grande arco que eles seguravam com os
pés para lançar uma flecha capaz de atravessar um boi ou rasgar uma armadura
metálica.(SOUZA,1994, p.60).
Nesse sentido, os Mura colocam-se como protetores não apenas das águas, mas de
todo o território que estava sendo invadido. No poema, ao mesmo tempo em que o Mura é
valorizado como bravo guerreiro, ele é estigmatizado como bárbaro e feroz, estando em
oposição ao projeto de ―civilização‖ planejado pelos portugueses.
Dessa forma, o poema revela pressupostos colonialistas e esconde os detalhes que
não podem ser abertamente discutidos sob o ponto de vista do colonizador. Em relação a esse
massacre efetuado desde o início da colonização, Márcio Souza nos diz:
Entre a chegada dos europeus e o fim do sistema colonial, 250 anos se passaram.
Foram tempos de conflito e de muito sangue derramado, em que um mundo acabou
129
em horror e um outro começou a ser construído em meio ao assombro‖ (SOUZA,
2010, p. 21).
Nas descrições do poema, percebemos que, além de nômades, os Mura habitam os
cantos escuros da floresta como forma de proteção. Em vários versos, há descrições
vinculadas às trevas. Mais do que uma descrição geográfica, o jogo entre luz e trevas aponta
para uma imagem cristã de presença versus ausência de Deus. Segundo a visão do
colonizador, a falta de religiosidade desse povo o coloca na escuridão por não apresentar
nenhum tipo de culto similar ao catolicismo:
Mandai raio da Luz, que comunica
Entendimento, acerto verdadeiro,
Espírito da paz! Que vivifica
A frouxa ideia, e serve de roteiro
No pélago das trevas em que fica
O mísero mortal, que em cativeiro
Da culpa e da ignorância, navegando
Sem voz, é certo, incauto, ir naufragando.
(Mur, I, 3)
Nas densas trevas da gentilidade,
Sem templo, culto ou rito permanente,
Parece, da noção da divindade,
Alheios vivem, dela independente,
Abusando da mesma liberdade
Que lhes concede esse Ente Onipotente,
Por frívolos motivos vendo a terra
Do sangue tinta, de uma injusta guerra.
(Mur, I, 9)
Esses versos descrevem o índio Mura como um ser que habita as densas trevas da
floresta, porém mais do que mera localização geográfica, essa descrição se revela como a
imagem cristã da ausência de Deus: o ser que estava mergulhado nas trevas, como se seus
olhos não enxergassem, ou como se os mesmos não estivessem abertos para ver a luz. Como
consequência dessa ignorância, na qual estavam imersos, os Mura eram prisioneiros de si
mesmos e promoviam uma injusta guerra por motivos fúteis, segundo a opinião do Poeta.
Nesse momento, o poeta pede ―Luz‖, como possibilidade de consciência aos Mura,
pois assim os olhos daquele povo iriam se abrir e mediante a luz viria a visão, entendimento e
o espírito de paz, que, por sua vez, traria vida. Temos, então, os Mura como pagãos e
130
pecadores,
sugerindo que estes nativos necessitavam de salvação e conhecimento, para
professar os ideais portugueses. De certa forma, os portugueses se sentiam injustiçados, pois
Deus teria colocado os ―selvagens‖ num paraíso terrestre, numa condenação clássica de que
eles habitariam o paraíso para perpetuação da espécie, mas nada fazem em prol do progresso:
tal fato seria uma injustiça aos olhos dos europeus.
No Canto IV, batizados por João Batista Mardel, ocorre o maravilhamento e eles
passam a habitar as clareiras, passam a ser amigos:
Eia! Pois filhos meus – que assim vos chame
Não estranheis, pois vosso bem só quero –
O nosso Deus, a nossa fé se aclame;
Que Ele nos fortaleça sempre espero;
Que a Sua Graça sobre vós derrame.
Aterre-se esse monstro hediondo e fero,
Que em densas trevas, em vil cativeiro,
Vos aparta de Deus, Bem verdadeiro.
(Mur, IV,15)
É perceptível nos versos uma relação entre as ideias de luz, conhecimento e vida, ─
atribuições do ―Bem‖ ─, cujo papel é combater o ―Mal‖. Segundo o pensamento europeu, o
―Bem‖ seria reproduzido pela ―civilização‖ e pelo ―progresso‖. Assim como trevas,
ignorância e naufrágio configuravam o ―Mal‖ que acossava os indígenas.
Incessantemente descritos pela sua crueldade, todo o Canto I investe na adjetivação
que corrobora a imagem criada pelo colonizador
e sua visão eurocêntrica. Ora são
prisioneiros de si mesmos, ora são insubordinados e ímpios. O poeta os associa a figuras
como ―lobo astuto‖, ―ave de rapina‖ e ―bando de corvo‖, vivendo como ―vagabundos‖, em
suas canoas, causavam temor aos navegantes:Quais Tártaros, os outros, vagabundos,
No corso e na rapina se empregando,
Em choça informe vivem, tão jucundos,
Como em dourados tetos; espreitando
Nas margens lá do rio e lagos fundos
O incauto navegante que, passando,
Vai de perigos mil preocupado,
Só do mais iminente descuidado.
(Mur, I, 12)
131
Os Mura assumem, do ponto de vista evangelizador e europeu, uma posição
traiçoeira de ―lobo astuto‖, comparável ao deus Baco da obra camoniana, conforme já vimos
anteriormente. Enquanto ―os navegantes‖ estão em uma posição de ―ovelhas‖, vítimas
inocentes e indefesas da habilidade Mura, etnia que sabe se defender em seu próprio território
e que se agiganta nas águas amazônicas diante da ameaça ao seu espaço:
Qual lobo astuto, que o rebanho vendo
Passar, de ovelhas, do pastor seguido,
A desgarrada logo acometendo
Faz certa presa sem ser pressentido;
A ensanguentada face então lambendo,
À negra gruta já restituído,
Cruel, insaciável, se prepara,
Medita nova empresa e se repara.
(Mur, I, 13)
Diante de tais atos de barbárie, o Poeta critica a independência, a ausência de lei e de
moradia fixa dos Mura ─ aspectos que dificultavam a dominação portuguesa sobre eles. Este
ser cruel narrado lhe tira a voz. À semelhança da célebre oitava 145 do Canto X d’Os
Lusíadas, em que o Poeta pede a Calíope que lhe corte a voz, o Poeta de Muraida canta o
horror que os Mura causam e que lhe traz o esgotamento de sua voz. Quer igualmente as mãos
paralisadas, como as de um pintor que suspende a pintura ao ver a ―Natureza‖ insultada com
tantos sofrimentos, o que o faz desejar um ―tom‖ novo e um novo ―instrumento‖ capazes de
dar continuidade ao canto e ao relato, ou seja, o que lhe trará algo diferente daquilo que ele
mesmo relata. Nos versos a seguir, podemos observar como o poeta usa os excursos líricos
em meio ao canto épico para queixar-se:
Mas minha Casta Musa se horroriza;
Vai me faltando a voz; destemperada
A lira vejo, a mágoa se eterniza:
Suspenda-se a pintura, que enlutada
Das lágrimas, que pede, legaliza,
Vendo a mesma Natureza ultrajada
A dor; o susto; o pasmo; o sentimento
Procure-se outro tom, Novo Instrumento.
(Mur, I, 22)
132
Para falar de Adamastor e de toda a força que esse personagem camoniano simboliza
em ambos os épicos, faz-se necessário realçar a importância do representante da heroicidade
no épico camoniano, Vasco da Gama, o ―facundo‖, aquele que vence o gigante através do
discurso. Segundo Quesado, Gama é o personagem que se realiza como um projeto ideológico
da expansão e do Renascimento:
A partir daí, temos que o homem vai ser o agenciador de dois objetos-valor,
alcançados respectivamente, um imediata e outro mediatamente: o domínio sobre o
mar e sobre a história. Vasco da Gama assume toda a ordem de valores do homem
renascentista. [...] Ele vai agir exatamente dentro da ordem de valores da sua época e
sua sociedade, fundada numa crença cristã e num contexto de ideias e opiniões do
homem racionalista e humanista do século XVI. (QUESADO, 1974, p.5)
Ainda em termos de interlocução entre Muraida e Os Lusíadas, Gama ─ após sonho
profético de D. Manuel com os rios sagrados Ganges e Indo ─ recebe do próprio Rei a
responsabilidade de dirigir a expedição em busca de novos mundos, a viagem torna-se
objetivo de conquista de um espaço vital para o povo português: ―Me põe o ínclito Rei nas
mãos a chave/ Deste cometimento grande e grave‖ (Lus, IV,77). O Rei usa de sua sabedoria e
emprega palavras afáveis ao dirigir-se ao Gama e argumentar que as grandes conquistas são
obtidas por grandes esforços:
E com rogo e palavras amorosas,
Que é um mando nos Reis que a mais obriga,
Me disse: - «As cousas árduas e lustrosas
Se alcançam com trabalho e com fadiga;
Faz as pessoas altas e famosas
A vida que se perde e que periga,
Que, quando ao medo infame não se rende,
Então, se menos dura, mais se estende
(Lus, IV, 79, grifos nossos).
Ao confirmar em seu discurso que a vida ―quando ao medo infame não se rende‖, a
mesma não se torna notável, o Rei coloca o Gama diante do desafio, diante do desejo de
superar os obstáculos humanos e fazer cumprir a ideologia Renascentista. Desta forma,
segundo Saraiva & Lopes, Camões pode ser interpretado como paladino da cultura ocidental
ao cantar a ideologia expansionista portuguesa:
133
[...] cumpre não ignorar a ideologia guerreira de conquista frequentemente exaltada
n‘Os Lusíadas, Se julgarmos pelo sonho de D. Manuel e por outros passos, a
nenhuma honra mais alta poderiam os povos do oriente aspirar do que a de sofrer o
―jugo‖ ou o ―freio‖ português, imagens que aliás também caracterizam o domínio
régio sobre os seus súditos. E ao iniciar seu discurso perante o rei de Melinde, Vasco
da Gama anuncia o assunto nestes temos: ―Primeiro tratarei da larga terra\ Depois
direi da sanguinosa guerra.‖ (p.349)
Em Muraida, Wilkens insere no poema um anjo. O mensageiro celeste, Anjo
disfarçado de Mura, surge investido com o poder do discurso que tem como objetivo
persuadir um Mura jovem a seguir os preceitos cristãos, e com argumentos de grandes
benefícios, consegue convencê-lo a assumir o papel de transmitir aos outros Mura as boas
novas da salvação. Assim como o Rei oferece a Vasco da Gama a oportunidade de ser o
comandante da expedição em busca da conquista de novas terras, o Anjo concede ao Mura
jovem a chance de ser o instrumento da propagação do Evangelho entre os seus:
E para que conheças a verdade
De tudo, que eu relato, vai correndo,
Vai logo; Ajunta os teus, com brevidade,
Verás, se é certo, o que te estou dizendo;
Vamos seguindo, enquanto há claridade
O caminho da aldeia, em que vivendo
Tapuias, como nós, mas satisfeitos,
A lei de um Deus conhecem, seus preceitos.
(Mur, III, 5).
Refletindo sobre a oposição ―cristão versus pagão‖, o Mura jovem deve semear a
palavra de Cristo, com o objetivo de aceitação da fé católica e, consequentemente, a
―pacificação‖ Mura. Percebe-se que, assim como n‘Os Lusíadas, o desejo de glória e honra
que entusiasmou Vasco da Gama e sua armada ocorre em Muraida. Visto que o discurso do
mensageiro celeste embasava-se em argumentos de que, após a ―reconciliação‖ dos Mura,
eles seriam poderosos, amados, invejados e teriam abundantes colheitas, portos vantajosos, e
só assim seriam felizes eternamente. Assim como o Gama aceita a tarefa que lhe é confiada, e
com louvor se coloca à disposição do Rei, submetendo-se a qualquer perigo e lamentando por
sua vida não ser oferta tão valiosa:
Eu vos tenho entre todos escolhido
Para uma empresa, qual a vós se deve,
134
Trabalho ilustre, duro e esclarecido,
O que eu sei que por mi vos será leve."—
Não sofri mais, mas logo: — "Ó Rei subido,
Aventurar-me a ferro, a fogo, a neve,
É tão pouco por vós, que mais me pena
Ser esta vida cousa tão pequena.
(Lus, IV, 79)
O Rei elogia Gama, o que o ―levantará‖ às grandes proezas. A partir de então, Vasco
da Gama prepara a armada, tripulada por jovens de caráter valente, ambicioso e ousado para a
empresa. Como Paulo da Gama, que sendo irmão de Gama, e também por desejar a honra,
acompanha o irmão na expedição:
Com mercês sumptuosas me agradece
E com razões me louva esta vontade;
Que a virtude louvada vive e cresce,
E o louvor altos casos persuade
A acompanhar-me logo se oferece,
Obrigado de amor e de amizade,
Não menos cobiçoso de honra e fama,
O caro meu Irmão Paulo da Gama.
(Lus, IV, 81).
Assim, o Mura jovem de Wilkens e Vasco da Gama, incitado pelo Rei e anunciados
pelo Anjo, estão ordenados para a viagem. O Mura jovem, ao ser convencido pelo mensageiro
celeste, reúne seus companheiros e dá início à tarefa que lhe foi atribuída. Na praia do
Restelo, no momento da partida das naus, o que se podia ver era o alvoroço e o ânimo nobre
de desejo. Dúvida e temor não tinham lugar na ousadia juvenil, assim como nas convicções do
jovem Mura em seu discurso persuasivo, pois ―O Mura se levanta arrebatado‖, e de ―estranho
impulso comovido/ Lhes diz, ou diz por quem foi convencido.‖ (Mur, III,11)
Levantai-vos! Parentes meus amados!
Despertai de letargo tão profundo!
Olhai, que para empresa sois chamados,
Que nome vos dará já em todo o mundo.
Temidos até agora, respeitados
Só fomos com desertos, bosques imundos.
Mas já o destino quer a nossa sorte
Que o mundo todo admire ao Mura forte.
(Mur, III, 12)
Em substituição às cenas de batalha, típicas do épico tradicional, o Mura Jovem tem
o dom da palavra para convencer os Mura. Ele os envolve em argumentos persuasivos e vence
135
a oposição do ―Mura Agigantado‖, pois ele é o ―Orador [que] de nada se espanta‖, é dotado
de uma ―força santa‖ que atinge o objetivo de convencer os indígenas. À semelhança de
Vasco da Gama, O Mura Jovem torna-se o ―facundo‖, pois usa a arma da retórica, o dom do
discurso e da argumentação para levar a ―Luz‖ aos Mura.
4.5 O Velho do Restelo e o Velho Mura
N‘Os Lusíadas, muitos observavam a partida dos corajosos homens. A armada de
Vasco da Gama partiu da Capela de Belém61 acompanhada por frades em procissão solene
para enfrentar as incertezas do caminho. Dentre os presentes à despedida na praia lusitana, a
figura do Velho na partida para a grande empresa, de um ponto de vista pós-colonial, tem
caráter simbólico. Camões coletou informações sobre o embarque de Gama em Barros e este
em Castanheda no Livro 1º do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses
(Coimbra, 1554). Neste episódio, as mulheres choravam porque criam que todos iam morrer e
Portugal ia se despovoando nas partidas e deixando-se à mercê de outros inimigos, mais
próximos, mais prováveis, mais ―junto de casa‖.
Nesta partida, três figuras importantes destacam-se na praia para compor a cena da
despedida. A mãe idosa que se queixa da partida do filho, desamparando-a, pois ela o via
morto à partida: ―Por que de mim te vás, ó filho caro/A fazer o funéreo enterramento,/Onde
sejas de peixes mantimento!‖ (Lus, IV, 90). A segunda figura, a esposa magoada pelo esposo,
que embarca sem levar em consideração o amor entre eles, visto que, segundo ela, ele estaria
trocando-a pela incerteza do mar e dos ventos: "Ó doce e amado esposo,/Sem quem não quis
Amor
que
viver
possa,/
Por
que
is
aventurar
ao
mar
iroso
Essa vida que é minha, e não é vossa?‖ (Lus, IV, 91). A terceira figura, um Velho que ficava
na praia ―entre as gentes‖.
61
A capela ficava à beira mar, e recebeu nome da cidade onde Jesus, o filho de Deus, havia nascido.
136
Segundo Cleonice Berardinelli: ―Mães e esposas são acompanhadas de velhos e
meninos nas lágrimas com que banham a areia: sua fraqueza e o abandono em que são
deixados apoiam as palavras do ‗velho de aspeito venerando‘‖ (2000,p.50). Com tamanha
tristeza, até os montes respondiam ao lamento. Por isso, os marinheiros preferiam não as olhar
naquele estado. Vasco da Gama ordena o embarque sem despedida, para não fazer sofrer
quem ficasse e quem partisse:
Do propósito firme começado,
Determinei de assi nos embarcarmos,
Sem o despedimento costumado,
Que, posto que é de amor usança boa,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa.
(Lus, IV, 93).
É neste momento que o Velho do Restelo discursa na praia, um dos maiores símbolos
do Humanismo camoniano, representa a terceira figura:
Mas um velho d'aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
—"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
— "Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!
(Lus, IV, 94-96).
Enquanto Saraiva & Lopes consideram que ―Os Lusíadas exaltam uma expansão que,
na sua fase decisiva, foi conduzida em moldes monárquicos a favor da classe então dominante
137
e não pela concorrência capitalista privada,
Camões expressa fielmente a ideologia da
nobreza guerreira.‖ (p.352). Porém, a figura do Velho aparece para questionar tal ideologia:
Camões inventou esta personagem para emitir certas sentenças, para firmar certa
ideologia característica de sua formação humanista [...] O Velho do Restelo é o
próprio Camões erguendo-se acima do encadeamento histórico e medindo à luz dos
valores do humanismo europeu os acontecimentos por que se apaixona o vulgo e de
que ele mesmo se faz cantor. (BERARDINELLI apud Saraiva & Lopes, 2000, p.51)
Isto posto, percebemos que n‘ Os Lusíadas ―combinam-se ou coexistem ideologias e
ideários heterogêneos, além do sentimento da vida mais autêntico e mais congênito ao poeta‖,
observamos a confluência de ideais pessoais, coletivos, e até oficiais na partida dos lusos.
Segundo Saraiva & Lopes, o épico camoniano reforça a ―história de Portugal como uma
cruzada, iniciada por Afonso Henriques, que deveria servir de exemplo aos outros estados
cristãos , então em luta fratricida.‖(p. 348)
―C'um saber só de experiências feito‖ , o Velho demonstra o conflito de ideais e a
ambiguidade moral da situação das descobertas e da colonização, segundo afirma Silviano
Santiago:
À beira do cais, o Velho não embarca. Não age, fala. Reflete. Reflexão moral. Acha
inútil a busca do desconhecido, porque o desconhecido está na própria sociedade, só
não vê quem não quer; civilizar o outro é tarefa supérflua enquanto existem ―outros‖
(isto é, grupos marginalizados) que são oprimidos pela classe dominante, etc. Para
que sair, se os problemas de casa não foram ainda resolvidos, e são tantos.
(SANTIAGO, 1982,p.16)
A partir da ambiguidade ou ambivalência no discurso do Velho, é possível levantar a
discussão sobre política expansionista e destacar que muitos dos soldados que saíram ao mar,
eram os marginalizados em busca não apenas do heroísmo, mas de acumular alguma riqueza
que os retirasse da situação marginal, e no entendimento deles a solução estava fora e não
―dentro de casa‖. Por ser o personagem mais experimentado da narrativa, o Velho desvela os
malefícios da ideologia expansionista: a fama, a glória e a valentia podem ser lidas como
vaidade, cobiça e feridade. Teresa Cristina Cerdeira da Silva reflete sobre essas palavras:
Cobiça e tirania são assim as acusações que mais pesam sobre a atuação dos
portugueses nas terras conquistadas. A Cruzada religiosa estava há muito
desmascarada e percebia-se que a Fé nada mais era, retomando ainda o Velho do
Restelo, que um nome ―com que o povo néscio se engana‖.(SILVA, 1980, p.120)
138
Com o saber da autoridade, o Velho combate a empresa marítima. Ao ficar na praia
―entre as gentes‖, enaltece a condição humana de ser ―bicho da terra‖, tem um pé no passado
e outro no futuro no momento da partida para as Índias. Por sua importância no épico, é a
figura que melhor representa as contradições camonianas. Para continuar essa discussão,
retomamos a exposição realizada no Capítulo 3 a respeito das duas políticas de Portugal no
momento da viagem de Gama, segundo as reflexões de António Sérgio. Entre as políticas de
Fixação e a do Transporte, a figura do Velho ―divide os seus intérpretes entre considerá-lo
conservador ou apenas sensato‖, segundo Silveira. O Velho é contra a segunda política, a que
sobrepujava naquele momento e representava as tendências expansionistas ou universalistas
de D Henrique. O Velho do Restelo, com o saber da experiência, atenta para os exemplos de
Roma e Grécia, a alertar sobre fatos semelhantes ocorridos no passado. O Velho é como um
coro das tragédias antigas, fala à razão com o bom senso popular, a experiência da idade,
porém não é ouvido.
Jorge Fernandes da Silveira (2008), sobre a tese de Saraiva de que a contradição
central d‘Os Lusíadas está ―na dialética de síntese impossível entre a crença no ideal
cavalheiresco medieval de defesa dos valores cristãos, pregada na aristocracia rural
conservadora, e o elogio da ideia nova de progresso marítimo, propagada pela burguesia
mercantil‖ (p.20), afirma que o Velho é o ―Portugal ―infixado‖ no entrelugar.‖(p.106),
representando a ―infixidez das classes sociais‖ (p.111).
De acordo com a imagem do Velho do Restelo, percebemos que, no Canto III de
Muraida, importa observar maior semelhança entre o poema de Wilkens e a obra camoniana.
Quando o Mura jovem, já persuadido, começa a anunciar a mensagem que o mensageiro
celeste lenviou, o autor troca-lhe a voz e dá ao outro Mura, o Ancião, a oportunidade de se
pronunciar:
139
Atentos ouvem todos a resposta,
Ainda que estranha, sem maior reparo,
Pois a verdade bela nada oposta
É bárbara fereza ou peito avaro.
Mas, entre os anciões, um velho encosta
A ressecada mão, com gesto raro,
Na negra face adusta e enrugada,
Extremado responde, em voz irada.
Oh, dos teus poucos anos, louco efeito!
Da confiança vil, temeridade!
Que atenção nos merece ou que conceito,
Conselho que envilece a tua idade?
Queres que ao ferro, generoso peito,
Entregue o pai? Ou perca a liberdade,
A doce liberdade, o valoroso
Mura, em grilhão pesado e vergonhoso?
Já não lembra o agravo, a falsidade
Que contra nós os brancos maquinaram?
Os autores não foram da crueldade?
Eles, que aos infelizes a ensinaram?
Debaixo de pretextos de amizade,
Alguns matando, outros maniatando;
Levando-os para um triste cativeiro,
Sorte a mais infeliz, mal verdadeiro.
(Mur, III, 16-18)
De acordo com as estrofes acima, podemos observar que o Ancião faz uma denúncia
do simulacro colonizador e relembra um fato em que os Mura foram enganados pelos brancos.
Souza (1994) relata o que ocorreu, por volta de 1720, logo após a chegada dos Mura na região
de Autazes:
o padre João Sampaio, missionário jesuíta, conseguiu aproximar-se de uma maloca
mura e convenceu os índios a deixarem a floresta e virem morar na missão de Santo
Antonio, na boca do Madeira. Padre Sampaio prometeu ferramentas, roupas e
alimentos, se eles embarcassem imediatamente. Os Mura começaram os
preparativos para a mudança, quando apareceu um colono português que se, dizendo
emissário do padre Sampaio, convenceu os índios a embarcarem num bergatim,
aprisionando-os e seguindo para Belém, onde os vendeu como escravos. (SOUZA,
1944, p.59)
Tal fato passou a ser conhecido por outros Mura e acarretou o ―ódio estranhável aos
brancos‖. Depois deste fato, os Mura destruíram a colônia portuguesa que existia na boca do
rio Madeira. Vale lembrar que, antes desse episódio, os Mura não enfrentavam diretamente
os portugueses, apenas evitavam o contato. Porém, após o engano causado pelo homem
branco, ocorreram várias lutas sangrentas.
140
É importante mencionar como a descrição do velho ―A ressecada mão, com gesto
raro/ Na negra face adusta e enrugada‖ remete não apenas à identificação de sua idade
avançada, mas a ―negra face enrugada‖ reflete o ambiente em que está inserido e a situação
que lhe é imposta ─ a de pagão e dominado. A negra face também pode ser lida em oposição
à Luz do homem branco. Segundo Homi Babha (1998,p.201), a ―pele‖ no discurso racista é a
visibilidade da escuridão e um significante fundamental do corpo e de suas correlativas
sociais e culturais. Dessa forma, o discurso que reforça o estereótipo do Ancião, difere-o da
imagem do Velho do Restelo, ―de aspeito venerando‖ ─ aquele que é respeitável.
O ancião de Wilkens alude à terceira figura da obra camoniana, o Velho do Restelo. Um
homem comum, homem do povo, sábio, que estava na praia no meio da multidão durante a
despedida da expedição, olhou para os marinheiros que já estavam no mar, e fez um discurso
inspirado pela experiência, conforme citamos anteriormente. Comparemos:
Argumento
Do Céu o Murificado Mensageiro,
Prossegue a persuadir ao Mura atento,
Do Imaripi, que busque o verdadeiro
Desengano, e Ventura do portento.
Já convencido o Bárbaro primeiro,
Aos Companheiros patenteia o intento:
Mas um Ancião repulsa encontra irada,
Que em sucessos passados é fundada.
(Mur, III, 1)
As figuras apresentadas, nos dois épicos, aludem à imagem daquele que já viveu
bastante e traz consigo o saber das experiências da vida. Wilkens, no entanto, mostra que o
difere da imagem do Velho do Restelo, de ―aspeito venerando‖, aquele que é respeitável.
Porém, tanto um quanto outro reprovam os empreendimentos, com ―voz pesada‖ / ―voz
irada‖, mas apesar dos discursos que confrontam a ambição dos ideais portugueses, tanto n‘Os
Lusíadas quanto em Muraida, Vasco da Gama nem tampouco o Mura Jovem desistem de seus
objetivos.
141
No épico camoniano, observamos os portugueses a caminho da glória e o discurso
ambivalente do Velho, com a retórica e a oratória que ora trabalha a favor dos interesses
portugueses e ora os critica. Nesse sentido, Camões nos apresenta o homem como:
um "bicho da terra tão pequeno" , como alguém que melhor seria que não tivesse
sido tocado pelo "fogo de altos desejos"? Sim, esta é uma das faces do que Eduardo
Lourenço chama de verdadeira máquina de guerra discursiva, que é o poema épico
Os Lusíadas. De fato, no episódio do Velho do Restelo, Camões mostra-nos que por
trás da Glória e da Fama soberanas está a barbárie e a violência de um Estado
constituído do modo como o concebemos modernamente, como um exército
militante, com instâncias de poder e com discursos capazes de regular a exclusão do
outro tanto sob a forma do assassinato, da eliminação radical, quanto sob o manto da
retórica. Camões nos mostra a barbárie. E é no mesmo episódio que vamos
encontrar o desejo capaz de criar o novo, capaz de fazer o que até então não tinha
sido feito e de inventar o que até então não era conhecido. Só que o Velho do
Restelo identifica a violência humana com este desejo, aponta o desejo como causa
da violência.(DAVID, 2002, p.2)
Neste sentido, o Velho Mura é aquele que aparece para chamar à razão e lembrar da
relação de subalternidade dos Mura em relação aos brancos. Porém, apesar de receber a voz
neste momento da Narrativa e denunciar a traição e violência dos brancos em relação aos
indígenas, o Ancião não é ouvido. O discurso do Mura Jovem vence e o Ancião se retira em
direção à floresta:
Assim falando o velho se levanta;
O lento passo ao bosque encaminhando.
Mas o orador de nada já se espanta,
Pois tal oposição estava esperando:
E como nele obrava força santa
De um Deus, que o mesmo esforço ia aumentando;
Nos bárbaros infunde um tal conceito,
Que a preferência alcança, co‘o respeito.
(Mur, III, 21, grifos nossos)
Após a saída do Ancião, o Mura Jovem atinge seu objetivo e vence o discurso de
oposição. Ele consegue convencer os outros Mura por obra da ―força santa‖. Após este
episódio, observamos, no canto IV, a chegada de membros dessa etnia em Santo Antonio de
Imaripi, conforme nos mostra o Argumento inicial:
A oposição se vence, e tudo parte;
No Imaripi, com pasmo, é recebido.
Mimo, agasalho encontra; ali reparte
Presentes preparados; persuadido
142
Por Fernandes honrado, que se aparte
Do paganismo e bosques; precedido
Pelo Anjo, por Fernandes é levado
A Tefé, onde ao chefe é apresentado.
(Mur, IV)
Neste local, os Mura são recebidos com surpresa e passam a ser guiados por Mathias
Fernandes, diretor da aldeia. Então, percebemos que o Mura Jovem aceitou o discurso da
colonização e catequização, opondo-se às palavras do Ancião. A partir deste Canto, o
―bárbaro‖ Mura começa a se distanciar da gentilidade e da ―escuridão‖ dos bosques.
Ao narrar a chegada dos Mura a Santo Antonio de Imaripi, Wilkens remete à parábola
do filho Pródigo:
[...] Dali o parente, aqui o filho perdido,
Ao pai; a irmãos; a amigos encontrando,
Com lágrimas o peito ia banhando‖
(Mur, IV, 9).
De acordo com a parábola bíblica, o filho que havia se perdido e desperdiçado a vida
sem sabedoria, retorna e é recebido pelo pai com compaixão e presentes. Desta
forma,
observamos o Mura narrado como o filho que retorna à casa do pai celestial, abrindo mão da
gentilidade. No final do Canto IV, ao chegar ao Quartel de Ega, o tenente General Coronel
João Batista Martel os recebe ―nos braços‖:
Assim, de um filho ausência lamentando
Pai amoroso, a vê-lo quando chega,
Nos braços recebendo, palpitando
O peito, a voz intercadente nega
Palavra articular, e se arrasando
De lágrimas os olhos, só lhe rega
A amada face, em que retrata o gosto,
De idêntico motivo, efeito oposto.
(Mur, IV, 23, grifos nossos)
De acordo com esses acontecimentos, os Mura passariam a reconhecer o Deus católico
como único e soberano e viveriam a partir dali segundo os preceitos da fé católica. As
passagens bíblicas, analisadas no Capítulo 1 da tese de Caldas (2007), reforçam o caráter
cristão não apenas da obra, mas como legitimação do ideal de cristianização português.
143
No Canto V, encontramos o enaltecimento do ―Deus verdadeiro‖, o grande
―responsável‖ pelo sucesso da ―pacificação‖:
Tu foste que o feroz, bárbaro peito,
Do indômito Mura mitigando,
Tão dócil, tão contente e satisfeito,
Fizeste à sociedade se ir chegando.
Dos que te amando com o maior respeito,
A vítima nas aras imolando,
Propiciatório tem no medianeiro,
Paz, alimento, Pai, Deus verdadeiro.
(Mur, V, 3, grifos nossos)
Se antes eram comparados a ―aves de rapina‖, pela destreza em atacar, a partir deste
momento, o Poeta os compara a bandos de aves que deixam seus ninhos para levar a ―boa
nova‖. E Mathias Fernandes prepara o assentamento dos Mura no lago Amaná:
Enquanto de enviados o destino
Os Muras deputados vão seguindo;
Se cuida o bom Fernandes no interino
Reparo da Colônia, repartindo
O corte das madeiras, do inquilino
Mura ajudado, e de índios se servindo
Do mesmo povo seu, com tal presteza,
Que inveja causa à arte, à natureza.
Não lhe esquece o preciso, útil cuidado
De prover à futura subsistência;
Em grande roça tendo antecipado
Meio seguro, certa providência.
Maniva, milho, frutas já plantados
O Mura vê na nova residência;
Esteios uns levantam; outros palha
Conduzem, tecem, tudo, enfim, trabalha
(Mur, V, 15-16, grifos nossos)
A partir da leitura dos versos acima, percebemos que os Mura passam a seguir uma
nova concepção de vida social, com assentamento fixo e abandono da vida nômade e errante.
O ponto a ser destacado é a forma de trabalho, organizada de acordo com o padrão do
colonizador, demonstrando a recuperação pelo trabalho e a ―aceitação‖ de um novo modelo.
Qual de oficiosa abelha o numeroso
Bando, saindo da colmeia antiga,
Se reparte no prado, o proveitoso
Orvalho e suco ajunta com que liga
O misto, que compõem mel saboroso;
144
Enquanto anterior colheita abriga,
Nos celeiros reparte e na oficina
A abelha, que caseira se destina.
(Mur, V, 19)
Ao utilizar a imagem da abelha, Wilkens recorre a um modelo de labor e organização.
A abelha também pode ser lida como símbolo das massas submetidas à inexorabilidade do
destino que as acorrenta ou como símbolo de ressurreição e espiritualidade alcançada.
Finalmente, no Canto VI, o épico apresenta que, mesmo após a ―pacificação‖ e a
―vassalagem‖, os Mura tinham a liberdade de saírem dos aldeamento, para cumprir os
interesses da fé e adquirir novas vantagens, conforme os versos abaixo:
Já o anjo tutelar reconduzindo
Os Muras viajantes vai contente;
Preenche o ministério, e difundindo
Nos peitos vai ideias convincentes,
De quando lhes convem, que reunindo
Os bandos e malocas diferentes
Na Fé, nos interesses, vassalagem,
Tenham desta união toda a vantagem.
(Mur, VI, 3)
Retomamos o Epílogo para reafirmar a vitória do discurso do colonizador. O ―Anjo‖ é
o ―responsável‖ pela paz e por afastar os Mura das trevas. A cena do batismo é a consagração
da fé:
No templo de Maria renascidos,
Na Graça batismal, os inocentes
Vinte infantes; alegres conduzidos
Pelos bárbaros pais foram contentes.
Na fé de mais progressos despedidos,
Se ausentam cumulados de presentes,
Penhor levando da felicidade,
Em cada filho, de anjo, a qualidade.
(Mur, VI, 21)
João Batista Martel apadrinha os vinte infantes e o batismo é realizado pelo Frei
Carmelita José de Santa Tereza Neves em 9 de junho de 1785. Assim, o batismo representa a
a aceitação da fé católica e a salvação. Seriam os vencedores aqueles que atingem a ―Graça‖
através do batismo ou aqueles que dominam através do discurso cristão?
145
Na ultima estrofe do épico, estão expostos os objetivos da colonização portuguesa, no
que diz respeito à aceitação do catolicismo e os objetivos econômicos:
Sobre os princípios tais, tal esperança
Fundamenta a razão todo o discurso;
Em Deus se emprega toda a confiança;
Pende do Seu poder todo o recurso;
Os frutos já se colhem da Aliança,
Apesar dos acasos no concurso.
Sempre os progressos a cantar disposto,
Aqui suspenso a voz, a lira encosto.
(Mur, VI, 23, grifos nossos)
Assim, o Epílogo reitera a intenção do poeta em demonstrar a vitória da pacificação,
apesar dos conflitos existentes com a etnia em outras localidades da Amazônia, conforme já
dissemos. O eufemismo utilizado sobre a resistência Mura ―Apesar dos acasos no concurso‖
revela a ocultação da barbárie no texto poético, dando a entender que a resistência foi um
problema pequeno a enfrentar.
O triunfo da fé torna-se o troféu dos portugueses, pois, ao vencer inimigos tão fortes e
terríveis, o mérito da vitória tornava-se ainda maior. Ultrapassada a resistência, a vitória
através da ―Aliança‖ já colhe os frutos, apesar de sabermos que, historicamente, esses
conflitos não se extinguiram nesse período. Após o objetivo alcançado, o Poeta encosta a lira
e cessa o Canto com a certeza da missão cumprida.
146
CONSIDERAÇÃOES FINAIS
ou
Muraida: Entre as duas margens do cânone, “a terceira margem do rio”
Ao longo desta pesquisa de doutoramento, desenvolvida na Universidade Federal do
Rio de Janeiro, e que ora aqui se interrompe, demonstramos que o épico Muraida de Henrique
João Wilkens enaltece o contexto colonial e levanta a discussão sobre os textos produzidos
durante esse período e que não receberam a devida atenção e recepção. Através da leitura do
épico, temos acesso ao cenário amazônico, amplamente conhecido no cenário mundial por sua
riqueza e exuberância, mas ainda pouco conhecido em seus aspectos políticos e ideológicos.
A etnia Mura, dizimada em milhares de seus representantes desde o início da empresa
colonizadora portuguesa com o aval das ―guerras justas‖, foi considerada irreconciliável e tornouse oponente dos colonos portugueses tanto no discurso histórico quanto no discurso ficcional,
através dos versos de Muraida. Ao percebemos uma insistente denominação aos indígenas da
nação Mura como ferozes, cruéis e abomináveis, assistimos à construção de um estereótipo
que persegue essa etnia até os dias atuais. Em contrapartida, o historiador Francisco Jorge dos
Santos os denominou como admiráveis, ―ao reconstituir algo da crônica de uma etnopolítica
desse povo‖ e ao representar a mais forte resistência indígena contra o expansionismo
português na Amazônia. Nesse sentido, o Mura torna-se o ―Mura Agigantado‖ e de forma
difusa e estratégica consegue por longos anos impedir que os portugueses efetivem o projeto
colonizador pombalino com eficácia. À semelhança do épico camoniano, estabelecemos uma
comparação entre a figura do ―Mura Agigantado‖ e a do Gigante Adamastor, ambos vencidos
pelo discurso e pela barbárie do colonizador.
A versão do colonizador nos foi amplamente transmitida e divulgada pelos meios
oficiais. Interessou-nos investigar, através dos teórico-críticos e por documentos ―esquecidos‖
147
ou pouco conhecidos, os detalhes do amplo processo de genocídio que foi encetado contra
essa etnia. O historiador Francisco Jorge dos Santos denuncia que não houve passividade na
construção da história da Amazônia.
Através da intervenção divina e da pacificação, lemos nos versos do épico que alguns
representantes da etnia Mura passam a ser dóceis e amigos dos colonos, demonstrando como a
imposição da fé cristã foi capaz de assassinar culturalmente tantas etnias amazônicas. Muraida é
representação apenas de uma entre tantas outras etnias que foram subjugadas em prol da política
expansionista portuguesa. Estabelecendo um contraponto entre o episódio do Velho do Restelo
camoniano e a figura do Ancião Mura, observamos que, apesar desses personagens exercerem o
direito da fala, ambos não são ouvidos. O Ancião Mura retira-se para a floresta e o discurso do
Mura Jovem, persuadido pelo Anjo celeste, vence. Em consequência, alguns membros dessa etnia
são pacificados. Apesar de sabermos que, historicamente, apenas vinte representantes da etnia
foram batizados, sabemos que a vitória cantada no poema foi obtida por meios tortuosos ao longo
das décadas seguintes, numa luta semelhante à efetuada contra os Mouros séculos antes.
Muraida foi escrito por um militar em viagem pela colônia do Grão-Pará e Maranhão,
em missão ordenada pela Coroa Portuguesa. Através das poucas referências biográficas sobre
o poeta soldado, percebemos que o militar viveu na Amazônia por mais de cinquenta anos e
em todos os registros estava cumprindo as ordens de seus superiores em prol da política de
expansão portuguesa. Nesse sentido, enquadramos Muraida no rol dos textos da literatura
produzida por viajantes.
Ao refletir sobre a pluralidade dos textos sobre viagens no Capítulo 3, verificamos que
eles constituem um corpus híbrido e agrupam diferentes gêneros. Observamos que, na mesma
medida em que se revela uma falta de homogeneidade no formato dos textos, há uma unidade
temática no que diz respeito à constante reafirmação da ideologia expansionista europeia. É
esse o ponto que nos interessa. É ele que nos faz defender Muraida como um texto que deve
148
ser reconhecido na tradição de viagens portuguesas para a Amazônia. Uma tradição que, em
nome dos pressupostos expansionistas de Portugal, deixou à margem textos sobre as missões
de fixação portuguesa na Amazônia e deixou no esquecimento os viajantes que se propuseram
a desbravar esse espaço. Muraida ficou ―esquecida‖ durante mais de um século e meio.
Apenas em meados do século XX é que houve a iniciativa de divulgação do poema e sua
edição brasileira data de 1993. Nesse sentido, Muraida deve ser vista como um texto de
dicção portuguesa, sem a merecida atenção à produção realizada pelos viajantes que estiveram
na Amazônia durante o período colonial.
Ao longo da pesquisa, percebemos a dificuldade de discutir o processo de formação de
um cânone e compreender os critérios que justificam a sua formação e, logo, o que determina
a inclusão ou a exclusão de determinados textos. Ao ler Muraida e desejar conhecer um
mundo novo, repleto de significados de investigação, vimos o quão complexa é a tarefa de
falar sobre a Amazônia e sobre um período em que a consciência do respeito à cultura do
Outro não existia. Por esses caminhos percorridos, foi possível analisar a condição do viajante
que, ao representar a institucionalidade (a oficialidade) portuguesa, representou o discurso
colonial da fixidez, como disse Bhabha.
Fazer uma revisão da História a contrapelo e buscar o testemunho dos vencidos,
conforme a tese de Benjamin, não é tarefa confortável, pois somos obrigados a encarar a
origem da barbárie no cerne da civilização Ocidental. O espaço da floresta representado no
épico não era, naquele momento, nem brasileiro, nem lusitano, era um espaço desconhecido
em cujo palco se encenou a barbárie da colonização europeia, pois assim como a cultura não é
isenta de barbárie, não é, tampouco, o seu processo de transmissão.
O estudo do épico Muraida revelou a dificuldade ainda atual de aceitação e de
construção de um convívio pacífico entre povos de diferentes culturas e origens desde os
primórdios da colonização portuguesa, somada às dificuldades de colonização de um território
149
de dimensões continentais que sempre foi cobiçado internacionalmente pela imensidão do
território que constitui a Amazônia.
Como a conquista do império português permaneceu nos textos literários? A
focalização das tensões e convergências entre Muraida e Os Lusíadas que pudemos observar
o choque entre as culturas, a experiência portuguesa no embate com o desconhecido, com o
infiel, ora pelos mares que os levaram às Índias, ora pelos rios amazônicos.
Ao repensar a tradição de Viagens, surgiu o interesse em viajar por esses rios ainda tão
pouco conhecidos por quem valoriza apenas o canônico. Ao refletir sobre as palavras de
Antonio Candido, Pascale Casanova, Eduardo Portela e Benedict Anderson, revisitamos o
conceito de nacionalidade e buscamos refletir, sobretudo, sobre o fato de não haver naquele
momento um sistema literário estabelecido na colônia portuguesa do Grão-Pará e Maranhão
que o identificasse com a ideia de nação brasileira. Muraida é a representação da/na
Amazônia do imaginário português sobre a terra recém- desbravada, por meio da conquista e
expansão de territórios ultramarinos em nome da Coroa Portuguesa.
Tais fatos não desmerecem a obra de Wilkens como um texto que dá notícia da terra,
pela voz do colonizador, de fato. Porém, não podemos afirmar que seja um texto de formação
de uma nacionalidade brasileira no sentido em que observamos a ideologia do colonizador em
cada verso do épico. Da mesma forma, a opção por uma só etnia, por um lado, revela o
escopo limitado da obra e, por outro lado, acentua a dificuldade de abarcar a complexidade
das diversas culturas amazônicas. A discussão sobre nacionalidade é bastante posterior à
Muraida, além disso, o território do qual falamos é muito longe, geográfica e culturalmente,
do eixo cultural que determina o cânone.
A ―voz‖ e o ―olhar‖ que conduzem a leitura do poema são da ideologia portuguesa
expansionista e mercantilista, cuja colônia servia apenas de fonte de enriquecimento da
Coroa. Portanto, Muraida é de fato um texto que reafirma a soberania lusitana e a identidade
150
portuguesa, que se construiu majoritariamente a partir da sua política de expansão através das
viagens e tem como seu maior representante o épico camoniano.
É desse mundo visto com espanto, cobiça e perplexidade pelo europeu que surge
uma literatura fronteiriça, marginal, apesar de ser produzida por quem está no centro do poder
─ Próspero. Uma literatura que fala da terra do Outro, mas com a perspectiva de quem chega,
do estrangeiro. Como era de se esperar, o olhar do viajante revela seus valores, pressupostos e
preconceitos. As missões oficiais defendiam o Império Português, essa era a voz que falava
mais alto. Nessas missões, padres, militares, juristas e todos os outros membros que as
compunham representam a coletividade dominadora.
Muraida é imprescindível para conhecer as entranhas do colonialismo português
contra os povos indígenas, pois exalta o poderio militar e faz refletir sobre a resistência Mura,
pois, se por um lado, há a empreitada colonizadora, por outro, não há como esconder a
bravura e a capacidade político-organizacional dos Mura.
Isto posto, faz-se necessária a revisão crítica do cânone sobre as Viagens de forma a
incluir a tradição de viagens portuguesa para a Amazônia, pois concluímos que a
historiografia literária portuguesa não valorizou a literatura dos viajantes e que a relação de
Portugal com a produção literária sobre a Amazônia colonial não foi desenvolvida a contento.
De outro modo, teríamos outra forma de contar a história da literatura portuguesa.
Como já dissemos, o cânone tradicional é excludente e não privilegia a produção e o
conhecimento gerados por tantos viajantes que escreveram sobre a Amazônia. Ou seja,
defendemos a criação de uma crítica ao cânone que faça pensar o motivo da exclusão de obras
como Muraida.
Questionamos se alguns capítulos dessa historiografia foram apenas
ignorados ou foram silenciados? Nossa intenção é manter a discussão viva e avançar nos
estudos sobre a presença portuguesa na Amazônia.
151
Por esses motivos expostos, defendemos que Muraida é produto do olhar do
estrangeiro sobre o imaginário acerca da Amazônia, mas não sustenta ainda um ideário da
nação explorada e nem consegue entender o indígena como um ser dotado de cultura e
merecedor de respeito. Mesmo que pretensamente o Poeta ceda a voz ao colonizado,
conforme ocorre no episódio do Ancião, a ideologia que triunfa é a do colonizador e sua visão
estereotipada sobre o indígena. Todo o discurso está intimamente ligado aos interesses da
Coroa Portuguesa e de seu projeto colonizador de exploração da colônia e dominação do
indígena
Finalmente, fazemos uma referência à ―terceira margem‖ mencionada no título destas
considerações finais, pois a análise que propomos não é dual, não está entre os extremos do
Bem e do Mal do Ocidente como mito de fundação civilizacional. Buscamos uma revisão
crítica que possa levar em consideração a complexidade de fatores existentes e abarcar a
complexidade de variantes da questão indígena, que possa observar como o regional pode
estar em diálogo e fortalecer o universal, conforme Pascale Casanova.
Para finalizar, gostaríamos de comentar o quão desafiador e instigante foi pesquisar
sobre Muraida e aprofundar os conhecimentos sobre a etnia Mura. Percorrer esses caminhos
pouco conhecidos possibilitaram amadurecimento intelectual e nos fizeram perceber como
ainda são pouco explorados os textos sobre a Amazônia. Parece-nos que esta reflexão está
presente no poema de Robert Frost, ―The Road not taken‖, que espelha a opção do sujeito
pela ―estrada menos viajada‖:
The road not taken
Two roads diverged in a yellow wood,
And sorry I could not travel both
And be one traveler, long I stood
And looked down one as far as I could
To where it bent in the undergrowth;
Then took the other, as just as fair,
152
And having perhaps the better claim,
Because it was grassy and wanted wear;
Though as for that the passing there
Had worn them really about the same,
And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black.
Oh, I kept the first for another day!
Yet knowing how way leads on to way,
I doubted if I should ever come back.
I shall be telling this with a sigh
Somewhere ages and ages hence:
Two roads diverged in a wood, and I-I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.
153
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Muraida A tradição literária de viagens em questão