1 Muraida A tradição literária de viagens em questão Por Veronica Prudente Costa Aluna do Curso de Doutorado em Letras Vernáculas (Programa de Literaturas Portuguesa e Africanas) Tese de doutorado apresentada à Banca Examinadora de defesa do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito à obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas) Orientador: Professor Dr. Jorge Fernandes da Silveira. Rio de Janeiro, 2013 2 COSTA, Veronica Prudente Muraida: A tradição literária de viagens em questão./ Veronica Prudente Costa. Rio de Janeiro, 2013 Tese de Doutorado em Letras Vernáculas Universidade Federal do Rio de Janeiro – Faculdade de Letras. 2013. 158p. Orientador: Professor Doutor Jorge Fernandes da Silveira 1.Literatura Portuguesa 2.Século XVIII - crítica 3.Henrique João Wilkens. I. SILVEIRA, Jorge Fernandes da (orientador) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Letras III. Título 3 COSTA, Veronica Prudente. Muraida: A tradição literária de viagens em questão. Tese de Doutorado em Letras Vernáculas. Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. BANCA EXAMINADORA ______________________________________________________________ Prof Dr Jorge Fernandes da Silveira UFRJ (Orientador) _____________________________________________________________ Profª Drª Camila do Valle Fernandes UFRRJ _____________________________________________________________ Profª Drª Cátia Monteiro Wankler UFRR ____________________________________________________________ Profª Drª Ângela Beatriz de Carvalho Faria UFRJ ____________________________________________________________ Profª Drª Luci Ruas Pereira UFRJ ___________________________________________________________ Profª Drª Sofia de Sousa Silva UFRJ (Suplente) ____________________________________________________________ Profª Drª. Cláudia Maria de Souza Amorim UERJ (Suplente) Tese defendida em 21 de março de 2014. 4 Agradeço sinceramente: A Deus, por me conceder saúde para lutar todos os dias. Ao meu orientador, Jorge Fernandes da Silveira, por toda paciência e dedicação em corrigir meus erros e apontar novos caminhos. Aos membros da banca examinadora: Camila do Valle Fernandes, Cátia Monteiro Wankler, Luci Ruas Pereira e Ângela Beatriz de Carvalho Faria, pela atenção e disponibilidade em participar deste momento tão importante para mim. À Universidade do Estado do Amazonas, em cuja experiência docente pude amadurecer como profissional e como ser humano diante dos novos desafios. À Marinha do Brasil, por ter me possibilitado cursar as disciplinas do doutoramento no ano de 2010. Aos professores Sérgio Nazar David e Cláudia Amorim, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, minha primeira casa acadêmica. Vocês despertaram em mim o desejo de alçar voos na Literatura. À minha sogra Jacira dos Santos, por me conceder moradia e atenção nos últimos meses da tese no Rio de Janeiro. Aos meus alunos, de ontem e de hoje, por serem o estímulo e a alegria de querer ir mais além. Em especial Débora de Lima Santos e Robervânia Castro de Oliveira por terem me acompanhado nas pesquisas sobre Muraida. À Amazônia, minha nova casa desde 2011, e aos povos da floresta. À Literatura, que me dá o pão e me inspira a conhecer mais o sabor da vida através da aventura do saber. 5 Dedico: À memória de meu pai, João de Deus, que desde cedo me ensinou a dor e a alegria de ter objetivos na vida. Aos meus amigos que por laços de sangue ou de afeto fazem parte da minha caminhada para sempre, mesmo estando distantes: Alessandra Gomes Monteiro, Aline Ripardo, Cristiane Oliveira, Lívia Alexandra Morais, Marcelo Silva da Costa, Marcia Cristina Martins Ferreira e Margarete Baptista Dias. 6 Ofereço: À minha família, por apoiar minhas escolhas, ir morar comigo no Amazonas, compreender minhas ausências e ser meu porto seguro e base sólida para que eu pudesse cumprir esse desafio e tantos outros... Minha mãe Vera Prudente: minha base, minha amiga. Meu segundo pai Nelson Javier: meu amigo Meu amor Renato Silva de Almeida: companheiro, cúmplice, amigo, amado e amante sempre... Minha filha, Manuella, pedaço de mim que fica, razão de tudo, mesmo sem entender ainda o que é tese e reclamar a minha ausência. 7 SINOPSE Militar português Henrique João Wilkens, a serviço da Coroa portuguesa nas Comissões de Demarcação dos Limites nos ―sertões‖ amazônicos. Reconciliação e pacificação da Grande, e feróz Nação do Gentio Muhúra. Etnia Mura, qualificada como ―abominável‖, ―feroz‖ e ―indomável‖ é o objeto do ―triunfo da fé‖ celebrado no poema de Wilkens. Contraponto entre o colonizador e o colonizado, privilegiando a imagem construída sobre o índio Mura, a partir do olhar do colonizador e a construção imagística que o colonizador fez sobre a Amazônia. A literatura de viajantes e o diálogo com a obra Os Lusíadas. 8 COSTA, Veronica Prudente. Muraida: A tradição literária de viagens em questão. Tese de Doutorado em Letras Vernáculas. Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2013, 158p. RESUMO Em 1785, o militar português Henrique João Wilkens, que estava a serviço da Coroa portuguesa nas Comissões de Demarcação dos Limites nos ―sertões‖ amazônicos, escreve o poema Muhuraida ou Triumpho da fé na bem fundada Esperança da enteira Conversão, e reconciliação da Grande, e feróz Nação do Gentio Muhúra, no quartel da Vila de Ega, atual cidade de Tefé- AM. Muraida é o primeiro texto poético, com estrutura épica, escrito em Língua Portuguesa, sobre um tema relativo ao território que hoje se configura como amazônico, e através desse épico podemos vislumbrar uma das faces dessa empreitada colonial. A etnia Mura, qualificada como ―abominável‖, ―feroz‖ e ―indomável‖ é o objeto do ―triunfo da fé‖ celebrado no poema de Wilkens. Privilegiando as ideias de Eduardo Lourenço sobre a colonização portuguesa no Ocidente, estabelecemos um contraponto entre o colonizador e o colonizado, privilegiando a imagem construída sobre o índio Mura, a partir do olhar do colonizador e a construção imagística que o colonizador fez sobre a Amazônia. Discutimos o conceito de literatura de viagens e levantamos a hipótese de que Muraida pode ser inserida nesta vertente do cânone lusitano, a partir das tensões, convergências e divergências entre este épico e o mais importante texto de viagens da Literatura Portuguesa, Os Lusíadas, de Camões. A partir dessa leitura comparada e das tensões analisadas, defendemos que Muraida, assim como Os Lusíadas, configura-se como o olhar e a voz do colonizador, ainda que pretensamente desenvolva perspectivas da voz do Outro. Palavras-chave: 1. Muraida; 2. Os Lusíadas; 3. Colonização Portuguesa; 4. Amazônia; 5. Literatura de Viajantes 9 COSTA, Veronica Prudente. Muraida: A tradição literária de viagens em questão. Tese de Doutorado em Letras Vernáculas. Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2013, 158 p. ABSTRACT In 1785, the Portuguese military Henrique João Wilkens ,Who was in the service of the Portuguese Crown in Commissions Demarcation of Boundaries in the "hinterlands" AmazonwritesMuhuraida ou Triumpho da fé na bem fundada Esperança da enteira Conversão, e reconciliação da Grande, e feróz Nação do Gentio Muhúra, in the barracks of Ega village, current Tefé -AM . Muraida is the first poetic text with epic structure written in Portuguese Language, on a topic on the territory that today is configured as Amazon, and through this epic we glimpse one of the faces of this colonial venture. The Mura ethnicity , qualified as "disgusting" , " fierce " and " indomitable " is the object of the "Triumph of Faith " celebrated in the poem Wilkens. Favoring the ideas of Eduardo Lourenço on the Portuguese colonization in the West , we establish a counterpoint between colonizer and the colonized, privileging the image built on the Indian Mura, from the colonizer perspective and the colonizer imagistic construction about Amazon. We discuss the concept of travel literature and hypothesized that Muraida can be inserted into this aspect in the Portuguese canon, from the tensions and disagreements between this epic and the most important text of Portuguese Travel Literature , The Lusiads byCamões . From this compared reading and analyzed strains, we argue that Muraida , as well as The Lusiads, is told through the colonizer‘s look and voice, although allegedly develop perspectives of one's voice . Key words: 1. Muraida; 2. The Lusiads; 3. Portuguese colonization; 4. Amazon; 5.Traveler Literature 10 COSTA, Veronica Prudente. Muraida: A tradição literária de viagens em questão. Tese de Doutorado em Letras Vernáculas. Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2013,158 p. ABSTRACTO En 1785, el militar portugués Henrique João Wilkens, quien estaba al servicio de la Corona Portuguesa en las comisiones de demarcación de límites en las "zonas de influencia " en Amazon, escribe Muhuraida ou Triumpho da fé na bem fundada Esperança da enteira Conversão, e reconciliação da Grande, e feróz Nação do Gentio Muhúra, en el cuartel de la localidad de Ega, actual Tefé -AM. Muraida es el primer texto poético, con la estructura épica, escrita en portugués, en un tema en el territorio que hoy se configura como Amazon, ya través de esta epopeya que entrever una de las caras de esta aventura colonial. El étnico Mura, calificado como " repugnante", "feroz " y "indomable" es el objeto del "Triunfo de la Fe" celebrado en el poema Wilkens. Favorecer las ideas de Eduardo Lourenço en la colonización portuguesa en el oeste, establecer un contrapunto entre el colonizador y el colonizado, privilegiando construido sobre la imagen del Indio Mura, desde la mirada del colonizador y la construcción imagistica hecho en Amazon. Se discute el concepto de la Literatura de Viajes y la hipótesis de que Muraida se puede insertar en este aspecto del canon portugués, de las tensiones y desacuerdos entre esta epopeya y el texto más importante de la Literatura de Viajes portuguesa, Os Lusíadas, de Camões . De esta lectura comparada y las cepas analizadas, sostenemos que Muraida , así como Os Lusíadas , tiene la forma de la mirada y la voz del colonizador, aunque supuestamente desarrollar perspectivas de la voz de uno . Palabras- clave: 1. Muraida; 2. The Lusiads; 3. Colonización Portuguesa;4. Amazon; 5. La Literatura del Viajeros 11 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 14 2. A CHEGADA DOS EUROPEUS NA AMAZÔNIA: A DESCOBERTA DO “OUTRO”........................................................................................................................... 26 2.1. A empreitada colonizadora, a resistência Mura e a conversão imposta ............ 30 2.2. A discussão sobre o cânone................................................................................ 53 3. SOBRE A LITERATURA DE VIAGENS E VIAJANTES .................................... 65 3.1. Sobre Viagens..................................................................................................... 65 3.2. Sobre Viajantes.................................................................................................... 72 3.3. Os viajantes na Amazônia.................................................................................... 78 3.4. Wilkens: viajante, militar e poeta........................................................................ 92 4. MURAIDA E SEUS (DES) ENCONTROS COM OS LUSÍADAS ............................ 101 4.1. Entre a Índia e a Amazônia................................................................................. 101 4.2. A estrutura camoniana em Muraida.................................................................... 105 4.3. Muraida e Os Lusíadas: Duas viagens, duas conquistas..................................... 115 4.4. O Mura Agigantado e o Gigante Adamastor....................................................... 124 4.5 O Velho do Restelo e o Velho Mura .................................................................... 135 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS OU Muraida: Entre As Duas Margens Do Cânone, “A Terceira Margem Do Rio”...................................................................................................................................... 146 6. REFERÊNCIAS ………………………......................................................................... 153 12 O wonder! How many goodly creatures are there here! How beauteous mankind is! O brave new world That has such people in it! (William Shakespeare, The Tempest) 13 Uma homenagem aos povos da floresta: Manôa A ambição cruzou o mar Trazida pelo invasor A Espanha veio explorar Pilhar e semear a dor Amazônia Terra Santa Dos igarapés, mananciais Alimenta o corpo, equilibra a alma Transmite a paz Brilhou o Eldorado no coração da mata as guerreiras Belezas naturais, riquezas minerais O reino de Tupã ergue a bandeira Êh! Manôa Minha canoa vai cruzar o Rio Mar Verde paraíso é onde Iara me seduz com seu cantar Força, mistério e magia Fruto da energia o meu guaraná A lágrima que o trovão derramou A terra guardou semente no olhar Maués, Anauê, cultura milenar Anauê, Manaus, Mamirauá Viva a Paris Tropical Água que lava minh´alma Ao matar a sede da população Caboclo ê a homenagem hoje é A todo povo da floresta um canto de fé Se Deus me deu vou preservar Meus filhos vão se orgulhar A Amazônia é Brasil, é luz do criador Avante com a tribo Beija-Flor Cláudio Russo, Zé Luiz, Marquinhos, Jessi e Leleco 14 1. INTRODUÇÃO Na Dissertação de Mestrado discutimos a volta dos ―retornados‖ à casa portuguesa,1 após a independência das colônias em África. Na obra Fado Alexandrino, de António Lobo Antunes, a pátria tem de configurar-se com uma nova ordem social e com o retorno fracassado da colonização em África. Observamos uma problemática subjetividade em face de outro Portugal que se impunha como única opção para esses indivíduos descentrados e desterritorializados. Focalizamos a experiência colonial a partir da leitura da obra, cujo espaço imaginário evocado é o de África e analisamos o caminho de volta e o enfrentamento de um sujeito, perdido em si mesmo, pois o próprio sujeito era o outro de si mesmo, como se fosse um outro desconhecido, diante de uma realidade precária que o aguardava. Na obra literária antuniana, Portugal não representava um porto seguro de chegada, em oposição ao porto de partida segura e gloriosa que fora séculos antes e cujo ―destino‖, de acordo com a ideologia expansionista, ―era de estar sempre em eterna partida de si mesmo‖ (SILVEIRA, 1999, p. 13). Nesta tese, realizamos um novo percurso: enveredamos pela experiência colonial portuguesa em territórios da Amazônia e observamos como essa experiência materializa-se no épico Muraida. Caminhando em direção a outro continente, analisaremos o caminho de vinda 1 Análise do romance português contemporâneo, Fado Alexandrino, da autoria de António Lobo Antunes, publicado em 1983, e que se organiza em torno de três eixos básicos – temporais e simbólicos – relacionados à identidade da pátria portuguesa: I- Antes da Revolução, II- A Revolução ( 25 de Abril de 1974) e III- Depois da Revolução. Ao entrelaçar História e ficção, vida pública e vida privada, o romance em questão resgata as histórias vividas pelos ex-combatentes portugueses em África e suas ―derrotas cruzadas em fundo de mar‖, marcadas pela falta de raízes, estilhaçamento de identidades e perda de valores morais decorrentes do processo histórico. A Dissertação propôs-se a focalizar a ambivalência e a modernidade, pertencentes à produção ficcional selecionada, a partir, principalmente das reflexões críticas de Zygmunt Bauman e de Maria Alzira Seixo, visando compreender o posicionamento do homem contemporâneo frente à problemática do não-lugar, ao caos moderno e à falta de humanidade, dignidade e respeito do sujeito consigo mesmo e com o outro, constatando-se que não é possível encontrar uma fórmula para se criar um sociedade perfeita. Ao ―perder o caminho para a casa‖, as personagens masculinas deparam-se com personagens femininas que encetam relações amorosas, conjugais e libidinais passíveis de refletirem a reconfiguração identitária inerentes à pós-modernidade. Caberá ao leitor acompanhar as existências fadadas ao fracasso e as estratégias discursivas do autor. (COSTA, Veronica Prudente. A perda do caminho para casa em Fado Alexandrino de António Lobo Antunes. Dissertação de Mestrado em Letras Vernáculas - Literatura Portuguesa. Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006, 127 p.) 15 para o ―Novo Mundo‖. Um encontro entre os portugueses com um sujeito desconhecido nas Américas: os indígenas. Estes, habitantes autóctones, foram obrigados a resistir a uma nova ordem que se impunha em suas terras, objetivando tornar-se dona daquilo que até ―ontem‖ era seu. O objeto de estudo da presente pesquisa revela o olhar português sobre o espaço geográfico a ser explorado e colonizado. Desta feita, escolhemos o épico que melhor simboliza a resistência dos indígenas da etnia2 Mura, os quais foram subjugados em nome da filosofia da colonização portuguesa: “dilatar o Império e a Fé cristã‖. Elegemos o poema Muhuraida ou o triumfo da fé na bem fundada esperança da enteira conversão, e reconciliação da grande, e feróz nação do gentio Muhúra (1785), do militar português Henrique João Wilkens, como texto nucleador e inspirador para esta reflexão. A primeira edição de Muhuraida foi publicada em 1819 pelo Padre Cypriano Pereira Alho, pela Imprensa Nacional do Reino. Mais de um século depois, houve a edição de 1993 que foi a primeira edição brasileira publicada conforme os originais e com fac-símile dos manuscritos de Wilkens3. Neste estudo, trabalhamos com a terceira e última edição, publicada em 2012, com a língua portuguesa atualizada4. O manuscrito de Muraida encontra-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. Muraida é um texto poético divido em seis cantos, cuja forma e intenção são cópias do modelo camoniano. As estrofes se organizam em oitava rima camoniana e os versos são decassílabos. O poema possui Dedicatória, Invocação, Proposição, Narração e Epílogo. 2 Segundo o dicionário Houaiss, ―coletividade de indivíduos que se diferencia por sua especificidade sociocultural, refletida principalmente na língua, religião e maneiras de agir‖. 3 WILKENS, Henrique João. Muhuraida ou Triunfo da Fé. Manaus: Biblioteca Nacional / UFAM/ Governo do Estado do Amazonas, 1993. 4 WILKENS, Henrique João. Muraida. Organizada por Tenório Teles e prefaciada por Marcos Frederico Krüger Aleixo, Manaus: Ed. Valer, 2012. 16 Henrique João Wilkens foi um soldado português que veio para a região que hoje se configura como Amazônia, em missão ordenada pelo Marquês de Pombal para demarcação dos limites da coroa portuguesa a partir da assinatura do Tratado de Madri, em 13 de janeiro de 1750. O Tratado de Madri foi celebrado entre Portugal e Espanha e estabeleceu os limites entre as suas colônias na América do Sul, respeitando a ocupação realmente exercida nos territórios e abandonando inteiramente a "linha de Tordesilhas". De acordo com esse tratado, a colônia ganhou já um perfil próximo do que dispõe hoje. A partir deste fato, o desafio de ocupação das possessões territoriais através da colonização e exploração econômica se efetivou. Tal desafio foi o primeiro projeto que visava fixar a colonização portuguesa e usufruir as riquezas da Amazônia. Assim, o Marquês de Pombal lançou as bases do que seria um embrião do sistema que viria a ser chamado de capitalismo em tempos posteriores. Tal projeto se estabelecia na colônia do Grão-Pará e Maranhão. Este tratado foi de fundamental importância para a política colonial portuguesa e para a delineação do atual território brasileiro que seria estabelecido ulteriormente e teve como objetivo solucionar os conflitos de fronteiras entre Espanha e Portugal em toda a América do Sul: Marco terminal da política de D. João V em relação à América do Sul, e, particularmente à Amazônia, o Tratado de Madri, em sua lenta gestação e em seus efeitos concretos, teve uma íntima relação com o desenvolvimento das ordens religiosas missionárias, especialmente os jesuítas, na região dos rios Paraguai e Uruguai (7 povos das missões), no extremo oeste do país e na região amazônica. Num primeiro momento, a política portuguesa de consolidação das fronteiras e de demarcação desses novos domínios, expandidos à custa de territórios originalmente atribuídos à Espanha, teve o apoio integral dos jesuítas e de outras ordens religiosas (carmelitas, mercedários, franciscanos) que expandiram suas missões por territórios contestados, consolidando assim o domínio português. (NETO, 1993, p.36) O contexto de conflitos por posse de terras, por interesses religiosos e mercantilistas e na emergência da política indigenista pombalina que Henrique João Wilkens, entre tantos 17 outros soldados enviados para fazer cumprir a execução do tratado, chega ao território amazônico e, posteriormente, produz o épico Muraida. A partir das informações sobre a missão da comissão de limites em território amazônico e do cenário que nos é apresentado no épico, percebemos que, desde a sua descoberta, a Amazônia torna-se alvo de conflitos territoriais, devido não apenas à sua natureza exuberante e exótica, mas às riquezas encontradas na região, principalmente, as drogas do sertão. É importante mencionar que o lugar que hoje chamamos de Amazônia abrange uma imensa extensão territorial e passou por várias configurações político-geográficas. Expressamos aqui algumas modificações sofridas pela região: em 1621, foi realizada uma divisão das possessões portuguesas em duas colônias distintas: Estado do Brasil e Estado do Maranhão e Grão- Pará com sede em São Luís. Portanto, tal região era vista como uma colônia separada do Brasil e era administrada de forma diferenciada pela União Ibérica, devido ao período em que Portugal ficou sob o domínio da Espanha, entre 1580 e 1640. Com a assinatura do Tratado de Madri, em 1750, e a morte de D. João V, Portugal fica sob o domínio do Marquês de Pombal, que transfere a administração da colônia para Belém, modificando o nome da região para Grão- Pará e Maranhão. Em 1772, há outra modificação que cria o Estado Grão- Pará e Rio Negro e Estado do Maranhão e Piauí. O Estado do Grão-Pará e Rio Negro foi formado pela Capitania do Grão-Pará, com sede em Belém e a Capitania de São José do Rio Negro, que tinha sua sede em Barcelos, mas era subordinada ao governo do Pará. Apenas em 18 de agosto de 18235, os territórios que 5 A colonização portuguesa, que politicamente vai de 1600 a 1823, pode ser assim dividida: 1600 a 1700, expulsão dos outros europeus e ocupação colonial; de 1700 a 1755, estabelecimento do sistema de missões religiosas e organização política da colônia; de 1757 a 1798, criação do sistema de Diretorias de índios e esforço para alcançar o avanço do capitalismo internacional; de 1800 a 1823, crise e estagnação do sistema colonial. Até 1757, o território português na Amazônia era chamado de Estado do Maranhão e Grão-Pará, composto por sete capitanias: quatro pertencentes a donatários – Caetê, Cametá, Joanes(Marajó) e Cumã; e três diretamente pertencentes ao Rei ─ Pará, Maranhão e Piauí. O Maranhão e o Grã-Pará contavam com duas cidades, Santa 18 correspondiam ao Estado do Grão-Pará e Rio Negro passam a pertencer ao Brasil, formando assim o território brasileiro que temos hoje. Em 9 de novembro deste mesmo ano, foi extinto o Estado do Grão-Pará e Rio Negro, ficando a capitania de São José do Rio Negro ligada ao Brasil. Porém, esta ainda não foi reconhecida como Província do Império. Em 1832, foi reduzida a Comarca do Pará e somente no ano de 1850 esse território passou a ser Província do Amazonas, extinguindo-se, assim, a sua relação de subordinação ao Pará, em 1852. A partir dessas informações acerca das diversas configurações políticas que a Amazônia assumiu e da leitura atenta do texto literário, observamos relevantes dados históricos e culturais que nos motivam a refletir sobre a chegada de portugueses e espanhóis ao território amazônico. A hipótese a ser comprovada nesta tese reflete sobre o conceito de Literatura de Viagens e de Viajantes e solicita um lugar para Muraida nesta vertente do cânone lusitano. Da mesma forma, faz-se necessária uma revisão crítica deste cânone que não reconhece a produção dos viajantes que estiveram na Amazônia em nome da Coroa Portuguesa. Levantamos essa hipótese mediante uma análise realizada a partir das tensões, convergências e divergências entre este épico e o mais importante texto de viagens da Literatura Portuguesa: Os Lusíadas, de Luís de Camões ─ obra que funda a nacionalidade portuguesa, ainda que o conceito de nação ainda não fosse definido naquele momento. De acordo com as reflexões de Eduardo Lourenço em A Morte de Colombo (2005), analisamos a colonização portuguesa no Ocidente e estabelecemos um contraponto entre o colonizador e o colonizado, privilegiando a imagem construída sobre o índio Mura, a partir do olhar do colonizador e a construção imagística que o colonizador fez sobre a Amazônia. Maria de Belém e São Luis do Maranhão, que sediavam bispados, e mais sete vilas e diversos lugarejos e freguesias espalhadas especialmente na parte oriental do vale. Mas a consolidação administrativa do território somente se daria durante o século XVIII, nas administrações dos Capitães-Generais João da Maia (1722-1728), Alexandre de Sousa Freire (1728-1732), José da Serra (1732-1736), João de Abreu Castelo Branco (1737-1747) e Francisco de Mendonça Gurjão (1747-1751). Em 1757 assume o fidalgo Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do homem mais poderoso de Portugal, Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal. (SOUZA, 1994, p.52) 19 Para subsidiar tal discussão, enveredamos pelo caminho dos estudos culturais e póscoloniais, com o apoio de determinadas reflexões críticas do teórico Homi K. Bhabha. Para as reflexões sobre a Literatura de Viagens, nos orientam dois conhecidos ensaístas e professores especialistas no assunto ─ ela, a portuguesa Maria Alzira Seixo, ele, o brasileiro Francisco Ferreira de Lima. No que respeita, em suma, aos estudos sobre o Colonialismo, nos seus aspectos filosóficos, sociológicos, antropológicos, históricos , linguísticos e, claro, políticos, recorremos a textos fundamentais de Eduardo Lourenço, Edward Said, Pierre Bourdieu e Tzvetan Todorov. Por ser a obra inserida no espaço sociocultural da Amazônia, Marcio Souza, Neide Gondim, Auricléa das Neves e Francisco Jorge dos Santos são igualmente importantes. Acreditamos que uma das mais interessantes contribuições dos estudos culturais para a análise crítica da literatura é a possibilidade de interpretar o objeto literário, considerando-o como parte de uma dinâmica em que múltiplas leituras ampliam e transformam o seu sentido. Desta forma, a revisão crítica que solicitamos do cânone faz-se possível ao encetar um novo olhar sobre o texto literário a partir dos estudos pós-coloniais. Faz-se necessário destacar como fonte bibliográfica desta pesquisa a primeira tese de doutoramento desenvolvida sobre Muraida: “A construção épica da Amazônia no poema Muhuraida, de Henrique João Wilkens”, do pesquisador Yurgel Pantoja Caldas (2007) que, partindo da leitura dos poemas épicos da segunda metade do século XVIII – O Uraguay (1769), de José Basílio da Gama, e Caramuru (1781), de Santa Rita Durão –, busca a inserção do épico Muraida na tradição literária brasileira como texto fundador da literatura amazônica. Segundo Caldas (2007, p.6): Muhuraida instaura-se com particular interesse para a formação cultural daquela região, marcada por um movimento constante de contradições e ambiguidades, próprio do texto ficcional de Wilkens. Ao contribuir para que a obra épica de Henrique João Wilkens seja inserida na nossa tradição literária, este trabalho também se ocupa em articular os signos que circulam sob a forma de elementos estético-literários, histórico-geográficos e político-ideológicos presentes tanto na narrativa de Muhuraida quanto na pretensa objetividade da correspondência oficial, entre os séculos XVIII e XIX, envolvendo o próprio Wilkens e outros atores do 20 extermínio dos índios Mura. A percepção dos diálogos entre ficção e História, que o poema de Wilkens evoca, também auxilia no entendimento da construção ideológica do colonizador sobre o índio, tido e havido como encarnação do Mal e do atraso econômico da região. A tese de Caldas é oriunda de um rigoroso trabalho de pesquisa em documentos da época e é incontornável para quem se propõe a pesquisar sobre Muraida, constituindo-se num referencial de suma importância para a presente tese que aqui desenvolvemos e em que propomos um diálogo com o que já foi construído por outros pesquisadores. Ao defender que o seu trabalho contribui para que a obra épica de Wilkens seja inserida na tradição literária brasileira, Caldas participa da discussão sobre um cânone ainda em processo de formação ─ o da literatura amazônica; e que gera uma ampla discussão, dadas as múltiplas especificidades sobre o assunto, visto que muitos desses textos ficam localizados nas margens e periferias e, por esse motivo, são pouco conhecidos e pouco explorados pelos pesquisadores que são guiados apenas por uma concepção canônica de literatura. Ao longo desta tese, pretendemos contribuir para essa discussão, questionando e refletindo também sobre a concepção canônica de Literatura Portuguesa de Viagens. A natureza ambivalente da linguagem, a qual gera uma semiose infinita, incorpora e materializa as tensões entre o Eu e o Outro — a conhecida dialética entre identidade e alteridade e seus possíveis desdobramentos: afirmação e negação; aquém e além; o velho e o novo, a concepção de mundo europeia e a concepção plural de culturas indígenas. Tais oposições fazem emergir conflitos e suscitam crises de identidade que apontam para a relação entre os sujeitos e o mundo que os cerca, o que, consequentemente, nos remete ao desconcerto desse mundo, há tanto tempo cantado por Camões em Os Lusíadas, texto a partir do qual propomos um diálogo com o épico Muraida. Ao conhecer o Amazonas e entrar em contato com a pluralidade cultural existente neste estado, vários questionamentos surgiram no início deste processo de pesquisa, a saber: 21 Como os homens brancos, mais especificamente os portugueses e espanhóis, imprimiram a sua concepção de civilização e urbanização nas terras amazônicas através da empreitada colonizadora? De quais formas a chegada desses conquistadores deflagrou todo um processo de estranhamento cultural em relação aos povos que já existiam nesse local? Como analisar o lema da empreitada colonizadora: ―Dilatar a Fé e o Império‖, cantado em Os Lusíadas, em diálogo com a visão de alguns críticos da atualidade que a classificam como um amplo processo de genocídio humano e assassinato cultural? Para além da violência física, como ocorreu a violência simbólica imposta aos indígenas? De quais maneiras podemos observar, nos textos literários selecionados, um olhar marcado pela concepção europeia de civilização? Como a literatura, enquanto expressão do olhar do homem português sobre o Outro, representa a etnia Mura? A problematização mencionada acima será discutida ao longo desta tese e é fortemente influenciada pela maneira como os colonizadores portugueses viam a colônia do Grão-Pará e Maranhão, somada às dificuldades de colonização de um território de dimensões continentais, cobiçado internacionalmente pela imensidão desse território que hoje constitui a Amazônia6. Ao abarcar, atualmente, vários estados brasileiros e transbordar pelas fronteiras do Brasil, tal região revela a dificuldade ainda atual de aceitação e de construção de um convívio pacífico entre povos de diferentes culturas e origens, desde os primórdios da colonização europeia. Desde o início das incursões colonizadoras em solo amazônico, a Amazônia foi vista como um dos últimos espaços naturais do planeta, de onde surgiram várias representações de 6 A definição de ―Amazônia Legal Brasileira‖ – homologada pelo Governo Federal em 1966 – compreende, além dos Estados do Amazonas, Pará, Amapá, Acre, Roraima, Rondônia e Tocantins, o norte de Mato Grosso e os planaltos meridionais do Maranhão. A área total de toda essa região é de 4.990.520 km², segundo relatório do CEDI de 1990 (cf. VICENTINI, 2004, p. 12). Mais extensa que isso, a Amazônia ainda está presente nos territórios de Peru, Bolívia, Colômbia, Guianas, Suriname e Venezuela.(CALDAS, 2007, p.06) 22 um lugar exótico que precisava ser ―desvendado‖. Desse ―desvendamento‖ surgiram estereótipos negativos e concepções errôneas que indicavam que os povos que nela já se encontravam seriam bárbaros, selvagens e portadores de nenhuma cultura e civilização. A Literatura produzida pelo olhar etnocêntrico corroborou para tal classificação e, por isso, interessa aos pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento desconstruir certos olhares e conceitos registrados tanto no discurso histórico quanto no literário. Assim como a Carta de Pero Vaz de Caminha é considerada tanto um documento histórico sobre o descobrimento do Brasil quanto um texto literário, devemos ler os cronistas viajantes como aqueles que deixaram um grande legado para a Literatura e para a História do território que posteriormente seria anexado ao Brasil, porém estes relatos de viagens devem ser compreendidos dentro da realidade do tempo em que foram escritos. A maioria deles traz a visão de uma Amazônia mítica, que em muitos casos hiperboliza a imagem real da região, e que, comparada a lugares ―civilizados‖, precisa ser conquistada para ter a possibilidade de ―se tornar parte do mundo‖, colocando-a assim numa zona de classificação fronteiriça ou marginalizada, fora de uma concepção de mundo civilizado, de acordo com a visão europeia. O primeiro cronista a narrar sobre essas incursões foi Frei Gaspar de Carvajal, escrivão de Cristóbal Acuña em Novo descobrimento do grande rio das Amazonas em 1541, responsável por registrar as observações realizadas durante a viagem e a história que hoje é conhecida como lenda das Amazonas. Para ilustrar a construção imagística que o europeu faz das terras descobertas, selecionamos um pequeno trecho da carta de Colombo sobre a sua primeira viagem: [...] maravillas de la lindeza de la tierra y de los arboles [...] la más hermosa cosa del mundo y salem pôr ella muchas riberas de aguas que descendian d‘éstas montañas [...] y certifico a Vuestras Altezas que debaixo del sol no me parece que las pueda aver mejores en fertilidade, em temperancia de frio y calor, em abundancia de aguas buenas y sanas [...] era toda la gente más hermosa y de mejor condicion que 23 ninguna outra [...] quanto a la hermosura, no avia comparacion, asi em los hombres como em las mugeres. (Colombo, Diário del primer viaje ) 7 Assim como os cronistas, Henrique João Wilkens estabelece em sua obra literária uma voz poética que corrobora a visão do desbravador estrangeiro: aquele que vem de fora, não faz parte da cultura local, não a compreende e a coloca num lugar de subalternidade, se comparada a outros lugares e outros povos. De acordo com as reflexões de Spivak (2012)8, os estudos pós-coloniais contribuem para observação dos grupos subalternos, formados a partir das formulações de Antonio Gramsci, sobre as classes que são alijadas do poder por não poderem ocupar uma categoria monolítica devido à sua inerente heterogeneidade. Essa falta de compreensão sobre o espaço e sobre o homem que ocupava o espaço amazônico, na época da colonização, fez com que os desbravadores não percebessem que os habitantes autóctones possuíam culturas próprias de origens milenares. Porém, a ambição por novas conquistas e riquezas impossibilitou um convívio pacífico e gerou a dizimação de milhares de indígenas, através da violência em si, da escravidão, a partir de hábitos alimentares diversos, das doenças trazidas pelos brancos e pela própria evangelização cristã. O choque cultural, os conflitos de interesses e de povos ocorridos durante a colonização reiteram a visão etnocêntrica portuguesa no épico Muraida. Ao refletir, brevemente, sobre a política expansionista na época da colonização, o Capítulo 2 estabelece uma interlocução entre o texto literário e os relatos factuais sobre a etnia Mura, privilegiando as reflexões do ensaísta Eduardo Lourenço na obra A Morte de Colombo 7 Tradução: ―maravilhas da lindeza da terra e das árvores [...] a coisa mais linda do mundo e saem por ela muitas correntes de água que desciam d'estas montanhas [...] e garanto a Vossas Altezas que debaixo deste Sol não há melhor em fertilidade, temperança de frio e calor, abundância de águas boas e saudáveis [...] eram todas as pessoas muito bonitas e em melhores condições do que nenhuma outra [...] Quanto à beleza, não havia comparação, nem em relação aos homens nem às mulheres.‖ (Colombo, Diário da primeira viagem) 8 SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010. 24 (2005) sobre a colonização portuguesa no Ocidente e estabelecendo um contraponto entre o colonizador e o índio Mura e a imagem construída sobre esse mesmo índio, a partir do olhar do colonizador (civilizado X bárbaro). O Capítulo 3 refere-se à discussão conceitual sobre a Literatura de Viagens e o diálogo que se estabelece entre essa literatura e as viagens portuguesas ultramarinas, assim como a construção imagística do colonizador sobre a Amazônia ─ o lugar do Eldorado.Da mesma forma, elencamos alguns viajantes que escreveram sobre a Amazônia durante a colonização, como, por exemplo, Frei Gaspar de Carvajal, Cristóbal de Acuña e Alexandre Rodrigues Ferreira, com destaque para Henrique João Wilkens, cuja viagem era para fins militares. O Capítulo 4, por sua vez, estabelece uma interlocução entre Muraida e Os Lusíadas, apontando o segundo como um documento de identidade portuguesa e mais importante texto de viagens da tradição lusitana. Ae a partir dele, levantaremos as tensões, as convergências e divergências entre ambos, elegendo como os principais pontos de contato os episódios do Velho do Restelo e do gigante Adamastor, e estabelecendo um contraponto entre o Mouro e o Mura. 25 Uma denúncia sobre os povos da floresta: Aos Povos da Floresta Paulinho Tapajós Por onde andam os índios desta terra? O que era deles não é mais Os homens invadiram as florestas Como filhos que expulsam seus pais Onde colher flores silvestres? Queimaram os matagais Secaram o chão Prenderam águas, cachoeiras Poluíram céu e mar Sangraram o chão O que será da terra? O que será de nós? Quem vai plantar o planeta outra vez? Talvez os nossos peixes Ou quem sabe os animais Porque os homens só se esforçam por querer Muita fama riqueza e poder Sangraram o chão O que será da terra? O que será de nós? Quem vai plantar o planeta outra vez? Mas o verde vai voltar num sonho de criança Que há de lembrar a cor da esperança 26 2-A CHEGADA DOS EUROPEUS E A DESCOBERTA DO OUTRO Quero falar da descoberta que o eu faz do outro. O assunto é imenso. (Todorov) A violência é a parteira de toda a sociedade velha que leva em suas entranhas outra nova. (Marx) Acá pocas letras bastan, porque es todo papel blanco... (Padre Manuel da Nóbrega) A questão que nos inquieta e que motiva a presente investigação é questionar a formação identitária do sujeito e seu conflito com o Outro, a partir da análise dos textos literários selecionados para esta pesquisa. Para tanto, faz-se necessário discutir a chegada dos europeus e o embate cultural gerado a partir desse encontro. Segundo Todorov9, ao chegar ao território batizado de América, Cristóvão Colombo presencia o encontro mais surpreendente de nossa história. O autor afirma que na descoberta de outros continentes não houve o mesmo sentimento de uma radical estranheza, uma vez que já se sabia sobre a existência da África ou da China. O continente americano, no entanto, revela a existência de seres que constituem um povo totalmente desconhecido e estranho aos olhos europeus: Posso conceber os outros como uma abstração, como uma instância da configuração psíquica de todo indivíduo, como o Outro, outro ou outrem em relação a mim. Ou então como um grupo social concreto ao qual nós não pertencemos.‖ (TODOROV, 1999, p.3) A própria escolha do nome com que foram batizados os nativos identifica esse estranhamento em relação ao Outro: índios, aqueles que seriam habitantes das Índias, região desejada pelos desbravadores ultramarinos por suas riquezas e especiarias. Coloca-se, então, um primeiro problema: os habitantes descobertos recebem um nome relacionado a um lugar ao qual não pertencem. E o que virá depois? Um enorme estranhamento que leva espanhóis,portugueses e demais povos que colonizaram as Américas a acreditarem que os 9 TODOROV, Tzvetan. A conquista da América; a questão do outro. Trad. Beatriz Perrone Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 1988. 27 índios eram povos desprovidos de cultura. Da mesma forma que se apresentavam fisicamente nus, foram considerados ―nus‖ espiritualmente: sem costumes, ritos ou religião. Logo nos primeiros encontros com os habitantes da terra recém-descoberta, Colombo registra: Pareceu-me que eram gente muito desprovida de tudo [...] Estas gentes são muito pacíficas e medrosas, nuas, como já disse, sem armas e sem leis [...] Traziam pelotas de algodão fiado, papagaios, lanças e outras coisinhas que seria tedioso enumerar...‖ (TODOROV, 1999, p.43-44). A partir do registro, percebemos que Colombo não apenas não compreende os aspectos culturais que presencia, como também desmerece a falta de ambição dos ameríndios em relação ao ouro, o metal que representava a riqueza mais valorizada em todas as incursões ultramarinas. O conquistador julga os habitantes autóctones como tolos pelo fato de oferecer um pedaço de vidro quebrado ou qualquer outro objeto sem valor em troca de ouro e estes aceitarem: ―Colombo não compreende que os valores são convenções – a mesma incompreensão que demonstrou em relação às línguas, como vimos – e que o ouro não é mais precioso do que o vidro em ―si‖, mas somente no sistema europeu de troca‖ (Todorov, 1999, p.45-46). Dessa suposta ingenuidade e ―generosidade‖ dos indígenas em relação ao amplo processo de trocas que se estabelece entre eles e os brancos e ao total desapego material demonstrado por eles, gera o que chamamos de ―falsa cordialidade‖: colonizado e colonizador podem ser ―amigos‖ desde que o colonizado concorde não apenas com as trocas, mas com as regras do jogo do colonizador. Caso contrário, a espada e o fogo serão utilizados para fazer a empresa colonizadora valer a pena e gerar lucros. A suposta ingenuidade do indígena dá uma enorme contribuição à teoria do bom selvagem que só seria elaborada por Jean Jacques Rousseau em 1755, a partir dos ideais da Revolução Francesa. Rousseau defendia que o homem por natureza é bom, pois todos nascem livres, iguais e bem formados, porém sua maldade advém da sociedade, que em sua 28 organização civilizacional não apenas permite como impõe a submissão, a escravidão, a tirania e várias outras leis que privilegiam as elites dominantes em detrimento dos mais fracos; firmando assim a desigualdade entre os homens, enquanto seres que vivem em sociedade. Desta forma, Rousseau faz uma crítica objetiva à sociedade moderna que privilegia o ter em desfavor do ser. A partir dos primeiros contatos com os ameríndios, o imaginário europeu relacionou os povos recém-descobertos a bondades ingênuas, utilizando o termo ―naturais‖ para designálos. Outra obra que influenciou a propagação do conceito do bom selvagem foi a Brevísima Relación de La Destrucción de las Indias, de Bartolomeu de Las Casas, cronista e teólogo dominicano que acompanhou as expedições para a América. Las Casas foi considerado um ―defensor dos índios‖, conforme nos diz Eduardo Lourenço (2005), pelo fato de defender a dignidade dos mesmos. A luta do dominicano era a favor de lidar com o ―gênero humano novo‖ recém-descoberto ou recém-achado: O oceano foi mais fácil de atravessar do que o fosso de incompreensão aberto desde o início das relações, e que não logrou ser preenchido nem ultrapassado até agora. De um lado, uma civilização, uma cultura, que se veem e se leem como naturalmente universais, ciosas da sua origem e da sua genealogia divinas; de outro, uma nova humanidade cuja língua ainda não se conhece e cujo código se rejeita quando se acredita adivinhá-lo ou conhecê-lo. (LOURENÇO, 2005, p.66) Ainda segundo Lourenço (2005), Las Casas percebeu que o encontro entre indígenas e europeus seria uma fonte de tragédia sem solução, pois, ao contrário de Colombo, ele não havia partido para o Novo mundo em busca do Paraíso terrestre. Antes de chegar a Cuba e ver sua concepção de mundo mudar radicalmente ao observar a crueldade perpetrada pelos colonizadores espanhóis, Las Casas compartilhava dos mesmos interesses ambiciosos que os outros colonos acalentavam ao partir para as Américas. No entanto, o dominicano defendeu o direito de ―ser‖ humano dos indígenas diante dos reis de Espanha. Para o europeu, o Outro 29 não tinha lugar, e por isso Las Casas ―contra ventos e marés‖, instituiu-se como defensor da humanidade e da dignidade dos indígenas. Desde a sua ―conversão‖, de 1514 até 1550, a sua vida é uma sucessão de combates teóricos contra toda a expressão escrita ou oral desfavorável ao homem indiano como homem, ao mesmo tempo que intervém com memoriais, projectos, proposições concretas de colonização pacífica, parte das quais tentará, junto ao Conselho das Índias. Designado ―protector dos Índios‖ desde a sua primeira intervenção na corte em 1516, Las Casas fará desse título, concedido por Cisneiros, um uso ardente e jamais desmentido em favor da liberdade dos Índios, quer dizer, converter-se-á em impugnador sem reservas da colonização tal como ela se processava. A intransigência absoluta de princípios junta à acção concreta para os fazer aplicar e que foi menos ineficaz do que muitos historiadores nos querem fazer crer, dão ao personagem Las Casas um relevo único. (LOURENÇO, 2005, p.111) A problemática questão de relacionamento com os indígenas nas Américas iniciou-se a partir da descoberta de Colombo, do contato e dos registros feitos por ele e noticiados na Europa. Falar de ―encontro‖ é, de certa forma, encobrir a barbárie, pois o que ocorreu foi a dominação do mundo europeu sobre o mundo do indígena. Como falar de encontro se as culturas dos autóctones foram excluídas e subjugadas diante da superior cristandade europeia, numa atitude de desprezo ao ritos, deuses e costumes dos indígenas? A partir da descoberta, novas expedições são organizadas por outros desbravadores com a intenção de conhecer o ―Novo Mundo‖ e as ―novas gentes‖, usufruir das riquezas e dessa relação com os habitantes da nova terra. A grande questão é que em todas essas expedições, organizadas com a intenção de desbravar e colonizar, os pressupostos imperialistas e a visão eurocêntrica de mundo estiveram presentes de maneira significativa, o que gerou um grande problema no embate com outros povos. Segundo Edward Said (2011)10, as culturas são estruturas de autoridade e participação criadas pelo homem. Estas podem ser benévolas no sentido em que abrangem, respeitam, validam ou incorporam outras culturas, porém são consideradas menos benévolas se excluem ou rebaixam o outro. Foi o que ocorreu em toda a América do Sul, a partir da chegada de portugueses e espanhóis, pois ambos chegaram com a intenção de criar colônias de 10 SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 30 exploração com a finalidade de enriquecimento da metrópole europeia. Ainda que não houvesse naquele momento histórico um conceito de nacionalidade definido, concordamos com Said quando afirma que: ―Em todas as culturas nacionalmente definidas, creio eu, existe uma aspiração à soberania, à influência e ao predomínio.‖ (SAID, 2011, p.51) Tal afirmação de Said se aplica à nossa análise quando refletimos sobre a maneira como a colonização portuguesa se efetivou em terras amazônicas. Os vários encontros com o Outro não foram pacíficos, fato que pode ser comprovado ao contrapor a leitura de nosso objeto de estudo, o poema Muraida, e os fatos históricos da empreitada colonizadora, conforme veremos a seguir. 2.1 A empreitada colonizadora, a resistência Mura e a conversão imposta: O título original do épico cumpre a função de identificar a obra e informa sobre o conteúdo para suscitar o interesse dos leitores, pois é muito explicativo no que diz respeito à intenção do poeta: Muhuraida ou o triumfo da fé na bem fundada esperança da enteira conversão, e reconciliação da grande, e feróz nação do gentio Muhúra. Percebemos que, ao cantar uma aparente pacificação de toda a etnia, o poeta quer reafirmar a soberania da religião cristã em relação à dos povos ditos ―não civilizados‖. Historicamente, sabemos que a pacificação não ocorreu de maneira geral e pacífica como o poema quer afirmar, conforme discutiremos mais adiante. O grupo de indígenas que foi pacificado não ultrapassou o número de vinte indivíduos que sobreviveram à dizimação de um grupo maior. Nos versos abaixo, nos é relatado o batismo: No templo de Maria renascidos Na graça batismal, os inocentes Vinte infantes, alegres conduzidos Pelos bárbaros pais foram contentes. Na fé de mais progresso despendidos, Se ausentam cumulados de presentes Penhor levando da felicidade, Em cada filho, de anjo a qualidade. (Mur, VI, 19, grifos nossos)11 11 Ora em diante, usaremos nas citações: Mur para Muraida e Lus para Os Lusíadas. 31 De acordo com os versos grifados, observamos o Poeta nomear os pais das crianças Mura como ―bárbaros‖ pelo fato de não terem tido o batismo cristão e pela conhecida resistência dessa etnia ao contato com os brancos. A partir do batismo, os filhos passam ao estado de felicidade e são nomeados como ―anjos‖ e de acordo com esse episódio, é possível afirmar que Muraida canta o triunfo da fé católica sobre os Mura. Outro fator a ser observado em relação à divulgação da obra é que, devido à impossibilidade de publicação de livros na colônia, Muraida foi publicado apenas em 1819, em Lisboa, pela Imprensa Régia Nacional, portanto, quase trinta depois de sua composição. Lembramos que, até o final do século XVIII, os livros que chegavam até a colônia eram trazidos por aqueles que estudavam na Europa e mediante autorização prévia. Tal procedimento proibitivo em relação à imprensa na colônia revela as intenções do colonizador em impor uma cultura externa que justificaria o domínio, a ocupação e a exploração. Somente após a chegada da família Real ao Brasil, em 1808, a imprensa foi criada, mas não de maneira livre, pois necessitava de proteção e iniciativa oficiais. Devido a essas questões, a primeira edição de Muraida é portuguesa e teve sua publicação a cargo do padre português Cypriano Pereira Alho, o que gerou certas desconfianças de que ele teria tentado se passar por autor do texto ou de que a princípio o texto teria sido escrito em língua aborígine. Com a descoberta dos manuscritos, foi confirmada a autoria de Wilkens, assim como o fato do poema ter sido realmente escrito em Língua Portuguesa. A etnia Mura era, a princípio, habitante das margens do Madeira12. Os Mura se tornaram amplamente conhecidos como índios de corso13, isto é, corsários do caminho fluvial, por serem adeptos da pilhagem, da pirataria: 12 O Rio Madeira tem 1450 Km de extensão. Nasce com o nome de rio Beni na Cordilheira dos Andes, Bolívia. Ele desce das cordilheiras em direção ao norte recebendo então o rio Mamoré-Guaporé e tornando-se o Rio Madeira - que traça a linha divisória entre Brasil e Bolívia. O rio Madeira recebe este nome, pois no período de chuvas seu nível sobe e inunda as margens, trazendo troncos e restos de madeira das árvores. 32 Viviam em suas próprias canoas, como se fossem suas casas, e se destacavam na resistência à ocupação pelos não índios. Sua imagem é marcada por traços guerreiros, destemidos, conhecedores de táticas sui generis de ataque e de emboscada, o que atemorizava e lhes concedia uma enorme fama de ―perigosos‖, principalmente nos idos dos séculos XVII a XIX, quando impediram, por sua presença e força física, o avanço das missões, do comércio português e das ações de cunho militar na Amazônia, especialmente na região compreendida pelos municípios de Autazes, Itacoatiara, Careiro da Várzea, Careiro do Castanho, Borba e Manicoré, Estado Amazonas. (PEQUENO, s.d, p.134) Segundo Caldas (2010)14: Considerado por Curt Nimuendaju como ponto inicial de dispersão dos Mura, o rio Madeira serve como local de referência para detectar aqueles índios, de onde sairiam para se transformarem, de acordo com muitos relatos do século XVIII, nos famosos ―gentios de corso‖. Segundo a ―Lettre datée du Belém du Pará, 30 octobre 1927‖17, os Mura, em meados do século XVIII, se estendiam a oeste até a fronteira com o Peru (70° long. O.), a leste até Oriximiná, no rio Trombetas (56° long. L.), ao sul, do rio Madeira até o rio Jamari (8°30‘ lat. S.) e ao norte, no rio Negro (1° lat. N.). A partir de então, o ―padrão Mura de ocupação foi classificado como nômade, e tal ideia perdurou por todos os depoimentos dos séculos XVIII e XIX‖, garantindo para esses índios a condição de ―tribo errante‖. (CALDAS, 2010, p.177). Os Mura se espalharam ao longo do rio Solimões com a intenção de escapar e resistir ao domínio lusitano. Embora o título do épico afirme em seu título original que canta a inteira conversão e pacificação dos Muras ─ Muhuraida ou o triumfo da fé na bem fundada esperança da enteira conversão, e reconciliação da grande, e feróz nação do gentio Muhúra (grifos nossos) ─ sabemos que o poema foi produzido logo após a redução de um pequeno grupo de índios Mura assentados no rio Solimões poucos meses antes da elaboração do poema, conforme citamos anteriormente. Utilizamos como referência os estudos da antropóloga Marta Amoroso (2009): 13 ―Os corsários não se confundem com piratas – estes agiam tanto na guerra quanto na paz. Os corsários recebiam dos reis patentes ou cartas de corso, que lhes davam o direito de apresar navios mercantes de nações inimigas‖. Não é estranho que se transplante o conceito para denominar índios em estado de beligerância, mas é curioso que se revele, por trás desta denominação, o sentido de guardiães que tinham os corsários incumbidos oficialmente pelas monarquias europeias de proteger os mares contra a circulação de embarcações identificadas com nações inimigas. Contudo, o sentido que veio impregnar expressões como ―gentio de corso‖ ou que veio compor considerações sobre índios como os Mura, especificamente, designa a qualidade atribuída à pirataria, ou seja, vida nômade de pessoas que tiram seu sustento fazendo guerras e saques. (Lello Universal, p.660 apud Almeida, 1997) 14 CALDAS, Yurgel.―Eles são muitos e incontáveis: estratégias coloniais emigratórias dos índios Mura contra o processo pombalino para o domínio amazônico, a partir de Muhuraida, de Henrique João Wilkens‖. Novos Cadernos NAEA, v. 13, n. 1, 2010. p. 171-198. 33 Data de meados 1784 a criação dos primeiros aldeamentos leigos de índios Mura ―pacificados‖. Estes aldeamentos eram frequentados pelos Mura na época da colheita das roças. O resto do tempo a população mantinha hábitos tradicionais de pesca, caça e coleta, utilizando para tanto os furos e igarapés do sistema hidrográfico do rio Madeira. Embora discutíveis do ponto de vista da eficácia da sedentarização da população que diziam abrigar, estes aldeamentos marcaram, no entanto, uma nova fase de convivência destes grupos nativos com a colônia. 15 Conforme já dissemos, Wilkens se serviu de fatos históricos ocorridos na região amazônica para compor seu épico, fato que assinala uma forte tendência das primeiras manifestações literárias produzidas sobre ou na região amazônica. Segundo Márcio Souza (2010, p.73)16: Quando João Wilkens escreveu o seu poema, a empresa colonial já havia fundado as suas raízes no mundo descoberto, exigindo que sua expressão somente se arrebatasse quando submetida à prova de comparação, isto é, somente quando o próprio feito se concretizasse pela força do poder, pela cultura nacional ou, radicalmente, pela ordem de El rei. A Muhraida é um desses momentos de comparação: trata da derrota dos Muhra, ferozes guerreiros que jamais aceitariam a dominação branca de suas terras e resistiram até o século XIX. Neste sentido, podemos afirmar que o texto literário funciona não apenas como uma proposta estética, mas como uma importante fonte de conhecimento histórico, político e geográfico que reafirma o domínio imperial num espaço que não estava vazio de cultura, mas que era forçado a se submeter ao domínio cultural introduzido pela empreitada colonizadora portuguesa. Ao observar a interação entre índios e não-índios, o colonizador acreditou que seria possível deflagrar um processo de aculturação e impor a sua cultura como única. No entanto, a partir dos estudos antropológicos mais recentes, sabe-se que diferentemente do que supunha essa teoria, os indígenas não perderam a sua identidade étnica e nem foram assimilados pela sociedade branca como um igual. De acordo com essa perspectiva, podemos afirmar que Muraida enceta uma discussão a respeito da ideologia das relações estabelecidas entre índios e brancos no processo de colonização. O índio, bem longe do arquétipo de herói nacional, nos é apresentado como 15 AMOROSO, Marta Rosa. Instituto Socioambiental | Povos ,http://pib.socioambiental.org/pt/povo/mura/print. (último acesso em 08/01/2014) 16 SOUZA. Márcio. A expressão Amazonense. Manaus: Valer, 2010. Indígenas no Brasil 34 representação do Mal. Dessa forma, contrariando a teoria do bom selvagem citada anteriormente, pois, se o índio Mura é Mal porque não se coaduna com a ideologia portuguesa, com ―a sociedade civilizada‖, ele está em estado natural ou selvagem, logo deveria ser considerado BOM. Mas não é isso que ocorre. Ele é considerado MAU justamente pelo fato de rejeitar a luz trazida pelo milagre da graça divina: Na densa treva, assim, da adversidade, Do terror, do receio e da incerteza, Vivia absorto o povo da cidade, Das vilas, do sertão, em que a fereza Dos bárbaros Muras, sem piedade, Amontoando estragos, sem defesa Achava o vigilante e o descuidado, De todos sendo igual a sorte, o fado. (Mur, II, 3) Conforme observamos nos versos acima, enquanto habitante das ―trevas‖, os Mura levavam horror ao povo da cidade. Para se salvar das densas trevas da gentilidade, os Mura teriam que se adequar aos interesses expansionistas e aceitar o batismo católico para estar a salvo da torpeza, pois afinal a doutrina católica de poder adotada por Portugal reforçava a concórdia e a amizade para nascer a paz, mas para assegurá-la, a Coroa utilizava-se de diversos expedientes violentos. Segundo João Adolfo Hansen (1998)17: Na ―política católica‖, as táticas e as estratégias adotadas na redução dos selvagens e bárbaros são definidas como um direito e um dever, pois a subordinação ou a extinção deles significa caridade para com os indivíduos e amor do bem comum. Na propaganda fidei jesuítica, a alma do índio deve ser salva do inferno por meio da conversão; pode-se mesmo obrigá-lo a ser salvo, pois é preferível que seja cativo e tenha a alma salva a que viva a liberdade natural do mato com ela condenada ao inferno. Na prática de Nóbrega, Anchieta, Luis da Grã e Cardim, no Nordeste, no Espírito Santo, no Rio de Janeiro e em São Vicente, no século XVI, e na de Vieira, No Maranhão e Grão-Pará, no século XVII, encontra-se, justificando as intervenções, a afirmação reiterada de que a lei positiva das sociedades indígenas é plenamente legal, como convenção humana que regulamenta a vida coletiva, pois o direito canônico estabelece que as sociedades humanas não dependem da revelação cristã para se instituírem politicamente. Mas o fato de as sociedades indígenas estarem corrompidas pelas ―abominações‖ de costumes bárbaros e atrozes, que 17 HANSEN, João Adolfo. ―A servidão natural do selvagem e a guerra justa contra o bárbaro‖. In: NOVAES, Adauto (org.). A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 347-73. 35 evidenciam a ação do diabo, impõe o dever de reduzi-las à primeira verdade perdida ou talvez esquecida, a Palavra de Deus, legitimando-se sua participação hierarquizada na divindade por meio dos sacramentos católicos, como o batismo, que a tornam visível. Em, 1657, numa carta enviada do Estado do Maranhão e Grão-Pará ao rei D. Afonso VI, de Portugal, Vieira escreveu que, nos quarenta anos anteriores, os portugueses haviam matado 2 milhões de índios na Amazônia. O maior horror, segundo ele, era pensar que tantas almas postas sob a jurisdição de um reino que tinha por missão expandir a fé católica, haviam morrido sem o batismo e ardiam no inferno. (p.352-353, grifos nossos) Ainda a respeito do horror e do assassinato de milhões de indígenas denunciados por Padre António Vieira, recorremos à tese sete de Walter Benjamin em ―Sobre o conceito de História‖. O autor situa a barbárie no interior da cultura ou da civilização, recusando a dicotomia tradicional do Ocidente que localiza a barbárie no Outro, situando-a no exterior: Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são os que chamamos de bens culturais. Todos os bens materiais que o materialista histórico vê têm uma origem que ele não pode contemplar sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima de seus contemporâneos. Nunca houve um monumento de cultura que também não fosse um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo. (BENJAMIN, 1994, p.225) A tese benjaminiana coloca a barbárie não apenas como o avesso da civilização, mas como o pressuposto dela. A própria civilização engendra a barbárie ao produzir-se como cultura e ao se intitular como superior às demais culturas consideradas bárbaras. Dessa forma, o elemento bárbaro não está no Outro, está no civilizado, em seu próprio movimento de criação e transmissão da cultura. A partir da leitura de Benjamim, percebemos os episódios históricos como testemunho da barbárie que se perpetrou ao longo dos séculos de colonização europeia nas Américas. O horror é causado a partir da leitura de documentos que testemunham e atestam o ―cortejo triunfal dos vencedores pisoteando os corpos dos vencidos‖. O desafio dos estudos pós-coloniais está em desvelar o passado que foi silenciado e ―ouvir‖ os testemunhos. 36 Nesse sentido, faz-se necessário ratificar que Muraida registra, sob o olhar do colonizador português, um contexto histórico fortemente dominado pelas forças políticas e econômicas portuguesas, e a subordinação não só dos índios, mas da colônia do Grão-Pará e Maranhão aos interesses portugueses. Isto posto, precisamos olhar para outras áreas do conhecimento para compreender os textos literários do período colonial: Em efeito, sobretudo quando nos aproximamos ao conjunto de formações discursivas observadas no Novo Mundo, entre os séculos XV e fins do século XVIII, na América Hispânica e até o princípio do século XIX, no Brasil - a história propriamente colonial -, a linguagem necessita desfazer as fronteiras disciplinárias e assumir uma ampla visão cultural, em um espaço de fusão, de intersecção de disciplinas, tais como: a história cultural, a sociologia da cultura, a história literária, a história das idéias, a semiologia, a crítica literária ou a antropologia cultural e simbólica, entre outras. (PIZARRO, 1993, p.19 ) No diálogo entre as áreas do conhecimento, percebemos que os estudos culturais contribuem para a compreensão do texto literário no que diz respeito à realidade indígena de fato, pois, se nos basearmos somente na voz do Poeta, o que teremos será uma reiteração da visão europeia a respeito dos indígenas imposta desde a chegada de Colombo. Tal visão sobre o indígena permanece até os dias atuais, e amplamente colabora para o massacre cultural e para a perpetuação de uma negação identitária indígena. Segundo Marta Amoroso: Os Mura acumulam uma longa história de contato com a sociedade envolvente. Desde tempos remotos, colonos e missionários católicos construíram e disseminaram fortes estigmas contra tal povo, a ponto de recusar-lhes até mesmo a condição de seres humanos. Em meados de 1714 foram realizadas as primeiras e totalmente frustradas tentativas de redução dos Mura aos aldeamentos da Companhia de Jesus na região do Madeira. Desde então, foram vistos como ameaças aos estabelecimentos implantados na região junto a outros povos, devido aos frequentes ataques contra tais núcleos, bem como contra as embarcações comerciais que atuavam nos cacauais nativos do rio Madeira. A história da Vila de Trocano, nome colonial de Borba, a primeira vila da Amazônia, ilustra este período: acossados pelos Mura, os jesuítas transferiram Trocano de lugar cinco vezes.18 A citação de Amoroso reitera a forte estigmatização dos indígenas como seres abaixo da condição humana ou civilizacional e, apesar de a muitos parecer que o massacre terminou 18 AMOROSO, Marta Rosa. Instituto Socioambiental | Povos http://pib.socioambiental.org/pt/povo/mura/print. (último acesso em 08/01/2014) Indígenas no Brasil, 37 com o fim da colonização, basta observar como nos centros culturais brasileiros, no Rio de Janeiro e em São Paulo, por exemplo, a figura do indígena ainda é apresentada pela mídia de maneira controversa. Se, por um lado, o temos como símbolo de herói nacional, um dos elementos fundadores de nossa identidade, por outro lado, observamos fatos que comprovam que as culturas indígenas foram aniquiladas e são permanentemente segregadas da nossa sociedade. Mesmo que a partir da Constituição de 1988 se tenha a impressão de que haja um respeito maior pelo índio, com a crescente extensão de terras demarcadas e o crescimento demográfico e político-cultural do indígena, observamos que na prática os fatos não ocorrem com tanta tranquilidade devido aos constantes conflitos por disputas de terra. São constantes os conflitos por terras em regiões ainda habitadas por indígenas que disputam com os grandes latifundiários o direito às suas terras e à preservação de sua cultura em pleno século XXI, inclusive sendo ainda dominados por flagrantes interesses religiosos, políticos e, sobretudo, econômicos. Tal processo conflituoso foi iniciado durante o processo de colonização portuguesa, quando os índios foram submetidos às ―guerras justas‖, ou seja, guerras contra os índios que não se submetiam aos interesses religiosos, políticos e econômicos dos colonizadores lusitanos. Em consequência dessas guerras, os índios tornavam-se escravos e eram vendidos na sede do Grão-Pará, em Belém e em outras colônias. Podemos dizer, em última instância, que o termo ―guerras justas‖ funciona como um eufemismo cínico para um amplo processo de dizimação indígena ─ a aniquiliação do Outro. Segundo Hansen (1998): A legitimidade das ―guerras justas‖ contra os bárbaros do Brasil também pressupõe Deus. Então, a ―guerra justa‖ é doutrinada e regrada reciclando-se tópicos medievais do direito canônico. Ela é dada como uma situação de exceção relativamente à centralidade do poder monárquico, tido pelos agentes colonizadores como natural, legítimo e pacífico, porque o pacto que o estabelece está fundado na ética e na metafísica cristãs. A caracterização da guerra como situação de exceção, contudo, desloca e encobre o fato de que o próprio poder central, que se afirma natural, 38 legítimo e pacífico, é também um poder de exceção, uma vez que não há poder naturalmente instituído. (p.349-350) Vale ressaltar que a dizimação não foi iniciada a partir destas guerras, mas já vinha sendo perpetrada desde os primórdios da colonização europeia e foi provocada através do contato com o homem europeu, que trouxe a fome e as epidemias de gripe, varíola, sarampo. No encontro entre o Velho e o Novo Mundo, populações indígenas densas foram vítimas do colonizador que chegou sem considerar que esses povos eram possuidores de várias histórias próprias a cada etnia de ancestralidade milenar. Reprimir o diferente e o discordante passou a ser uma operação justificada, a tônica do processo de colonização portuguesa, em nome de uma verdade fornecida pela razão colonialista europeia. Conforme aponta Adélia Engrácia de Oliveira19, os Mura abrangeram uma grande área de ação que se estendia da fronteira do Peru até o Trombetas, e se destacaram por seus destemor em defender as suas terras usando técnicas especiais de ataque. Transformados em ―vilões‖ pelo discurso do colonizador: ―essa inversão de valores deve-se ao fato, já conhecido por vários estudiosos das questões indígenas, da manipulação de estereótipos pelos colonizadores, numa tentativa de justificar as ações expansionistas praticadas‖ (1986, p.2) É certo afirmar que os Mura representavam um impedimento à livre circulação dos portugueses e atacavam as canoas que iam ao comércio das drogas do sertão, como por exemplo, o cacau. A autora comenta que, a partir da resistência dos Mura, a guerra contra o indígena era considerada ―justa‖: quando ele atacava ou roubava o colono, quando se opunha ao cristianismo e quando se recusava a auxiliar os portugueses contra outros grupos étnicos: Sabe-se que com a finalidade de pregar o Evangelho e converter almas, os missionários desciam índios do mato para aldeias que floresciam, tanto compulsoriamente como pela persuasão, destribalizando-os e deculturando-os. Esse processo, aliás, também ocorria com a procura de mão-de-obra que escravizou muitos índios para o trabalho com os ―frutos da terra‖ e em serviços públicos e 19 CEDEAM. Autos da devassa contra os índios Mura do rio Madeira e nações do rio Tocantins (1738-1739): fac-símiles e transcrições paleográficas. Introdução de Adélia Engrácia de Oliveira. Manaus: Universidade do Amazonas; Brasília: INL, 1986. 39 domésticos como a construção de casas e igrejas, remeiros, salgações de peixe, fabricação de manteiga de tartaruga e roçado, entre outros. (p.2) Neste momento, recorremos às reflexões de Homi Bhabha20 a respeito do discurso do colonizador e o modo como ele representa a alteridade, que está intrinsecamente ligado à forma como o pensamento ocidental se encontra desdobrado nesses discursos, utilizando estratégias de estigmatização e marginalização: ―O objetivo do discurso colonial se concentra em construir o colonizado como população do tipo degenerado, tendo como base uma origem racial para justificar a conquista e estabelecer sistemas administrativos e culturais‖ (1998, p.181). O autor também observa que: ―Para que seja institucionalmente eficiente como disciplina, deve-se garantir que o conhecimento da diferença cultural exclua o Outro.‖ (1998, p.128). Se, para Homi Bhabha, o discurso colonial procura legitimar-se por meio da exclusão e da produção do saber estereotipado do colonizador sobre o colonizado é porque a linguagem teórica utilizada para tal constitui-se como estratégia fundamental para atingir os objetivos do colonizador. Dessa forma, o discurso colonial funciona como aparato de poder que emerge do colonizador, mas que frutifica no colonizado. Ao ser manipulado por forças opressoras que negam a sua alteridade, o colonizado resiste até a morte ou se apropria do discurso do colonizador, como veremos mais detalhadamente no Capítulo 4 deste estudo, quando o Mura Jovem é persuadido pelo mensageiro celeste, um Anjo disfarçado de Mura, a seguir os preceitos cristãos e convencer os demais membros de sua tribo a se converterem à fé católica. O episódio de conversão narrado em Muraida e comprovado historicamente é uma exceção em meio a tantos outros conflitos sanguinolentos que ocorreram entre os Mura e os colonos portugueses após décadas de confronto. 20 BHABHA, Homi. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila; Eliana Lourenço de Lima Reis; Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 1998. 40 Quando o Diretório Pombalino foi fundado em 1757, a liberdade formal aos índios foi garantida, porém os Mura continuaram a ser uma exceção, uma vez que eram considerados inimigos oficiais da Coroa. A Carta Régia de 1798 também excluiu os Mura dos benefícios da Lei, juntamente com os Karajá e os Munduruku, etnias que também apresentavam resistência à dominação portuguesa. Uma vez que essas etnias eram consideradas ―irredutíveis‖ e ―incivilizáveis‖, tornavam-se exceções às Leis de Liberdade, e o assassinato e a escravidão eram impetrados contra essas populações de maneira oficial. Marta Amoroso21 diz: Tais situações e visões passaram a fundamentar tanto a práxis da violência quanto as leis de exceção para com os Mura. As primeiras denúncias contra tais povos se deram na fase de hegemonia da Junta das Missões, entidade com atribuições jurídicas, formada pelas ordens religiosas católicas atuantes no Grão-Pará até 1755. Algumas dessas ordens tinham comprovado interesse mercantil no rio Madeira. Os jesuítas, por exemplo, exploravam os seus cacauais nativos (Azevedo, 1919) e de tal indústria extrativa efetuavam um volume significativo de exportações. Para esses empreendimentos, a presença mura às margens do rio Madeira representava uma ameaça que deveria ser combatida. Apesar de dados históricos que apontam um amplo processo de ―limpeza étnica‖ para combater a ameaça Mura contra o comércio das drogas do sertão e para que o colonizador pudesse levar a cabo o expansionismo, o texto de Wilkens enaltece o caráter unificador da pacificação através da luz divina. O poema esvazia o caráter bélico dos embates entre os Mura e os colonizadores e valoriza apenas os ataques dos Mura contra os brancos e contra outras etnias sem nenhuma razão plausível, apenas por estarem investidos do Mal, conforme podemos verificar no início do Prólogo que antecede o poema: O feroz, indomável e formidável Gentio Muhura, ou Muhra, conhecido há mais de Cinquenta Anos. Habitador dos densos bosques e grandes lagos do famoso rio Madeira, confluente do célebre rio do Amazonas, no Estado do Grão-Pará, primeira Capitania-Geral, e a mais Setentrional de todas as conquistas portuguesas na América Meridional, sempre foi fatal aos navegantes do dito rio Madeira, no comércio que o Pará cultivava com a capitania do Mato Grosso; sendo este Gentio de corso igualmente cruel e irreconciliável Inimigo dos portugueses, dos índios, dos bosques ainda habitadores, matando cruelmente e sem distinção de sexo, ou idade, todos os viajantes e moradores das povoações, roubando-os, e levando as mulheres moças e crianças, que do estrago escapavam, destinadas a um cruel cativeiro, 21 AMOROSO, Marta Rosa. Instituto Socioambiental | Povos http://pib.socioambiental.org/pt/povo/mura/print. (último acesso em 08/01/2014) Indígenas no Brasil , 41 permitindo, contudo, a Divina Providência que nunca familiarizar-se pudessem com o uso das armas de fogo, às quais tinham o maior horror; e achadas, ou totalmente quebravam ou ao rio arrojavam; ou em pedaços reduziam para pontas de flechas, das quais usam com grande destreza e força. (Mur, 2012, p.23) Conforme diz o poeta, os Mura espalhavam o terror independentemente das ações dos brancos, ―até que a Divina Providência, sempre tão inscrutável, como adorável em seus desígnios e fins, foi servida no ano de 1784‖ (Mur, 2012, p.24). As razões da resistência Mura não são discutidas no épico e a rendição ocorre como por encanto, por intervenção da Graça. A começar pelo título, ―... na bem fundada esperança da enteira conversão, e reconciliação da grande, e feróz nação do gentio Muhúra”, em que podemos observar como sutilmente é sugerida a dizimação cultural e física contra esse povo que emperrava o processo de colonização na segunda metade do século XVIII, sofrendo um largo processo de aniquilação tribal que durou até o século XIX. O historiador Francisco Jorge dos Santos (2002, p.26)22 afirma que: ―No século XVIII, as modalidades de recrutamento da força do trabalho indígena continuavam, e sempre acompanhadas por combates, massacres e aprisionamentos‖. Portanto, a milagrosa pacificação e conversão cantadas no épico referem-se a episódios isolados, em que os Mura se submetiam à dominação branca: Data de meados 1784 a criação dos primeiros aldeamentos leigos de índios Mura ―pacificados‖. Estes aldeamentos eram freqüentados pelos Mura na época da colheita das roças. O resto do tempo a população mantinha hábitos tradicionais de pesca, caça e coleta, utilizando para tanto os furos e igarapés do sistema hidrográfico do rio Madeira. Embora discutíveis do ponto de vista da eficácia da sedentarização da população que diziam abrigar, estes aldeamentos marcaram, no entanto, uma nova fase de convivência destes grupos nativos com a colônia. 23 Os descendentes Mura, que resistiram e sobreviveram, atualmente moram em comunidades dispersas e em número bem inferior em relação à sua população do passado. 22 SANTOS, Francisco Jorge dos. Além das Conquistas e rebeliões indígenas na Amazônia pombalina. 2.ed. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 2002. 23 Fonte: http://noamazonaseassim.com.br/tudo-sobre-os-povos-indigenas-mura/ (acessado em 12-10-2013) 42 Alguns desses grupos lutam para reafirmar suas raízes; outros grupos são destituídos da maior parte de seus costumes tradicionais. Através da pesquisa realizada, foi possível perceber como os indígenas de diversas etnias eram vistos como sujeitos indispensáveis aos interesses lusitanos, que tinham por objetivo ocupar o território pertencente a eles após o Tratado de Madri. Dessa forma, o indígena torna-se o ―ouro vermelho‖ e é colocado no centro da disputa de poder. Pelo grande conhecimento da natureza local e pela força física, os índios seriam a força bruta dos colonizadores. Portanto, criar uma mão-de-obra indígena naquele momento significava estabelecer condições efetivas para a força de trabalho em prol da colonização da região. Segundo Santos (2002), além de utilizar a força física dos índios, o objetivo era dominá-los mentalmente e torná-los povos ―civilizados‖ pelo modelo de vida europeu. Principalmente, no que diz respeito à imposição da Língua Portuguesa e da religião católica, pois o cristianismo, devido ao seu caráter universal e de acordo com o pensamento eurocêntrico, funcionava no sentido de anular o respeito às diferentes crenças. Impor uma religião é desconstruir todo um sistema de crenças prévias e de referências culturais que um determinado povo traz em sua tradição. Da mesma forma, a imposição de uma nova língua, com a consequente negação da língua nativa, constitui a retirada da maior referência de um povo, pois a língua é o maior sistema de referências e de símbolos que uma cultura pode manter. Cabe lembrar que, desde a antiguidade grega, ―bárbaro é aquele que não fala a mesma língua‖; portanto, para atingir o intento, seria necessário dominar pelo discurso e impor a língua do colonizador. A língua constitui-se como um convite à reunião, à organização de uma comunidade e traz em si toda a carga cultural que um determinado grupo étnico acumulou através dos tempos. No caso específico dos Mura, eles falavam uma língua própria, a língua Mura, mas ao longo do processo de colonização a foram perdendo: 43 Desde as primeiras notícias do século XVII são descritos como um povo navegante, de ampla mobilidade territorial e exímio conhecimento dos caminhos por entre igarapés, furos, ilhas e lagos. Em seu longo histórico de contato, sofreram diversos estigmas, massacres e perdas demográficas, linguísticas e culturais. Originariamente falantes de uma língua isolada, os Mura passaram a utilizar o Nheengatú (Língua Geral Amazônica) no intercâmbio com brancos, negros e demais populações indígenas.24 Em relação à violência engendrada contra os indígenas, apontamos não somente a violência física perpetrada através dos massacres, mas também referimo-nos à violência simbólica, conceito elaborado pelo sociólogo Pierre Bourdieu (2012)25. A violência simbólica refere-se a uma forma de coação que se reconhece em uma imposição determinada, seja esta econômica, social ou simbólica. Desta forma, percebemos como essa violência esteve presente nas raízes de nossa colonização, já que através da visão europeia sobre o mundo ocidental, uma extensa fabricação de crenças no processo de socialização induziu os indígenas a se posicionarem socialmente seguindo critérios e padrões do discurso dominante e legitimando esse discurso. Segundo Bourdieu (2012), a violência simbólica é um dos meios de exercício do poder simbólico. Desta forma, a utilização da língua geral durante o processo de colonização é uma das marcas dessa violência. Segundo Marta Amoroso, A língua geral, arquitetada pelos jesuítas a partir das línguas Tupi-Guarani da costa, foi até a expulsão dos jesuítas e a criação do governo laico do Diretório Pombalino (1755), a língua oficial da colônia no Grão-Pará, imposta a todos os nativos nas missões, nas relações comerciais e nos esforços de disciplinarização para o trabalho. Até o século XIX, os Mura a utilizavam amplamente na comunicação com colonos, missionários, escravos negros e outros povos indígenas. Isto, entretanto, não quer dizer que houvessem abandonado a língua Mura. No século XX, o Nheengatu perdeu para o Português o papel de língua franca intercultural. (AMOROSO, 2009, s.p) Segundo Bourdieu, tanto a língua quanto a religião constituem-se como sistemas simbólicos estruturantes, e esses funcionam como instrumentos de conhecimento e de 24 AMOROSO, Marta Rosa. Instituto Socioambiental | Povos http://pib.socioambiental.org/pt/povo/mura/print. (último acesso em 08/01/2014) 25 Indígenas no Brasil, BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 16ª ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. 44 comunicação capazes de exercer um poder simbólico pelo fato de serem estruturados e porque simbolizam instrumentos de integração social. Portanto, utilizando a dominação linguística e religiosa ficaria muito mais fácil atingir os objetivos traçados pelos colonizadores portugueses: As ideologias, por oposição ao mito, produto coletivo e colectivamente apropriado, servem interesses particulares que tendem a apresentar como interesses universais, comuns ao conjunto do grupo. A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante (assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e distinguindo-os das outras classes); para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para a legitimização da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) [...] a cultura que une (intermédio da comunicação) é também a cultura que separa (instrumento de distinção) e que legitima as distinções compelindo todas as culturas (designadas como subculturas) a definirem-se pela sua distância em relação à cultura dominante. (BOURDIEU, 2012, p. 10-11) Nesse processo de ocidentalização, o índio, como aponta Silviano Santiago26, é duplamente despojado, pois o europeu impõe a sua história, mais precisamente o português impõe a sua versão da história ao índio, vivendo-a no palco de sua própria terra. E por uma ironia, chegando ao século XX, essa terra indígena já nem é mais sua, pois o colonizador a tomou para si numa atitude de despojamento cultural e de propriedade. Para aqueles que eram considerados ―tabula rasa‖ e agora são considerados hereges possuídos pelo Mal resta memorizar e defender como se fosse seu o discurso do outro, do colonizador. A conversão indígena aos preceitos católicos significa uma dupla ação de violência cultural, pois, ao mesmo tempo em que tenta eliminar a sua cultura original, impõe a história europeia como se fosse a história do indígena: Dentro dessa perspectiva etnocêntrica, a experiência da colonização é basicamente uma operação narcísica, em que o outro é assimilado à imagem refletida do conquistador, confundido com ela, perdendo portanto a condição única da sua alteridade. Ou melhor: perde a sua verdadeira alteridade ( a de ser outro, diferente) e ganha uma alteridade fictícia ( a de ser imagem refletida do europeu). O indígena é o Outro europeu: ao mesmo tempo imagem especular deste e a própria alteridade indígena recalcada. Quanto mais diferente o índio, menos civilizado; quanto menos civilizado, mais nega o narciso europeu; quanto mais nega o narciso europeu, mais exigente e premente a força para torná-lo imagem semelhante; quanto mais 26 SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1982. 45 semelhante ao europeu, menor a força da sua própria alteridade [...] (SANTIAGO, 1982, p.15-16) Dessa forma, faz-se necessário ressaltar um fator singular em relação ao exercício do poder simbólico que foi capaz de engendrar a assimilação de milhares de indígenas: a atuação dos padres jesuítas no processo de colonização. A Companhia de Jesus desempenhou papel fundamental nesse processo, por não utilizar a violência física como método de coerção para conseguir atingir seus objetivos. Além de constituir a elite religiosa da Igreja Católica, através de uma ordem religiosa bem preparada e intelectualmente capaz de se comunicar com os povos nativos, os padres jesuítas eram dotados de um grande poder de persuasão e convencimento em relação aos povos indígenas. Percebemos, através dos versos de Muraida, vários episódios que comprovam a forte presença das ordens religiosas na Amazônia. Por exemplo, no Argumento inicial do Canto II, o poeta anuncia que as tentativas religiosas não são suficientes para ―abrandar‖ os Mura: Já frustrados os meios, que a brandura Da religião e humanidade inspira, Quando os da força desviar procura Do Onipotente se suspende a ira, Um paraninfo desce, ao feliz Mura, Disfarçado, anuncia a Luz, que gira Da Fé, na órbita eterna, sacrossanta; O apóstata confunde; ao Mura espanta. (Mur, II) Desta forma, percebemos nos versos acima que após as frustradas tentativas religiosas, apenas um milagre poderia resolver a resistência Mura. Então, o Mura celeste é enviado para intervir no processo de pacificação. Durante o processo de colonização, os jesuítas vieram para colonizar, catequisar e dominar várias comunidades indígenas sob o discurso da moral cristã. Eles impuseram um regime de disciplina e obediência jamais visto. Seguindo a doutrina dos jesuítas, e convertidos ao catolicismo, os índios tornaram-se ―escravos‖ sem perceber que o eram e produziram muitas riquezas para a Companhia de Jesus. Diante desse cenário, os índios em nada se 46 pareciam com a fama de preguiçosos e avessos ao trabalho, conforme apregoado por alguns. Contra esse argumento de aversão ao trabalho, citamos Sérgio Buarque de Holanda (1994)27, para lembrar a atuação dos jesuítas em relação aos indígenas: Nenhuma tirania moderna, nenhum teórico da ditadura do proletariado ou do Estado Totalitário, chegou sequer a vislumbrar a possibilidade desse prodígio de racionalização que conseguiram os padres da Companhia de Jesus em suas missões . (HOLANDA, 1994, p.11) Portanto, a pretensa fama de avessos ao trabalho relacionada aos indígenas, na verdade, revela um olhar preconceituoso do colonizador sobre o colonizado, pois o sistema de valores do indígena é outro, diverso do caráter mercantil do colonizador. Da mesma forma que Colombo estranhava os índios aceitarem objetos sem valor em troca de ouro, o sistema de valores estabelecidos entre europeus em nada se parecia com o sistema estabelecido entre os indígenas. O colonizador via o trabalho como forma de enriquecimento rápido, enquanto os habitantes autóctones o utilizavam apenas para subsistência. Devido a esse impasse e à defesa da não-escravização dos índios, tempos depois no processo de colonização, a mão de obra tornou-se negra, para dar conta da vasta produção latifundiária implantada no Brasil. Após as Leis de Liberdades, em 1755, os jesuítas foram expulsos pelo Marquês de Pombal, já que os seus interesses atrapalhavam os do governo e representavam um obstáculo ao projeto pombalino de trabalho indígena, devido à relação de trabalho e de comunidade que os padres estabeleciam com os indígenas. Após essa expulsão, houve para os índios apenas uma troca de senhores, porém senhores menos benevolentes que os padres que os protegiam da escravidão e do massacre. Segundo António Sérgio (1978)28: A paixão maior de Pombal foi o ódio aos jesuítas, - que atacou, nem sempre com os motivos com que nós hoje o criticamos, mas às vezes pelos motivos precisamente contrários. Em setembro de 57 desferiu o Ministro o primeiro golpe, quando foi demitido o confessor do rei, jesuíta, e proibidos os jesuítas de entrar na corte. 27 HOLANDA. Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. RJ: José Olympio, 1994. SÉRGIO, António. Breve interpretação da História de Portugal. Lisboa: Livraria Sá da Costa editora, 8ª ed, 1978. 28 47 Depois, denunciou a Ordem perante o papa (Benedito XIV) que nomeou o cardeal Saldanha, amigo de Pombal, ―visitador e reformador‖ da Companhia de Jesus. Este, em 15 de maio de 1758, proibiu o comércio aos jesuítas. Uma tentativa contra o rei, na noite de 3 de setembro de 1758, deu pretexto para mais afinco na supressão da Companhia, que Pombal declarou cúmplice na tentativa de regicídio. Depois de sumário julgamento, foram executados em Belém o duque de Aveiro, o marquês e a marquesa de Távora, o conde de Atougguia e outras personagens, com requintes de crueldade .Em 19 de janeiro de 59, eram confiscados os bens pertencentes à Companhia; em 3 de setembro, expulsos de Portugal todos os seus padres; e ainda quatro anos depois satisfazia Pombal o seu rancor, mandando queimar pela Inquisição o pobre jesuíta Malagrida, velhinho doido, que escrevera e declamara alguns dislates em prosa mística. A confiscação dos bens dos condenados deu importantes somas ao Tesouro. (p.105-106, grifos nossos) Com a saída dos Jesuítas, os colonizadores enviados às missões pelo Marquês de Pombal vieram da Europa com uma enorme disposição para desbravar o ―Novo Mundo‖. Eles precisaram de um grande espírito aventureiro para enfrentar o clima e as diversas variantes dos trópicos. A ânsia pela prosperidade sem custo e sem trabalho demorado, a busca por títulos honoríficos e por riquezas fáceis fizeram com que os colonizadores, seja pelo argumento da religião seja pela ampliação do império ultramarino, viessem com toda a força para a colônia do Grão-Pará e Maranhão. Em contato com a cultura local, os portugueses mostraram grande capacidade de adaptar-se ao meio e às condições adversas que o novo continente lhes apresentava. Demonstrando disposição para a aventura, os portugueses foram colonizadores voltados para a exploração: O princípio que, desde os tempos mais remotos da colonização, norteara a criação da riqueza no país, não cessou de valer um só momento para a produção agrária. Todos queriam extrair do solo excessivos benefícios sem grandes sacrifícios. Ou, como já dizia o mais antigo dos nossos historiadores, queriam servir-se da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, ―só para a desfrutarem e a deixarem destruída‖. (Frei Vicente do Salvador Apud HOLANDA, 1994, p.21) Em Raízes do Brasil, Sergio Buarque de Holanda analisa a colonização espanhola e portuguesa na América através da analogia entre o semeador e o ladrilhador. Segundo o autor, o semeador é o colonizador português e o ladrilhador é o colonizador espanhol; ele aproxima e diferencia os vizinhos ibéricos no sentido de explicar como dois povos que estiveram unidos em certos momentos da História ibérica puderam encetar diferentes formas 48 de colonização nas colônias americanas. Enquanto a Coroa espanhola fundava cidades no interior de suas colônias, permitia a abertura de universidades e o uso da imprensa, a Coroa portuguesa ―semeava‖ cidades pouco planejadas nos litorais e sem infraestrutura adequada, cujo objetivo era o enriquecimento rápido e fácil. Quanto mais perto das águas, mais fácil seria o escoamento das riquezas para a metrópole portuguesa. Dessa forma, o colonizador português não demonstrava esforços para que a colônia fosse uma extensão do Reino. As sementes eram jogadas de forma aleatória e sem a intenção de permanência, atitude colonizadora que atualmente pode ser percebida em muitas cidades que não tiveram nenhum planejamento de crescimento e permanecem desordenadas. Já o colonizador espanhol era meticuloso em suas construções. A respeito do modelo de colonização encetado pelos portugueses, recorremos também às reflexões de Boaventura de Sousa Santos, em Entre ser e estar: raízes, percursos e discursos de identidade29 para que possamos observar as variantes envolvidas no processo de colonização portuguesa. Suscitamos aqui as relações que o autor estabelece entre Próspero e Caliban30: Próspero, representando a figura do colonizador, e Caliban, a figura do colonizado. Este último, nomeado como anagrama da palavra canibal, representa o estereótipo de selvagem designado pelos brancos. Porém, Caliban é também aquele que sobrevive, aquele que resiste ao domínio de Próspero, ainda que sua cultura seja massacrada e substituída pela cultura branca. Estabelecendo relações sobre esses personagens e a conflituosa relação entre os Mura e os portugueses, indagamos: afinal, não seria Próspero o verdadeiro bárbaro, aquele que não respeita a cultura e o espaço do Outro? Retomaremos essa discussão no capítulo 4, ao discutir as relações entre o Mura e o Mouro. 29 SANTOS, Boaventura de Sousa. ―Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e interidentidade.‖ In: Entre ser e estar: raízes, percursos e discursos de identidade (Orgs.) Maria Irene Ramalho e Antônio Sousa Ribeiro. Porto: Edições Afrontamento, 2001. 30 Próspero e Caliban são personagens da peça A tempestade (The Tempest) de William Shakespeare. Próspero é um mago de amplos poderes e habita uma ilha junto com sua filha Miranda. Próspero tem como escravo a seu serviço Caliban, um homem adulto e disforme. 49 Boaventura Santos reflete sobre o colonialismo subalterno português devido à posição semiperiférica de Portugal em relação aos demais países europeus. Tal modelo de colonização ―semeador‖ e de exploração gerou, segundo o autor, uma colonização incerta e de um colonialismo duplo, pois, ao mesmo tempo em que Portugal colonizava, era de certa forma colonizado pela Inglaterra, e que ―o subdesenvolvimento do colonizador, produziu o subdesenvolvimento do colonizado‖ (p.28). O autor questiona: ―O enigma é, pois: Caliban europeu pôde ser Próspero Além-mar?‖ (p.54) Ao comentar sobre os jogos de espelhos entre Próspero (o colonizador) e Caliban (o colonizado), o autor mostra-nos que: (...) os portugueses nunca puderam instalar-se comodamente no espaço-tempo originário do Próspero europeu. Viveram nesse espaço-tempo como que internamente deslocados em regiões simbólicas que não lhes pertenciam e onde não se sentiam à vontade. Foram objecto de humilhação e de celebração, de estigmatização e de complacência, mas sempre com a distância de quem não é plenamente contemporâneo do espaço-tempo que ocupa. Forçados a jogar o jogo dos binarismos modernos, tiveram dificuldades em saber de que lado estavam. Nem Próspero nem Caliban, restou-lhes a liminaridade e a fronteira, a interidentidade como identidade originária.( SANTOS, 2001, p. 53-54, grifos nossos) No entanto, em oposição a essa condição semi periférica portuguesa, os portugueses buscaram reforçar através da política expansionista a marca dos ―barões assinalados‖, escolhidos por Deus para levar a cabo a dilatação de seu império. Para além de referências aos feitos portugueses, daqueles que descobriram caminhos nos oceanos ou nos rios, desbravaram matas e buscaram atingir a sua utopia, seja a pessoal ou a nacional. Recorremos às palavras de Lourenço em que afirma: O traumatismo histórico sem precedentes ocasionado pela descoberta e conquista do Novo Mundo está longe de ter sido reabsorvido. Parece haver nele alguma coisa contrária ao habitual embranquecimento póstumo das múltiplas tragédias culturais que entretecem a violenta trama da História. (LOURENÇO, 2005, p.8384) O traumatismo histórico mencionado por Lourenço está no cerne da questão colonizadora: os portugueses almejavam o sucesso da colonização e os índios queriam defender o seu território. Porém, o progresso e a fixação portuguesa desejados só seriam bem 50 sucedidos quando os indígenas aceitassem sobreviver da comercialização de mercadorias, e do trabalho assalariado. Na estrofe a seguir, está claro o discurso persuasivo na tentativa de convencer os Mura a praticar o comércio e se dedicar a grandes plantações para atender aos interesses dos colonizadores que observavam a abundância natural das terras amazônicas e seu grande potencial econômico: Tereis nos povos vossos numerosos Abundantes colheitas sazonadas, Vereis nos portos vossos vantajosos Comércios florescer, e procuradas Serão as armas vossas: poderosos Enfim sereis, amadas, invejadas Serão vossas venturas; finalmente Podereis felizes ser eternamente (Mur, III, 8, grifos nossos) No entanto, apesar da promessa de felicidade eterna caso os Mura aceitassem viver conforme os colonizadores queriam, sabemos que o trabalho indígena poderia ser considerado de semiescravidão, pois, muitas vezes, o salário não era pago em dinheiro e o trabalhador tinha de cumprir dez horas de jornada diária. No caso específico dos Mura, eles não aceitaram o modelo imposto pelos colonizadores e lutaram até o limite das suas forças para resistir à dominação, apesar do poema de Wilkens tentar esvaziar a complexidade dos vários conflitos existentes, em proveito de uma homogeneização que se quer feita sem nenhum tipo de atribulação. Ao longo de todo o poema, percebemos que a luta travada se dá entre Deus e o Diabo e a fé cristã é a responsável pela conversão. Para os ―civilizados‖ daquele tempo, era normal atribuir o triunfo sobre os indígenas às orações daqueles que estavam a serviço da pregação do Evangelho da salvação e, não, aos ataques militares. Porém, ao analisar outras fontes históricas, percebemos que os Mura pacificados eram membros de um grupo que não conseguiu mais resistir aos ataques lusitanos, às epidemias trazidas pelas doenças dos 51 brancos, assim como em pequeno número era difícil lutar com arco e flecha contra as armas dos brancos: Do mesmo modo, se um dos mitos da colonização é pautado pela passividade ou resistência inócua dos povos indígenas, o que se revela em livros como este, é justamente o contrário mostrando que a política indigenista, os confrontos interétnicos e os atos de protesto e rebelião constituíram elementos de singular importância na construção da história da Amazônia. (SANTOS, 2001, prefácio) Antes, durante e depois da administração pombalina ocorreram seguidos ataques contra a etnia Mura. Inclusive, com a participação de nações rivais desses chamados ―índios de corso‖, como, por exemplo, os Maués, os Parintintin e os Mundurucu. Tal situação permanente de conflitos envolvendo diferentes populações indígenas levou a uma extensa mortandade indígena, favorável aos interesses dos colonizadores. O território imenso ocupado pelos Mura é um tema recorrente na história colonial da Amazônia; ao qual se associou o temor de um levante generalizado de tal povo contra a colonização. Para a maioria dos autores, isso explica as diversas ações militares movidas contra o grupo ocorridas a partir de meados de 1774. Em diversos contextos, os colonizadores retomavam os argumentos dos Autos da Devassa e exigiam o completo extermínio deste povo para evitar a ruína da ―civilização‖ na Amazônia. (AMOROSO, 2009, s.p) O envolvimento Mura em conflitos culminou na sua participação contra o poder colonial, ao lado das milícias rebeldes, no movimento conhecido como Cabanagem ─ revolta paraense de caráter popular contra a política imperialista brasileira ocorrida entre 1835 e 1840 ─ o mais importante movimento nativista da história brasileira. Diante de tal estado de afetos, não seria difícil supor que alguns dos povos inimigos dos Mura pudessem ter sido persuadidos pela administração colonial para lutarem ao lado das forças conservadoras e naturalmente contra os Mura, conforme sugere Yurgel Caldas: Após o término da Cabanagem, a repressão colonial aos Mura continuou com fôlego renovado e, somada às constantes epidemias, criou-se um quadro de extermínio vertiginoso e até então inédito. A população mura decrescia de maneira assustadora a ponto de o Mapa Estatístico dos Aldeamentos dos Índios ter indicado, em 1856, a presença de 1.300 muras em toda a região referente ao atual Estado do Amazonas – dado alarmante e sintomático para um registro de um total de cerca de 60.000 indivíduos trinta anos antes. (CALDAS, 2002, s.p) Segundo dados numéricos, foi somente após o largo processo de dizimação contra os Mura, com várias expedições punitivas contra eles e massacre inestimável durante a 52 Cabanagem, que eles aceitaram ―coexistir pacificamente com os brancos depois das enormes perdas populacionais ocorridas‖ (SOUZA, 1994, p.60). A dizimação de uma etnia em números drásticos traz à tona as reflexões de Eduardo Lourenço (2005, p.13) sobre a colonização do Novo Mundo, em que ele afirma que a Europa colonizou o mundo por razões boas e más: ―Essa colonização irreversível nunca lhe será perdoada. É o pecado original, a marca específica do seu destino.‖ Esta é a marca da barbárie humana em nome do progresso e da ―civilização‖, conforme disse Walter Benjamin, é a marca da degradação da original visão idílica de Colombo sobre o paraíso perdido, ―converteu-se no espelho invertido, mais do que no espelho ampliado do continente de Colombo‖: A história da América e, em particular, a da América latina, é a de degradação rápida da original visão idílica de Colombo, quer dizer, a conversão do novo mundo, objeto de predação sem grandes problemas de consciência, em sujeito da sua própria História. Primeiro como recalcamento bem-sucedido da Conquista e, por fim, rasura da própria Descoberta. Esse processo teve menos lugar entre a América submissa e colonizada e a Europa colonizadora que no interior desse Mundo Novo partilhado em dois entre a herança de Colombo e a de Cabral. Cedo a presença africana lhe acrescentará um elemento exterior que, pouco a pouco, a colorirá de uma música original. Com o índio, ao fundo, recalcado. (LOURENÇO, 2005, p.15) A partir dessa citação, podemos afirmar que a experiência colonial portuguesa transfigurou-se, trocou os objetos, índios por negros, mas continuou a perpetrar a sua ideologia mercantilista e exploratória. A colônia do Grão- Pará, assim como o Brasil colônia, foram vistos como local de enriquecimento fácil e ilícito. Tanto no discurso histórico quanto nos versos de Muraida, percebemos uma insistente referência à nação Mura como abominável. Em oposição, o historiador Francisco Jorge dos Santos (2002) os denomina como admiráveis. Santos “os torna admiráveis ao reconstituir algo da crônica de uma etnopolítica desse povo‖. O historiador lança o olhar sobre o povo Mura com a perspectiva da História que valoriza o lado menos conhecido da experiência colonial, o da resistência e da contestação por parte dos indígenas colonizados, pois já sabemos que a versão do colonizador nos foi amplamente transmitida e divulgada pelos meios 53 oficiais. O posicionamento de Santos denuncia que não houve passividade na construção da história da Amazônia: As ações armadas pelos índios, até certo ponto, eram inversamente proporcionais às agressões cometidas pelas tropas de resgates que reduziam povos inteiros ao cativeiro, ou àquelas deflagradas pelas expedições punitivas que buscavam – ironia da linguagem- ―pacificar‖ populações consideradas indômitas e ferozes. (SANTOS, 2002, p. 10) No episódio da Cabanagem, Marta Amoroso relata que, apesar de todos os esforços para vencer a força dos Mura, eles representaram uma presença marcante nos confrontos armados ocorridos em todo o território da Amazônia brasileira e foram identificados como ―cabanos‖, termo que designava os inimigos das forças do governo. E por essa atitude sofreram a represália da escravização, do extermínio e do desterro para outras regiões do Império. 2.2 A discussão sobre o cânone Em estudos sobre as origens da literatura amazonense de Mário Ypiranga Monteiro e Márcio Souza, Muraida aparece como representante da literatura produzida durante o período colonial, em estilo épico, pelo fato de retratar o espaço amazônico e uma das etnias que viviam nesse espaço, apesar de ter sido escrito por um militar português. Até o final do século XIX, os livros no Amazonas eram escritos, de um modo geral, por autores que não tinham vínculo de nascimento com a terra. Na verdade, o primeiro poeta de fato nascido no Amazonas foi Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha31. 31 “Bento Aranha é, de fato, o primeiro poeta e dramaturgo nascido em território, hoje, Amazonense. Nasceu em Barcelos, em 1769; morreu em Belém, em 1811. [...] não teve tempo para ver sua obra publicada em volume. Seu filho, corajoso aventureiro, político e ―literato‖ [...] foi seu primeiro editor e, como tal, pode ter selecionado as peças literárias de seu pai que mais se adequassem aos propósitos de fundar uma literatura feita no Amazonas antes de a própria fundação como província, de que – como já foi dito – seria o primeiro presidente. Desta forma, as Obras de Bento Aranha, publicadas em 1850, em Lisboa, e reeditadas em 1899, no Pará, ambas (gêmeas) organizadas por João Batista, seu filho, podem conter cortes de peças literárias inadequadas aos propósitos deste, bem como a inclusão apócrifa de outras que cumpririam o papel político desejado para o momento histórico..‖ MATOS, Maurício. ―Sobre a busca de um eldorado tropical na Amazônia das obras de Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha‖. In: RIOS, Otávio (org.). Arquipélago Contínuo: literaturas plurais. Manaus: UEA Edições, 2011. 54 Diante da problemática questão sobre o pertencimento da literatura produzida no período colonial, iniciamos uma discussão sobre cânone literário, levando em consideração o que nos diz Pizarro (1993) sobre o problema da categorização dessa literatura que é produzida além das fronteiras peninsulares de Portugal: Dominação e submissão estabelecerão a ordem da cultura e ditarão o Canon da literatura que desembarca, mudando para a ilegitimidade as manifestações equivalentes das culturas originárias. O canon, então é dominado pela escritura e as formações discursivas construídas a partir dela; o Canon é o gênero que se institui de acordo com o modelo peninsular, o absoluto estético da identidade frente à sua ocupação, desde sua perspectiva, indefinido e menor da alteridade. Este Canon rege os critérios da história literária, como os da historiografia que o regulará mais tarde, como disciplina que experimenta, recordando a expressão de Foucault, "uma repugnância singular em pensar a diferença, em descrever os desvios e dispersões, em dissociar a forma do idêntico". (PIZARRO,1993, p.20) Muraida é um texto literário que, apesar de ter sido escrito a exemplo do modelo peninsular, permanece `a margem do cânone e trata das relações de dominação e submissão, marcas recorrentes na literatura do período colonial. O poema de Wilkens aponta os caminhos e descaminhos que os colonizadores percorreram para cumprir seu ideal de exploração da terra ―descoberta‖. Para além de Muraida, faz-se necessário mencionar que a etnia Mura também ganha papel de destaque em outros textos literários igualmente deixados à margem do cânone. A etnia Mura é mencionada no romance Os Selvagens, do escritor português Francisco Gomes de Amorim, que veio para Belém do Pará no século XIX, ainda no período em que a região estava sob á égide do império colonial português no ultramar. Na obra de Gomes de Amorim, percebemos a ideologia imperialista portuguesa, ao narrar a história dos irmãos Goataçara e Porangaba, focalizando como a etnia Mura é confrontada com a etnia Mundurucu sob o pano de fundo do episódio histórico da Cabanagem. Da mesma forma, podemos observar a repercussão desse olhar português através de autores brasileiros que também se propuseram a representar a etnia Mura na literatura, a 55 saber: Alberto Rangel, no conto ―A decana dos Muras‖, e Erasmo Linhares, no conto ―A Mura‖. Nestes dois últimos, percebemos como os pressupostos imperialistas continuam a influenciar a cultura do Ocidente ainda no século XX. Assim como em Muraida, nestes textos, a etnia Mura exerce de alguma maneira um papel de resistência diante do processo de fixação dos portugueses em solo amazônico e os desdobramentos dessa luta, que durou muitos anos e reduziu drasticamente o número de indivíduos dessa etnia. Apesar de ser ambientada na região amazônica e possuir elementos dessa cultura, a expressão literária, que se revela no épico de Wilkens, reproduz a visão etnocêntrica do colonizador português. Tendo em vista a leitura das tensões entre os dois épicos em análise, defendemos que Muraida, se comparado a Os Lusíadas, configura-se como o olhar e a voz do colonizador, pois o olhar camoniano, mesmo sendo paradoxal, reflete a importância do império português sobre os gentios. Por razões ainda não totalmente definidas, mas amplamente discutidas em encontros e trabalhos acadêmicos, Muraida não está inserida nem no cânone da tradição literária portuguesa nem da tradição literária brasileira, apesar de ter sido produzida no mesmo período das obras O Uraguai (1769) e Caramuru (1781), de Basílio da Gama e Santa Rita Durão, respectivamente. Cito como exemplo a tese de doutoramento de Caldas (2007), na qual o autor pleiteia um lugar de destaque para esse épico no cânone brasileiro como texto fundador da literatura amazônica: Mais que inserir Muhuraida no percurso da crítica literária sobre o Brasil do século XVIII, este trabalho tem como objetivo pensar sobre o modelo de formação do cânone literário nacional, hegemônico e excludente por excelência. Dessa perspectiva, a presença do poema épico de Henrique João Wilkens – que trata da conversão do ―bárbaro‖ Mura ao Catolicismo, no ano de 1785 – acaba por perturbar a estrutura do próprio cânone e suas linhas rígidas de constituição, que se dá por meio da exclusão. Ao enfocar as condições da redução da nação indígena Mura e o processo que a levou à conversão à fé católica, o poema de Wilkens acaba por revelar a capacidade de organização indígena na defesa de seus territórios.(CALDAS, 2007, p.16) Dentre os motivos apontados por David Treece (1993) para a não inserção do texto de Wilkens no cânone literário, o autor ressalta a ausência de um casal amoroso para valorizá-lo 56 como um texto canônico da épica árcade. Pois em Muraida não há conflitos amorosos, nem sequer personagens formando pares amorosos como há nas outras duas obras da épica árcade brasileira: Cacambo e Lindóia ou Paraguaçu, Diogo e Moema. Da mesma forma, nesses outros textos literários existe uma tentativa de apresentar o índio na figura de herói nacional, dando-lhe um lugar de destaque e as características do bom selvagem. No entanto, em Muraida, devido à grande resistência Mura, a figura do índio é descrita como o mau selvagem até o momento em que ele aceita a Luz divina e o batismo católico. Outra questão a ser mencionada é o fato de o épico ter sido produzido numa região que nem era reconhecida como pertencente ao Brasil no século XVIII, conforme já mencionamos anteriormente, pois a região amazônica era administrada de forma separada do restante do Brasil. Desta forma, questionamos: Como classificar um texto como Literatura Brasileira se o mesmo foi escrito por um autor português e num território que ainda não pertencia ao Brasil? Longe de querer reduzir esse impasse a uma questão simplista de geografia política, buscamos refletir, sobretudo, sobre o fato de não haver naquele momento uma identidade cultural e um sistema literário estabelecido na região que o identificasse com a ideia de nação brasileira. Segundo Benedict Anderson (2008, p.32)32, a ideia de nacionalidade (nation-ness) é um artefato cultural particular. A nação é ―uma comunidade política imaginada e imaginada como implicitamente limitada e soberana‖. Segundo o antropólogo, não se poderia aplicar o conceito de nação antes do século XVIII, pois, enquanto artefato cultural imaginado, a nação tem raízes em dois sistemas pré-existentes: a comunidade religiosa e o reino dinástico. As afirmações de Anderson remetem às considerações de Ernest Renan 33 sobre a formação das 32 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 33 RENAN, Ernest. ―Que é uma nação?‖. Trad. Samuel Titan Jr. Plural, no4. USP, 1997. p.154-175, 1997. 57 nações. Renan afirma que a essência de uma nação está em que todos os indivíduos tenham muito em comum e também que todos queiram viver juntos, apesar de possíveis diferenças de línguas e etnias. E diante dessa afirmação, o autor afirma que as considerações étnicas não foram importantes na constituição das nações modernas: ―Uma nação é uma alma, um princípio espiritual, desejo de viver em conjunto. A vontade de continuar a fazer valer uma herança que se recebeu íntegra.‖ (RENAN, 1997, p.173) A investigação histórica traz de volta à luz os atos de violência que ocorreram à origem de todas as formações políticas, mesmo daquelas cujas consequências foram as mais benéficas. A unidade se faz sempre por meios brutais. (RENAN, 1997, p.161) Desta forma, o período em que Muraida foi produzida e a intenção poética desvelada no poema não podem ser consideradas como fonte inicial de uma nação brasileira, conforme o nosso entendimento. O poema de Wilkens é a representação da/na Amazônia do imaginário português sobre a terra recém desbravada, por meio da conquista e expansão de territórios ultramarinos em nome da Coroa Portuguesa. Tal fato não desmerece o texto como um texto de representação da terra, porém não podemos afirmar que é um texto de formação de uma nacionalidade, visto que a discussão sobre nacionalidade só aconteceria no século XIX e ainda conforme a definição de Renan, ―a nação revela o desejo de viver junto‖, concepção que não pode ser concebida nas complexas relações de colonização no período da Amazônia pombalina. Lembramos que o épico ficou ―esquecido‖ durante mais de um século e meio. Após a publicação portuguesa em 1819, somente em 1993 foi realizada uma edição brasileira. Portanto, a primeira publicação não ajudou na divulgação expressiva da obra, apenas com a segunda edição, já no final do século XX, é que houve a iniciativa de divulgação e 58 reconhecimento do valor literário do texto. Em meados do século XX, surge o primeiro estudo crítico sobre Muraida, o artigo ―A Muhraida‖ de Mário Ypiranga Monteiro34. Wilkens, portanto, como um poeta à margem do sistema de recepção do texto, não contribui para a construção de uma identidade amazônica, pois, segundo Barthes, o texto só existe no espaço do leitor, da interlocução entre escrita e leitor. Bourdieu (2012) ainda nos lembra que o texto sendo, em primeiro lugar, representação, depende tão profundamente do conhecimento e do reconhecimento. Recorremos ao conceito de recepção para embasar o argumento exposto. A estética da recepção considera a literatura um sistema que se define por produção, recepção e comunicação, ou seja, por um relacionamento dinâmico entre autor, obra e leitor. Assim, se Muraida não era contemplada por esse relacionamento, logo não pode ser considerada um texto de formação. O ato da leitura apresenta dupla perspectiva: uma, implicada pela obra; outra, projetada pelo leitor de determinada sociedade. Daí seu interesse pelas condições sócio históricas das diversas interpretações recebidas pelo texto. Portanto, de acordo com a estética da recepção, consideramos que o discurso literário seja fruto do seu processo receptivo, ―enquanto pluralidade de estruturas de sentidos historicamente mediados.‖, pois, o texto representa um sistema no qual se combinam elementos de linguagem com elementos de sentido. Nesse sistema, não pode deixar de haver espaço para a participação daquele que vai atualizar essas combinações: o leitor. No triângulo formado pelo autor, obra e público (leitor), este último não constitui só a parte passiva, mero conjunto de reações, mas uma força histórica, também criadora. A vida histórica da obra literária é inconcebível sem o papel ativo que desempenha seu destinatário. Somente por ação deste, a obra se incorpora ao horizonte variável de experiências de uma continuidade, na qual se realiza a transformação constante de simples recepção numa compreensão crítica, de recepção passiva em recepção ativa, de normas estéticas aceitas numa criação nova que as venha superar. Os caracteres histórico e comunicativo da literatura supõem um diálogo (dinâmico e permanente) entre uma obra, o público e a nova obra, que se pode entender como uma relação entre informação e receptor, entre estímulo e 34 Publicado no Jornal de Letras, n° 193/194, 1966. 59 resposta, entre problema e solução. Rompendo-se o círculo fechado de uma estética de produção da representação, dentro do qual costuma se mover a metodologia literária, chegar-se-á, por esse caminho, a uma estética da recepção, única solução para o problema de como compreender a seqüência histórica das obras literárias no conjunto da história da literatura. (JAUSS Apud PIRES, p.111-112) De acordo com os pressupostos acima, reafirmamos que Muraida precisa ser pensada dentro de uma gama de textos produzidos pelos primeiros desbravadores da Amazônia, mas que ficaram esquecidos ou silenciados, à espera de um leitor que lhes desse sentido. Por isso mesmo, recorremos a Antonio Candido para discutir a formação do cânone brasileiro: Levando a questão às últimas conseqüências, vê-se que no Brasil a literatura foi de tal modo expressão da cultura do colonizador, e depois do colono europeizado, herdeiro dos seus valores e candidato à sua posição de domínio, que serviu às vezes violentamente para impor tais valores, contra as solicitações a princípio poderosas das culturas primitivas que os cercavam de todos os lados. Uma literatura, pois, que do ângulo político pode ser encarada como peça eficiente do processo colonizador. [...]A literatura desempenhou papel saliente nesse processo de imposição cultural, bastando lembrar que os cronistas, historiadores, oradores e poetas dos primeiros séculos eram quase todos sacerdotes, juristas, funcionários, militares, senhores de terras – obviamente identificados aos valores sancionados da civilização metropolitana. Para eles as letras deviam exprimir a religião imposta aos primitivos e as normas políticas encarnadas na Monarquia; mas, mesmo quando desprovidas de aspecto ideológico ostensivo, seriam uma forma de disciplina mental da Europa, que deveria ser aplicada ao meio rústico a modo de instrução e defesa da civilização. (CANDIDO, 1997, 199-200, grifos nossos) Nesta passagem, Candido refere-se ao período colonial anterior ao Arcadismo. Durante o Arcadismo o autor considera que ocorreram os primeiros indícios de uma identidade brasileira. Porém, apesar de Wilkens estar cronologicamente situado no século XVIII, portanto, no período do Arcadismo, percebemos que Muraida enquadra-se na definição de Cândido referente ao período anterior, numa perspectiva de autoria que ―do ângulo político pode ser encarada como peça eficiente do processo colonizador‖. Dessa forma, Wilkens está para uma concepção de colonialismo mais pertinente ao século XVII do que ao século XVIII, um poeta totalmente voltado aos interesses da Coroa Portuguesa e ―identificado com os valores da civilização metropolitana‖. Outro fator a ser considerado para 60 situar Muraida ―como peça eficiente do projeto colonizador‖ é a presença de Wilkens num cenário amazônico ―distante‖ do Brasil, por razões políticas, geográficas e ideológicas. E mesmo em relação aos textos consagrados do Arcadismo, Candido problematiza que ―Basílio da Gama e Durão ―não foram tão poetas brasileiros quanto se pensa‖ [...] Por isso, ―literatura pátria‖, ―nossas letras‖, se referem sempre na sua pena à portuguesa.‖ (CANDIDO, 1975, p.342). De acordo com as palavras de Candido, durante o Arcadismo brasileiro há os primeiros sinais de uma vontade de ler Literatura Brasileira, porém somente no Romantismo é que veremos uma tentativa de nacionalidade mais manifesta. Antes desse período ―os nossos autores nada exprimiam de diferente dos portugueses‖ (p.342). Até mesmo aqueles que eram nascidos no Brasil colônia não poderiam ser chamados de precursores de uma ―certa‖ nacionalidade, pois não colocaram em seus versos nenhuma ideia tipicamente brasileira. Até mesmo após a Independência do Brasil, a questão da identidade nacional não se construiu rapidamente, poderíamos dizer que uma literatura tipicamente nacional só se formaria na segunda geração do Modernismo, já no século XX. A problematização sobre quando o Brasil passou a ter uma literatura independente é ampla: ―Na medida em que só nos conhecemos quando nos opomos, a alguém ou a alguma coisa, esse diálogo reivindicatório com Portugal foi um bom auxiliar de crescimento.‖ (CANDIDO,1975,p.343) Candido faz a sua a análise sobre a construção da nacionalidade brasileira, porém observando a questão Ocidental da universalidade: o desejo e a imposição de tornar universal a cultura greco-latina. [...]A nacionalidade brasileira e as suas diversas manifestações espirituais se configuram mediante processos de imposição e transferência da cultura do conquistador, apesar da contribuição (secundária em literatura) das culturas dominadas, do índio e do africano, esta igualmente importada. Indo mais longe e desenvolvendo uma afirmação feita há pouco, poderíamos mesmo dizer que os padrões clássicos no sentido amplo, abrangendo todo o período colonial, foram eficazes, por vários motivos e sob as suas diversas formas: Humanismo de influência italiana, no século XVI, Barroco de influência espanhola, no século XVII, Neoclassicismo de influência francesa, no século XVIII. Em qualquer dos casos, tratava-se de uma disciplina intelectual coerente que levou a inteligência a se exercer com rigor; isto lhe deu consistência e resistência na sociedade atrasada e por vezes 61 caótica do período colonial. Além disso, a convenção Greco-latina era fator de universalidade, uma espécie de idioma comum a toda a civilização do Ocidente; por conseguinte, na medida em que a utilizaram, os escritores do Brasil integraram nesta civilização as manifestações espirituais de sua terra, dentro, é claro e como ficou dito, do propósito colonizador de dominação, inclusive através da literatura. (CANDIDO,1997, 213-214, grifos nossos) Outrossim recorremos também a Eduardo Portela35 no que respeita à produção literária. Segundo o autor, percebemos que em termos de produção literária, Portela considera que a Literatura Brasileira pode ser dividida em três grandes períodos: I- O longo início; II- A formação em curso; III- A plena autonomia. Segundo o autor: O primeiro período começa a assinalar uma regressão crescente do elemento português e uma progressão também crescente do elemento brasileiro. Articula-se essa etapa em torno do Barroco, do Rococó e do Arcadismo. Ela registra as primeiras discordâncias ponderáveis entre os interesses da Colônia e os da Metrópole. Discordâncias que se vão refletindo na poesia de Gregorio de Matos ou na oratória de Vieira. [...] Mas os árcades da Escola Mineira, apesar da sua participação revolucionária, ―inconfidentes‖ que foram, não criaram uma poesia brasileira. Fizeram uma poesia predominantemente portuguesa. Estávamos no término de um longo início. (PORTELA, 1975, p.34-35, grifos nossos) Durante o período que o autor denomina de ―formação em curso‖, podemos perceber elementos de uma dicção poética de nacionalidade. No entanto, apesar do próprio Romantismo nascer em consonância com um momento de ruptura política e enaltecer algumas características brasileiras, não podemos confundir autonomia literária com independência política, pois se tivemos uma independência política da metrópole em 1822, não tivemos de fato uma independência em termos de autonomia cultural e nem mesmo de autonomia econômica, pois a nossa ―pseudo-independência‖ já nasceu com uma imensa dívida externa, escamoteando uma ―pseudo-libertação‖ da metrópole portuguesa; com vínculos culturais que só seriam realmente reavaliados e rompidos pelo Modernismo. Citamos como exemplo a tentativa do Indianismo de enaltecer o índio: Motivados pelo desejo ingênuo de ser tipicamente brasileiros, ostensivamente brasileiros, os escritores indianistas terminavam por enfocar o Brasil de uma perspectiva europeia ─ o Brasil como natureza. A perspectiva europeia consistia em 35 PORTELA, Eduardo. Literatura e Realidade Nacional. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 3ª ed, 1975. 62 observar no Brasil aquilo que era diferente dela. Estava seduzida pelo exótico. Valorizava o índio e a selva. Mas por serem agentes de exotismo, por serem discrepantes. (PORTELA, 1975, p.35-36) Em Muraida não há essa tentativa de enaltecer o índio. Ele é o elemento exótico, o diferente que precisa ser iluminado pela fé cristã. O índio aparece no segundo plano de uma luta que é travada entre Deus e o Demônio e a vitória da Graça divina é enaltecida ao fim e ao cabo. Em Muraida, não há, desta forma, elementos que possam apontar a descoberta de uma linguagem que pudesse perceber a literatura como vivência de uma determinada nacionalidade, fato que só seria realmente efetivado em 1922: ―A linguagem como pedra de toque de um estilo nacional. Porque a linguagem é meio de apreensão e de expressão da realidade.‖ (PORTELA, 1975, p.25) Para enriquecer a nossa discussão, recorremos ao estudo realizado por Camila do Valle36, em que a autora recorre às palavras de Pacale Casanova a respeito da questão ocidental da universalidade: O universal é de certa forma uma das invenções mais diabólicas do centro: em nome de uma negação da estrutura antagonista e hierárquica do mundo, sob o pretexto de igualdade de todos em literatura, os detentores do monopólio do universal convocam a humanidade inteira a se dobrar a sua lei. O universal é o que declaram adquirido e acessível a todos, contanto que se pareça com eles. (Casanova apud VALLE, 2012, s.p) A imposição de um modelo universal está presente em Muraida na medida em que usa o épico camoniano como modelo e as referências clássicas presentes no épico. Sob o pretexto de uniformizar ―as gentes‖ através da imposição de uma mesma crença e de uma mesma língua, a cultura do Outro é negada em favor da homogeneidade Ocidental. Neste sentido, a autora explicita que seja na África, na América ou na Ásia, em quaisquer ―regiões estranhas do mundo‖ (citando Said) as diferenças locais não são consideradas, o centro metropolitano desmerece as suas contribuições e as deixam na zona fronteiriça do centro de 36 VALLE, Camila do. ―Literatura da Amazônia - dificuldades do surgimento e classificação de um campo.‖ Plural Pluriel, v. 1, p. 1, 2012. 63 produção de um código que é ―a um só tempo, universal e universalizante‖. A paisagem local é apenas uma ilustração, pois a leitura que se faz dela leva apenas em consideração a tradição da leitura ―universal‖. O ―longe‖, o ―exótico‖, o ―não-europeu‖, a ―alteridade‖ são elementos da paisagem que não alteram o discurso do colonizador e que não alteram o seu conceito de ―civilização‖, ou seja, civilização europeia, e que continuamente tenta fazer do Novo Mundo uma extensão do Velho Mundo Europeu. Conforme afirma Eduardo Lourenço: ―um Ocidente a ocidente do Ocidente‖. Em Muraida, percebemos que a linguagem e o discurso empregados são meios de expressar a vivência portuguesa em contato com o indígena, ao modo etnocêntrico europeu. A linguagem utilizada é instrumento de apreensão do pensamento europeu etnocêntrico e expressa a realidade de massacre à etnia que se interpunha contra os interesses da colonização, ―o estilo é produto da visão do mundo do escritor. Nele se interferem elementos pessoais e coletivos.‖ (PORTELA, 1975, p.29) Portanto, como pensar um estilo literário identificado a um ideário de nacionalidade, ao levar em consideração os séculos de alienação e de subserviência a um modelo euro-ocidental? 64 Navegar é Preciso Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: "Navegar é preciso; viver não é preciso". Quero para mim o espírito [d]esta frase, transformada a forma para a casar como eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade. É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça. Fernando Pessoa 65 3. SOBRE VIAGENS E VIAJANTES “O múltiplo nos inebria O espanto nos guia” Sophia de Mello Breyner. 3.1 Sobre as viagens A Literatura de Viagens é um gênero fronteiriço que abrange tipologias textuais diversificadas. O principal fator na problematização deste gênero é a questão das margens entre ficção e realidade. Caracterizar teoricamente o gênero viático é tarefa complexa devido às inúmeras possibilidades em definir o fenômeno literário que, se utilizando da linguagem, enceta a questão da mimese e a capacidade da linguagem de representar a realidade. A Literatura de Viagens apresenta caráter ambivalente, pois, ao mesmo tempo que anuncia um discurso por onde se entrevê a realidade, também anuncia o aspecto literário através do trabalho com a linguagem. A própria palavra ―viagem‖, vinda do Latim vaticum, sugere caminho, jornada e aquilo que o viajante carrega consigo, a experiência. Nesse sentido, a Literatura de Viagens, em seu caráter amplo e híbrido, expressa um relato de quem viveu uma experiência outra, diversa da sua experiência original. São diversas as nomenclaturas que os críticos literários utilizam para definir os textos produzidos a partir da presença do viajante num espaço desconhecido e repleto de novidades sobre o espaço observado e sobre o Outro. Estes textos podem ser denominados como ―textos de viajantes‖, ―literatura de testemunho‖, ―crônicas de viagem‖, ―literatura informativa‖ ou ―escritos de viajantes‖. Em seu amplo sentido, a viagem confronta o exotismo e a introspecção daquele que narra, o projeto do viajante e as surpresas do caminho em um constante exercício de aprender com a diferença num ato de solidão e despaisamento. A viagem é a realização de suposições e hipóteses, de sucessos e reveses do caminho. Segundo Auricléa Neves (2011): 66 As viagens têm um profundo significado na história da humanidade, pois se realizaram até para a preservação da raça humana. Inicialmente, no período da coleta, as migrações foram feitas pela necessidade de buscar alimentos; posteriormente, elas foram realizadas à procura de locais apropriados ao bem estar da comunidade. Outros objetivos também suscitaram o deslocamento do homem: a conquista de espaços territoriais, a exploração de riquezas, o conhecimento de novas terras, o estudo de áreas territoriais específicas, ou simplesmente a viagem como forma de lazer. (p.15) O viajante é aquele que observa o Outro e seu modo de viver dentro de uma cultura estrangeira que anuncia hábitos, atitudes e visões de mundo diferentes, pertencentes a uma outra civilização. Neste processo de conhecimento, o viajante adquire conhecimento em relação ao contato com uma cultura diversa da sua e atua sobre o inconsciente desafiador e inconstante da raça humana. Segundo Maria de Fatima Outeirinho (2000)37, a Literatura de Viagens é uma fonte importante para o estudo das imagens do estrangeiro ―por se constituir como uma escrita da alteridade e, por consequência, se apresentar como domínio fecundo em representações do Outro.‖ (p.102) Segundo Éttore Finnazi Agrò38, os viajantes que vieram para o Brasil não eram descobridores e sim inventores. O viajante reinventa o Outro na medida em que, ao chegar no espaço alheio, encontra aquilo que ―já se sabe‖, inventa de acordo com seus pressupostos anteriores alguém que já estava no lugar ―descoberto‖, alguém que já ―se sabia‖ enquanto ser humano: Seria bom considerar os grandes navegantes dos finais do séc. XV e/ou dos inícios do séc. XVI, não tanto como descobridores, quanto como inventores: porque eles, na verdade, não descobrem nada, mas acham ou encontram (inveniunt/inventant) aquilo que ―está lá desde sempre‖, aquilo todavia, de que se perdeu o rumo certo, a via para chegar. Daí o aspecto ―poético‖ do achamento [...] Não por acaso, nos primeiros documentos, os verbos utilizados pelos espanhóis e pelos portugueses, em relação às terras há pouco descobertas, são buscar e hallar ou achar. (p.54) 37 OUTEIRINHO, Maria de Fátima e MARTELO, Rosa Maria (Orgs). ―Representações do Outro e Identidade: um estudo de imagem nas narrativas de viagem‖. In: Cadernos de Literatura Comparada. Porto: Granito editores, 2000. 38 FINAZZI-AGRÒ, Ettore. ―A ilha maravilhosa: a invenção do Brasil pelos portugueses‖. In: Convergência Lusíada, n.12. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, 1995. 67 O crítico italiano, nos apresenta em ― A ilha maravilhosa‖, uma reflexão a respeito do contato entre portugueses e indígenas na ocasião da chegada dos portugueses ao Brasil. Segundo o autor, o confronto entre culturas é um espaço híbrido em si, ―um lugar que não pode ser identificado, de modo pleno, nem na categoria do Desconhecido nem naquela do Conhecido, [...] sendo, enfim, o espaço circunscrito de um compromisso em que todas as categorias se confundem e/ou se anulam dentro de um lugar definido‖. (1995, p.57) Os primeiros textos sobre o ―Novo Mundo‖ estão inseridos dentro desse corpus das viagens: as cartas de Cristóvão Colombo sobre a descoberta da América em 1494, as Cartas de Américo Vespúcio, difundidas pela Europa a partir da sua publicação em 1512, a Carta de Pero Vaz de Caminha sobre o ―achamento‖ do Brasil em 1500, Cristóbal de Acunã sobre a Amazônia em 1641, entre tantos outros. A partir dos ―descobrimentos‖ ou ―achamentos‖, os textos de viagens europeus tomam fôlego entre os séculos XV e XVI em razão das viagens marítimas ao Novo Mundo e da necessidade pragmática de registrar rotas, condições atmosféricas, acidentes da costa e todos os elementos que pudessem facilitar a repetição e prosseguimento dos percursos. Dessa forma, os roteiros e os diários de bordo, cartas e relatos de naufrágio, que se constituem como documentos fundamentais para orientação náutica, são os antecedentes desta literatura, que alarga o seu espectro e assume a forma de outros textos de natureza plural que inspiram a escrita do viajante sobre novos temas e novas experiências; supera a função meramente descritiva para apontamentos sobre o pitoresco que surgem da relação entre o sujeito perceptivo e o mundo novo a ser desvendado. Segundo Maria Alzira Seixo (1998), a Literatura de Viagens apresenta um vasto domínio literário, no qual ―a investigação confronta-se muitas vezes com gêneros de discurso específicos que em função desta matéria se constituíram, e que foram ou não consagrados, ao 68 longo da evolução histórica, pelos dispositivos diversificados do cânone literário.‖ (p.55). O hibridismo da forma e a dificuldade em estabelecer limites entre realidade e ficção são fatores que contribuem para que esta Literatura seja por vezes denominada como um: subgênero literário compósito, o da Literatura de Viagens, articulando entre a Literatura, História e a Antropologia. Circunstância esta que reclama para os textos da Literatura de Viagem um estatuto de verossimilhança muito próximo do da verdade histórica e antropológica, e o alargamento e personalização do 39 relacionamento narrador/narratário ao de autor/leitor‖. (SEIXO, 1998, p. 18) Além de ser uma categoria que transita entre a História e a Antropologia, aliada à problemática de classificação que o termo ―Literatura‖ carrega em si, a variedade de formas e tipologias textuais sobre viagens impossibilitam uma definição dessa categoria de forma única em relação ao gênero; só é possível estabelecer como traço comum a unidade de tema. Para dialogar com a afirmação exposta, trazemos as reflexões de Maria Alzira Seixo a respeito da Literatura Portuguesa, que ao proceder sobre novas formas de discurso, a partir dos descobrimentos marítimos: cabe justamente numa situação específica desta natureza que envolve propostas genológicas diferenciadas, ora praticando processos de escrita técnica da arte da navegação (diário de bordo), ora desenvolvendo um gênero pragmático (os roteiros) que aumentam no entanto a componente descritiva numa relação directa com o mundo empírico, ora ainda constituindo pequenos corpus de narrativas peculiares de organização idêntica (os relatos de naufrágio) ou textos singulares de carácter híbrido que só muito recentemente se encontram sancionados pela convenção literária vigente (a Peregrinação). Tais fenômenos da produção literária, de intenção pragmática ou marginal, não se integram na literatura erudita do tempo, dominada pela problemática humanística classicizante, mas vêm ao encontro de aspectos dessa mesma problemática, na medida em que se inspiram em modelos de contar medievais mas fortemente tonalizados pela circunstância cientifica e técnica coeva, numa espécie de prolongamento do tempo na resistência à sua rotura surpreendente e quase absoluta, como modulações do polissistema cultural que o período implica. Esta irregularidade de produção, emergente, de outras formas, nas literaturas ocidentais, orienta-se na sua relação com os séculos clássicos [...] (SEIXO, 1998, p.55-56, grifos nossos) No estudo de Auricléa Neves (2011) sobre as viagens, a autora relembra a organização que Antônio José saraiva & Óscar Lopes fazem em Caráter geral da literatura de viagens. Os 39 Fernando Cristóvão. ―O incipite o explicit nos diários e relações de viagem, e as razões da escrita e da Expansão‖ In SEIXO, Maria Alzira, LABORINHO, Ana Paula (orgs.). A Vertigem do Oriente: Modalidades discursivas no encontro de culturas. Lisboa: Cosmos, 1999. 69 autores dividem esses textos em três grupos. O primeiro é constituído pela produção de literatura náutica, os chamados ―livros de marinharia‖ e destacam relatos das primeiras viagens portuguesas, destacando as obras Diário da Viagem de Vasco da Gama, de Álvaro Velho, e a Carta de Pero Vaz de Caminha. O segundo grupo é constituído por um conjunto de obras, denominado ―narrativas de viagens‖, que tem como exemplo o Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco. O terceiro grupo é composto pelas narrativas de naufrágio, como a História Trágico-Marítima. Os autores do tradicional História da Literatura Portuguesa, destacam a importância de Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, pela qualidade da narrativa e o entrelaçamento entre ficção e realidade: Vem já da Idade Média o gosto por este gênero de livros, como se vê pelo sucesso de Marco Pólo, cuja tradução portuguesa foi impressa em Lisboa, 1502. Os precursores desta literatura devem ter servido de fonte a Gomes Eanes de Zurara, primeiro cronista conhecido das viagens oceânicas. Durante todo o século XVI e ainda no XVII multiplicam-se as crônicas, descrições e relatos.Uma parte dessa produção não tem valor propriamente literário. É o caso, não só da literatura propriamente náutica, como os livros de marinharia, escritos para pilotos, mas também o de muitos relatos das primeiras viagens. Merecem, no entanto, especial menção o Roteiro da Viagem de Vasco da Gama, por Álvaro velho, que nela participou, e sobretudo a carta de Pero Vaz de Caminha que dá notícia ao rei Dom Manuel do achamento do Brasil [...] No entanto, à excepção, como veremos, da Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, a literatura de viagens portuguesa quinhentista e seiscentista não passou de um nível de reportagem.(Saraiva & Lopes,p.20, grifos nossos) Conforme percebemos, ao encetar tal classificação, Saraiva & Lopes não estendem a classificação sobre as viagens para os textos setecentistas, deixando de fora a produção sobre a Amazônia, realizada a partir dos viajantes que foram para esse espaço em missões ordenadas pela Coroa Portuguesa, como por exemplo, Alexandre Rodrigues Ferreira e Henrique João Wilkens. Ao analisar estudos como o de Saraiva & Lopes, percebemos que os textos sobre a Amazônia são excluídos da concepção canônica sobre as Viagens e nem sequer são mencionados pelos autores. Diante do exposto, pleiteamos neste estudo uma revisão crítica do cânone lusitano sobre as viagens, pelo fato de ele ser excludente e não privilegiar a produção e o 70 conhecimento gerado por tantos viajantes que se dispuseram a representar os interesses da Coroa Portuguesa nas terras amazônicas. Um fator importante a ser abordado na discussão que ora levantamos é o fato de que a Literatura de Viagens não se reduz apenas a informar. Muito ao contrário, a experiência e a motivação daquele que escreve são fatores preponderantes para a classificação do texto. O viajante, independente do formato do texto que escreve, quer revelar a sua relação com o novo espaço, a nova cultura. A viagem permite o despertar da curiosidade, a avaliação de um novo mundo a partir de pressupostos anteriores, a reflexão sobre novas formas de ver e a submissão da realidade observada de acordo com o seu próprio ponto de vista. Poderíamos afirmar que a imagem do viajante, que parte de sua terra e a leva resguardada na memória, funde-se com o aparecimento da literatura ocidental? Parece-nos que desde as páginas da Odisséia, escrita em tempos longínquos por um Homero que ―mesmo sem existir nos criou‖, passando pelos bem mais sucedidos poemas épico-nacionais da literatura portuguesa até a produção literária do século XX, a viagem é tema recorrente, continuamente evocado e cultuado por aqueles que, além de escritores, são viajantes do olhar. [...] a viagem inseriu-se na história da civilização ocidental como possibilidade de metamorfose do mundo e da experiência humana; sobretudo desde que a ventura lusitana das navegações dos séculos XV e XVI alargou o espaço conhecido, tornou certo o que era incerto. (RIOS, 2009, p.84)40 Desde a Odisseia de Homero, passando por autores da literatura universal como Marco Pólo e As viagens, A volta ao mundo em 80 dias, Oitocentas léguas pelo rio Amazonas e Viagem ao centro da Terra de Julio Verne, O mundo perdido de Conan Doyle, As Viagens na Minha Terra de Garrett, Viagem ao redor do meu quarto de Xavier de Maistre, Os Lusíadas de Camões, Crônica da Guiné de Gomes Eanes de Zurara, A Selva de Ferreira de Castro, entre tantos outros, a temática das viagens encanta e registra experiências únicas sobre o diferente, o olhar do viajante estrangeiro sobre o espaço desconhecido. São textos que agregam eventos reais com elementos da fantasia e do maravilhoso, textos que sobrevivem ao tempo a despertar o interesse de leitores e pesquisadores sobre a temática das viagens e por esses motivos representam uma valiosa contribuição para os estudos literários. 40 RIOS, Otávio. ―O outro lugar: os viajantes descobrem o Paraíso‖. In: RIOS, Otávio (org.). O Amazonas deságua no Tejo: ensaios literários. Manaus: UEA Edições, 2009. p.84-98 71 3.2 Sobre os viajantes portugueses "Navegar é preciso; viver não é preciso". Fernando Pessoa Foi através da mistura entre admiração e espanto, e pela admiração ou aversão ao exótico, que a visão sobre o novo continente foi divulgada ao restante do planeta através dos relatos dos viajantes. Francisco Ferreira de Lima em O outro livro das maravilhas (1998) nos remete ao sentimento de espanto trazido pelo Renascimento ao homem europeu recém-saído da Idade Média, ao acordar de um sono profundo e contemplar um ―mar‖ de possibilidades a explorar: A outra face virava-se para o futuro, ou para o presente onde ele se ocultara, à espera da revolução que, ensaiada já no século XV, ocuparia todo o século seguinte para o desvelar. Descobriram-se incontáveis e exóticos recantos geográficos, tantos que ―se mais mundo houvera, lá chegara‖, como dirá mais tarde o Poeta que emblematizaria no seu inspirado poema épico a tentativa de conciliar as duas visões que dividiam o homem da Renascença. A geografia do globo expande-se por todos os quadrantes, evidenciando que o temor ante os perigos dos mares era em grande parte fruto das superstições que tolhiam o homem medievo [...] (p.11) Ao fascínio das ―descobertas‖ dos séculos XV e XVI, seguiu-se imediatamente a conquista e a imposição de um poder político e cultural ocidental e o jugo europeu sobre o território colonizado deu-se a partir das viagens. O Ocidente torna-se o grande legislador, o mito. As descobertas marítimas e a ocupação das terras descobertas serviram para alargar as fronteiras geográficas e econômicas da Europa e para transformar a História da Europa em História Universal. Segundo Santiago (1982), as diferenças são abolidas a ferro e a fogo, transformando-as em mundo narcisicamente construído, e, posteriormente, as diferenças são suplantadas através do discurso vitorioso do vencedor. A desejada ―universalidade ou bem é um jogo colonizador, em que se consegue pouco a pouco a uniformização ocidental do mundo‖ (p.23). Na tentativa de descoberta do paraíso terrestre e a fonte da eterna juventude, a religião cristã foi grande articuladora de conceitos e pré-conceitos que se estabeleceram na chegada dos europeus: 72 De súbito, os europeus tomam consciência de não serem os únicos habitantes do planeta, e de que outras gentes, de outra cor, linguagem e costumes, não raro ainda mais antigas, reclamavam atenção e respeito, quando pouco pelas naturais vantagens que daí pudessem advir. Em suma, o ―outro‖, com sua identidade própria, cultura própria, algumas vezes mais adiantada, começava a existir, em diálogo com o europeu que arrostara os oceanos cheios de ameaças para entrar em contacto com ele. Era português, notadamente, esse europeu intemerato, que em frágeis embarcações se atirava às águas do Atlântico em busca de terras e povos ignotos e longínquos, de que se possuíam, quando muito, indicações breves, em mapas nem sempre corretos. (LIMA, 1998, p.12) O despertar para um Novo Mundo ocorreu após a assinatura do Tratado de não agressão com Castela, em 1411, o qual definia que durante cem anos não haveria guerra entre os dois reinos rivais: ―criou-se uma espécie de um vazio existencial na corte de D. João I, que tinha na guerra uma de suas ocupações básicas‖ (LIMA, 1998,p.23). Foi a partir dessa lacuna que a tomada de Ceuta foi planejada e a busca por ―cristãos e especiarias‖ tornou-se o mote a desafiar o espírito de aventura dos portugueses e o adversário, a princípio, seria um velho inimigo quase esquecido – o mouro. Desta forma, o espírito de cruzada que tomara a terra firme em tempos anteriores, invade o mar. A tomada de Ceuta em 1415 é um episódio histórico importante para compreender as bases do expansionismo português. Segundo Lima (1998, p.28) ―Ceuta era um foco de ―infiéis‖, onde escravos cristãos eram especialmente humilhados‖, esse era o motivo religioso. Porém o autor aponta outros motivos que precisam ser mencionados para demonstrar a importância da conquista de Ceuta naquele momento político. Portugal precisava impedir a pirataria praticada pelos norteafricanos no estreito de Gibraltar e nas costas do Algarve, pois essa atividade causava enormes prejuízos a Portugal. Da mesma forma, era imprescindível separar os muçulmanos dos dois continentes e deixá-los isolados da Europa com o intuito de estabelecer relações comerciais com a região antes de Castela ―em função dos produtos africanos e asiáticos que ali chegavam em grande quantidade‖ (p.29). Para dar cabo desses acontecimentos, o espírito de cavalaria e de cruzada foram fundamentais: 73 Não é nova a presença da ideia de Cruzada em Portugal. Interesses múltiplos – conflitos por propriedade da terra, por exemplo – fizeram com que, por volta do século XII, a harmonia existente entre muçulmanos e cristãos, longamente construída, começasse a se transformar em guerra aberta. Retomou-se mais decididamente por essa época a velha ideia de Reconquista. E com a ideia de Reconquista renasceu o ódio mortal ao mouro infiel. Esse ódio, no entanto, é uma construção que vem de fora da Península Ibérica. Como se viu tantas vezes depois, Portugal tinha que se adequar ao ritmo do resto da Europa. E o resto da Europa vivia tempos de ódio e guerra contra os ―infiéis‖ usurpadores da terra santa. As bulas papais, a chegada das ordens religiosas e a presença dos cruzados em Portugal, participando diretamente da luta contra os mouros, foram os responsáveis pela introdução da nova maneira de ver este (quase esquecido) inimigo. Era a ―Cruzada do Ocidente‖ que estava a se iniciar. (LIMA, 1998, p.29) No entanto, a ―Cruzada do Ocidente‖ que estava a se iniciar através do mar trouxe novos desafios e novas formas de luta, como por exemplo, o uso de material bélico e a artilharia. Com essa alteração na forma de lutar, os cavaleiros da terra que ganhavam a honra no ato de lutar face a face com o inimigo foi substituído pelo ―herói‖ que lutava de forma cruel e desigual frente ao inimigo desarmado ou armado apenas com arco e flecha. A vontade de ser herói de alguns portugueses ganhou a ajuda de muitos outros homens comuns que também decidiram sair de Portugal e enfrentar os perigos e aventuras dos mares desconhecidos para fugir da escassez e da miséria. Em um belo ensaio de Margarida Alves Ferreira41, a autora nos faz refletir sobre o movimento de saída dos portugueses da Península Ibérica rumo ao mar: Nos mares do imaginário português parecem ter navegado sempre as naus do Império. ―O olhar esfíngico e fatal‖ com que, no alvorecer da expansão, Portugal, rosto da Europa, fitava o Ocidente, buscava ver ―claramente visto‖ o que mapas, testemunhos, tradições e lendas contavam sobre o além daquele fixo horizonte por trás do qual se escondia o mar Tenebroso. E, de medo em medo, de ilha em ilha, lá foi o Sonho, como diz Fernando Pessoa... (FERREIRA, 1994, p.27) A autora nos remete ao poema de Fernando Pessoa e ao que já disse anteriormente Finazzi-Agró: 41 FERREIRA, Margarida Alves. ―Portugal e o naufrágio do império‖ In: América: ficção e utopias. José Carlos Sebe Bom Meichy; Maria Lucia Aragão (orgs). São Paulo: EDUSP, 1994. p. 27-43. 74 Horizonte O mar anterior a nós, teus medos Tinham coral e praias e arvoredos. Desvendadas a noite e a cerração, As tormentas passadas e o mistério, Abria em flor o Longe, e o Sul sidério Splendia sobre as naus da iniciação. Linha severa da longínqua costa Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta Em árvores onde o Longe nada tinha; Mais perto, abre-se a terra em sons e cores: E, no desembarcar, há aves, flores, Onde era só, de longe a abstracta linha. O sonho é ver as formas invisíveis Da distância imprecisa, e, com sensíveis Movimentos da esp'rança e da vontade, Buscar na linha fria do horizonte A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte Os beijos merecidos da Verdade. O poema de Pessoa projeta a beleza poética do sonho de sair em busca da linha do horizonte e encontrar novas terras e novos desafios. Mesmo antes da euforia do expansionismo nos séculos XV e XVI, os portugueses já buscavam o mar, mas ainda sem um plano concreto de expansão. Porém, no século XV, as forças do expansionismo impulsionaram Portugal a querer ultrapassar o cabo Bojador e o das Tormentas até chegar ao Oriente e depois ao Ocidente. No entanto, essa vocação marítima portuguesa era questionada por aqueles que ainda acreditavam na dimensão agrária de Portugal. No século XV, Portugal vivia majoritariamente das exportações de vários produtos produzidos em suas terras, como o vinho, o couro, frutas e azeite. Conforme Lima (1998): Por essa época, o interior é auto-suficiente, não necessitando de quaisquer relações com a costa para a sua manutenção. Como diz Boxer (1992:30) mesmo o camponês que habita as proximidades de Lisboa ―só tem consciência do Atlântico quando tenta proteger as suas vinhas das fortes brisas marítimas e das partículas de sal por ela trazidas‖. Amplie-se essa noção para todo o interior, do Alentejo a Trás-osMontes, onde essas brisas e essas partículas não dão sinal de vida, e se terá a exata medida desse distanciamento. [...] Embora o mar tenha representado para Portugal, mais do que para qualquer outro país em qualquer tempo, o caminho, a verdade e a vida, foi antes a vocação política, mais que a marítima, a responsável pela viagem portuguesa pelo mundo. Com efeito, o fato de ter-se unificado muito cedo como reino, livrou Portugal de viver a interminável série de dissenções internas que arrasavam os outros países, inclusive seus vizinhos de 75 fronteira e permitiu-lhe preparar o salto futuro sem ter que sofrer sobressaltos presentes. (LIMA, 1998, p.45-46, grifos nossos) A vocação política que estimulou a saída ao mar era ao mesmo tempo vista com excitação por uns e com desconfiança por outros, pois diferentes grupos da sociedade portuguesa rivalizavam no cenário econômico português: a burguesia comercial-marítima e a aristocracia rural conservadora. Ambas representavam forças antagônicas, porém essenciais para a economia portuguesa. O Velho do Restelo camoniano, episódio que será analisado no próximo capítulo deste estudo, sintetiza a contradição gerada entre esses grupos. Para compreender o antagonismo dessas forças é preciso retrocedermos cronologicamente ao século XIV. Recorremos a António Sérgio (1978). O autor aponta que desde o reinado de Dom Fernando são estabelecidas as duas políticas que representam a economia portuguesa: a política de Fixação (fixação da gente e da riqueza na terra) e a política do Transporte (das viagens). Os reis portugueses da primeira dinastia se preocuparam em fomentar a colonização interna através de incentivos ao cultivo da terra e fixando núcleos de trabalho agrícola, principalmente ao norte de Portugal. No entanto, no reinado de Afonso IV (1325-1357), a ausência de servos rurais é sentida no campo. Ao passo que a lavoura se debatia em crises, a situação da costa portuguesa chamava o país às lides marítimas. Os portos, baluartes da burguesia, tinham um caráter cosmopolita. ―Lisboa é grande cidade, de muitas e desvairadas gentes‖, diz o cronista Fernão Lopes. Havia residentes de muitas terras, e muitas casas de cada nação: genoveses, lombardos, aragoneses, biscainhos, marroquinos, milaneses, corsos, etc. gozando privilégios e isenções que lhes prodigalizavam os soberanos [...] Da importância desta forma de atividade dão testemunho impressivo outras leis de D. Fernando, as leis protectoras do comércio marítimo. Revelam-nos o valor da burguesia marítima, e mostram em germe o que veio depois: a revolução de 1383, a grande empresa das navegações. (SÉRGIO, 1978, p.25-26) A revolta da burguesia em Lisboa foi fator preponderante para o fortalecimento da empresa marítima portuguesa. A vitória da revolução burguesa sobre o rei de Castela e a aristocracia rural, conhecida como Batalha de Aljubarrota, prepara a missão histórica de Portugal de expandir seu território pelo mar. De acordo com António Sérgio (1998): ―Em 76 Aljubarrota, mais que o embate de duas nações, há o choque de duas políticas e duas classes.‖ (p.29). Ainda de acordo com o autor, Aljubarrota simboliza a independência de Portugal e uma nova orientação da sociedade – a queda da antiga aristocracia rural e a ascensão de ―gente nova‖, os burgueses. Essa vitória foi crucial para a conquista de Ceuta em 1415, conforme dissemos anteriormente. A partir deste acontecimento, Ceuta torna-se um troféu de conquista e a mola propulsora das descobertas portuguesas, pois ―não se pode ir ao longe sem que se tenha ido primeiro ao perto. Só depois é que, a depender do que ele tenha a oferecer, pode-se ampliar a viagem.‖ (LIMA, 1998, p.49) Das forças políticas e econômicas antagônicas que marcavam a sociedade portuguesa no século XV e das conquistas e descobrimentos que se sucederam, inicia-se o período de apogeu da expansão ultramarina em Portugal, cujo lema é ―expandir a Fé e oImpério‖. Porém, se a intenção fosse apenas cristã, quem quisesse converter almas bastaria enviar missionários às terras da África, próximas a Portugal. Torna-se flagrante que o interesse comercial sobrepõe-se ao religioso, e encontrar a rota para as Índias e mais tarde para as Américas seria o objeto de desejo dos marinheiros portugueses. Os descobrimentos do século XV foram uma façanha de gente metódica, dotada de clara inteligência politica, de visão lúcida, muito precisa, dos escopos práticos a que tendia, e do estudo minucioso dos meios adequados a tais escopos: em suma, um vasto plano de conjunto, capacidades raras de organização: nada que se assemelhe ao aventureirismo inconsciente com que a pintaram , depois, os românticos celticistas do século XIX. (SÉRGIO, 1978, p.37) Em seguida à descoberta das Índias, em 1498, Vasco da Gama torna-se herói e exemplo de vitória, a despeito das inúmeras mortes e das calamidades que ocorreram em sua viagem rumo ao Oriente. A figura do célebre Vasco da Gama, que será mais discutida no próximo capítulo, foi imprescindível no cumprimento da missão que lhe foi dada. Pois, apesar de ser pouco conhecido na Corte e filho de um nobre menor, demonstrou ter qualidades suficientes para enfrentar a missão e ser reconhecido como um homem articulador e 77 excelente diplomata, disposto a negociar com reis, um líder que foi capaz de travar uma Cruzada marítima em nome da Coroa Portuguesa. Logo depois da viagem de Gama, em 1500, Pedro Álvares Cabral chefia as naus que chegaram ao Brasil. São sucessivas as ―descobertas‖, mas também sucessivas as perdas, os naufrágios, as mortes por doença em alto mar. Em nome da Coroa portuguesa, do ideal de ser marinheiro, da superação dos próprios limites, o Homem das ―descobertas‖ foi capaz de por em prática o projeto ideológico do Renascimento ─ assunto de que trataremos no Capítulo 4. Segundo informações de Boxer (1992), na primeira metade do século XVII morreram duas mil setecentas e trinta e três pessoas de um total de cinco mil e duzentas e vinte e oito enviadas para as Índias, número que representa uma mortandade acima de cinquenta por cento. Em que pese esse alto número de perdas, muitos homens dispunham suas vidas em nome do desconhecido. Segundo Isabel Allegro de Magalhães42, conceitos como ―imaginário de nação‖ e ―identidade nacional‖ só podem ser pensados em relação ao espaço e ao tempo, e são definidos em relação ao Outro. A identidade nacional dos portugueses foi ―construída de costas para Castela e todo voltada para o oceano‖, em séculos de história marítima. Na problemática relação entre Portugal e Espanha, na eterna rivalidade entre coroas ─ ―Ser português queria dizer, sobretudo, não ser espanhol‖, mas ser marinheiro: Já no século XV, tendo os portugueses partido para a expansão marítima, a equação ―ser português é ser marinheiro‖ passou a ser uma das bases do ser português e um dos pilares da identidade nacional. Esta ideia não só enraizou no nosso imaginário como também no europeu, dando forma a uma outra faceta da identidade portuguesa. Nesse momento, estabeleceu-se uma distinção entre a cosmovisão feminina e a masculina: os homens partiam e as mulheres ficavam. (p.189) 42 MAGALHÃES, Isabel Allegro de. ―Aquém e Além: espaços estruturantes da identidade portuguesa?‖. In: O sexo dos textos e outras leituras. Lisboa: Editorial Caminho, 1995. 78 Neste período, muitos homens que ainda resistiam à vida no campo, migravam para o litoral, lançavam-se ao mar em busca de riquezas e poder. O campo esvaziava-se, as mulheres ficavam solitárias e lamentavam a sorte de ter de sustentar as famílias sozinhas. Navegar por si só já era viver. E se viver era navegar, levar uma vida longe dos desafios da navegação não tinha importância. Então, através dos séculos, essa vocação se tornou a marca portuguesa de descobrir ou encontrar novos continentes e novas condições de vida. Marcas que vieram a constituir um ideário de nação portuguesa que só seria legitimado no século XIX. A viagem portuguesa pelo mundo possui um caráter singular que a distingue de todas as outras ações parecidas e a torna um dos maiores feitos até hoje realizados pela humanidade em qualquer tempo. Embora pareça óbvio, trata-se do fato, aparentemente simples, de ter ido e ter voltado. Com efeito, houvessem os portugueses apenas ido, eles se teriam igualado aos grandes viajantes de todos os tempos, que em todos os tempos os homens viajaram. (LIMA, 1998, p.46-47) Na chegada ao desconhecido, a constatação de encontrar novas e diversas culturas desafiavam o entendimento dos portugueses. ―Encontrar‖, ―inventar‖ ou ―descobrir‖ o Outro era na mesma medida descobrir a si próprio ―E de modo recíproco, ao ser descoberto pelo europeu, o nativo descobria o europeu e descobria-se a si.‖ (LIMA, 1998, p.61) 3.3 Sobre os viajantes na Amazônia As viagens dos descobrimentos e as expedições de reconhecimento de um novo território foram profícuas no que diz respeito ao encontro de diferentes povos. Na medida em que os relatos deixados pelos viajantes permitiram mapear a descoberta do Outro, também permitiram a percepção do espanto, da admiração, da perplexidade e da desorientação do europeu ao se deparar com outros homens, na maioria das vezes nus, que desafiavam a capacidade do colonizador em lidar com a alteridade. A alteridade funciona como a demonstração do mito, que faz elos partidos e perdidos reencontrarem-se numa totalidade, apaziguando desejos ancestrais. Códigos, valores e parâmetros perdem sentido e função nesse momento. Os homens, enfim, são um único e mesmo homem. O real perde sua configuração e assume uma dimensão cintilatória. E o novo faz-se presente de maneira estonteante. Por isso a visão é, por excelência, o sentido da alteridade. No momento em que faltam palavras, uma vez que esse novo absoluto não pode ainda ser nomeado, o olho é a língua. Isto porque ele faz ver o mito da fusão do eu com o outro, 79 desejo que só pode ser resolvido com o olhar. O júbilo dessa visão basta-se a si mesmo, não necessitando nenhuma contribuição dos outros sentidos, os quais, aliás, não poderiam fazê-lo, uma vez que se encontram desordenados, como numa catástrofe. Naturalmente, a duração do fenômeno de alteridade é mínima, e não poderia ser diferente, já que se trata efetivamente de um gozo. Vivido esse estágio, retomam-se os parâmetros, valores e códigos e a cintilação cede lugar à comparação, em que se medem a superioridade ou inferioridade do descoberto. (LIMA, 1998, p.62, grifos nossos) De acordo com a problemática de aceitar a alteridade, discutimos a chegada dos viajantes à Amazônia, a perplexidade em encontrar o exótico e o desejo de encontrar o paraíso terrestre na terra. De militares a missionários, aventureiros a clérigos, geógrafos a cientistas, são vários os viajantes que se dispuseram a desbravar a Amazônia. As viagens para o vale amazônico apresentavam muitos perigos e incertezas. Tais circunstâncias exigiram do desbravador adaptação a um novo clima e a uma nova alimentação. De todas as classes, os portugueses desbravadores demonstraram que, apesar da contradição entre desejar o novo e implantar modelos do Velho Mundo na mata fechada, foram capazes de se adaptar a novas formas de vida, como dormir na rede, se alimentar de farinha e buscar alternativas de transporte, entre outras habilidades desenvolvidas na nova terra. Especificamente na Amazônia, adaptar-se naquele momento a viver nas entranhas da selva, ainda que procurando refúgio nos beiradões dos rios, não era tarefa fácil nem para o mais bravo viajante, pois a floresta nunca aceita ser domada. Os relatos de viagens são reconhecidos e entendidos como fonte de conhecimento sobre os encontros com seres humanos diferentes e com fenômenos naturais desconhecidos. O detalhamento e a intensidade desses relatos, muitas vezes narrados de maneira hiperbólica, suscitaram uma profunda influência na atitude das gerações futuras em relação aos indígenas, pois até hoje algumas etnias carregam estigmas, como, por exemplo, o de que os Tupi são canibais ou os Mura são cruéis. 80 Os relatos de viagens trouxeram diferentes imagens e histórias dessa ―descoberta‖, enfatizando o caráter dos indígenas, a organização política e comunitária. Ao mesmo tempo foram significantes nesses estudos os conhecimentos sobre a fauna, a flora, a hidrografia, topografia e potencial agricultor na nova terra. Porém, grande parte do imaginário sobre a Amazônia não foi construído a partir da chegada dos desbravadores, mas em período anterior. Ao chegar a esse espaço, os viajantes já trouxeram consigo todo um imaginário construído a partir da Índia e da história greco-romana. Até mesmo a mitologia indiana foi significativa através das lendas e maravilhas que apavoravam os homens medievais. Desde a primeira viagem ao Novo Mundo, tal imaginário anterior influenciou a visão do europeu. Jorge Fernandes da Silveira (2008)43 ao citar Saraiva (1972), nos diz: ―A imaginação dos poetas não sabia o que fazer dessa América saída abruptamente de um mar desconhecido, chocando todas ideias estabelecidas sobre o feitio do mundo‖, mas o autor adverte que: ―o imaginário americano pode estar antes e aquém do conhecimento da América. (p.38) Foram várias incursões e muitas linhas escritas descrevendo a experiência com o exótico, mas apesar da importância que esses textos possuem, por transmitirem o conhecimento sobre o diferente, sobre o Outro, estes nem sempre tiveram o reconhecimento ou a recepção devida. A publicação desses relatos muitas vezes era deixada de lado por demandar investimento financeiro e interesse político pela publicação. É importante lembrar que até a chegada de D. João VI ao Brasil, em 1808, a Coroa proibia a publicação de livros na colônia. Antes dessa data, as publicações eram realizadas apenas pela Imprensa Régia em Lisboa. 43 SILVEIRA, Jorge Fernandes da. O Tejo é um rio controverso: António José Saraiva contra Luis Vaz de Camões. RJ: 7 Letras, 2008. 81 O encantamento pelo índio e o repúdio aos seus hábitos ―não-civilizados‖ estão registrados nos textos dos viajantes que apresentam sua nudez sem pudor, o destemor e sua forma de viver ―primitiva‖, o canibalismo e a crueldade contra os viajantes que ousavam invadir o seu espaço. A descoberta feita por Colombo causou uma sensação de medo, de mistério e a necessidade de explicação se instalou. Ao mesmo tempo, propagou-se o interesse em catalogar, detalhar, descrever povos e novos climas e vegetações; a incrível possibilidade de encontrar um mundo maravilhoso, que deu margem à ficção e à descoberta do fantástico. Para além do que foi explorado nas primeiras escritas sobre a América do Norte, a escrita sobre a região amazônica suscitou o imaginário do viajante europeu sobre os mistérios da floresta e dos povos que ali habitavam. Apesar da ocupação espanhola no território Inca ter ocorrido em 1530, as primeiras incursões pelo Vale Amazônico ocorreram a partir da década seguinte. Os primeiros cronistas que desbravaram essa região foram o frade dominicano Gaspar de Carvajal, o padre Cristóbal de Acunã e o padre João Daniel. Para inaugurar os relatos sobre a Amazônia, temos os escritos de Frei Gaspar de Carvajal da Ordem dos Dominicanos. Nasceu na Espanha e veio para América. Fundou o primeiro convento da Ordem Dominicana no Peru. Carvajal acompanhou a viagem de Francisco de Orelhana em 1541/1542 na condição de capelão e escrivão. Orelhana foi governador da cidade de Santiago de Guayaquil e aventurou-se na expedição que batizou o rio Amazonas. Carvajal relata o que foi observado durante o trajeto que partiu da nascente do rio Amazonas no Peru até a sua foz no arquipélago de Marajó. A publicação desses relatos ocorreu apenas em 1894 e recebeu o título de Descobrimento do Rio Grande das Amazonas. Carvajal e Orelhana são considerados os primeiros a desbravar o vale amazônico. O relato dessa viagem coloca Frei Gaspar de Carvajal numa condição comparável à de Pero Vaz de Caminha da Amazônia. Resguardadas as devidas diferenças entre os dois cronistas na 82 forma de narrar e nas especificidades de cada lugar descoberto, Krüger (2003)44 afirma que a ―A mais relevante dentre todas talvez seja a que diga respeito às riquezas do Novo Mundo‖ (p.212), pois, enquanto Pero Vaz apenas supõe que deveriam existir riquezas na terra recémdescoberta, Carvajal descreve as riquezas observadas, as sociedades que habitavam suas margens, a diversidade étnica e as maravilhas observadas ao longo da viagem. Assim como as Viagens de Marco Pólo e a Peregrinação de Mendes Pinto, o texto de Carvajal é também um livro de maravilhas, ao anunciar novidades factuais e levantar elementos fantásticos. A maravilha se estabelece na medida em que há ―um ―eu‖ que se deslumbra com o que vê, extasiado ante um real que excede todos os limites.‖ (LIMA, 1998, p.20) Citamos, como exemplo, a lenda do Eldorado e a lenda das Amazonas, mulheres guerreiras da tribo das Icamiabas que vieram lutar contra a expedição espanhola. O mito das Amazonas versa sobre belas mulheres guerreiras e desde a antiguidade povoa o imaginário dos desbravadores, pois se refere às integrantes de uma antiga nação de guerreiras da mitologia grega. Entre as rainhas das guerreiras amazonas está Pantasilea ou Pentesileia, filha de Otrera45, que teria participado da Guerra de Troia. Esta referência se faz presente em Muraida, a deusa é mencionada no início da estrofe a seguir, quando o autor menciona o rio das Amazonas: Rio, que de Pantasilea a Prole Habitando algum tempo, fez famoso, Enquanto não efeminada, a mole Ociosidade deu o valoroso Peito, buscando agora quem console A mágoa, no retiro vergonhoso, Que fez aos densos bosques, em que habita, Inconstante, e feroz, qual outro Cita. (Mur, I, 6) Há relatos de incursões das Amazonas na Ásia Menor na Antiguidade. Já na Modernidade, o nome Amazonas tornou-se sinônimo para mulheres guerreiras. 44 De acordo KRÜGER, Marcos Frederico. Amazônia: mito e literatura. Manaus: Editora Valer / Governo do Estado do Amazonas, 2003. 45 SPALDING, Tassilo Orpheu. Deuses e Heróis da Antiguidade Clássica, dicionário de Antropônimos e Teonimos vergiliano. São Paulo: Cultrix, 1974. 83 com Marcos Frederico Krüger (2003), o relato de Carvajal tende mais para a ficção que propriamente para a história sobre as Amazonas, pois o confronto dos desbravadores com essas guerreiras aconteceu na foz do rio Nhamundá, na adjacência do rio Madeira. Além disso, o cronista traça o perfil das índias, relatando que estas moravam no interior da floresta. Posteriormente, esse mito foi narrado por outros cientistas como Charles Marie de La Condamine, Spruce e ao historiador Southey. Conforme citação a seguir: A narrativa maravilhosa de Carvajal deixou como herança à grande maioria dos viajantes, a história das Amazonas no império dourado de Canhori. Quase trezentos anos depois, viajantes a serviço de seus países ainda perguntaram pelas guerreiras solitárias, as Ycamiabas de Acunã. Os pontos controversos, as suposições, a imprecisão, os temas inacabados, as pistas, foram deixados como acenos para a aventura da descoberta de cada um dos viajantes a seus herdeiros. Acenavam com a impossibilidade de a região imensa ser vasculhada totalmente e descobertos todos os seus segredos. Cada um acreditava que podia abarcar o incomensurável, mas registraram as mutações de uma natureza imóvel na aparência e profundamente viva e móvel na intimidade. O exercício da escritura tem seu reforço e estímulo nas descrições a que é tentado o viajante em eternizar momentos heterogêneos, paradisíacos e infernais. (GONDIM, 2007, p.169). Carvajal, assim como os outros viajantes que passaram por essa floresta, não fugiam ao discurso teológico, visto que o poder da Igreja era soberano em Portugal e em Espanha. Por isso é natural do ponto de vista do colonizador que as terras conquistadas por estes seguissem a mesma doutrina teológica em que acreditavam. Souza (1994) observa o crescimento da presença portuguesa na Amazônia durante a União Ibérica: Entre 1600 e 1630, os portugueses consolidaram o seu total domínio da boca do rio Amazonas. Avançaram para o norte, sob a desconfiança dos espanhóis, e atravessaram a linha do Tratado de Tordesilhas. Com a fundação do forte do Presépio de Santa Maria de Belém (1616), os portugueses violaram deliberadamente o tratado se aproveitaram do fato de Portugal estar sob o domínio espanhol.[...] É interessante como esses primeiros passos dos portugueses na Amazônia são coincidentes com o esforço de Portugal para não ser devorado pela Espanha. Apesar de unidos sob o reino de Felipe IV, os portugueses jogaram na ocupação do grande vale amazônico uma das cartadas decisivas para a manutenção de sua identidade nacional. Os administradores portugueses agiram com grande sagacidade política, fazendo letra morta do tratado de Tordesilhas (SOUZA, 1994, p.52-54) 84 Desta forma, durante o domínio filipino, outra expedição parte em nome de Filipe IV de Espanha. Foi a expedição de Pedro Teixeira, ocorrida entre 1637 e 1639. Pedro Teixeira era explorador sertanista e militar português, foi o primeiro a navegar pelo Amazonas com o itinerário que iniciara no oceano Atlântico em direção aos Andes. O relato chamou atenção pela disciplina, organização e nexo, com as quais os portugueses conduziram a viagem. O Padre Cristóbal de Acunã fez parte dessa viagem e descreveu precisamente os povos que habitavam as margens do Amazonas. Estes foram os primeiros a terem sua morada e seus povos extintos, justamente pela localidade, o que facilitou a invasão. Os jesuítas Cristóbal de Acuña e Andrés de Artieda foram incumbidos desta missão. Essa expedição teve uma grande importância política, pois seu objetivo era integrar a armada portuguesa que acabava de subir o rio Amazonas. Foi durante essa viagem que Acunã fez o seu manifesto em defesa da liberdade indígena e acusou os portugueses de quererem dominar os gentios através da crueldade. De acordo com a Companhia de Jesus, a colonização deveria ser feita através da ação missionária e não da escravização e do assassínio. Diante dessa atitude em defesa do indígena, Acunã corrobora o discurso de Bartolomé de Las Casas e Padre Manuel da Nóbrega, no século anterior. O relato da viagem de Acunã foi encaminhado ao Conselho das Índias para conhecimento do rei espanhol, porém não houve uma recepção imediata ao material que revelava o conhecimento sobre a viagem e sua publicação ocorreu após o fim da União Ibérica. Francisco Jorge dos Santos (2002) nos informa que, durante a viagem de volta, Padre Cristóbal de Acunã relatou tudo sobre os costumes, fauna, flora e a geografia da região Amazônica, transformando mais tarde essas informações na obra Novo descobrimento do grande rio das Amazonas, publicado em 1641. A publicação dessa obra, porém, causou 85 preocupação tanto para Portugal quanto para Espanha, pois ambos temiam que a descoberta das riquezas da Amazônia interessasse a outros países europeus. Os dois países, então, suprimiram todos os exemplares, praticando a ―política do sigilo‖. Essa política era uma maneira de guardar o colonizado em segredo, pois logo depois de sua descoberta, o Brasil tornara-se alvo de saqueadores e piratas de diversas nacionalidades. Tanto Carvajal quanto Acunã podem ser considerados como os escritores do período da conquista da Amazônia, pois, o primeiro registrou os acontecimentos em ordem cronológica, o segundo organizou por assuntos, mas ambos se debruçaram sobre o mesmo objeto de interesse e deram uma significativa contribuição para pesquisas e viagens posteriores: De um lado há o estrangeiro, com valores e crenças estabelecidos em padrões da oficialidade branca e, de outro, o nativo imerso num mundo mental primitivo, mítico, com sua vida moldada na prática e na experiência de habitar numa região tão singular, havendo por tudo isto a interferência no registro dos viajantes. As crônicas de Carvajal no século XVI e de Acuña no século XVII representam as primeiras impressões da Amazônia Luso-espanhola e reproduzem o olhar desse viajante estrangeiro sobre a terra. (NEVES, 2011, p.147) A partir dos textos de Carvajal e Acunã, foi possível observar as primeiras experiências do europeu em solo amazônico e como essas experiências contribuíram para o percurso de muitos outros viajantes. Tais descrições foram determinantes para a crença sobre as pistas acerca das riquezas dessa região e a transmissão do perfil do índio como um ser pagão que vivia longe dos preceitos divinos, de acordo com a ideologia cristã europeia. O índio deveria então ser catequizado e moldado à cultura do europeu. Mesmo após o cessar das guerras contra os índios, ainda permaneceram resquícios de uma época conturbada para os povos indígenas, os quais ainda são vistos de forma preconceituosa por alguns. Tal imaginário sobre o exótico e o selvagem na região Amazônica de alguma forma ainda persiste até os dias atuais. Segundo Hansen: 86 Quando lemos os textos de cronistas e jesuítas que atuaram no Brasil, observamos que produzem um novo objeto chamado ―o índio‖. O novo objeto – chamado de índio por causa do equívoco geográfico de Colombo, que acreditou ter chegado à Índia, em 1492 – é construído por meio de um mapeamento descritivo de suas práticas, ao qual se associam prescrições teológicas-políticas que as interpretam e orientam segundo um sentido providencialista da história, que faz de Portugal a nação eleita por Deus para difundir a verdadeira fé. Obviamente, não havia ―índio‖ nem ―índios‖ nas terras invadidas pelos portugueses, mas povos nômades, não cristãos e sem Estado. (HANSEN,1998, p.351) Conforme Souza (1994), ―quando os europeus chegaram nessa região, depararam-se com comunidades populosas, as quais continham mais de mil moradores, lideradas por tuxaua‖. Eles ficaram perplexos com o tamanho e a diversidade étnica encontrada. Tais acontecimentos podem ser observados nas crônicas dos primeiros viajantes europeus na época da conquista, cujos relatos, documentos e informações históricas colhidas pelos mesmos, foram responsáveis em grande parte pelo modo como os europeus passaram a olhar a região que haviam conquistado. Outro cronista que se destacou foi o Padre João Daniel, pois produziu sua obra Tesouro Descoberto no Rio da Amazonas, nos cárceres de Portugal, para onde foi conduzido após a expulsão dos jesuítas da Amazônia: O Padre jesuíta João Daniel em sua crônica “Tesouro Descoberto no Rio Amazonas” representou uma corrente que aproximou-se do pensamento Renascentista, mais humanista, fato que desagradou os interesses dos portugueses vítima da perseguição pombalina, morrera na prisão. (SOUZA, 1946, p.36) O Padre João Daniel, apesar de acompanhar a subjugação dos povos indígenas, apresentava um discurso totalmente de cunho religioso. Por esse motivo compreendemos que nesse panorama o índio nunca teria voz, pois até mesmo o padre que conhecia e denunciava a violência praticada contra os indígenas acreditava que somente o Cristianismo pregado pela Companhia de Jesus poderia libertá-los do paganismo e das ações consideradas demoníacas. Santos (2002) relata as palavras do padre sobre os Mura: Atiram as flechas com tanta força, e valentia que mui longe atravessam um boi, e qualquer homem de parte a parte [...] a nação Mura também tem muita especialidade entre as mais. É gente sem assento, nem persistência, e sempre anda a corso, ora aqui, ora ali; e tem muita parte do rio Madeira até o rio Purus por habitação. Nem tem povoações algumas com formalidades, mas como gente de campanha, sempre 87 anda em levante, e ordinariamente em guerras, já com as mais nações, e já com os brancos, aos quais querem a matar, ou tem ódio mortal. E não só assaltam as mais nações, mas ainda nas mesmas missões tem dado vários assaltos, e morto a muitos índios mansos, de que não puderam livrar, por serem repentinas, e inesperadas as investidas: e para as evitarem lhes é necessário fazerem cercas de pau-a-pique, e estar sempre alerta; e tem essa contínua guerra, não porque coma gente, ou carne humana, mas por ódio estranhável aos brancos, a que estes mesmos deram muita causa. (p.67-68) Em contrapartida, a opinião sustentada pelos lusitanos era a de que os índios deveriam ser exterminados por resistirem e não se adequarem à nova realidade da selva. Nesse sentido, ―só deste ano de 1615 até 1652, os portugueses haviam matado para cima de dois milhões de índios, fora os que chacinavam às escondidas.‖ 46. Os indígenas nunca seriam vistos com bons olhos pelos desbravadores que traziam em suas caravelas e na ponta de suas armas o discurso teológico. A forma como os índios viviam e mostravam-se resistentes contrapunha-se aos interesses econômicos, políticos e sociais dos europeus que vieram conquistar a região Amazônica. Portanto, os relatos empíricos realizados pelos primeiros cronistas são de suma importância, pois expressam, ainda que de maneira contraditória, a cultura dessa região. Observemos o caso de Alexandre Rodrigues Ferreira, ―o único cientista que Portugal se dignou mandar ao Novo Mundo‖, segundo as palavras de Manuela Carneiro da Cunha na apresentação da obra sobre Alexandre Rodrigues Ferreira e Henrique João Wilkens 47. O viajante luso-brasileiro que esteve a serviço da coroa portuguesa entre 1783 e 1792 viajou do interior da Amazônia até Mato Grosso e produziu a sua Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá (1792) e uma coleção biológica e etnográfica excepcional. Destacamos as contribuições que ele registrou a respeito da agricultura, a fauna e a flora, assim como as características físicas dos índios Tapuia, Cambeba e Mura, que aqui nos interessam. Assim como Wilkens, Ferreira deixou registradas em cartas e outros 46 (Anais da Biblioteca Nacional, vol.95, tomo I., p.258.1975) CUNHA, Manuela Carneiro da. Relatos da fronteira amazônica: Alexandre Rodrigues Ferreira e Henrique João Wilckens. São Paulo: FAPESP, 1994. 47 88 documentos ―as formas de relação entre portugueses e índios; revezamento de alianças, conflitos, parcerias, violência e sedução; as formas que a conquista imprimiu às relações dos grupos indígenas entre si e com seu território.‖ Sem dúvida o cientista mais em evidência no Amazonas, no mesmo século, foi o doutor Alexandre Rodrigues Ferreira, brasileiro, a serviço de Portugal. Cabe a ele por antecipação e por justiça ao descortínio de antropólogo, o privilégio de haver descoberto a Amazônia para a ciência, isto porque demorou-se por muitos anos a pesquisar em todas as áreas aonde a sua curiosidade de sábio o arrastava, produzindo a mais copiosa obra que já se escreveu no Brasil àquela época... (MONTEIRO, 1977, p.117) A viagem de Rodrigues Ferreira foi de fundamental importância no que diz respeito à observação dos indígenas. Citamos, como exemplo, as descrições realizadas sobre os Tapuia, Cambeba e Mura. Segundo Ferreira, os Tapuia em sua maioria apresentavam a pele lisa e sem pelos; os Cambeba apresentavam cabelos lisos e compridos – e desalinhados quando gentios; os Mura apresentavam barba e cabelos crespos e pareciam amulatados: ―Entre os Muras os dedos do pé esquerdo são maiores que o do direito por apoiarem entre eles as extremidades de seus arcos na ação de expedirem as flechas‖ (FERREIRA,1974, p.82). Observa ainda que entre os Tapuia são raras as deformidades físicas comumente observadas na Europa. Este detalhe foi observado como um dado importante para reforçar a ideia de que os gentios eliminavam as crianças que nasciam com algum tipo de deficiência física. Para ilustrar as diferentes visões em relação aos Mura, recorremos a duas representações imagísticas. É interessante perceber nas ilustrações as diferenças nos detalhes da aparência física dos Mura. A ilustração 1, extraída dos Autos de Devassa (1986), está de acordo com a descrição presente no primeiro canto de Muraida: dente de caititu nos lábios, cabelo grande, olhar enviesado ou estrábico sugerindo uma interpretação agressiva a respeito das feições do indígena, mais semelhante à descrição que Ferreira faz dos Cambeba enquanto gentios: os cabelos desalinhados e o olhar confuso. Entre nações imensas, que habitando Estão a inculta brenha, o bosque, os rios, 89 Da doce liberdade desfrutando Os bens, os privilégios e os desvios Da sórdida avareza, e desprezando Projetos de ambição, todos ímpios, A bárbara fereza, a ebriedade Associada se acha com a crueldade. (Mur, I, 9, grifos nossos) Nos versos do poema, observamos a descrição dos Mura indicando a resistência dos membros dessa etnia aos projetos de ambição da colonização portuguesa. Os indígenas são descritos pela crueldade e fereza. Ilustração 1 Fonte: Autos da Devassa contra os índios Mura Na ilustração 2, a gravura do ―Índio Mura inalando paricá‖, apesar de apresentar as características indígenas como a do chapéu sem copa feito de fibra vegetal, as flechas e o enfeite nos lábios, os traços de seu rosto e os cabelos alinhados nos lembram os traços físicos europeus. 90 Ilustração 2 Fonte: Biblioteca Nacional (Brasil) Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira Ao observar as descrições sobre a etnia Mura no texto de Ferreira, é possível perceber que os Mura ainda são retratados como perigosos e como ameaça aos colonizadores, apesar de a Muraida cantar a suposta pacificação de todos os membros dessa etnia. A descrição dos Mura revela que eles ainda seriam ameaça iminente aos colonos. Conforme Bhabha (1998), o estereótipo torna-se a principal estratégia discursiva, do colonizador; é uma forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que está sempre ―no lugar‖, já conhecido, o lugar da ―fixidez‖. Segundo o autor, o aspecto ideológico da representação é uma estratégia colonialista de construção de uma imagem negativa sobre os Mura. Prosseguindo em sua análise, Ferreira compara negros e índios, afirmando que os gentios são mais ágeis em tarefas na mata, pesca, caça e canoa. O negro seria mais lento, 91 porém mais forte nos trabalhos com a enxada, concluindo que os gentios, quando se viam obrigados a trabalhar, se deixavam levar pela violência, enquanto os negros se resignavam, se tivessem o seu sustento garantido através do trabalho: A debilidade é o caráter de seus corpos e a frieza é o de suas almas [...] É tão limitada a esfera de seus desejos e necessidades que na menor atividade praticada, ficam amplamente satisfeitos, sem precisarem de se fatigarem para alcançar os meios necessários à satisfação. (FERREIRA,1974,p.84) Nas palavras de Alexandre Rodrigues Ferreira, o indígena não é movido pelas mesmas motivações dos homens brancos, pois, a ambição em acumular os frutos do seu trabalho não está presente na sua rotina e se satisfazem com o trabalho necessário para a própria subsistência. Em relação aos Cambeba, Ferreira os descreve com os cabelos desalinhados enquanto gentios ─ ainda de acordo com sua visão etnocêntrica ─ o olhar revelado sobre o índio Mura se perpetuou através de gerações. Como prova dessa afirmação, encontramos, já no século XX, em um artigo jornalístico de 1923, o seguinte relato: “tradicional pelas correrias, depredações e outras violências praticadas em vários pontos do Amazonas, assunto que constitui a página triste da sua vida nômade e atribulada”(p.55) Segundo o autor do artigo, os Mura do Aypuiá possuíam índole diferente dos que dominavam o rio Madeira e o Solimões: Não achamos que o indígena pratique maldades por um prazer nativo. Os atentados que realizam são explosões de vingança ou represália a ultrajes recebidos. O coração dos selvagens é propenso ao bem. O excursionista que chega à maloca é cercado de todas as atenções, pelo tuxaua e sua família. Trate, porém, de respeitar as tradições da tribo. Se não o fizer, sofrerá perseguições as mais cruéis [...] O ódio indígena fazse tão grande, como tão grande era o seu amor, a sua dedicação antes da ofensa (p.56)48 Tal informação jornalística revela-se como um misto entre a teoria do bom selvagem e a visão histórica sobre essa etnia, e confirma como os pressupostos imperialistas do colonizador ainda se perpetuam no século XX. 48 Publicado em ―Jornal do comércio‖ de Manaus, de 30/10/1923 In: Mosaicos do Amazonas, 1966, Governo do Estado do Amazonas, Agnello Bittencourt. 92 Assim como nos detivemos nos viajantes de fundamental importância para conhecimento sobre a Amazônia, trataremos a seguir daquele que mais nos interessa neste estudo, o autor de Muraida. 3.4 Wilkens: viajante, militar e poeta Conforme já dissemos, Wilkens foi um soldado português que veio para a região amazônica em missão ordenada pelo Marquês de Pombal para demarcação dos limites da Coroa Portuguesa a partir da assinatura do Tratado de Madri, em 13 de janeiro de 1750. Como fiel representante da Coroa, veio cumprir a missão de tomar posse e colonizar as possessões portuguesas. Em meio ao contexto de guerras e conflitos de terra, Wilkens foi representante dos interesses mercantilistas na emergência da política indigenista pombalina de assentamento e formação de mão- de- obra indígena para o ―progresso‖ da Capitania do Rio Negro. Wilkens, entre tantos outros soldados enviados para fazer cumprir a execução do Tratado, chega ao território amazônico logo após a assinatura do mesmo. A biografia de Henrique João Wilkens é restrita a informações sobre sua empreitada militar. A produção ficcional de Wilkens é formada apenas pela Muraida e outros dois poemas ─ uma ode e um soneto escritos em homenagem ao Frei Caetano Brandão49. Apresentamos a seguir a biografia disponível de Wilkens, através de cartas e documentos históricos que comprovam a sua presença na empresa colonizadora na Amazônia. A primeira referência ao militar data de 7 de julho de 1755, através de uma carta do Governador Francisco Xavier de Mendonça, enviada do arraial de Mariuá, hoje município de Barcelos, no Amazonas: Em observância da ordem de S.Maj. expedida em uma das cartas de V. Exa. datada de 15 de março, mandarei logo passar patente de Ajudante-Engenheiro a Henrique João Wilchens, que na verdade, me parece, um moço com boas disposições para se poder aproveitar, e está encarregado ao Pe. Sanmartone e ao companheiro que o faz 49 Bispo do Pará em 1788. Wilkens recepcionou em Ega o bispo que estava em visita pastoral. Nessa ocasião, Wilkens compõe os dois poemas e oferece ao prelado. 93 aplicar bastantemente. (Mendonça, 1963, v. 2:712 apud MOREIRA NETO, 1988, p.41) Segundo Moreira Neto (1988), José Landi revela em seu texto sobre ―o capitão e eu embarcamos num bote novo, de 6 remos por banda, com 6 soldados. Em outra canoa forão o alferes Manoel da Silva com o cabo de esquadra Henrique João Wilkens e o capellão, que era padre Paganini, carmelita‖. Em 12 de Julho de 1755, o governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado, em carta enviada o seu irmão Marquês de Pombal, comunica a participação de Wilkens na comissão, que iria a Mato Grosso para demarcações de limites: Pelo que acima digo se vê que a tropa que for ao Mato Grosso é a que deve dar maior cuidado, [...] Como o Coronel Antônio Carlos Pereira de Sousa foi oficial da Marinha, e o tenho por homem de honra, faço tenção de que seja o Primeiro Comissário daquela tropa, [...] O astrônomo que deve ir é o Pe. Inácio Sanmartonyi e por companheiro o nôvo Ajudante Henrique Wilckens, que é nascido e criado em Portugal [...] Para fazer o mapa deve ir o Ajudante Filipe Sturm, que é hábil, e tem a circunstância de ser casado em Lisboa com portuguesa e estar estabelecido com casa e família naquela corte. (MENDONÇA, 1963, p.744-745, grifos nossos) Conforme as informações acima, Wilkens tem confirmada não apenas a sua nacionalidade como os vínculos com Portugal, sua presença na Amazônia é tão somente em virtude de sua missão em nome da Coroa. Logo depois, em carta endereçada ao Marquês de Pombal, no dia 13 de outubro de 1755, Mendonça Furtado refere-se com elogios ao militar Wilkens: Não me persuadia a que o ajudante Henrique Wilckens em tão tenros anos se tinha adiantado tanto; fico de acordo na sua conduta, e pode dever estas habilidades a seu mestre o Padre Sarmatone, porque depois que saiu do Pará o tomou debaixo da sua proteção para ensinar e aqui se conservava com ele na mesma casa de cujo padre se separou agora pela causa que abaixo direi.(MENDONÇA, 1963, p.749) Ainda no ano de 1755, Antônio José Landi50 foi contratado pela comissão de limites da Amazônia com o objetivo de entrar no rio Negro para fazer o descimento de índios ao rio Marié por ordens de Mendonça Furtado. O percurso dessa viagem está descrito no ―Extrato do diário da viagem ao rio Marié em Setembro de 1755 para o descimento prometido e 50 Naturalista bolonhês com ofício de desenhista e cartógrafo, a serviço da Coroa Portuguesa. 94 contratado pelos dois principais Manacaçari e Aduana por Antonio Landi‖, incluso na obra de Alexandre Rodrigues, Viagem Filosófica ao Rio Negro. É importante mencionar que até o fim do governo de Mendonça Furtado, em 1758, não houve mais nenhum registro sobre a vida de Wilkens. A partir de agosto de 1764, há novas referências sobre o militar. Neste mesmo ano, Wilkens foi nomeado ao posto de ajudante de infantaria com ofício de engenheiro pelo rei D. José I, como reconhecimento ao excelente trabalho realizado nas demarcações de limites. Em 1769, há registros de que Wilkens auxiliava o engenheiro Henrique Antônio Galluzzi na construção da grande Fortaleza de Macapá. Em seguida, Galluzzi falece eWilkens assume o governo da Praça de Macapá. Nesta ocasião, Wilkens escreve uma carta de agradecimento a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, muito provavelmente em agradecimento pelas funções que este o confiou anteriormente. Em 1777, chega ao fim o período pombalino, porém as demarcações de limites na região devido ao Tratado de Santo Ildefonso prosseguiram. Em 1781, Henrique João Wilkens, já nomeado sargento-mor, realiza uma expedição a Japurá, onde faz o levantamento cartográfico. Esses relatos estão em formato de um diário de viagem, disponível no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e publicado por Marta Amoroso e Nadia Farage. Em 1784, Wilkens substitui o segundo comissário, tenente-coronel Teodósio Constantino de Chermont, devido ao fato de este ter contrariado os interesses de Portugal em questões de limites. Através de registros de Alexandre Rodrigues Ferreira (1974), observamos que Wilkens residia com sua família em Barcelos, mas naquele momento a sua sede oficial encontrava-se na antiga Vila de Ega, atual município de Tefé, vizinho ao município de Alvarães mencionado no poema, no quartel general do rio Solimões, onde se reuniam as 95 comissões de limites portuguesas e espanholas. E, de acordo com as informações do manuscrito, presumimos que foi o local onde o poeta escreveu Muraida entre 1784 e 1785. No mesmo ano em que conclui o manuscrito de Muhuraida (1785), Wilkens traça um plano de defesa para o território das capitanias do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, contra as nações vizinhas, mas buscando atingir claramente as posições militares da Espanha naquela vasta região. Tal plano de defesa – que reforçava a guarda das fronteiras por meio da permanência de um exército na área de conflito – era uma demanda do comissário e tenente-coronel João Batista Martel, um dos personagens do poema épico amazônico. Ainda em 1785, o recém-nomeado governador da capitania de Mato Grosso e Cuiabá, João Pereira Caldas, que havia ocupado o cargo de governador do Grão-Pará – outro personagem do poema, que lhe é dedicado e o torna um ―herói‖ da pacificação mura – encarrega Wilkens de elaborar orçamento da fortificação do Rio Negro, como parte da estratégia de defesa da região. Como se vê, esse período parece ter sido um dos mais intensos dos quase cinqüenta anos que o autor de Muhuraida viveria na Amazônia. (CALDAS, 2007, p.8) Moreira Neto (1988) expõe que a correspondência do Governador do Rio Negro enviada a Wilkens inclui dezenas de cartas e ofícios de Wilkens entre 1790 e 1799, conservadas no arquivo Público do Pará, as quais não foram anexadas à coletânea publicada por Arthur Cezar sobre Lobo d‘Almada. Em 1791, Wilkens foi transferido por Lobo d‘Almada para Tabatinga. Lá, Wilkens deveria comandar a tropa portuguesa, o posto e fronteira. Em 1798, o então governador do Estado do Grão Pará, D. Francisco de Sousa Coutinho afasta Henrique João Wilkens do serviço em Tabatinga devido a conflitos com Lobo d‘Almada. Moreira Neto (1988) relata os últimos registros sobre a vida do tenente-coronel através do registro do cônego André Fernandes de Souza, em Notícias Geographicas da Capitania do Rio Negro no Grande Rio Amazonas:: Por seu falecimento foi governador interino o tenente-coronel José Antonio Salgado, feito pelo General do Pará D. Francisco de Souza Coutinho, que o sustenta com todas as forças. [...] chegou a sahir no decreto, na lista dos governadores, por governo do Rio Negro. [...] governou interinamente quatro annos e meio. No seu governo é que se pôz em practica a detestável agarração aos Indios nas aldêas para os serviços, que depois se fez mais odiosa por ser executada por soldados de 1ª linha [...] Urdiu as intrigas entre o Gama [Lobo d‘Almada] e D. Francisco, que foi causa da morte d‘aquele; como também concorreu para o extermínio do tenente-coronel João Henrique Wilkens para Mato Grosso, talvez por receio que lhe fizesse sombra, empenhando-se com o general D. Francisco de Souza Coutinho. (SOUZA 1848:474 Apud MOREIRA NETO, 1988) 96 Segundo José Arthur Bogéa51, ―as informações biográficas sobre Wilkens são frágeis e inconsistentes‖. Inclusive, o autor levanta suspeitas quanto à nacionalidade de Wilkens pelo fato de uma das cartas revelar que ele dominava a língua inglesa e de seu sobrenome não ser de origem portuguesa. Porém, após a dedicatória do poema a João Pereira Caldas, observamos a autoria do poema ―Por um Militar Português‖. A partir das informações que obtivemos sobre a missão de Wilkens na comissão de limites em território Amazônico e do cenário que nos é apresentado no épico, percebemos que desde a sua descoberta a Amazônia tornou-se palco de grandes disputas territoriais, devido não apenas à sua natureza exuberante e exótica, mas às riquezas encontradas na região, como as chamadas drogas do sertão, o ouro e outros metais preciosos. Assim, nota-se que a biografia do tenente-coronel é relatada estritamente em função de sua empreitada militar. O conhecimento sobre a natureza de sua vinda para o Grão- Pará torna-se relevante pelo fato de comprovar que Wilkens entrelaçou a sua produção poética a relatos, documentos e informações históricas que vivenciou durante sua trajetória e esses elementos convergem para torná-lo um fiel representante dos interesses da Coroa Portuguesa. Através da leitura de suas cartas e de seu diário, percebemos como o poema se assemelha a uma crônica de viagens pelo caráter informativo a respeito dos acontecimentos da época, Assim como o texto de Wilkens permaneceu no anonimato durante mais de cem anos, outros textos de viajantes permaneceram silenciados, ―insulados‖ na Amazônia. A partir do conceito de insulamento literário proposto por Gabriel Albuquerque52, refletimos sobre Muraida. Desde a Antiguidade existe um fascínio pelas ilhas: a ilha dos Amores de Camões, a Ilha de Vera Cruz de Pero Vaz de Caminha, entre outras. Talvez esse fascínio pelas ilhas e pelo aspecto exótico que elas suscitam, possamos compreender o insulamento literário de 51 BOGÉA, José Arthur. ―O mura e a musa‖. Passages de Paris 6. 2011. p. 135–166. ALBUQUERQUE, Gabriel. ―Brasil, Brasis: insulamento e produção literária no Amazonas‖. In: O Amazonas deságua no Tejo. Manaus: UEA edições, 2009. 52 97 certos textos fundamentais do relacionamento entre metrópole e colônia, como é o caso de Muraida. Albuquerque reflete sobre a produção realizada na ou sobre a Amazônia e o fato dessa produção ter mérito apenas local e ser ignorada pelo restante do país. O isolamento, segundo o autor, é reforçado pela distância histórica entre a colônia Brasil e a colônia GrãoPará: A formação da cultura brasileira obedece a um intrincado painel histórico e político que só recentemente começou a ser pensado. Sabe-se que ―o governo da Amazônia Portuguesa permaneceu separado do governo do Estado do Brasil por um período de 200 anos.‖ Esse processo de separação toma forma definitiva na administração pombalina quando ―em 1751, extinguiu-se o Estado do Maranhão e Grão-Pará e, e em seu lugar, foi instalado o Estado do Grão-Pará e Maranhão, sediado em Belém [...] Somente em 1850, passados 28 anos da proclamação da independência, viria a acontecer a elevação do Amazonas à categoria de província. O fato é que o processo administrativo do Brasil colonial traz em sua base a distinção entre o Brasil e a Amazônia, coisa que a passagem do tempo viria a confirmar. O sentimento de isolamento e desconhecimento, que já se dava no período colonial, só recrudesce à medida que o passado ilumina a presente: a trajetória que se desenha do período colonial aos dias de hoje explica grande parte do que, a partir desse ponto, se denomina insulamento. (p.49-50, grifos nossos) Porém, ao transpor esse fascínio para a condição amazônica de insulamento, iluminamos o questionamento de Gabriel Albuquerque: ―Como saímos da condição de milhões de indivíduos para essa captação literária de seres isolados, ilhados nas paisagens entrecortadas por rios pervagando nas solidões encharcadas?‖ (p.52-53) Ao levantar essas questões, Albuquerque não distingue as diferenças entre centro e periferia, atualmente, ou em metrópole e colônia, no passado, mas ―o problema reside no insulamento que comporta em uma única braçada a identidade, o reconhecimento e a aceitabilidade.‖(p.54) Albuquerque enceta tal reflexão a partir da análise do prefácio de Euclides da Cunha em Inferno Verde, de Alberto Rangel, livro de contos ─ ou que pode ser lido como um romance ─ cujos capítulos destacam episódios amazônicos, dentre eles, o conto ―A decana Mura‖, já mencionado anteriormente. No entanto, essa matriz se contorce em um vocabulário estranho àqueles que jamais pisaram em solo amazônico e que, jamais estendendo os olhos para a alteridade, poderiam considerar como exótico ou regionalista o que não lhes nasce no próprio quintal ou na própria cidade. Que adviria daí? Em um primeiro momento, daí advém o fato de que a língua materna não é suficiente para dar unidade a que quer que seja 98 e sua imposição não parece ter minorado o efeito da separação e do conflito. Para Ribamar Bessa, no seu Rio Babel53, ―a Língua portuguesa entrou no Grão-Pará levada por missionários, soldados e funcionários, determinando um novo ordenamento linguístico em toda a Amazônia. [...] durante todo o período colonial, no entanto, a língua portuguesa [,...] permaneceu minoritária, como língua exclusiva da administração, mas não da população. Essa situação só mudou a partir da segunda metade do século XIX. Existe, nesse contexto, uma separação geográfica e linguística que faz do Brasil ao Sul um outro em relação ao Brasil das solidões encharcadas. (ALBUQUERQUE, 2009, p.54-55) Outro fator importante a ser observado é o longo título presente em seu manuscrito ─Muhuraida ou o triumfo da fé na bem fundada esperança da enteira conversão, e reconciliação da grande, e feróz nação do gentio Muhúra ─, a exemplo da moda dos títulos longos que a Literatura de Viagens haveria de explorar em demasia, anunciando não apenas o tema a ser tratado no texto, mas os seus momentos heroicos mais importantes, neste caso, a pacificação do gentio Mura. Ao informar a intenção do poeta, o título original do épico cumpre uma dupla função, de identificar a obra e informar sobre o conteúdo. A descrição revelada no título alicia o leitor, levando-o a entrar em contato com as maravilhas a serem contadas a respeito do triunfo da fé, a vitória da ideologia do colonizador, e, no paratexto que virá a seguir, uma longa explicação histórica reafirmará o que foi anunciado no título. De acordo com os argumentos apresentados, pomos Muraida em rediscussão no cânone português pelo fato de esse épico efetivar a presença portuguesa na Amazônia e representar, através de um episódio de conversão isolado, o objetivo maior do discurso colonial – a cristianização dos gentios. Nesse aspecto, buscamos uma unidade de tema e não de gênero para pleitear um lugar na tradição de Viagens portuguesa. Muraida se enquadra na definição de texto que representa uma tradição de Viagens e que mescla elementos da literatura, da história e da antropologia, conforme citamos anteriormente. Um texto rico que aborda questões antropológicas como o etnocentrismo europeu e a ideologia expansionista que consegue conquistar o lugar de vencedora. 53 FREIRE, José Ribamar Bessa. Rio Babel- a história das línguas na Amazônia. Rio de janeiro: Atlântica, 2004. 99 Ao suscitar a pluralidade dessa vertente literária, que se identifica por possuir textos de caráter híbrido e abarcar diferentes gêneros, observamos que, na mesma medida em que se revela uma falta de homogeneidade na forma, há uma reafirmação constante da ideologia expansionista europeia. É esse o elo que aqui nos interessa. É ele que nos faz defender Muraida como um texto pertencente à tradição do cânone lusitano. Uma tradição que, em nome dos pressupostos imperialistas de Portugal, deixou à margem alguns textos sobre as missões de fixação portuguesa na Amazônia e deixou no esquecimento os viajantes que desbravaram esse espaço. Ao se inspirar no modelo épico camoniano e, por conseguinte, na tradição clássica ocidental, Muraida revela tensões, convergências e divergências com o mais importante texto de viagens da Literatura Portuguesa, Os Lusíadas, de Camões, as quais serão discutidas ao longo do Capítulo 4. Mas, sobretudo, revela as tensões ocorridas entre colonizador e colonizado em nome da fé e da expansão territorial. Por esses motivos ideológicos, solicitamos um lugar para o texto de Wilkens nesta tradição que não considerou a produção sobre a Amazônia de forma devida, deixando na subalternidade todo um acervo literário que custou a vida e o empenho de muitos portugueses que se propuseram a representar os interesses lusitanos na nova terra. 100 Lição de Escuridão Caboclo companheiro meu de várzea, contigo cada dia um pouco aprendo as ciências desta selva que nos une. Contigo, que me ensinas o caminho dos ventos, me levas a ler, nas lonjuras do céu, os recados escritos pelas nuvens, me avisas do perigo dos remansos e quando devo desviar de viés a proa da canoa para varar as ondas de perfil. Sabes o nome e o segredo de todas as árvores, a paragem calada que os peixes preferem quando as águas começam a crescer. Pelo canto, a cor do bico, o jeito de voar. identificas todos os pássaros da selva. Sozinho (eu mais Deus, tu me explicas). atravessas a noite no centro da mata. corajoso e paciente na tocaia da caça. a traição dos felinos não te vence. Contigo aprendo as leis da escuridão, quando me apontas na distância da margem, viajando na noite sem estrelas, a boca (ainda não consigo ver) do Lago Grande de onde me fui pequenino e te deixei. De novo no chão da infância, contigo aprendo também que ainda não tens olhos para ver as raízes de tua vida escura, não sabes quais são os dentes que te devoram nem os cipós que te amarram à servidão. Nos teus olhos opacos aprendo o que nos distingue. Já repartes comigo a ciência e a paciência. Quero contigo repartir a esperança, estrela vigilante em minha fronte e em teu olhar apenas um tição encharcado de engano e cativeiro. Thiago de Mello 101 4. MURAIDA E SEUS (DES) ENCONTROS COM OS LUSÍADAS 4.1 Entre a Índia e a Amazônia Ao tomar o maior texto de Viagens da Literatura Portuguesa - Os Lusíadas- como modelo de composição, o poeta de Muraida insere seu poema no paradigma do gênero épico.Os Lusíadas fazem um elogio a Portugal através da viagem vitoriosa de Vasco da Gama, ―viagem que é encravada entre um passado a ser exaltado (e de fato o foi) e um futuro possível de repetir tais glórias‖(ARÊAS, 1980, p.3)54. No épico camoniano, os portugueses são os grandes Cavaleiros de Cristo a levar a ideologia do europeu colonizador até a ímpia gente. O poeta canta ―as armas e os barões assinalados‖ e as ―memórias gloriosas‖, exaltando o ―ilustre peito lusitano‖ e imortalizando os feitos deste povo como necessários para ―dilatar a Fé e o Império‖ e para acentuar a máxima ―e se mais mundo houvera, lá chegara‖, na conhecida estrofe que destaca as imponentes conquistas lusitanas - Ásia, África e América – realizadas pela pequena casa lusitana: Mas, em tanto que cegos e sedentos Andais de vosso sangue, ó gente insana, Não faltarão Cristãos atrevimentos Nesta pequena casa Lusitana. De África tem marítimos assentos; É na Ásia mais que todas soberana. Na quarta parte nova os campos ara; E, se mais mundo houvera, lá chegara. (Lus, VII, 14) Wilkens escreveu um épico, a seu modo, que continua a cantar os feitos portugueses, porém não mais nas Índias, mas na América – o Novo Mundo que se abre a novas possibilidades de exploração e cristianização, a Amazônia. É nesse sentido que aproximamos os épicos em questão, pois ambos os textos se tocam e se distanciam em relação à barbárie 54 ARÊAS, Vilma. ―Os Lusíadas ou a navegação desventurosa‖ In: Revista camoniana. São Paulo: Centro de Estudos Portugueses da USP. 2ª série, v.III, 1980. 102 imperialista que se instaura ao denotar o contato entre culturas. Num jogo de tensões, aproximações, semelhanças, e (des) encontros com o épico camoniano, buscamos neste estudo pleitear para Muraida um lugar na tradição da Literatura de Viagens Portuguesa ─pois são os textos de viagens aqueles que melhor representam o olhar do português sobre o Outro ─ a partir da unidade temática que a leitura do épico de Wilkens sustenta a favor dos conceitos de expansionismo e etnocentrismo europeus ao se confrontar com o Outro, em outro espaço geográfico, em uma realidade diversa da original, à semelhança d‘Os Lusíadas. Os Lusíadas vêm cantar um país em viagem da terra para o mar, refletindo a exaltação do homem português em sua busca por novas terras. Muraida canta a pacificação dos Mura durante a saga de um militar em viagem pelos rios da Amazônia, ao se deparar com a floresta e com novas gentes. Através do lema ―dilatar a Fé e o Império‖, o objetivo central do épico camoniano é cantar o mercantilismo, a ampliação das atividades comerciais no além-mar, expandir seus domínios territoriais e converter os infiéis ─ arriscamos talvez a dizer que seria nesta ordem de importância. Conforme Quesado55, o discurso literário presente no épico camoniano traz uma imanência ideológica que nos leva a compreender a concepção de mundo do poeta que atua na revelação do que seja a consciência social de seu grupo. Dessa forma, a enunciação literária presente em Os Lusíadas revela a ideologia do Renascimento: É necessário esclarecer que o artista do renascimento é o homem que assume a consciência de seu papel na história do pensamento humano [...] Usa, assim do código estético para melhor refletir a ideologia do seu século, calcada como sabemos, numa posição de enfoque que torna o homem como centro de todas as atenções. Esta concepção de época, que passou a se definir como antropocentrismo, vai tirar o homem da condição de objeto em que se encontrava considerado na sua visão fechada de mundo, e lhe atribuir a medida de sujeito num dimensionamento que começa nele e se estende até o universo. O racionalismo é a linha demarcadora desse trajeto homem/universo. Esta consciência de ser desperta o homem para a tarefa histórica da superação de sua própria condição, através de todo um contexto de progresso que impulsiona a humanidade vertiginosamente para além dos seus limites, tendo como oponente a limitação e o desafio do desconhecido, e como 55 QUESADO, José Clécio Basílio. ―Personagens e projeto ideológico n’Os Lusíadas”. Revista de Letras. RJ. T. A, 1:11-17, jul-set,1974. 103 adjuvantes a necessidade e o desejo de transcender as barreiras de sua condição. (QUESADO, 1974, p.2) Nesse sentido, Os Lusíadas são relatos da busca de superação humana através das viagens marítimas e testemunham um momento grandioso da existência portuguesa. Ao exaltar as glórias do povo português, transforma sua obra num mito cultural positivo ao alavancar o expansionismo como via possível de fazer crescer o pequeno país ―à beira- mar plantado‖. Almeida56 ressalta a condição portuguesa de cumprir a missão anunciada na Proposição ―os nunca de antes navegados‖, que repetidas vezes será confirmada ao longo do poema em versos como: ―Não as romperam nunca pés humanos‖ (IV, 70), ―Da terra que outro povo não pisou‖ (V, 36), ―Nunca arados de estranho ou próprio lenho‖ (V, 41) ―Por onde nunca veio gente humana‖ (VII, 25). ―Por mares nunca de outro lenho arados‖ (VII, 30) ―Da‘te a imensa e mar não navegado‖ (IX, 86). Na contínua repetição da missão portuguesa de chegar aonde ninguém mais chegou, percebemos a ideologia humanista e renascentista de superação humana, e de levar a cabo, através do expansionismo, a Cruzada marítima portuguesa, conforme já discutimos no capítulo anterior. Na confluência entre a História portuguesa e a viagem desventurosa, temos um conjunto de ideias que dão um caráter espiritual e universal à obra camoniana e que se perpetua em Muraida, através da ideologia do colonizador. De Colombo a Gama até chegar em Wilkens, o impacto do ―encontro‖ com as demais culturas foi limitado pela fé religiosa que os viajantes levavam consigo e que os fazia desmerecer antigas sociedades locais, tratando-as como inferiores ou dispensáveis. Vós, Portugueses, poucos quanto fortes, que o fraco poder vosso não pesais; 56 ALMEIDA, Maria do Perpétuo Socorro Correia Lima de. ―Os Lusíadas e o discurso ideológico da expansão‖. Convergência Lusíada, n. 7, 1980, p.93-102. 104 vós, que, à custa de vossas várias mortes, a Lei da Vida Eterna dilatais: assim do Céu deitadas são as sortes que vós, por muito poucos que sejais, muito façais na Santa Cristandade, que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade! (Lus, VII, 3) A marca de ―humildade‖ que assinala os barões portugueses ─povo assinalado por Deus como descendente direto da linhagem de Cristo: ―pois os lusos são fiéis à sua filiação a Cristo‖ (Arêas, 1980, p.5) ─ e habitantes do país menos rico e menos populoso da velha Europa ─ esta é a marca que os distingue. Inversamente proporcional à sua pequenez e humildade estão as qualidades de ―fortes‖ e destemidos, e como tal se sentem capazes de dilatar a ―lei da vida eterna‖ ─ o cristianismo ─ entre as ímpias gentes, mundo afora. Em suas leituras de Camões, Eduardo Lourenço e Saraiva concordam num aspecto: ―Camões não será apenas o maior de seus poetas [...], mas o seu herói nacional‖ (LOURENÇO, 1999, p.57), uma vez que somente ―o destino coletivo e a história do imaginário português podem explicar a conversão do autor d‘Os Lusíadas em símbolo de Portugal‖ (idem, ibidem). O poema de Camões é classificado prioritariamente sob o signo do nacional, ou até do ―nacionalismo‖, ainda que esse conceito ainda não fosse possível no século XVI –, mas é possível dizer que apresenta um forte apelo de identidade portuguesa em seus versos; semelhante identidade à portuguesa que captamos em Muraida, apesar de supostamente enaltecer a etnia Mura, para que a pátria do escritor seja valorizada. De outro modo, a partir dos estudos pós-coloniais, a ideologia expansionista presente em Muraida e n’Os Lusíadas é amplamente criticada pelo caráter de massacre cultural em relação a outros povos não-cristãos. Muraida pode ser lida como uma obra de aspectos negativos pelo fato de exaltar o genocídio de um povo e a conversão mediante a Graça divina, cedendo a vitória ao colonizador e representando o assassinato cultural de uma etnia indígena. 105 Estabeleceremos um diálogo entre os épicos examinando os pontos de tensão e de contato, a partir de seus aspectos formais e, em seguida, analisaremos episódios relevantes como: o Velho do Restelo, o Gigante Adamastor e as semelhanças entre o Mouro e o Mura ─ paradigmas do Mal que precisam ser cristianizados e colonizados de acordo com os pressupostos colonialistas europeus. 4.2 A estrutura camoniana em Muraida Ao examinar os aspectos formais dos poemas e sua inserção no gênero épico, faz-se necessário aludir ao conceito de épico segundo Bakthin (1990), para, posteriormente, observar tais características nos épicos em questão. O autor faz uma leitura bastante interessante do maior exemplo de gênero épico, a epopeia, caracterizando-a principalmente pelos três traços constitutivos que a definem, a saber: 1. a extrema valorização de um passado nacional épico ou de um ―passado absoluto‖ como objeto; 2. a lenda nacional como dispositivo formalconteudístico, de forma que o discurso se formule como inacessível a outras interpretações do passado; e 3. o isolamento da contemporaneidade pela distância épica absoluta, sendo os heróis épicos constituídos de um caráter acabado e não sujeito a reinterpretações. Portanto, o contexto em que a característica épica se torna coerente é nas narrativas de caráter nacionalista. Nestas, a cultura popular e o povo são identificados com o passado e são inseridos elementos históricos para conferir verossimilhança ao que está sendo narrado. Segundo Auerbach, esse estilo nascido de Homero exerceu influência constitutiva sobre a representação europeia da realidade e constitui-se como modelo para os épicos produzidos séculos mais tarde. Em relação ao discurso, para todos os fins, na epopeia homérica ele tem a função de manifestar ou exteriorizar pensamentos: [...] mas o mais primordial deve residir no próprio impulso fundamental do estilo homérico: representar os fenômenos acabadamente, palpáveis e visíveis em todas as 106 suas partes, claramente definidos em suas relações espaciais e temporais. O mesmo ocorre com os processos psicológicos: também deles nada deve ficar oculto ou inexpresso. Sem reservas, bem dispostos até nos momentos de paixão, as personagens de Homero dão a conhecer o seu interior no seu discurso; o que não dizem aos outros, falam para si, de modo a que o leitor o saiba. (AUERBACH, 1998, p.04) O uso de adjetivos descritivos mostra os atributos que devem ser conhecidos dos personagens. N’Os Lusíadas, a adjetivação relacionada aos lusos, corrobora ―o ilustre peito lusitano‖ e os coloca na condição de heróis. Em Muraida, os adjetivos reiteram o aspecto bárbaro dos Mura: ―o feroz, bárbaro peito/Do indômito Mura mitigando‖ (Mur, V,2). Após a conversão, o processo de adjetivação se transforma: ― sincero, verdadeiro, respeitável‖ (Mur, V, 20). No entanto, não são os próprios personagens que se autodefinem para o leitor, conforme o épico homérico ─ as características que definem os Mura são provenientes da voz do poeta narrador, comprometido com a ideologia expansionista cristã. A partir dessas reflexões, chamamos a atenção para a característica deste gênero narrativo, que diz respeito a um passado de origem remota e de considerável prestígio cultural, cujas raízes são provenientes das mais antigas manifestações literárias da antiguidade e relaciona-se com valores e referências culturais hoje desaparecidos. Por esses motivos, a epopeia retorna ao tempo do mítico e do lendário e enaltece o passado do povo que está sendo cantado. Em epopeias como a Ilíada, a Odisseia e Os Lusíadas, o fator histórico-comunitário enuncia-se de forma contundente, porém na última este fator é exaltado pela força do título da obra. De acordo com Maria Lucia Wiltshire de Oliveira:57 ―A razão do canto épico camoniano reside na essência histórica e imortal de um império, tematiza o destino nacional, mas ainda não podemos problematizar com a questão específica da pátria. ―o interlocutor ideal é a cristandade em geral‖ (2004, p.311) Todavia, não é menor a sua importância, se procurarmos avaliar o alcance da sua recepção noutros contextos literários, nomeadamente o português, pela variedade de 57 OLIVEIRA, Maria Lúcia Wiltshire. De Camões a Saramago: leituras da pátria portuguesa. Rio de Janeiro: Book Link, 2004. 107 elementos que se manifestam no vasto espaço de tempo, possibilitando o aparecimento de uma variada gama de fenômenos passíveis de análise, a partir de perspectivas múltiplas. O conceito de genero épico, com as suas normas consideradas geralmente inderrogáveis, condiciona a leitura dos poemas heróicos, pois a perfeição dum poema é vista em função da sua adequação ao modelo teórico estabelecido para o género. A obediência às suas regras e um critério de valorização. O que explica que grande parte dos poemas épicos publicados nesta época (e foram muitos) seja acompanhada de textos expositivos das regras do género e demonstrativos da adequação da obra prefaciada a essas normas.(RODRIGUES, 1980, p.15)58 A exemplo do épico camoniano que em seu título enaltece os heróis lusitanos, em Muraida, apesar do título pretensamente valorizar o povo Mura como vencedor, o percurso histórico dos Mura simboliza um povo que lutou para não ser dizimado e que teve apenas alguns de seus representantes convertidos à fé cristã. Outrossim, o poema escapa à classificação acima por não trabalhar motivos arraigados na memória popular, não enaltecer a cultura desse povo e nem tratar o ―herói‖ como um ser excepcional. Pois, apesar de demonstrações de fereza e bravura, os indígenas, ao resistir ao processo de colonização europeia, acabam, praticamente, dizimados. Reduzir o inimigo, denegrir a sua imagem e enaltecer o lugar do vencedor são características determinantes do texto épico e que são observáveis em Muraida. Porém, no que diz respeito à exaltação de um grande herói, fica a pergunta: Quem é o herói neste épico? Para refletir sobre a importância da figura heroica, recorremos a Auerbach (1998). O autor aponta no momento em que a governanta descobre a cicatriz de Ulisses, a crise, a tensão na poesia homérica, pois é neste momento que é revelada a identidade do grande herói, um Ulisses longamente descrito por suas façanhas e pela heroicidade de seus atos. Os Lusíadas, por exemplo, simbolizam o reconhecimento da força daqueles que construíram um império ultramarino e venceram vários inimigos. Porém, ao contrário do 58 RODRIGUES, Maria Lucília Gonçalves. A crítica camoniana no século XVII. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1982. 108 épico camoniano, em Muraida, apesar de o título sugerir que os Mura são os grandes vencedores, os vencedores são os mesmos d’Os Lusíadas, os portugueses que conseguem pacificar e cristianizar um grupo indígena, ainda que o poeta cante a glória do índio cristianizado, pois após um longo período de lutas, o épico enaltece a rendição de alguns guerreiros que são finalmente dominados e inseridos em uma nova ordem socioeconômica e cultural, ocupando o lugar dos perdedores da História. Logo, sem o reconhecimento heroico. Podemos inferir que o poeta, desde o título, enaltece os inimigos como estratégia discursiva para glorificar ainda mais a vitória portuguesa. Estratégia que posteriormente seria empregada no Romantismo: enaltecer o inimigo e vencê-lo – o ―inimigo é forte, mas eu sou mais‖. Afinal, é um pressuposto do épico: o herói não pode lutar contra os fracos. Apesar de parecer romper com o paradigma do cânone, dando o lugar de herói ao Mura que defende o seu território, há uma reviravolta através do discurso e da interseção divina. Não é uma vitória de humanos, mas divina, e por isso compactua com a ideologia expressa no épico camoniano. Considerando as características canônicas de uma epopeia, percebemos que Muraida realmente a elas não corresponde, visto que, apesar de relacionar-se a um passado histórico de formação nacional, fala de um povo que sempre esteve à margem da civilização, e sua súbita conversão, narrada por Wilkens, não atinge a veracidade sobre o processo histórico do território amazônico, em particular em relação aos Mura. Outro fator a ser considerado, é o fato de o tempo do cantor não ser distante do tempo épico. O mundo épico deveria estar distanciado do presente da narrativa, isto é, do tempo do cantor, pois, desde o momento em que os portugueses tomam conhecimento dos Mura, por volta de 1719, até o momento da pacificação, são decorridos pouco mais de cinquenta anos 109 apenas. O poema data de 1785 e segundo o Prólogo que antecede o poema, a pacificação ocorreu neste mesmo ano: ultimamente estando uma considerável partida dos mesmos Muras, com seus principais no Lugar de Nogueira, onde então existia convalescendo o sobredito tenente-coronel, primeiro comissário João Batista Martel, teve este o particular gosto e a espiritual consolação de ver que, no dia nove de junho deste corrente ano de 1785, os ditos principais Muras e outros refugiados entre eles já murificados, por sua livre, espontânea vontade, e motu próprio, sem preceder persuasão alguma, não sem um particular toque da Mão do onipotente árbitro dos corações humanos, oferecem vinte inocentes Muras, filhos dos ditos, pedindo o Santo Batismo. (Mur, 2012, p.26) Como podemos observar, o Prólogo confirma o que será cantado no Canto VI do poema: Era do sexto mês, o nono dia, E quarto neste povo de festejo, Que o Mura se admirando do que via Nos ritos e costumes; tal desejo, Ardor irresistível percebia, Que o temor, repugnância, inútil pejo Desterrando o faz crer, que já demora Ao astro luminoso a bela Aurora (Mur, VI, 16) O Prólogo cumpre a função de destacar os principais acontecimento do Canto. Nestes versos, temos a data do batismo: nove de junho. Portanto, o distanciamento temporal entre o cantor e o mundo épico é deveras pequeno, para não dizer inexistente. A ausência de descrições de batalhas também pode ser apontada como uma das causas que levam os críticos a não classificarem o poema dentro do modelo clássico de uma epopeia. No discurso do colonizador não há enfrentamento por iniciativa dos brancos. O poema dá a entender que todo esse processo de pacificação dá-se através de diálogos e tentativas de reduzi-los e agregá-los à fé cristã. Os versos que narram relatos de atos de violência e selvageria dos nativos contra outras etnias e contra os brancos navegantes são ataques dos Mura, sem nenhum tipo de provocação a partir do colonizador. O que há, de fato, é a conversão ―espontânea‖ dos Mura, reforçada pelo discurso do colonizador, que promete aos gentios, além da previsível libertação das almas e a entrega de donativos em troca da aceitação das condições coloniais de confinamento, alguma participação nas relações comerciais que poderiam se estabelecer por meio de um desejado tratado de paz. (CALDAS, 2007, p.189) 110 Citamos os versos do Canto II que demonstram as tentativas de jesuítas, mercedários e carmelitas em efetivar uma comunicação com os Mura, através de intérpretes, com a finalidade de levá-los ―as verdades da Santa Fé‖, porém o intento era frustrado. Tal afirmação indica o fracasso das missões religiosas na Amazônia: Não se cansava o zelo e a piedade, De meios procurar mais adequados A conversão de tal gentilidade. Mas sempre os lamentava então frustrados. Mil vezes co‘o fervor da caridade, Das religiões os filhos, animada, Entre perigos mil, e a mesma morte, Se esforçavam buscar-lhes melhor sorte. Mil vezes reduzi-los se intentava Com dádivas, promessas e carícias; Do empenho nada enfim mais resultava Que esperanças de paz, todas fictícias. Nada a fereza indômita abrandava; Nada impedia as bárbaras sevícias. A confiança achava o desengano De mão traidora, em golpe desumano. (Mur, II, 4-5) Portanto, por não preencher as características discutidas, não podemos classificar o poema como uma epopeia, mas talvez conforme Krüger afirma na introdução da última edição de Muraida: uma ―A antiepopeia dos Muras‖. Além do épico não preencher as características inerentes ao gênero, o texto assinala a derrota de um povo guerreiro que lutou historicamente para não ser dominado pelos colonizadores, segundo a visão dos estudos póscoloniais sobre o processo de colonização portuguesa. Em relação à estrutura épica de Muraida, podemos afirmar que é um texto poético divido em seis cantos, cuja forma e intenção são cópias do modelo camoniano. As estrofes se organizam em oitava rima camoniana e os versos são decassílabos. O poema possui Dedicatória, Invocação, Proposição, Narração e Epílogo. Diferentemente do épico camoniano, 111 cada Canto é introduzido com um ―Argumento‖, o qual representa um breve resumo do assunto que vem a seguir. Assim como Os Lusíadas foram dedicados a Dom Sebastião, Muraida possui uma dedicatória que não está presente no corpo do texto, mas é mencionada logo em seguida ao título do épico: Poema Heroico Composto, e compendiado em Seis Cantos. Dedicado e oferecido Ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor JOÃO PEREIRA CALDAS (Mur, 2012, p. 17) Wilkens oferece sua obra ao ex-governador geral do Estado do Grão-Pará e importante executor do Tratado dos Limites na região amazônica. Pereira Caldas recebe a dedicatória e também é elevado a uma posição de honra, pois, segundo o poeta, para atingir a ―pacificação‖ Mura, Deus foi o primeiro agente, mas, logo em seguida, Caldas é o responsável por esse triunfo. Além do oferecimento a Caldas, Wilkens solicita o amparo de seu superior em um texto que antecede o poema e também homenageia Matias Fernandes, diretor da aldeia onde os Mura foram assentados após a pacificação: Procura, pois, a Muraida a alta Proteção de Vossa Excelência. Entre afazeres e cuidados, que a obrigação do serviço e do emprego atual me impõem, só o afeto e respeito que a Vossa Excelência consagro; só o amor patriótico, e de bem público, inspirar-me podiam este pensamento [...] Vossa Excelência, não foi mero espectador, mas, sim, depois de Deus, o primeiro motor e agente dos oportunos meios [...] ‖ (Mur, p. 20-21, 2012) Ao final desse paratexto, Wilkens acrescenta: Ilmo. e Exmo. Senhor João Pereira Caldas, De Vossa Excelência o mais reverente súdito fiel H. J. W. Quartel de Ega, no Rio Solimões 20 de maio de 1789. (Mur, p. 21, 2012) 112 Podemos observar que a data do manuscrito presente no título do poema é 1785, mas ao final da dedicatória consta o ano de 1789. Araújo Moreira Neto, afirma que: uma ―série de imprevistos, entre os quais a morte dos portadores do poema ao homenageado, fez com que o autor o encaminhasse finalmente ao governador João Pereira Caldas em 24 de maio de 1789, provavelmente depois de uma revisão mais demorada do texto‖. (MOREIRA NETO, 1993, p. 70). Quanto à Invocação, o poema canta a predestinação própria dos cristãos desde o início dos tempos. Desde o Prólogo, os argumentos são elaborados com a intenção de justificar a necessidade de ―pacificação‖ e ―reconciliação‖ dos índios Mura com os brancos. Transformar o espaço que era hostil em um espaço pacificado representaria um grande sucesso para levar a cabo o projeto de modernização planejado para a região. Com a finalidade de cumprir essa tarefa, Wilkens substitui a Invocação às Tágides ─ as ninfas do Tejo, presente em Os Lusíadas, pelo chamamento da ―Luz‖ e da ―Graça‖ de Deus para cantar seus versos. E recorre à Musa Época para se referir ao tempo em que os Mura ainda eram os incivilizados: E vós, Tágides minhas, pois criado Tendes em mi um novo engenho ardente Se sempre, em verso humilde, celebrado Foi de mi vosso rio alegremente, Dai-me agora um som alto e sublimado Um estilo grandíloco e corrente (Lus, I, 4, grifos nossos) Mediante a Luz e a Graça, que se implora, De quem é dela fonte, Autor divino, A musa Época indica que até agora De horror enchia o peito mais ferino. Do Mura a examinar já se demora, Usos, costumes, guerras, e o destino, Que, entre as informes choças, inaudito, Ao prisioneiro dá, mísero, aflito. (Mur, I, 1,grifos nossos) Portanto, neste argumento do Canto I, percebemos, através da Invocação, que os Mura viviam nas trevas e sob o domínio do Mal, de acordo com o entusiasmo da conquista 113 pela ampliação do mundo europeu. Somente a Luz divina poderia reverter tal estado de barbárie, porém a ―luz‖ também é trazida através da sub-reptícia barbárie do conquistador: Mandai raio da Luz, que comunica Entendimento, acerto verdadeiro Espírito da paz! que vivifica [...] (Mur, I, 3, 1-3) Invoco aquela Luz que, difundida Nos corações, nas almas obstinadas, Faz conhecer os erros e a perdida Graça adquirir, ficar justificadas[...] (Mur, I, 4, 1-4) A Proposição, como apresentação do tema do poema a ser desenvolvido na Narração, consiste em glorificar os feitos que ocasionariam a conversão dos Mura: Canto o sucesso fausto inopinado, Que as faces banha em lágrimas de gosto, Depois de ver num século passado, Correr só pranto, em abatido rosto Canto o sucesso, que faz celebrado Tudo o que a Providência tem disposto Nos impensados meios admiráveis, Que os altos fins confirmam inescrutáveis. (Mur, I, 2) À semelhança de Os Lusíadas, o poeta vem cantar o resultado da missão de dilatar a fé cristã. Para ilustrar a necessidade de os portugueses atingirem seu intento de colonização, canta o sucesso obtido depois de anos de ―abatimento‖. Afinal, para os lusitanos sempre estaria reservado um futuro que se assemelha ao seu passado glorioso: As armas e os barões assinalados Que, da Ocidental praia Lusitana. Por mares nunca dantes navegados, Passaram além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo reino, que tanto sublimaram E também as memórias gloriosas Daqueles Reis que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando, E aqueles que por obras valerosas Se vão da lei da Morte libertando: Cantando espalharei por toda a parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte. 114 (Lus, I, 1- 2) Após a Proposição, começa a Narração propriamente dita. Wilkens prossegue cantando o percurso de lutas entre os portugueses e os Mura até a pacificação. Trataremos mais especificamente do desenvolvimento da Narração no próximo subcapítulo deste trabalho. O Epílogo constitui a parte final do poema na qual os conflitos são resolvidos. Em Muraida, ele pode ser observado nas últimas cinco estrofes do último Canto do poema: Sobre princípios tais, tal esperança, Fundamenta a razão todo discurso; Em Deus se emprega toda a confiança; Pende o Seu poder todo o recurso; Os frutos já se colhem da Aliança, Apesar dos acasos no concurso. Sempre os progressos a cantar disposto, Aqui suspendo a voz, a lira encosto. (Mur, VI, 23, grifos nossos) Nessa última estrofe de a Muraida, o poeta encerra seu discurso e encosta sua lira cantando o triunfo da empresa colonizadora. Observamos, no Epílogo, a intenção do poeta em demonstrar a ―homogeneidade‖ da pacificação, apesar dos conflitos existentes com a etnia em outras localidades da Amazônia. Usa um eufemismo para referir-se à resistência dos Mura: ―Apesar dos acasos no concurso‖, dando a entender que a resistência foi um problema pequeno a enfrentar. De outro modo, em Os Lusíadas, o encerramento que o poeta canta no Epílogo contrapõe-se ao desfecho de a Muraida. Cleonice Berardinelli (2000), em seu estudo dos excursos camonianos, aponta que o Poeta do épico camoniano faz reflexões, exortações e queixas através dos excursos. Entre os exemplos citados pela autora, destacamos a estrofe: No mais, Musa, no mais, que a lira tenho destemperada e a voz enrouquecida, e não do canto, mas de ver que venho cantar a gente surda e endurecida. O favor com que mais se acende o engenho não no dá a pátria, não, que está metida no gosto da cobiça e na rudeza duma austera, apagada e vil tristeza. 115 (Lus, X, 145, grifos nossos) Segundo a autora (p.47), o Poeta recorrera anteriormente duas vezes às Ninfas e duas vezes à Calíope, primeiro com entusiasmo e depois com cansaço. Num ritmo descendente, em suas últimas palavras à Musa da epopeia, Calíope, o poeta pede que lhe corte a voz, diz-lhe que é momento de calar, pois sua voz não tem mais o tom alto e sublimado do início do épico, pois a cítara que cobiçara de Homero, é ―lira destemperada‖. Ambos os poetas soldados cumprem a missão de cantar o triunfo português. Cada um a seu modo, desempenham a missão de cantar o expansionismo e o colonialismo nas novas terras, entre os infiéis. Porém, diferentemente do épico camoniano, o sucesso cantado em Muraida condiz apenas parcialmente com a análise dos fatos históricos, pois de acordo com o poema, através de um supremo ato milagroso, o povo Mura se converteu à fé cristã e, sobretudo, aos interesses dos colonizadores. Porém, sabemos que, historicamente, apenas um grupo pequeno de indígenas foi subjugado, conforme veremos mais adiante. 4.3 Muraida e Os Lusíadas: Duas viagens, duas conquistas As perspectivas teóricas atuais da Literatura, da História e da Antropologia têm contribuído para novas interpretações dos textos produzidos pelos cronistas viajantes, padres e militares que participaram das incursões colonizadoras no território que hoje constitui-se como Brasil, lançando novos olhares sobre as relações estabelecidas entre índios, colonos e missionários naquele tempo. Faz-se necessário apontar que o modo de ver o mundo e as ideologias sustentadas em textos do período colonial revelam o olhar e a consciência possíveis aos autores daquele tempo. As viagens ultramarinas eram fortemente marcadas pelos braços da violência e da religião, atuando juntas para conseguir atingir a construção de um império desejado pelos europeus. Quando, por exemplo, Camões cantou os feitos dos reis portugueses que arrasaram 116 a África e a Ásia, isso não era interpretado como um ato de barbárie, como pode ser considerado atualmente. Camões também foi um poeta soldado, assim como Wilkens. Em ambos os épicos analisados, percebemos um misto da ideologia militar fortemente marcada pela ideologia religiosa de dilatar o Império e a Fé cristã. Em ambas, a conversão e redução dos inimigos decorrem de uma dupla força da violência impetrada contra eles — a violência simbólica e a violência real. A imagem do índio Mura como um demônio foi construída por uma visão de Mal trazida pelos europeus em seus navios e, tal representação imagética interessava aos propósitos coloniais, conforme o historiador Santos (2002). Os povos da América e de outras terras conquistadas pelos europeus não eram julgados a partir de seus próprios referenciais culturais e ideológicos, ou pela forma como se organizavam social e economicamente. A visão etnocêntrica do mundo deturpava o olhar sobre os indígenas e reforçava a ideia de atuação do Diabo sobre esses povos. Deste modo, em Muraida, a luta que é travada é entre Deus e o Diabo (BEM X MAL). Este último domina os Mura e os destitui da Graça divina: Eia! Pois, filhos meus – Que assim vos chame Não estranheis, pois vosso bem só quero – O nosso Deus; a nossa fé se aclame; Que Ele nos fortaleça sempre espero; Que a Sua Graça sobre vós derrame. Aterre-se esse monstro hediondo e fero, Que em densas trevas, em vil cativeiro, Vos aparta de Deus, bem verdadeiro. (Mur, IV, 15, grifos nossos) Neste sentido, devemos ler o Mal, não apenas como atribuição do Diabo, mas como uma representação do real impedimento ao projeto pombalino de colonizar a Amazônia. Dessa forma, na mente dos portugueses que chegavam à América, semelhante ―verdade‖ contra os mouros foi adaptada aos indígenas. O etnocentrismo europeu e sua dificuldade de perceber e conhecer o Outro criaram uma conceituação generalizante sobre o índio, 117 classificando-o como um ser desprovido de cultura e crenças — descrito como antropófago, preguiçoso ou selvagem — e não contemplava as diferenças de ordem cultural que marcavam cada etnia indígena como única, dona de seus próprios ritos e conhecimento de mundo. Neste sentido, é interessante observar a análise de Todorov (1998), sobre a atitude de Colombo ao conhecer os índios. Na experiência do encontro, não se interessou pelo que a realidade podia apresentar-lhe como novo, mas limitava-se a interpretá-la a partir de ideias preconcebidas. Para Colombo, as novas experiências eram apenas ilustrações de ―verdades‖ que ele já possuía e fruto de uma longa tradição eurocêntrica sobre sua posição de ―Velho Mundo‖ como o local originário da cultura e de uma consequente negação de outras culturas além-mar. Conforme já dissemos anteriormente, segundo Eduardo Lourenço (2005), a Europa ―colonizou o mundo por razões boas e más. Essa colonização irreversível nunca lhe será perdoada. É o pecado original, a marca específica do seu destino‖ (p.13). Colombo ―deu novos mundos ao mundo‖, conforme já afirmara Camões, e esse sentimento de superioridade ou de ―hiperidentidade‖ — termo usado ironicamente por Lourenço (p.165) — fez com que os portugueses impusessem sua língua, cultura e religião a povos que não eram desprovidos de cultura, mas que foram violentamente oprimidos e violentados simbolicamente. Com a intenção de analisar esse olhar etnocêntrico representado na literatura, escolhemos neste capítulo discutir semelhanças e diferenças em vários episódios da Narração de Muraida e d‘ Os Lusíadas. Pois, assim como Camões cantava os feitos gloriosos do povo português, Wilkens quer celebrar a vitória dos portugueses contra os Mura. No clássico, toda uma história do povo lusitano emerge ao lembrar de reis e viagens que construíram uma longa história portuguesa de honras e glórias. Em Muraida, o retorno ao passado é necessário para 118 dar ao ouvinte a dimensão das dificuldades vencidas ao longo de mais de cinquenta anos de luta contra os Mura: Mais de dez lustros eram já passados, Que a Morte e o terror acompanhava Aos navegantes tristes, que ocupados Estavam co‘o perigo, que esperava A cada passo ter nos descuidados, Segura presa em que se alimentava, Despojo certo, e vítima inocente, Na terra, ou mar, do rio na Corrente. (Mur, I, 5) A propósito de apresentar a empreitada colonizadora, Wilkens enfatiza a crueldade dos Mura e o poder de pacificação do catolicismo. Antes de começar a Narração do poema, Wilkens escreve um Prólogo para que sirva de instrução àqueles que irão ler o poema. Esse prólogo é rico em detalhes sobre a etnia Mura e deixa claro o real motivo comercial de exploração agrícola, por trás das Leis de Liberdade. Podemos observar o olhar do colonizador em várias passagens do Prólogo; elas denotam as reais intenções de dominação. Logo de início, percebemos a descrição de fereza e brutalidade das ações dos Mura, as quais impediam que os interesses dos colonizadores se realizassem. O autor não poupa adjetivos para descrever os Mura segundo a imagem de um bárbaro: O feroz, indomável e formidável Gentio Muhura, ou Muhra [...] sempre foi fatal aos navegantes do dito rio Madeira, no comércio que o Pará cultivava com a capitania de Mato Grosso; sendo este gentio de corso igualmente cruel e irreconciliável inimigo dos portugueses, dos índios, dos bosques ainda habitantes, matando cruelmente, e sem distinção de sexo ou idade, todos os viajantes e moradores das povoações, roubando-os e levando as mulheres moças e crianças, que do estrago escapavam, destinadas a um cruel cativeiro, permitindo, contudo, a Divina Providência que nunca familiarizar-se pudessem com o uso das armas de fogo, às quais tinham o maior horror e, achadas, ou totalmente quebravam ou ao rio arrojavam ou em pedaços reduziam para pontas de flechas, das quais usam com grande destreza e força. No ano de 1756 principiou o dito Gentio Mura a sair em corso pelos circunvizinhos rios, passando até a fortaleza da Barra do Rio Negro, confluente do Amazonas. Insensivelmente no ano de 1765, até o de 75, enchiam já de terror, espanto, mortes e rapinas todos os rios confluentes do Solimões ou Amazonas, funestando a navegação, o comércio, a comunicação e a população dos ditos rios. (Mur, p.23-24, grifos nossos) De acordo essa caracterização dos Mura, aproximamos a figura do Mouro no discurso camoniano. Ambos são bárbaros, infiéis e precisam ser cristianizados. A respeito dessa 119 classificação, recorremos a Thomas Wolf (2004)59. O autor reflete a respeito da oposição entre barbárie e civilização: Quando um país, uma sociedade, ou uma cultura se identifica à civilização, qualificando como bárbaros seus adversários, quase sempre é para justificar iniciativas imperialistas menos recomendáveis. Há outro risco, simétrico ao anterior: o de que uma pretensão à universalidade (a civilização é única, é a mesma para todos e para toda a humanidade) ou, pior, de um objetivo expansionista (nós somos a civilização, eles são a barbárie)[... ] É evidentemente tentador, com efeito, não enxergar diferenças entre as duas posições. Já que cada um qualifica o outro de bárbaro a fim de defender sua própria e única concepção de civilização, parece sensato declarar que não existe civilização, pelo menos não uma ideia única de civilização, apenas culturas diferentes; portanto, não existem bárbaros, tudo é uma questão de ponto de vista, cada um chama de civilizado aquilo que ele mesmo é, conhece, compreende, e de bárbaro o que lhe é estrangeiro ou desconhecido. (WOLF, 2004, p.20) No entanto, o próprio autor solicita a relativização desses conceitos, quando pensa em três maneiras diferentes de ser conceituado como bárbaro. Numa dessas visões, o indígena que andava nu pela selva pode ser visto como bárbaro em oposição a um conceito de civilização urbanizada. Mas se pensamos nesse conceito de forma a analisar a destruição de um patrimônio cultural, o que podemos dizer dos portugueses que chegaram destruindo comunidades indígenas inteiras e seus respectivos patrimônios durante a colonização? E se pensarmos na tomada de Ceuta e na transformação da maior mesquita da cidade em templo católico? Quem é bárbaro? Refletindo sobre esses conceitos, destacamos os versos que, de acordo com o olhar da civilização europeia, os Mura são retratados de forma demoníaca, fato que por si só justificaria a intervenção religiosa para retirá-los de tal condição: Não mitiga o cruel, o feroz peito, A tenra idade do mimoso infante, Nem à piedade move, nem respeito Do decrépito velho, o incessante Rogo e clamor, só fica satisfeito Vendo o cadáver frio, ou palpitante O coração; o mar e a terra tinta De sangue, que não deixa a raiva extinta (Mur, I, 18) 59 WOLF, Thomas. ―Quem é bárbaro?‖ In: Novaes (org.) Civilização e Barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p.19-43 120 De acordo com esses versos, retomamos a reflexão elaborada no Capítulo 2 sobre a tese 7 de Walter Benjamim: se a barbárie é intrínseca à civilização, o bárbaro é também o português que quer civilizar o indígena e, em consequência, destrói os seus monumentos de cultura. E assim é desde a História Antiga do Ocidente. O Ocidente se funda nesse dualismo entre civilização e barbárie, Bem versus Mal, numa pretensa relação de opostos. A violência, afinal, não está apenas no Outro, mas está também nos processos que fazem o civilizado acreditar que é superior. Observemos o emprego da palavra ―piedade‖ na estrofe acima, nos remete a uma conhecida construção camoniana que reflete sobre o sentido de ―mover à piedade‖ – a morte de Inês de Castro. Matar Inês não foi um crime bárbaro? Traziam-na os horríficos algozes Ante o Rei, já movido a piedade; Mas o povo, com falsas e ferozes Razões, à morte crua o persuade. Ela, com tristes e piedosas vozes, Saídas só da mágoa e saudade Do seu Príncipe e filhos, que deixava, Que mais que a própria morte a magoava ( Lus, III, 124) A exemplo da morte de Inês, o que poderia mover a piedade, senão o Amor divino? A crueldade presente na natureza humana, pode ser levada a cabo por ―bárbaros‖ ou ―civilizados‖. Os portugueses não eram cruéis quando dizimavam comunidades inteiras em nome da colonização? O que dizer dos assassinos de Inês? De acordo os atos de violência e o desejo permanente de derramar o sangue alheio, os Mura são insistentemente considerados malignos, ideia reforçada pelo ponto de vista do discurso colonial. Na estrofe a seguir, observamos, na descrição de suas ações ao capturar prisioneiros, que mulheres e crianças também eram alvos da violência dessa etnia. Poderiam ser escravizados para fins de trabalho ou assassinados, conforme nota explicativa do poeta após os versos aqui citados: Sem distinção de sexo, ou qualidade, Ou tudo mata, ou leva maniatado 121 Em duro cativeiro, onde a maldade, O trabalho combina, destinado Aos diferentes sexos e à idade Dos prisioneiros; sendo castigado O negligente com tal aspereza, Que prova é convincente da fereza. (Mur, I, 19) Wilkens demonstra a violência desse povo, a cuja crueldade que nem o ―frágil sexo‖ escapa, pois, ao fazer de mulheres suas prisioneiras, elas eram abusadas, e depois de mortas, alvo das flechas dos Mura. Desta forma, os indígenas desta etnia são evocados como agentes do mal que se multiplicam nas densas brenhas da floresta, ganham a fama de bárbaros em oposição aos europeus ―civilizados‖. Segundo dados históricos, em algumas situações, as mulheres e crianças de outras inimigas eram assimiladas pelo grupo Mura, num processo denominado ―murificação‖. Os Mura são apresentados como seres não-humanos, impiedosos e animalescos. Tal e qual os mouros são apresentados como inimigos em Os Lusíadas. Os mouros, sob a ação de Baco, representam aqueles que resistem ao domínio lusitano. Baco os leva à guerra, na batalha do Salado, por este motivo são caracterizados como torpes e traidores: Mas o Mouro, instruído nos enganos Que o malévolo Baco lhe ensinara, De morte ou cativeiro novos danos, Antes que à Índia chegue, lhe prepara. Dando razão dos portos Indianos, Também tudo o que pede lhe declara, Que, havendo por verdade o que dizia, De nada a forte gente se temia. (Lus, I, 97) Os mouros, descendentes de Baco, são comparáveis aos Mura sob a ação do Demônio, ambos são considerados como encarnação do Mal. Os mouros são levados a lutar e o Mal leva os Mura a resistir: A isto mais se ajunta que um devoto Sacerdote da lei de Mafamede, Dos ódios concebidos não remoto Contra a divina Fé, que tudo excede, Em forma do Profeta falso e noto 122 Que do filho da escrava Agar procede, Baco odioso em sonhos lhe aparece, Que de seus ódios inda se não dece. E diz-lhe assi: – «Guardai-vos, gente minha, Do mal que se aparelha pelo imigo Que pelas águas húmidas caminha, Antes que esteis mais perto do perigo!» Isto dizendo, acorda o Mouro asinha, Espantado do sonho; mas consigo Cuida que não é mais que sonho usado; Torna a dormir, quieto e sossegado. (Lus, VIII, 47-48) Em ambos os épicos, os portugueses surgem como benfeitores, como instrumentos de Deus a serviço da salvação. De acordo com os versos do poeta, temos a medida exata do olhar daquele que se julga superior, da posição do civilizado sobre o incivilizado, do emigrante sobre o autóctone; olhar que vence pelo jugo do indígena à cultura recém-chegada. No nível da enunciação, a presença portuguesa é marcante no que diz respeito à ideologia de sociedade presente no poema. Nesse sentido, recorremos a Silviano Santiago: Quanto mais diferente o índio, menos civilizado; quanto menos civilizado, mais nega o narciso europeu; quanto mais nega o narciso europeu, mais exigente e premente a força para torná-lo semelhante; quanto mais semelhante ao europeu, menor a força de sua própria alteridade. (1982, p.16) Dessa forma, observamos em Muraida a pressão da força colonizadora atuando sobre os Mura. Após várias descrições do modo de vida dos índios, a rendição acontece ―por encanto‖ e por obra da Graça divina. A luta travada é uma guerra moral entre a fé católica e a gentilidade dos indígenas em questão, entre Deus e o Demônio. Enquanto os Mura estão sob o domínio do Demônio, eles habitam as trevas e seus traços morais precisam ser modificados. De acordo com o pensamento corrente na época, muito influenciado pelo discurso religioso, a falta de razão estaria relacionada à fatal ausência do Bem, e o Bem, nesse caso, é Deus. De acordo com o poeta, a violência presente no texto poético não é decorrente da resistência ao colonialismo, mas engendrada pelo paganismo e pelas trevas. Esse paganismo é quem cria a maldade que, por sua vez, amplia o caráter da violência praticada contra os 123 brancos e índios de outras etnias. Daí, a necessidade da pacificação daquela população indígena. Conforme já citado anteriormente, os Mura guerreavam não só contra os brancos, mas também contra as tribos inimigas, por isso são vistos como comandados pelo Demônio. Multiplicavam-se entre os rios e furos amazônicos e impediam o comércio das drogas do sertão, ambicionado pelos exploradores. O propósito da necessidade de conseguir a pacificação desse povo, através do discurso religioso, reforçaria o poder que a Igreja tinha nessa época ─ apesar da expulsão dos jesuítas no período pombalino ─ e esconderia a violência perpetrada contra eles. Os habitantes naturais das terras amazônicas viviam sob um clima de tensão entre o poder da Igreja e o poder do Estado. Pois, conforme os interesses das forças do poder, ora poderiam estar unidos, ora em conflito. Desta forma, Wilkens enfatiza o paganismo e a falta de religiosidade do povo Mura para condená-las e enaltece a necessidade de conversão não só aos valores cristãos, mas aos interesses mercantilistas dos brancos: Entre nações imensas, que habitando Estão a inculta brenha, o bosque, os rios, Da doce liberdade desfrutando Os bens, os privilégios e os desvios Da sórdida avareza, e desprezando Projetos de ambição, todos ímpios, A bárbara fereza, a ebriedade Associada se acha com a crueldade. Nas densas trevas da gentilidade, Sem templo, culto ou rito permanente, Parece, da noção da divindade, Alheios vivem, dela independente, Abusando da mesma liberdade Que lhes concede esse Ente Onipotente, Por frívolos motivos vendo a terra Do sangue tinta, de uma injusta guerra. (Mur, I, 9-10) Pela falta de conhecimento do Outro, pelo desprezo aos projetos de ambição e o conflito entre diferentes estilos de vida - permanente e nômade, percebemos que os Mura não 124 tinham interesse em participar do sistema mercantilista europeu, projeto de capitalismo que estaria por vir. Tal como desnudos andavam, andavam despidos da ambição dos brancos. De acordo com David Treece (1993), a razão desse comportamento seria consequência da influência dos antigos conquistadores. Segundo o autor, os índios não apresentavam interesse pelo trabalho e pelo comércio como formas de enriquecimento devido ao fato de os primeiros colonos não os terem preparado para o trabalho comercial. Sabemos que era natural da cultura indígena não utilizar do comércio como forma de sobrevivência, só em casos raros de exceção em algumas etnias, conforme já comentamos no Capítulo 2. Apesar de o texto poético cantar que a conversão ocorreu por um milagre da luz divina, historicamente, sabemos que a etnia Mura permaneceu lutando e tornou-se conhecida por representar a maior força de resistência contra os colonizadores europeus, assim como os Mouros lutaram contra os portugueses em diversas batalhas em nome da fé. Conhecidos como índios de corso, os Mura habitavam tanto a terra quanto os rios e eram exímios remadores e conhecedores das florestas, dos rios, furos e igarapés. Nas situações em que iam de encontro aos portugueses, eles impediam qualquer tipo de extração florestal e de fixação no solo amazônico. Dessa forma, o índio Mura ficou também conhecido como o ―Mura agigantado‖. 4.4 O Mura Agigantado e o Gigante Adamastor Refletindo sobre a capacidade de locomoção e de impedimento que os Mura apresentavam contra os portugueses, podemos compará-los ao Gigante Adamastor da obra camoniana. Imagem que nasce do mito de Deméter60. Adamastor é altivo e soberbo, porém 60 Deusa da agricultura, Deméter (gr. Δημήτηρ) representava os frutos obtidos com o cultivo da terra, de forma geral, e notadamente o trigo. Não deve ser confundida com Gaia, que representa a terra como princípio cosmogônico. Ligada diretamente à fertilidade da terra cultivada, Deméter é uma antiquíssima deusa-mãe cuja origem deve remontar, no mínimo, ao Neolítico. Não há menção a Deméter nas tabuinhas micênicas, mas é possível que algumas pinturas murais se refiram a ela e há, também, uma inscrição minoica em linear A, ainda não decifrada, a mencione. Em Homero, ela já aparece diretamente associada ao trigo (Il. 13.322).Para os gregos, ela era filha dos titãs Crono e Réia, nascida logo depois de Héstia, e, portanto irmã de Zeus, Hera, Posídon e Hades. (Extraído de www.greciantiga.org, acesso em 20 de fevereiro de 2014) 125 Vasco da Gama, a exemplo de Ulisses ―o facundo‖, vence o gigante através da maiêutica do discurso, fazendo um elogio ao Ocidente que vence através da argumentação. Apesar de Saraiva (1972) o chamar de um ―gigante choramingas‖ e, por assim dizer, diminuí-lo. Jorge Fernandes da Silveira em O Tejo é um rio controverso (2008) discorda e nomeia Adamastor, não apenas como uma figura grande que aparece no caminho do Oriente, mas como uma ―grande figura‖, uma alegoria da provação, simbólica das adversidades a ultrapassar: A hipótese de que o futuro ainda está na aprendizagem de uma lição do olhar, vista em todo o Canto V (―Vi, claramente visto, o lume vivo‖ – 18,1), e que encontra, no aparecimento da ―figura disforme‖, a sua versão, literal e simbolicamente, extraordinária: uma dura ―educação pela pedra‖, que, incompreendida por Saraiva, ainda hoje faz escola entre os seus discípulos, que se negam a aprender a ver que é o Adamastor quem ―domestica‖ o ―valeroso Capitão‖, primeiro maravilhando-o ―de espanto‖ com o seu gesto medonho, depois, em resposta às ―primeiras perguntas sobre os deuses‖ (―Quem és tu? Que esse estupendo/Corpo, de certo, me tem maravilhado!‖ – Lus. , V, 48, 3-4), comovendo-o com o seu drama amoroso, para, ao fim e ao cabo, duplamente enganado, pelos deuses e pelos homens, acabar movido pelo astucioso Capitão, que em vez de espada lhe dava corda ao discurso para que ele mesmo se imobilizasse, quer dizer, fosse atravessado pela nau capitânia e desse ao inimigo, aprovado com arte no engenho do diálogo ditado pelo humanismo neoplatônico renascentista (sem arroubos heroicos, porém), o epíteto que, logo depois de tal feito, o iguala a Ulisses: o ―facundo Capitão‖ (Lus.,V, 90,1). (SILVEIRA, 2008, p.121-122) Adamastor está no meio do caminho, na metade da viagem ―entre o Ocidente e a ―desejada parte Oriental‖ (Lus, V, 69,8)‖ (p.24). Vilma Arêas, ao falar sobre as reflexões de Jorge de Sena, diz: Jorge de Sena observou que o Canto Quinto, estrofe 92, é o ponto nevrálgico do poema, pois o presente da intriga se instala [...]. Parece-nos, no entanto, que sua observação fica a meio do caminho, pois não se refere à outra intriga, qual seja, a navegação poética: nesta, e exatamente no ponto indicado pelo crítico, o poeta toma a palavra, desloca-se do narrador-personagem, para louvar, não a história de Portugal, mas a verdade do canto. (Arêas, 1980,p.173) Adamastor é o obstáculo, ―a figura que se agiganta, surgida da noite e da nuvem tempestuosa, ao som do mar, é disforme em sua grandeza e fealdade. Passa-lhe Vasco da Gama a palavra e ouve-lhe profecias e maldições‖ (BERARDINELLI, 2000, p.76) Porém já cinco Sóis eram passados Que dali nos partíramos, cortando Os mares nunca d' outrem navegados, 126 Prosperamente os ventos assoprando, Quando ũa noute, estando descuidados Na cortadora proa vigiando, Ũa nuvem que os ares escurece, Sobre nossas cabeças aparece. Tão temerosa vinha e carregada, Que pôs nos corações um grande medo; Bramindo, o negro mar de longe brada, Como se desse em vão nalgum rochedo. – «Ó Potestade (disse) sublimada: Que ameaço divino ou que segredo Este clima e este mar nos apresenta, Que mor cousa parece que tormenta? Não acabava, quando ũa figura Se nos mostra no ar, robusta e válida, De disforme e grandíssima estatura; O rosto carregado, a barba esquálida, Os olhos encovados, e a postura Medonha e má e a cor terrena e pálida; Cheios de terra e crespos os cabelos, A boca negra, os dentes amarelos. (Lus, V, 37-39) Estrategicamente, o gigante é alevantado contra os portugueses na metade do Poema, no Canto V, conforme observou Jorge Fernandes da Silveira: Creio eu, igualmente, que o desfecho do encontro entre Vasco da Gama e o Adamastor é o momento supremo do poema, a última aventura possível. Com ela fica conclusa a primeira metade do grande quadro literário de Camões. Conclusão, aliás, espetacular do primeiro ciclo épico no poema, onde todos os meios se juntam concertadamente: num poema de dez cantos, no quinto, na estrofe cinquenta de um total de cem, o Adamastor apresenta-se, ao responder às perguntas formuladas pelo Capitão Gama. Por meio de uma retórica apurada, assiste-se à interlocução plena entre o puramente formal e o conteúdo revolucionariamente novo. (SILVEIRA, 2008, p.52) Geograficamente, o gigante camoniano representa o Cabo das Tormentas, impedimento à navegação dos portugueses e obstáculo até então intransponível para chegar às Índias: No cabo se refugiavam os medos perseguidos pelas naus, mas conservados no fundo de cada um dos que partiam ou ficavam. E esses medos assumiram, dentro da tempestade, forma sobre-humana grande bastante para se opor à passagem dos navegantes. (BERARDINELLI, 2000, p.79) 127 Simbolicamente, o gigante dá forma a todas as dificuldades da empreitada marítima. Em que medida essa característica é comparável aos Mura? Se ele é agigantado, como isso se representa no épico de Wilkens? O ―Mura Agigantado‖ representa essa força geográfica, pelo fato de conhecer muito bem o espaço amazônico, e torna-se um gigante pela bravura e habilidade na resistência contra os brancos, colocando-se como um real impedimento no percurso, uma ―pedra no caminho‖. Ultrapassar esse gigante representaria a vitória da retórica, julgando que pode ser ―concertada‖ a favor do bem, conforme nos lembra Cleonice Berardinelli. Marta Rosa Amoroso dedicou-se amplamente aos estudos sobre a etnia Mura. A antropóloga identifica essa imagem literária como marca fundamental da resistência e da bravura Mura: Este é o cenário no qual se germinou a criação dos Autos da Devassa contra os Índios Mura do rio Madeira (1738-1739), que consistia em uma ação judicial movida pelas ordens religiosas que atuavam na região do Madeira. A partir de então, os Mura passaram a figurar como inimigos oficiais da Igreja e da Coroa portuguesa, passíveis de serem mortos e escravizados. Durante todo o século XVIII, os documentos sobre os Mura posteriores à Devassa repetiam e reforçavam imagens fortemente pejorativas. Os registros históricos dão conta de ―populações selvagens, tratáveis apenas através da guerra e do extermínio‖. [...] A imagem do “Mura Agigantado” que consta do poema arcádico de Wilkens se originou neste contexto, no qual o colonizador, perplexo diante de tamanha mobilidade, passou a temer a floresta tropical por identificá-la com a “morada do gentio mura‖. (AMOROSO, 2009, grifos nossos) Através do olhar do colonizador, o texto poético revela a figura do ―Mura Agigantado‖ para retratar a mobilidade desse povo ao longo dos rios Madeira, Solimões e Rio Negro. De acordo com as imensas distâncias amazônicas, percorrer esses rios em pequenos barcos a remo seria esforço somente para um povo forte realmente guerreiro, lutando para escapar do processo de redução indígena e utilizando-se da violência para se proteger. Nos versos abaixo, percebemos essa capacidade de locomoção através das palavras ―espalhado‖ e ―difuso‖. Elas dizem, a respeito dos Mura, que eram exímios remadores e que 128 remavam incansavelmente por quilômetros de distância nos rios amazônicos. Dessa forma, vemos o Mura se tornar um ―gigante‖ para proteger os caminhos por onde passa, assustando a qualquer passageiro que venha cruzar o seu percurso: Tal do feroz Mura, agigantado Costume é certo, invariável uso; Que desde o rio Madeira, já espalhado Se vê em distância tal, e tão difuso Nos Rios confluentes, que habitado Parece só por ele, e ao confuso, Perplexo Passageiro intimidando, Seus bárbaros intentos vai logrando Assim deste gentio a formidável Corte repartida, com destreza, Em barcos tão ligeiros como informes, Mais temíveis se fazem, mais enormes (Mur, I, 14-15, grifos nossos) Márcio Souza reforça essa imagem de exímios remadores e de guardiães do caminho fluvial, ao dizer: Autazes é uma região de igapós, furos e pântanos, entre o rio Solimões e o Madeira. Ali, no labirinto de florestas submersas, os mura tornaram-se imbatíveis. Até hoje, apesar de todas as carnificinas que sofreram, tanto dos portugueses quanto na época da Cabanagem, os mura continuam lá, no mesmo lugar, numa demonstração de que nunca se renderam ou foram derrotados. Durante cinquenta anos os mura vão dar combate aos portugueses. Eles tinham aprendido a não se apresentar de peito aberto contra as armas de fogo; organizavam rápidos ataques ou emboscadas e eram brilhantes arqueiros, arte que dominavam com criatividade, com a utilização de um grande arco que eles seguravam com os pés para lançar uma flecha capaz de atravessar um boi ou rasgar uma armadura metálica.(SOUZA,1994, p.60). Nesse sentido, os Mura colocam-se como protetores não apenas das águas, mas de todo o território que estava sendo invadido. No poema, ao mesmo tempo em que o Mura é valorizado como bravo guerreiro, ele é estigmatizado como bárbaro e feroz, estando em oposição ao projeto de ―civilização‖ planejado pelos portugueses. Dessa forma, o poema revela pressupostos colonialistas e esconde os detalhes que não podem ser abertamente discutidos sob o ponto de vista do colonizador. Em relação a esse massacre efetuado desde o início da colonização, Márcio Souza nos diz: Entre a chegada dos europeus e o fim do sistema colonial, 250 anos se passaram. Foram tempos de conflito e de muito sangue derramado, em que um mundo acabou 129 em horror e um outro começou a ser construído em meio ao assombro‖ (SOUZA, 2010, p. 21). Nas descrições do poema, percebemos que, além de nômades, os Mura habitam os cantos escuros da floresta como forma de proteção. Em vários versos, há descrições vinculadas às trevas. Mais do que uma descrição geográfica, o jogo entre luz e trevas aponta para uma imagem cristã de presença versus ausência de Deus. Segundo a visão do colonizador, a falta de religiosidade desse povo o coloca na escuridão por não apresentar nenhum tipo de culto similar ao catolicismo: Mandai raio da Luz, que comunica Entendimento, acerto verdadeiro, Espírito da paz! Que vivifica A frouxa ideia, e serve de roteiro No pélago das trevas em que fica O mísero mortal, que em cativeiro Da culpa e da ignorância, navegando Sem voz, é certo, incauto, ir naufragando. (Mur, I, 3) Nas densas trevas da gentilidade, Sem templo, culto ou rito permanente, Parece, da noção da divindade, Alheios vivem, dela independente, Abusando da mesma liberdade Que lhes concede esse Ente Onipotente, Por frívolos motivos vendo a terra Do sangue tinta, de uma injusta guerra. (Mur, I, 9) Esses versos descrevem o índio Mura como um ser que habita as densas trevas da floresta, porém mais do que mera localização geográfica, essa descrição se revela como a imagem cristã da ausência de Deus: o ser que estava mergulhado nas trevas, como se seus olhos não enxergassem, ou como se os mesmos não estivessem abertos para ver a luz. Como consequência dessa ignorância, na qual estavam imersos, os Mura eram prisioneiros de si mesmos e promoviam uma injusta guerra por motivos fúteis, segundo a opinião do Poeta. Nesse momento, o poeta pede ―Luz‖, como possibilidade de consciência aos Mura, pois assim os olhos daquele povo iriam se abrir e mediante a luz viria a visão, entendimento e o espírito de paz, que, por sua vez, traria vida. Temos, então, os Mura como pagãos e 130 pecadores, sugerindo que estes nativos necessitavam de salvação e conhecimento, para professar os ideais portugueses. De certa forma, os portugueses se sentiam injustiçados, pois Deus teria colocado os ―selvagens‖ num paraíso terrestre, numa condenação clássica de que eles habitariam o paraíso para perpetuação da espécie, mas nada fazem em prol do progresso: tal fato seria uma injustiça aos olhos dos europeus. No Canto IV, batizados por João Batista Mardel, ocorre o maravilhamento e eles passam a habitar as clareiras, passam a ser amigos: Eia! Pois filhos meus – que assim vos chame Não estranheis, pois vosso bem só quero – O nosso Deus, a nossa fé se aclame; Que Ele nos fortaleça sempre espero; Que a Sua Graça sobre vós derrame. Aterre-se esse monstro hediondo e fero, Que em densas trevas, em vil cativeiro, Vos aparta de Deus, Bem verdadeiro. (Mur, IV,15) É perceptível nos versos uma relação entre as ideias de luz, conhecimento e vida, ─ atribuições do ―Bem‖ ─, cujo papel é combater o ―Mal‖. Segundo o pensamento europeu, o ―Bem‖ seria reproduzido pela ―civilização‖ e pelo ―progresso‖. Assim como trevas, ignorância e naufrágio configuravam o ―Mal‖ que acossava os indígenas. Incessantemente descritos pela sua crueldade, todo o Canto I investe na adjetivação que corrobora a imagem criada pelo colonizador e sua visão eurocêntrica. Ora são prisioneiros de si mesmos, ora são insubordinados e ímpios. O poeta os associa a figuras como ―lobo astuto‖, ―ave de rapina‖ e ―bando de corvo‖, vivendo como ―vagabundos‖, em suas canoas, causavam temor aos navegantes:Quais Tártaros, os outros, vagabundos, No corso e na rapina se empregando, Em choça informe vivem, tão jucundos, Como em dourados tetos; espreitando Nas margens lá do rio e lagos fundos O incauto navegante que, passando, Vai de perigos mil preocupado, Só do mais iminente descuidado. (Mur, I, 12) 131 Os Mura assumem, do ponto de vista evangelizador e europeu, uma posição traiçoeira de ―lobo astuto‖, comparável ao deus Baco da obra camoniana, conforme já vimos anteriormente. Enquanto ―os navegantes‖ estão em uma posição de ―ovelhas‖, vítimas inocentes e indefesas da habilidade Mura, etnia que sabe se defender em seu próprio território e que se agiganta nas águas amazônicas diante da ameaça ao seu espaço: Qual lobo astuto, que o rebanho vendo Passar, de ovelhas, do pastor seguido, A desgarrada logo acometendo Faz certa presa sem ser pressentido; A ensanguentada face então lambendo, À negra gruta já restituído, Cruel, insaciável, se prepara, Medita nova empresa e se repara. (Mur, I, 13) Diante de tais atos de barbárie, o Poeta critica a independência, a ausência de lei e de moradia fixa dos Mura ─ aspectos que dificultavam a dominação portuguesa sobre eles. Este ser cruel narrado lhe tira a voz. À semelhança da célebre oitava 145 do Canto X d’Os Lusíadas, em que o Poeta pede a Calíope que lhe corte a voz, o Poeta de Muraida canta o horror que os Mura causam e que lhe traz o esgotamento de sua voz. Quer igualmente as mãos paralisadas, como as de um pintor que suspende a pintura ao ver a ―Natureza‖ insultada com tantos sofrimentos, o que o faz desejar um ―tom‖ novo e um novo ―instrumento‖ capazes de dar continuidade ao canto e ao relato, ou seja, o que lhe trará algo diferente daquilo que ele mesmo relata. Nos versos a seguir, podemos observar como o poeta usa os excursos líricos em meio ao canto épico para queixar-se: Mas minha Casta Musa se horroriza; Vai me faltando a voz; destemperada A lira vejo, a mágoa se eterniza: Suspenda-se a pintura, que enlutada Das lágrimas, que pede, legaliza, Vendo a mesma Natureza ultrajada A dor; o susto; o pasmo; o sentimento Procure-se outro tom, Novo Instrumento. (Mur, I, 22) 132 Para falar de Adamastor e de toda a força que esse personagem camoniano simboliza em ambos os épicos, faz-se necessário realçar a importância do representante da heroicidade no épico camoniano, Vasco da Gama, o ―facundo‖, aquele que vence o gigante através do discurso. Segundo Quesado, Gama é o personagem que se realiza como um projeto ideológico da expansão e do Renascimento: A partir daí, temos que o homem vai ser o agenciador de dois objetos-valor, alcançados respectivamente, um imediata e outro mediatamente: o domínio sobre o mar e sobre a história. Vasco da Gama assume toda a ordem de valores do homem renascentista. [...] Ele vai agir exatamente dentro da ordem de valores da sua época e sua sociedade, fundada numa crença cristã e num contexto de ideias e opiniões do homem racionalista e humanista do século XVI. (QUESADO, 1974, p.5) Ainda em termos de interlocução entre Muraida e Os Lusíadas, Gama ─ após sonho profético de D. Manuel com os rios sagrados Ganges e Indo ─ recebe do próprio Rei a responsabilidade de dirigir a expedição em busca de novos mundos, a viagem torna-se objetivo de conquista de um espaço vital para o povo português: ―Me põe o ínclito Rei nas mãos a chave/ Deste cometimento grande e grave‖ (Lus, IV,77). O Rei usa de sua sabedoria e emprega palavras afáveis ao dirigir-se ao Gama e argumentar que as grandes conquistas são obtidas por grandes esforços: E com rogo e palavras amorosas, Que é um mando nos Reis que a mais obriga, Me disse: - «As cousas árduas e lustrosas Se alcançam com trabalho e com fadiga; Faz as pessoas altas e famosas A vida que se perde e que periga, Que, quando ao medo infame não se rende, Então, se menos dura, mais se estende (Lus, IV, 79, grifos nossos). Ao confirmar em seu discurso que a vida ―quando ao medo infame não se rende‖, a mesma não se torna notável, o Rei coloca o Gama diante do desafio, diante do desejo de superar os obstáculos humanos e fazer cumprir a ideologia Renascentista. Desta forma, segundo Saraiva & Lopes, Camões pode ser interpretado como paladino da cultura ocidental ao cantar a ideologia expansionista portuguesa: 133 [...] cumpre não ignorar a ideologia guerreira de conquista frequentemente exaltada n‘Os Lusíadas, Se julgarmos pelo sonho de D. Manuel e por outros passos, a nenhuma honra mais alta poderiam os povos do oriente aspirar do que a de sofrer o ―jugo‖ ou o ―freio‖ português, imagens que aliás também caracterizam o domínio régio sobre os seus súditos. E ao iniciar seu discurso perante o rei de Melinde, Vasco da Gama anuncia o assunto nestes temos: ―Primeiro tratarei da larga terra\ Depois direi da sanguinosa guerra.‖ (p.349) Em Muraida, Wilkens insere no poema um anjo. O mensageiro celeste, Anjo disfarçado de Mura, surge investido com o poder do discurso que tem como objetivo persuadir um Mura jovem a seguir os preceitos cristãos, e com argumentos de grandes benefícios, consegue convencê-lo a assumir o papel de transmitir aos outros Mura as boas novas da salvação. Assim como o Rei oferece a Vasco da Gama a oportunidade de ser o comandante da expedição em busca da conquista de novas terras, o Anjo concede ao Mura jovem a chance de ser o instrumento da propagação do Evangelho entre os seus: E para que conheças a verdade De tudo, que eu relato, vai correndo, Vai logo; Ajunta os teus, com brevidade, Verás, se é certo, o que te estou dizendo; Vamos seguindo, enquanto há claridade O caminho da aldeia, em que vivendo Tapuias, como nós, mas satisfeitos, A lei de um Deus conhecem, seus preceitos. (Mur, III, 5). Refletindo sobre a oposição ―cristão versus pagão‖, o Mura jovem deve semear a palavra de Cristo, com o objetivo de aceitação da fé católica e, consequentemente, a ―pacificação‖ Mura. Percebe-se que, assim como n‘Os Lusíadas, o desejo de glória e honra que entusiasmou Vasco da Gama e sua armada ocorre em Muraida. Visto que o discurso do mensageiro celeste embasava-se em argumentos de que, após a ―reconciliação‖ dos Mura, eles seriam poderosos, amados, invejados e teriam abundantes colheitas, portos vantajosos, e só assim seriam felizes eternamente. Assim como o Gama aceita a tarefa que lhe é confiada, e com louvor se coloca à disposição do Rei, submetendo-se a qualquer perigo e lamentando por sua vida não ser oferta tão valiosa: Eu vos tenho entre todos escolhido Para uma empresa, qual a vós se deve, 134 Trabalho ilustre, duro e esclarecido, O que eu sei que por mi vos será leve."— Não sofri mais, mas logo: — "Ó Rei subido, Aventurar-me a ferro, a fogo, a neve, É tão pouco por vós, que mais me pena Ser esta vida cousa tão pequena. (Lus, IV, 79) O Rei elogia Gama, o que o ―levantará‖ às grandes proezas. A partir de então, Vasco da Gama prepara a armada, tripulada por jovens de caráter valente, ambicioso e ousado para a empresa. Como Paulo da Gama, que sendo irmão de Gama, e também por desejar a honra, acompanha o irmão na expedição: Com mercês sumptuosas me agradece E com razões me louva esta vontade; Que a virtude louvada vive e cresce, E o louvor altos casos persuade A acompanhar-me logo se oferece, Obrigado de amor e de amizade, Não menos cobiçoso de honra e fama, O caro meu Irmão Paulo da Gama. (Lus, IV, 81). Assim, o Mura jovem de Wilkens e Vasco da Gama, incitado pelo Rei e anunciados pelo Anjo, estão ordenados para a viagem. O Mura jovem, ao ser convencido pelo mensageiro celeste, reúne seus companheiros e dá início à tarefa que lhe foi atribuída. Na praia do Restelo, no momento da partida das naus, o que se podia ver era o alvoroço e o ânimo nobre de desejo. Dúvida e temor não tinham lugar na ousadia juvenil, assim como nas convicções do jovem Mura em seu discurso persuasivo, pois ―O Mura se levanta arrebatado‖, e de ―estranho impulso comovido/ Lhes diz, ou diz por quem foi convencido.‖ (Mur, III,11) Levantai-vos! Parentes meus amados! Despertai de letargo tão profundo! Olhai, que para empresa sois chamados, Que nome vos dará já em todo o mundo. Temidos até agora, respeitados Só fomos com desertos, bosques imundos. Mas já o destino quer a nossa sorte Que o mundo todo admire ao Mura forte. (Mur, III, 12) Em substituição às cenas de batalha, típicas do épico tradicional, o Mura Jovem tem o dom da palavra para convencer os Mura. Ele os envolve em argumentos persuasivos e vence 135 a oposição do ―Mura Agigantado‖, pois ele é o ―Orador [que] de nada se espanta‖, é dotado de uma ―força santa‖ que atinge o objetivo de convencer os indígenas. À semelhança de Vasco da Gama, O Mura Jovem torna-se o ―facundo‖, pois usa a arma da retórica, o dom do discurso e da argumentação para levar a ―Luz‖ aos Mura. 4.5 O Velho do Restelo e o Velho Mura N‘Os Lusíadas, muitos observavam a partida dos corajosos homens. A armada de Vasco da Gama partiu da Capela de Belém61 acompanhada por frades em procissão solene para enfrentar as incertezas do caminho. Dentre os presentes à despedida na praia lusitana, a figura do Velho na partida para a grande empresa, de um ponto de vista pós-colonial, tem caráter simbólico. Camões coletou informações sobre o embarque de Gama em Barros e este em Castanheda no Livro 1º do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses (Coimbra, 1554). Neste episódio, as mulheres choravam porque criam que todos iam morrer e Portugal ia se despovoando nas partidas e deixando-se à mercê de outros inimigos, mais próximos, mais prováveis, mais ―junto de casa‖. Nesta partida, três figuras importantes destacam-se na praia para compor a cena da despedida. A mãe idosa que se queixa da partida do filho, desamparando-a, pois ela o via morto à partida: ―Por que de mim te vás, ó filho caro/A fazer o funéreo enterramento,/Onde sejas de peixes mantimento!‖ (Lus, IV, 90). A segunda figura, a esposa magoada pelo esposo, que embarca sem levar em consideração o amor entre eles, visto que, segundo ela, ele estaria trocando-a pela incerteza do mar e dos ventos: "Ó doce e amado esposo,/Sem quem não quis Amor que viver possa,/ Por que is aventurar ao mar iroso Essa vida que é minha, e não é vossa?‖ (Lus, IV, 91). A terceira figura, um Velho que ficava na praia ―entre as gentes‖. 61 A capela ficava à beira mar, e recebeu nome da cidade onde Jesus, o filho de Deus, havia nascido. 136 Segundo Cleonice Berardinelli: ―Mães e esposas são acompanhadas de velhos e meninos nas lágrimas com que banham a areia: sua fraqueza e o abandono em que são deixados apoiam as palavras do ‗velho de aspeito venerando‘‖ (2000,p.50). Com tamanha tristeza, até os montes respondiam ao lamento. Por isso, os marinheiros preferiam não as olhar naquele estado. Vasco da Gama ordena o embarque sem despedida, para não fazer sofrer quem ficasse e quem partisse: Do propósito firme começado, Determinei de assi nos embarcarmos, Sem o despedimento costumado, Que, posto que é de amor usança boa, A quem se aparta, ou fica, mais magoa. (Lus, IV, 93). É neste momento que o Velho do Restelo discursa na praia, um dos maiores símbolos do Humanismo camoniano, representa a terceira figura: Mas um velho d'aspeito venerando, Que ficava nas praias, entre a gente, Postos em nós os olhos, meneando Três vezes a cabeça, descontente, A voz pesada um pouco alevantando, Que nós no mar ouvimos claramente, C'um saber só de experiências feito, Tais palavras tirou do experto peito: —"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça Desta vaidade, a quem chamamos Fama! Ó fraudulento gosto, que se atiça C'uma aura popular, que honra se chama! Que castigo tamanho e que justiça Fazes no peito vão que muito te ama! Que mortes, que perigos, que tormentas, Que crueldades neles experimentas! — "Dura inquietação d'alma e da vida, Fonte de desamparos e adultérios, Sagaz consumidora conhecida De fazendas, de reinos e de impérios: Chamam-te ilustre, chamam-te subida, Sendo dina de infames vitupérios; Chamam-te Fama e Glória soberana, Nomes com quem se o povo néscio engana! (Lus, IV, 94-96). Enquanto Saraiva & Lopes consideram que ―Os Lusíadas exaltam uma expansão que, na sua fase decisiva, foi conduzida em moldes monárquicos a favor da classe então dominante 137 e não pela concorrência capitalista privada, Camões expressa fielmente a ideologia da nobreza guerreira.‖ (p.352). Porém, a figura do Velho aparece para questionar tal ideologia: Camões inventou esta personagem para emitir certas sentenças, para firmar certa ideologia característica de sua formação humanista [...] O Velho do Restelo é o próprio Camões erguendo-se acima do encadeamento histórico e medindo à luz dos valores do humanismo europeu os acontecimentos por que se apaixona o vulgo e de que ele mesmo se faz cantor. (BERARDINELLI apud Saraiva & Lopes, 2000, p.51) Isto posto, percebemos que n‘ Os Lusíadas ―combinam-se ou coexistem ideologias e ideários heterogêneos, além do sentimento da vida mais autêntico e mais congênito ao poeta‖, observamos a confluência de ideais pessoais, coletivos, e até oficiais na partida dos lusos. Segundo Saraiva & Lopes, o épico camoniano reforça a ―história de Portugal como uma cruzada, iniciada por Afonso Henriques, que deveria servir de exemplo aos outros estados cristãos , então em luta fratricida.‖(p. 348) ―C'um saber só de experiências feito‖ , o Velho demonstra o conflito de ideais e a ambiguidade moral da situação das descobertas e da colonização, segundo afirma Silviano Santiago: À beira do cais, o Velho não embarca. Não age, fala. Reflete. Reflexão moral. Acha inútil a busca do desconhecido, porque o desconhecido está na própria sociedade, só não vê quem não quer; civilizar o outro é tarefa supérflua enquanto existem ―outros‖ (isto é, grupos marginalizados) que são oprimidos pela classe dominante, etc. Para que sair, se os problemas de casa não foram ainda resolvidos, e são tantos. (SANTIAGO, 1982,p.16) A partir da ambiguidade ou ambivalência no discurso do Velho, é possível levantar a discussão sobre política expansionista e destacar que muitos dos soldados que saíram ao mar, eram os marginalizados em busca não apenas do heroísmo, mas de acumular alguma riqueza que os retirasse da situação marginal, e no entendimento deles a solução estava fora e não ―dentro de casa‖. Por ser o personagem mais experimentado da narrativa, o Velho desvela os malefícios da ideologia expansionista: a fama, a glória e a valentia podem ser lidas como vaidade, cobiça e feridade. Teresa Cristina Cerdeira da Silva reflete sobre essas palavras: Cobiça e tirania são assim as acusações que mais pesam sobre a atuação dos portugueses nas terras conquistadas. A Cruzada religiosa estava há muito desmascarada e percebia-se que a Fé nada mais era, retomando ainda o Velho do Restelo, que um nome ―com que o povo néscio se engana‖.(SILVA, 1980, p.120) 138 Com o saber da autoridade, o Velho combate a empresa marítima. Ao ficar na praia ―entre as gentes‖, enaltece a condição humana de ser ―bicho da terra‖, tem um pé no passado e outro no futuro no momento da partida para as Índias. Por sua importância no épico, é a figura que melhor representa as contradições camonianas. Para continuar essa discussão, retomamos a exposição realizada no Capítulo 3 a respeito das duas políticas de Portugal no momento da viagem de Gama, segundo as reflexões de António Sérgio. Entre as políticas de Fixação e a do Transporte, a figura do Velho ―divide os seus intérpretes entre considerá-lo conservador ou apenas sensato‖, segundo Silveira. O Velho é contra a segunda política, a que sobrepujava naquele momento e representava as tendências expansionistas ou universalistas de D Henrique. O Velho do Restelo, com o saber da experiência, atenta para os exemplos de Roma e Grécia, a alertar sobre fatos semelhantes ocorridos no passado. O Velho é como um coro das tragédias antigas, fala à razão com o bom senso popular, a experiência da idade, porém não é ouvido. Jorge Fernandes da Silveira (2008), sobre a tese de Saraiva de que a contradição central d‘Os Lusíadas está ―na dialética de síntese impossível entre a crença no ideal cavalheiresco medieval de defesa dos valores cristãos, pregada na aristocracia rural conservadora, e o elogio da ideia nova de progresso marítimo, propagada pela burguesia mercantil‖ (p.20), afirma que o Velho é o ―Portugal ―infixado‖ no entrelugar.‖(p.106), representando a ―infixidez das classes sociais‖ (p.111). De acordo com a imagem do Velho do Restelo, percebemos que, no Canto III de Muraida, importa observar maior semelhança entre o poema de Wilkens e a obra camoniana. Quando o Mura jovem, já persuadido, começa a anunciar a mensagem que o mensageiro celeste lenviou, o autor troca-lhe a voz e dá ao outro Mura, o Ancião, a oportunidade de se pronunciar: 139 Atentos ouvem todos a resposta, Ainda que estranha, sem maior reparo, Pois a verdade bela nada oposta É bárbara fereza ou peito avaro. Mas, entre os anciões, um velho encosta A ressecada mão, com gesto raro, Na negra face adusta e enrugada, Extremado responde, em voz irada. Oh, dos teus poucos anos, louco efeito! Da confiança vil, temeridade! Que atenção nos merece ou que conceito, Conselho que envilece a tua idade? Queres que ao ferro, generoso peito, Entregue o pai? Ou perca a liberdade, A doce liberdade, o valoroso Mura, em grilhão pesado e vergonhoso? Já não lembra o agravo, a falsidade Que contra nós os brancos maquinaram? Os autores não foram da crueldade? Eles, que aos infelizes a ensinaram? Debaixo de pretextos de amizade, Alguns matando, outros maniatando; Levando-os para um triste cativeiro, Sorte a mais infeliz, mal verdadeiro. (Mur, III, 16-18) De acordo com as estrofes acima, podemos observar que o Ancião faz uma denúncia do simulacro colonizador e relembra um fato em que os Mura foram enganados pelos brancos. Souza (1994) relata o que ocorreu, por volta de 1720, logo após a chegada dos Mura na região de Autazes: o padre João Sampaio, missionário jesuíta, conseguiu aproximar-se de uma maloca mura e convenceu os índios a deixarem a floresta e virem morar na missão de Santo Antonio, na boca do Madeira. Padre Sampaio prometeu ferramentas, roupas e alimentos, se eles embarcassem imediatamente. Os Mura começaram os preparativos para a mudança, quando apareceu um colono português que se, dizendo emissário do padre Sampaio, convenceu os índios a embarcarem num bergatim, aprisionando-os e seguindo para Belém, onde os vendeu como escravos. (SOUZA, 1944, p.59) Tal fato passou a ser conhecido por outros Mura e acarretou o ―ódio estranhável aos brancos‖. Depois deste fato, os Mura destruíram a colônia portuguesa que existia na boca do rio Madeira. Vale lembrar que, antes desse episódio, os Mura não enfrentavam diretamente os portugueses, apenas evitavam o contato. Porém, após o engano causado pelo homem branco, ocorreram várias lutas sangrentas. 140 É importante mencionar como a descrição do velho ―A ressecada mão, com gesto raro/ Na negra face adusta e enrugada‖ remete não apenas à identificação de sua idade avançada, mas a ―negra face enrugada‖ reflete o ambiente em que está inserido e a situação que lhe é imposta ─ a de pagão e dominado. A negra face também pode ser lida em oposição à Luz do homem branco. Segundo Homi Babha (1998,p.201), a ―pele‖ no discurso racista é a visibilidade da escuridão e um significante fundamental do corpo e de suas correlativas sociais e culturais. Dessa forma, o discurso que reforça o estereótipo do Ancião, difere-o da imagem do Velho do Restelo, ―de aspeito venerando‖ ─ aquele que é respeitável. O ancião de Wilkens alude à terceira figura da obra camoniana, o Velho do Restelo. Um homem comum, homem do povo, sábio, que estava na praia no meio da multidão durante a despedida da expedição, olhou para os marinheiros que já estavam no mar, e fez um discurso inspirado pela experiência, conforme citamos anteriormente. Comparemos: Argumento Do Céu o Murificado Mensageiro, Prossegue a persuadir ao Mura atento, Do Imaripi, que busque o verdadeiro Desengano, e Ventura do portento. Já convencido o Bárbaro primeiro, Aos Companheiros patenteia o intento: Mas um Ancião repulsa encontra irada, Que em sucessos passados é fundada. (Mur, III, 1) As figuras apresentadas, nos dois épicos, aludem à imagem daquele que já viveu bastante e traz consigo o saber das experiências da vida. Wilkens, no entanto, mostra que o difere da imagem do Velho do Restelo, de ―aspeito venerando‖, aquele que é respeitável. Porém, tanto um quanto outro reprovam os empreendimentos, com ―voz pesada‖ / ―voz irada‖, mas apesar dos discursos que confrontam a ambição dos ideais portugueses, tanto n‘Os Lusíadas quanto em Muraida, Vasco da Gama nem tampouco o Mura Jovem desistem de seus objetivos. 141 No épico camoniano, observamos os portugueses a caminho da glória e o discurso ambivalente do Velho, com a retórica e a oratória que ora trabalha a favor dos interesses portugueses e ora os critica. Nesse sentido, Camões nos apresenta o homem como: um "bicho da terra tão pequeno" , como alguém que melhor seria que não tivesse sido tocado pelo "fogo de altos desejos"? Sim, esta é uma das faces do que Eduardo Lourenço chama de verdadeira máquina de guerra discursiva, que é o poema épico Os Lusíadas. De fato, no episódio do Velho do Restelo, Camões mostra-nos que por trás da Glória e da Fama soberanas está a barbárie e a violência de um Estado constituído do modo como o concebemos modernamente, como um exército militante, com instâncias de poder e com discursos capazes de regular a exclusão do outro tanto sob a forma do assassinato, da eliminação radical, quanto sob o manto da retórica. Camões nos mostra a barbárie. E é no mesmo episódio que vamos encontrar o desejo capaz de criar o novo, capaz de fazer o que até então não tinha sido feito e de inventar o que até então não era conhecido. Só que o Velho do Restelo identifica a violência humana com este desejo, aponta o desejo como causa da violência.(DAVID, 2002, p.2) Neste sentido, o Velho Mura é aquele que aparece para chamar à razão e lembrar da relação de subalternidade dos Mura em relação aos brancos. Porém, apesar de receber a voz neste momento da Narrativa e denunciar a traição e violência dos brancos em relação aos indígenas, o Ancião não é ouvido. O discurso do Mura Jovem vence e o Ancião se retira em direção à floresta: Assim falando o velho se levanta; O lento passo ao bosque encaminhando. Mas o orador de nada já se espanta, Pois tal oposição estava esperando: E como nele obrava força santa De um Deus, que o mesmo esforço ia aumentando; Nos bárbaros infunde um tal conceito, Que a preferência alcança, co‘o respeito. (Mur, III, 21, grifos nossos) Após a saída do Ancião, o Mura Jovem atinge seu objetivo e vence o discurso de oposição. Ele consegue convencer os outros Mura por obra da ―força santa‖. Após este episódio, observamos, no canto IV, a chegada de membros dessa etnia em Santo Antonio de Imaripi, conforme nos mostra o Argumento inicial: A oposição se vence, e tudo parte; No Imaripi, com pasmo, é recebido. Mimo, agasalho encontra; ali reparte Presentes preparados; persuadido 142 Por Fernandes honrado, que se aparte Do paganismo e bosques; precedido Pelo Anjo, por Fernandes é levado A Tefé, onde ao chefe é apresentado. (Mur, IV) Neste local, os Mura são recebidos com surpresa e passam a ser guiados por Mathias Fernandes, diretor da aldeia. Então, percebemos que o Mura Jovem aceitou o discurso da colonização e catequização, opondo-se às palavras do Ancião. A partir deste Canto, o ―bárbaro‖ Mura começa a se distanciar da gentilidade e da ―escuridão‖ dos bosques. Ao narrar a chegada dos Mura a Santo Antonio de Imaripi, Wilkens remete à parábola do filho Pródigo: [...] Dali o parente, aqui o filho perdido, Ao pai; a irmãos; a amigos encontrando, Com lágrimas o peito ia banhando‖ (Mur, IV, 9). De acordo com a parábola bíblica, o filho que havia se perdido e desperdiçado a vida sem sabedoria, retorna e é recebido pelo pai com compaixão e presentes. Desta forma, observamos o Mura narrado como o filho que retorna à casa do pai celestial, abrindo mão da gentilidade. No final do Canto IV, ao chegar ao Quartel de Ega, o tenente General Coronel João Batista Martel os recebe ―nos braços‖: Assim, de um filho ausência lamentando Pai amoroso, a vê-lo quando chega, Nos braços recebendo, palpitando O peito, a voz intercadente nega Palavra articular, e se arrasando De lágrimas os olhos, só lhe rega A amada face, em que retrata o gosto, De idêntico motivo, efeito oposto. (Mur, IV, 23, grifos nossos) De acordo com esses acontecimentos, os Mura passariam a reconhecer o Deus católico como único e soberano e viveriam a partir dali segundo os preceitos da fé católica. As passagens bíblicas, analisadas no Capítulo 1 da tese de Caldas (2007), reforçam o caráter cristão não apenas da obra, mas como legitimação do ideal de cristianização português. 143 No Canto V, encontramos o enaltecimento do ―Deus verdadeiro‖, o grande ―responsável‖ pelo sucesso da ―pacificação‖: Tu foste que o feroz, bárbaro peito, Do indômito Mura mitigando, Tão dócil, tão contente e satisfeito, Fizeste à sociedade se ir chegando. Dos que te amando com o maior respeito, A vítima nas aras imolando, Propiciatório tem no medianeiro, Paz, alimento, Pai, Deus verdadeiro. (Mur, V, 3, grifos nossos) Se antes eram comparados a ―aves de rapina‖, pela destreza em atacar, a partir deste momento, o Poeta os compara a bandos de aves que deixam seus ninhos para levar a ―boa nova‖. E Mathias Fernandes prepara o assentamento dos Mura no lago Amaná: Enquanto de enviados o destino Os Muras deputados vão seguindo; Se cuida o bom Fernandes no interino Reparo da Colônia, repartindo O corte das madeiras, do inquilino Mura ajudado, e de índios se servindo Do mesmo povo seu, com tal presteza, Que inveja causa à arte, à natureza. Não lhe esquece o preciso, útil cuidado De prover à futura subsistência; Em grande roça tendo antecipado Meio seguro, certa providência. Maniva, milho, frutas já plantados O Mura vê na nova residência; Esteios uns levantam; outros palha Conduzem, tecem, tudo, enfim, trabalha (Mur, V, 15-16, grifos nossos) A partir da leitura dos versos acima, percebemos que os Mura passam a seguir uma nova concepção de vida social, com assentamento fixo e abandono da vida nômade e errante. O ponto a ser destacado é a forma de trabalho, organizada de acordo com o padrão do colonizador, demonstrando a recuperação pelo trabalho e a ―aceitação‖ de um novo modelo. Qual de oficiosa abelha o numeroso Bando, saindo da colmeia antiga, Se reparte no prado, o proveitoso Orvalho e suco ajunta com que liga O misto, que compõem mel saboroso; 144 Enquanto anterior colheita abriga, Nos celeiros reparte e na oficina A abelha, que caseira se destina. (Mur, V, 19) Ao utilizar a imagem da abelha, Wilkens recorre a um modelo de labor e organização. A abelha também pode ser lida como símbolo das massas submetidas à inexorabilidade do destino que as acorrenta ou como símbolo de ressurreição e espiritualidade alcançada. Finalmente, no Canto VI, o épico apresenta que, mesmo após a ―pacificação‖ e a ―vassalagem‖, os Mura tinham a liberdade de saírem dos aldeamento, para cumprir os interesses da fé e adquirir novas vantagens, conforme os versos abaixo: Já o anjo tutelar reconduzindo Os Muras viajantes vai contente; Preenche o ministério, e difundindo Nos peitos vai ideias convincentes, De quando lhes convem, que reunindo Os bandos e malocas diferentes Na Fé, nos interesses, vassalagem, Tenham desta união toda a vantagem. (Mur, VI, 3) Retomamos o Epílogo para reafirmar a vitória do discurso do colonizador. O ―Anjo‖ é o ―responsável‖ pela paz e por afastar os Mura das trevas. A cena do batismo é a consagração da fé: No templo de Maria renascidos, Na Graça batismal, os inocentes Vinte infantes; alegres conduzidos Pelos bárbaros pais foram contentes. Na fé de mais progressos despedidos, Se ausentam cumulados de presentes, Penhor levando da felicidade, Em cada filho, de anjo, a qualidade. (Mur, VI, 21) João Batista Martel apadrinha os vinte infantes e o batismo é realizado pelo Frei Carmelita José de Santa Tereza Neves em 9 de junho de 1785. Assim, o batismo representa a a aceitação da fé católica e a salvação. Seriam os vencedores aqueles que atingem a ―Graça‖ através do batismo ou aqueles que dominam através do discurso cristão? 145 Na ultima estrofe do épico, estão expostos os objetivos da colonização portuguesa, no que diz respeito à aceitação do catolicismo e os objetivos econômicos: Sobre os princípios tais, tal esperança Fundamenta a razão todo o discurso; Em Deus se emprega toda a confiança; Pende do Seu poder todo o recurso; Os frutos já se colhem da Aliança, Apesar dos acasos no concurso. Sempre os progressos a cantar disposto, Aqui suspenso a voz, a lira encosto. (Mur, VI, 23, grifos nossos) Assim, o Epílogo reitera a intenção do poeta em demonstrar a vitória da pacificação, apesar dos conflitos existentes com a etnia em outras localidades da Amazônia, conforme já dissemos. O eufemismo utilizado sobre a resistência Mura ―Apesar dos acasos no concurso‖ revela a ocultação da barbárie no texto poético, dando a entender que a resistência foi um problema pequeno a enfrentar. O triunfo da fé torna-se o troféu dos portugueses, pois, ao vencer inimigos tão fortes e terríveis, o mérito da vitória tornava-se ainda maior. Ultrapassada a resistência, a vitória através da ―Aliança‖ já colhe os frutos, apesar de sabermos que, historicamente, esses conflitos não se extinguiram nesse período. Após o objetivo alcançado, o Poeta encosta a lira e cessa o Canto com a certeza da missão cumprida. 146 CONSIDERAÇÃOES FINAIS ou Muraida: Entre as duas margens do cânone, “a terceira margem do rio” Ao longo desta pesquisa de doutoramento, desenvolvida na Universidade Federal do Rio de Janeiro, e que ora aqui se interrompe, demonstramos que o épico Muraida de Henrique João Wilkens enaltece o contexto colonial e levanta a discussão sobre os textos produzidos durante esse período e que não receberam a devida atenção e recepção. Através da leitura do épico, temos acesso ao cenário amazônico, amplamente conhecido no cenário mundial por sua riqueza e exuberância, mas ainda pouco conhecido em seus aspectos políticos e ideológicos. A etnia Mura, dizimada em milhares de seus representantes desde o início da empresa colonizadora portuguesa com o aval das ―guerras justas‖, foi considerada irreconciliável e tornouse oponente dos colonos portugueses tanto no discurso histórico quanto no discurso ficcional, através dos versos de Muraida. Ao percebemos uma insistente denominação aos indígenas da nação Mura como ferozes, cruéis e abomináveis, assistimos à construção de um estereótipo que persegue essa etnia até os dias atuais. Em contrapartida, o historiador Francisco Jorge dos Santos os denominou como admiráveis, ―ao reconstituir algo da crônica de uma etnopolítica desse povo‖ e ao representar a mais forte resistência indígena contra o expansionismo português na Amazônia. Nesse sentido, o Mura torna-se o ―Mura Agigantado‖ e de forma difusa e estratégica consegue por longos anos impedir que os portugueses efetivem o projeto colonizador pombalino com eficácia. À semelhança do épico camoniano, estabelecemos uma comparação entre a figura do ―Mura Agigantado‖ e a do Gigante Adamastor, ambos vencidos pelo discurso e pela barbárie do colonizador. A versão do colonizador nos foi amplamente transmitida e divulgada pelos meios oficiais. Interessou-nos investigar, através dos teórico-críticos e por documentos ―esquecidos‖ 147 ou pouco conhecidos, os detalhes do amplo processo de genocídio que foi encetado contra essa etnia. O historiador Francisco Jorge dos Santos denuncia que não houve passividade na construção da história da Amazônia. Através da intervenção divina e da pacificação, lemos nos versos do épico que alguns representantes da etnia Mura passam a ser dóceis e amigos dos colonos, demonstrando como a imposição da fé cristã foi capaz de assassinar culturalmente tantas etnias amazônicas. Muraida é representação apenas de uma entre tantas outras etnias que foram subjugadas em prol da política expansionista portuguesa. Estabelecendo um contraponto entre o episódio do Velho do Restelo camoniano e a figura do Ancião Mura, observamos que, apesar desses personagens exercerem o direito da fala, ambos não são ouvidos. O Ancião Mura retira-se para a floresta e o discurso do Mura Jovem, persuadido pelo Anjo celeste, vence. Em consequência, alguns membros dessa etnia são pacificados. Apesar de sabermos que, historicamente, apenas vinte representantes da etnia foram batizados, sabemos que a vitória cantada no poema foi obtida por meios tortuosos ao longo das décadas seguintes, numa luta semelhante à efetuada contra os Mouros séculos antes. Muraida foi escrito por um militar em viagem pela colônia do Grão-Pará e Maranhão, em missão ordenada pela Coroa Portuguesa. Através das poucas referências biográficas sobre o poeta soldado, percebemos que o militar viveu na Amazônia por mais de cinquenta anos e em todos os registros estava cumprindo as ordens de seus superiores em prol da política de expansão portuguesa. Nesse sentido, enquadramos Muraida no rol dos textos da literatura produzida por viajantes. Ao refletir sobre a pluralidade dos textos sobre viagens no Capítulo 3, verificamos que eles constituem um corpus híbrido e agrupam diferentes gêneros. Observamos que, na mesma medida em que se revela uma falta de homogeneidade no formato dos textos, há uma unidade temática no que diz respeito à constante reafirmação da ideologia expansionista europeia. É esse o ponto que nos interessa. É ele que nos faz defender Muraida como um texto que deve 148 ser reconhecido na tradição de viagens portuguesas para a Amazônia. Uma tradição que, em nome dos pressupostos expansionistas de Portugal, deixou à margem textos sobre as missões de fixação portuguesa na Amazônia e deixou no esquecimento os viajantes que se propuseram a desbravar esse espaço. Muraida ficou ―esquecida‖ durante mais de um século e meio. Apenas em meados do século XX é que houve a iniciativa de divulgação do poema e sua edição brasileira data de 1993. Nesse sentido, Muraida deve ser vista como um texto de dicção portuguesa, sem a merecida atenção à produção realizada pelos viajantes que estiveram na Amazônia durante o período colonial. Ao longo da pesquisa, percebemos a dificuldade de discutir o processo de formação de um cânone e compreender os critérios que justificam a sua formação e, logo, o que determina a inclusão ou a exclusão de determinados textos. Ao ler Muraida e desejar conhecer um mundo novo, repleto de significados de investigação, vimos o quão complexa é a tarefa de falar sobre a Amazônia e sobre um período em que a consciência do respeito à cultura do Outro não existia. Por esses caminhos percorridos, foi possível analisar a condição do viajante que, ao representar a institucionalidade (a oficialidade) portuguesa, representou o discurso colonial da fixidez, como disse Bhabha. Fazer uma revisão da História a contrapelo e buscar o testemunho dos vencidos, conforme a tese de Benjamin, não é tarefa confortável, pois somos obrigados a encarar a origem da barbárie no cerne da civilização Ocidental. O espaço da floresta representado no épico não era, naquele momento, nem brasileiro, nem lusitano, era um espaço desconhecido em cujo palco se encenou a barbárie da colonização europeia, pois assim como a cultura não é isenta de barbárie, não é, tampouco, o seu processo de transmissão. O estudo do épico Muraida revelou a dificuldade ainda atual de aceitação e de construção de um convívio pacífico entre povos de diferentes culturas e origens desde os primórdios da colonização portuguesa, somada às dificuldades de colonização de um território 149 de dimensões continentais que sempre foi cobiçado internacionalmente pela imensidão do território que constitui a Amazônia. Como a conquista do império português permaneceu nos textos literários? A focalização das tensões e convergências entre Muraida e Os Lusíadas que pudemos observar o choque entre as culturas, a experiência portuguesa no embate com o desconhecido, com o infiel, ora pelos mares que os levaram às Índias, ora pelos rios amazônicos. Ao repensar a tradição de Viagens, surgiu o interesse em viajar por esses rios ainda tão pouco conhecidos por quem valoriza apenas o canônico. Ao refletir sobre as palavras de Antonio Candido, Pascale Casanova, Eduardo Portela e Benedict Anderson, revisitamos o conceito de nacionalidade e buscamos refletir, sobretudo, sobre o fato de não haver naquele momento um sistema literário estabelecido na colônia portuguesa do Grão-Pará e Maranhão que o identificasse com a ideia de nação brasileira. Muraida é a representação da/na Amazônia do imaginário português sobre a terra recém- desbravada, por meio da conquista e expansão de territórios ultramarinos em nome da Coroa Portuguesa. Tais fatos não desmerecem a obra de Wilkens como um texto que dá notícia da terra, pela voz do colonizador, de fato. Porém, não podemos afirmar que seja um texto de formação de uma nacionalidade brasileira no sentido em que observamos a ideologia do colonizador em cada verso do épico. Da mesma forma, a opção por uma só etnia, por um lado, revela o escopo limitado da obra e, por outro lado, acentua a dificuldade de abarcar a complexidade das diversas culturas amazônicas. A discussão sobre nacionalidade é bastante posterior à Muraida, além disso, o território do qual falamos é muito longe, geográfica e culturalmente, do eixo cultural que determina o cânone. A ―voz‖ e o ―olhar‖ que conduzem a leitura do poema são da ideologia portuguesa expansionista e mercantilista, cuja colônia servia apenas de fonte de enriquecimento da Coroa. Portanto, Muraida é de fato um texto que reafirma a soberania lusitana e a identidade 150 portuguesa, que se construiu majoritariamente a partir da sua política de expansão através das viagens e tem como seu maior representante o épico camoniano. É desse mundo visto com espanto, cobiça e perplexidade pelo europeu que surge uma literatura fronteiriça, marginal, apesar de ser produzida por quem está no centro do poder ─ Próspero. Uma literatura que fala da terra do Outro, mas com a perspectiva de quem chega, do estrangeiro. Como era de se esperar, o olhar do viajante revela seus valores, pressupostos e preconceitos. As missões oficiais defendiam o Império Português, essa era a voz que falava mais alto. Nessas missões, padres, militares, juristas e todos os outros membros que as compunham representam a coletividade dominadora. Muraida é imprescindível para conhecer as entranhas do colonialismo português contra os povos indígenas, pois exalta o poderio militar e faz refletir sobre a resistência Mura, pois, se por um lado, há a empreitada colonizadora, por outro, não há como esconder a bravura e a capacidade político-organizacional dos Mura. Isto posto, faz-se necessária a revisão crítica do cânone sobre as Viagens de forma a incluir a tradição de viagens portuguesa para a Amazônia, pois concluímos que a historiografia literária portuguesa não valorizou a literatura dos viajantes e que a relação de Portugal com a produção literária sobre a Amazônia colonial não foi desenvolvida a contento. De outro modo, teríamos outra forma de contar a história da literatura portuguesa. Como já dissemos, o cânone tradicional é excludente e não privilegia a produção e o conhecimento gerados por tantos viajantes que escreveram sobre a Amazônia. Ou seja, defendemos a criação de uma crítica ao cânone que faça pensar o motivo da exclusão de obras como Muraida. Questionamos se alguns capítulos dessa historiografia foram apenas ignorados ou foram silenciados? Nossa intenção é manter a discussão viva e avançar nos estudos sobre a presença portuguesa na Amazônia. 151 Por esses motivos expostos, defendemos que Muraida é produto do olhar do estrangeiro sobre o imaginário acerca da Amazônia, mas não sustenta ainda um ideário da nação explorada e nem consegue entender o indígena como um ser dotado de cultura e merecedor de respeito. Mesmo que pretensamente o Poeta ceda a voz ao colonizado, conforme ocorre no episódio do Ancião, a ideologia que triunfa é a do colonizador e sua visão estereotipada sobre o indígena. Todo o discurso está intimamente ligado aos interesses da Coroa Portuguesa e de seu projeto colonizador de exploração da colônia e dominação do indígena Finalmente, fazemos uma referência à ―terceira margem‖ mencionada no título destas considerações finais, pois a análise que propomos não é dual, não está entre os extremos do Bem e do Mal do Ocidente como mito de fundação civilizacional. Buscamos uma revisão crítica que possa levar em consideração a complexidade de fatores existentes e abarcar a complexidade de variantes da questão indígena, que possa observar como o regional pode estar em diálogo e fortalecer o universal, conforme Pascale Casanova. Para finalizar, gostaríamos de comentar o quão desafiador e instigante foi pesquisar sobre Muraida e aprofundar os conhecimentos sobre a etnia Mura. Percorrer esses caminhos pouco conhecidos possibilitaram amadurecimento intelectual e nos fizeram perceber como ainda são pouco explorados os textos sobre a Amazônia. Parece-nos que esta reflexão está presente no poema de Robert Frost, ―The Road not taken‖, que espelha a opção do sujeito pela ―estrada menos viajada‖: The road not taken Two roads diverged in a yellow wood, And sorry I could not travel both And be one traveler, long I stood And looked down one as far as I could To where it bent in the undergrowth; Then took the other, as just as fair, 152 And having perhaps the better claim, Because it was grassy and wanted wear; Though as for that the passing there Had worn them really about the same, And both that morning equally lay In leaves no step had trodden black. Oh, I kept the first for another day! Yet knowing how way leads on to way, I doubted if I should ever come back. I shall be telling this with a sigh Somewhere ages and ages hence: Two roads diverged in a wood, and I-I took the one less traveled by, And that has made all the difference. 153 6. REFERÊNCIAS 1. ACUÑA, Cristóbal de. Novo descobrimento do grande rio das Amazonas. Trad. De Helena Ferreira. Rio de Janeiro: Agir, 1994. 2. ALBUQUERQUE, Gabriel. ―Brasil, Brasis: insulamento e produção literária no Amazonas‖. In: O Amazonas deságua no Tejo. Manaus: UEA edições, 2009. 3. ALMEIDA, Maria do Perpétuo Socorro Correia Lima de. ―Os Lusíadas e o discurso ideológico da expansão‖. Convergência Lusíada, n. 7, 1980, p.93-102. 4. AMORIM, Francisco Gomes. Os Selvagens. 2ª ed. Manaus: Ed. Valer, 2004. 5. AMOROSO, Marta Rosa. Instituto Socioambiental | Povos Indígenas no Brasil , http://pib.socioambiental.org/pt/povo/mura/print. (último acesso em 08/01/2014) 6. ______. “Os Mura lutam para recuperar suas terras‖. In: Povos indígenas no Brasil, 1996-2000. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2000. 7. ______. “Corsários no caminho fluvial: os Mura do rio Madeira‖. In: História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura/FAPESP, 1992. 8. AMOROSO, Marta Rosa, FARAGE, Nádia (orgs.). Relatos da fronteira amazônica: Alexandre Rodrigues Ferreira e Henrique João Wilckens. São Paulo: USP/NHII; FAPESP, 1994. 9. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 10. ARÊAS, Vilma. ―Os Lusíadas ou a navegação desventurosa‖.Revista camoniana. São Paulo: Centro de Estudos Portugueses da USP. 2ª série, v.III, 1980. p.167-178. 11. AUERBACH, Erich. Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental. 4ª ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1998. 12. BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Hucitec, 1990. 13. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, a arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. 14. BERARDINELLI, Cleonice. Estudos Camonianos. Fronteira, 2000. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova 15. BHABHA, Homi. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila; Eliana Lourenço de Lima Reis; Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 1998. 16. BÍBLIA Sagrada. Trad. João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. 154 17. BOGÉA, José Arthur. ―O mura e a musa‖. n.6,www.apebfr.org/passagesdeparis, 2011. p.136-166 Passages de Paris, 18. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 16ª ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. 19. BOXER, C.R. O Império marítimo português. Lisboa: Edições 70, 1992. 20. CALDAS, Yurgel Pantoja. A construção épica da Amazônia no poema Muhuraida, de Henrique João Wilkens. Tese de Doutorado em Estudos Literários. FALE/UFMG, Belo Horizonte, 2007. 21. ______. ―A ficção que vence a História: O Mura de Muhuraida‖. In: LEÃO, Allison (Org.). Amazônia: Literatura e Cultura. Manaus: UEA Edições, 2012. 22. ______. ―Eles são muitos e incontáveis: estratégias coloniais e migratórias dos índios Mura contra o processo pombalino para o domínio amazônico, a partir de Muhuraida, de Henrique João Wilkens‖. Novos Cadernos NAEA, v. 13, n. 1, 2010. p. 171-198. 23. CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Organizada por António José Saraiva. Porto: Figueirinhas,1978. 24. CÂNDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1997 (2 vols.). 25. ______. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. 26. CUNHA. Manuela Carneiro. Índios no Brasil: história, direitos, cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012. 27. CARVAJAL, Frei Nacional, 1941. Gaspar de. Descobrimento do rio de Orellana. São Paulo: 28. CEDEAM. Autos da devassa contra os índios Mura do rio Madeira e nações do rio Tocantins (1738-1739): fac-símiles e transcrições paleográficas. Introdução de Adélia Engrácia de Oliveira. Manaus: Universidade do Amazonas; Brasília: INL, 1986. 29. CHANDEIGNE, Michel (Org.). Lisboa ultramarina: 1415-1580: a invenção do mundo pelos navegadores portugueses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. 30. COSTA, Veronica Prudente. A perda do caminho para casa em Fado Alexandrino de António Lobo Antunes. Dissertação de Mestrado em Letras Vernáculas - Literatura Portuguesa. Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. 31. CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 155 32. DANIEL, João. Tesouro descoberto no rio Amazonas. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1976 (Separata dos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro), 1976. 33. DAVID, Sérgio Nazar. O mundo é um moinho - Canto e desencanto em Camões e Garrett. Dissertação de Mestrado em Ciência da Literatura. Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1993. 34. FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Brasília: Conselho Federal de Cultura/Departamento de Imprensa Nacional, 1974. 35. FERREIRA, Margarida Alves. ―Portugal e o naufrágio do império‖. In: América: ficção e utopias. José Carlos Sebe Bom Meichy; Maria Lucia Aragão (orgs). São Paulo: EDUSP, 1994. p. 27-43. 36. FINAZZI-AGRÒ, Ettore. ―A ilha maravilhosa: a invenção do Brasil pelos portugueses‖. Convergência Lusíada, n.12. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, 1995. 37. FOUCAULT, Michel. La arqueologia del saber. Colombia: Siglo XXI, 1985. 38. GARCIA, Etelvina. Amazonas, notícias da História: período colonial. Manaus: Norma Ed., 2005. 39. GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. 2 ed. Manaus: Valer,2007. 40. HANSEN, João Adolfo. ―A servidão natural do selvagem e a guerra justa contra o bárbaro‖. In: NOVAES, Adauto (org.). A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 347-73. 41. HOLANDA. Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. RJ: José Olympio, 1994. 42. KRÜGER, Marcos Frederico. Amazônia: mito e literatura. Manaus: Editora Valer / Governo do Estado do Amazonas, 2003. 43. LINHARES, Erasmo. O Tocador de charamela. Manaus: Edições Rádio Rio Mar, 1979. 44. LIMA, Francisco Ferreira. O outro livro das maravilhas: a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. Rio de Janeiro/Salvador, Relume Dumará/ Funceb, 1998. 45. LOURENÇO, Eduardo. A Morte de Colombo. Lisboa: Ed. Gradiva, 2005. 46. ______. Poesia e Metafísica. Lisboa:Gradiva, 1983. 47. ______. Mitologia da saudade: seguindo de Portugal como destino. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1999. 48. ______. Nós e a Europa ou as duas razões. 4ed. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,1994. 156 49. ______. O labirinto da saudade: psicanálise mítica do destino português. 5.ed. Lisboa: Dom Quixote, 1992. 50. LUKACS, George. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Tradução, posfácio e notas de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. 51. MACEDO, Helder. Camões e a viagem iniciática. Ed. rev. e atual.,. Rio de Janeiro: Móbile, 2013. 52. MAGALHÃES, Isabel Allegro de. O sexo dos textos e outras leituras. Lisboa: Editorial Caminho, 1995. 53. MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na Era Pombalina. (Correspondência do Governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado ). Rio de Janeiro: IHGB, 1963. 54. MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fases da literatura amazonense. Manaus: Imprensa Oficial, 1977. 55. NEVES, Auricléa Oliveira das Neves. A Amazônia na visão dos viajantes dos séculos XVI e XVII: percurso e discurso. Manaus: Valer, 2011. 56. NETO, Carlos de Araujo Moreira. Índios na Amazônia: De maioria a minoria (17501850). Petrópolis: Ed.Vozes, 1984. 57. ______. “Henrique João Wilkens e os índios Mura‖. In: WILKENS, Henrique João. Muhuraida ou Triunfo da Fé. Manaus: Biblioteca Nacional/ UFAM/ Governo do Estado do Amazonas, 1993. 58. NOVAES, Adauto (org.). A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 59. ______. Civilização e Barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 60. OLIVEIRA, Maria Lúcia Wiltshire. De Camões a Saramago: leituras da pátria portuguesa. Rio de Janeiro: Book Link, 2004. 61. OUTEIRINHO, Maria de Fátima e MARTELO, Rosa Maria (Orgs). ―Representações do Outro e Identidade: um estudo de imagem nas narrativas de viagem‖. In: Cadernos de Literatura Comparada. Porto: Granito editores, 2000. 62. PEQUENO, Eliane da Silva Souza. ―Mura, guardiães do caminho fluvial‖. Revista de Estudos e Pesquisas, FUNAI, Brasília, v.3, n.1/2, p.133-155, jul./dez, 2006. 63. PIRES, Orlando. Manual de teoria e técnica literária. Rio de Janeiro: Presença, 3aed, 1989. 157 64. PIZARRO, Ana. ―Palabra, literatura y cultura em las formaciones discursivas coloniales‖. In: PIZARRO, Ana (Org.) América Latina: Palavra, literatura e cultura. Campinas: UNICAMP, 1993. Vol. 1, pg. 19 - 37. 65. PORTELA, Eduardo. Literatura e Realidade Nacional. 3ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. 66. QUESADO, José Clécio Basílio. ―Personagens e projeto ideológico n’Os Lusíadas”. Rio de Janeiro: Revista de Letras T.A,1:11-17, jul-set,1974. 67. RANGEL, Alberto. Inferno Verde. Organização de Tenório Telles e estudo crítico por Marcos Frederico Kruger. 5ª ed. revista- Manaus: Editora Valer/ Governo do Estado do Amazonas, 2001 68. REIS, Carlos & LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Narratologia. Coimbra: Almedina, 2002. 69. RENAN, Ernest. ―Que é uma nação?‖. Trad. Samuel Titan Jr. Plural, no4. USP, 1997. p.154-175, 1997. 70. RIOS, Otávio (org.). O Amazonas deságua no Tejo: ensaios literários. Manaus: UEA Edições, 2009. 71. ______.Arquipélago Contínuo: literaturas plurais. Manaus: UEA Edições, 2011. 72. SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 73. SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1982. 74. SANTOS, Boaventura de Sousa. ―Entre Próspero e Caliban: colonialismo, póscolonialismo e inter-identidade.‖ In: Entre ser e estar: raízes, percursos e discursos de identidade (Orgs.) Maria Irene Ramalho e Antônio Sousa Ribeiro. Porto: Edições Afrontamento, 2001. p. 23-80. 75. SANTOS, Francisco Jorge dos. Além das Conquistas e rebeliões indígenas na Amazônia pombalina. 2.ed. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 2002. 76. SARAIVA, António José e LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa.14 ed. Porto: Porto Editora, s.d. 77. SARAIVA, António José. Para a História da cultura em Portugal. 3ª ed., Lisboa: Europa-América, 1972. 78. SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, memória, literatura; o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Ed. Unicamp, 2003. 79. ______. “Estética e política, memória e esquecimento: novos desafios na era do Mal de Arquivo‖. Remate de Males, n.29(2), 2009. 158 80. SEIXO, Maria Alzira, LABORINHO, Ana Paula (orgs.). A Vertigem do Oriente: Modalidades discursivas no encontro de culturas. Lisboa: Cosmos, 1999. 81. SEIXO, Maria Alzira. Poéticas da viagem na literatura. Lisboa, Edições Cosmos, 1998. 82. SÉRGIO, António. Breve interpretação da História de Portugal. Lisboa: Livraria Sá da Costa editora, 8ª ed, 1978. 83. SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. ―A escritura d‘Os Lusíadas ou o aprendizado da dor.‖ Convergência Lusíada. Rio de Janeiro, ano IV, n.7, 1980. p.115-123 84. SILVEIRA, Jorge Fernandes da.(Org.) Escrever a casa portuguesa. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. p. 13-21 85. ______. O Tejo é um rio controverso: António José Saraiva contra Luis Vaz de Camões. RJ: 7 Letras, 2008. 86. SOUZA, Marcio. Breve história da Amazônia. São Paulo: Editora Marco Zero, 1994. 87. ______. A expressão Amazonense. Manaus: Valer, 2010. 88. SPALDING, Tassilo Orpheu, Deuses e Heróis da Antiguidade Clássica, dicionário de Antropônimos e Teonimos vergiliano. São Paulo: Cultrix, 1974. 89. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010. 90. TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do Outro. Trad. Beatriz Perrone Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 1988. 91. TREECE, David H. ―O Indianismo épico e a crise do projeto colonizador‖. Introdução crítica À Muhuraida. Manaus: Biblioteca Nacional / UFAM/ Governo do Estado do Amazonas, 1993. 92. VALLE, Camila do. ―Literatura da Amazônia - dificuldades do surgimento e classificação de um campo.‖ Plural Pluriel, v. 1, p. 1, 2012. 93. WILKENS, Henrique João. Muraida. Manaus: Ed. Valer, 2012. 94. ______. Muhuraida ou Triunfo da Fé. Manaus: Biblioteca Nacional / UFAM/ Governo do Estado do Amazonas, 1993. 95. WOLF, Thomas. ―Quem é bárbaro?‖ In: Novaes (org.) Civilização e Barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p.19-43 96. www. noamazonaseassim.com.br/tudo-sobre-os-povos-indigenas-mura/ (último acesso em 12-10-2013)