VAI NA FRENTE QUE TU É PEARA1 – ESTRATÉGIAS DO MOVIMENTO DOS(AS) PROFESSORES(AS) INDÍGENAS MURA, DA REGIÃO DE AUTAZES/AM, PARA QUEBRAR AS ARMADILHAS DA ESCOLA Ana Alcídia de Araújo Moraes [email protected] Elciclei Faria dos Santos [email protected] Luciana Gomes Vieira Santos [email protected] Marinez França [email protected] Introdução O presente estudo é resultante da releitura de diferentes materiais, coletados e acumulados ao longo de nossa trajetória (desde 2002) como grupo de pesquisa2, atuando junto aos professores(as) Mura. O conjunto de materiais usados nessa investigação compõe-se de: Relatórios dos seis (06) Fóruns de Formação Continuada, atividades estas realizadas no contexto de duas pesquisas financiadas pelo CNPq3 e pela FAPEAM4; Relatórios de Fóruns5 realizados na vigência do Projeto Prolind (Elaboração de Curso de Licenciatura Específica para Formação de Professores Indígenas Mura) e a Proposta do Curso; além de depoimentos gravados e recolhidos em diferentes momentos do processo de pesquisa e de atividades de formação desenvolvidas com esse povo. Povo Mura – habitante de Autazes/AM A região dos lagos de Autazes é considerada por alguns autores como o centro de dispersão dos Mura. Em 1975, segundo dados da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), eles somavam 91 indivíduos, 50 homens e 41 mulheres, que se empenhavam para reverter o processo de negação étnica que se instalou devido a tanto sofrimento com preconceito e discriminação. Pois apesar da forte presença Mura no município de Autazes, os não-índios pouco conhecem esse povo e, não raro, demonstram discriminação e preconceito. Assim, lamentavelmente, o preconceito da população local a respeito da cultura e do jeito de viver Mura permeia as relações que entre eles se estabelecem. De acordo com Weigel (2000), em sociedades como a brasileira: [...] grupos indígenas constroem sua identidade, aprendendo a projetar conteúdos simbólicos que manipulem a sua tradição cultural, buscando, por um lado, enfrentar novas situações e problemas, decorrentes de necessidades, exigências e novos desafios colocados pelo movimento histórico; e, de outro lado, o reconhecimento da sua identidade, por parte dos demais grupos e segmentos da sociedade nacional. (2000, p. 246) O empenho, por parte dos Mura, para reverter o processo de negação étnica tem apresentado resultados positivos, haja vista que, já em 1998, quando da realização de um mapeamento feito pela SEDUC/AM6, constatou-se uma população de 2579 pessoas. Atualmente, em relação aos indicadores passados, a população Mura apresenta alta taxa de crescimento. Em 2004, eram mais de 5978 índios, segundo dados da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), representando 20% da população do município. É possível afirmar que este aumento atual da população se deve, em grande parte, ao trabalho de conscientização desenvolvido pela escola indígena, que resulta na afirmação identitária da população Mura, em sua maioria habitante do município de Autazes7. Esse trabalho de conscientização indica-nos que, para esse povo indígena, a busca pela afirmação identitária implica em aperfeiçoar a escola enquanto espaço de luta, colocando esta instituição a serviço de projetos presentes e de futuro que concretizem o reconhecimento de sua identidade Mura. Povo Mura – o caminho percorrido Como parte desse processo de afirmação identitária os(as) professores(as) Mura, em 1991, começaram a participar dos Encontros Anuais do Movimento dos Professores Indígenas da Amazônia8, (por ocasião do IV Encontro). No interior desse movimento, os próprios Mura demarcam as origens das discussões visando a construção de uma política indígena de educação escolar: A partir da criação da OPIM e dos encontros da COPIAR e depois COPIAM, foi que se levantaram as questões de educação escolar indígena, não só no município de Autazes, mas para todo o estado do Amazonas, Roraima, Acre e depois para toda a Amazônia (Professor Mariomar, Relatório do VI Fórum, 2005, p. 64). [...] foi como começou essa idéia de [...] ter a nossa própria política educacional aqui no município de Autazes (Professor Hamilton, Relatório do IV Fórum, 2005, p. 61). Em 1992 nasceu a OPIM. [...]. A partir do COPIAM, abriu o leque para a criação da Educação diferenciada. Abriu o leque para todo o nosso conhecimento indígena para o estado do Amazonas. Foi o movimento que abriu o espaço para gente criar. Essa oportunidade de criar a organização e também participar de alguns debates que foi criada à educação diferenciada aqui pro município de Autazes (Professor Gilberto – Relatório do VI Fórum, 2005, p. 63). Os Encontros organizados pelo movimento dos(as) professores(as) indígenas, espaço este em que vem se discutindo temas envolvendo as especificidades das escolas indígenas em sua inter-relação com a vida e os projetos étnico-políticos dos povos indígenas, têm representado momentos muito fortes e significativos, dentro do processo mais amplo vivido por esses povos na construção de seu futuro, na busca de autonomia e no estabelecimento de novas relações com a sociedade envolvente, assim como no fortalecimento interno da solidariedade interétnica. As participações nesses Encontros parecem ter estimulado os(as) professores(as) Mura a arquitetar ações e projetos de formação e de vida com o 2 propósito de construir uma educação diferenciada, que atenda aos seus anseios, interesses e necessidades. Uma dessas iniciativas foi a busca pela formação dos(as) professores(as) que pode ser demarcada com o Projeto Mura-Peara – Curso Específico de Magistério, coordenado pela SEDUC/AM em parceria com a SEMEC/ Autazes. Em relação à continuidade de sua formação os Mura, através da Organização dos Professores Indígenas Mura (OPIM), encaminharam, ainda no período do Magistério, um documento à Coordenação Geral de Apoio às Escolas Indígenas/SEDUC-AM, solicitando apoio para realizar Encontros Pedagógicos de Professores Mura durante as etapas letivas intermediárias do Mura-Peara. Neste documento, é possível perceber um propósito claro de romper com um modelo de escola que lhes vinha sendo imposto: Quanto ao aspecto da educação, os Mura vêm perseguindo a idéia de romper com as determinações até então emanadas da Secretaria Municipal de Educação, que sempre os considerou professores rurais, igualmente suas escolas, estabelecendo calendário escolar, currículo rígido e conteúdos alheios à realidade cultural do povo. Buscam hoje um modelo de escola e de educação que atenda às suas necessidades e interesses, em virtude do grande preconceito e discriminação que sofrem por parte da população não-índia local, ao afirmarem que os grupos hoje remanescentes já não são mais índios. Este fato tem gerado grande interesse do povo Mura na construção de sua proposta curricular e, conseqüentemente, sua autonomia sócio-econômica, política e cultural (Projeto de Educação Mura-Peara, 1998, p.02). Ao solicitar o apoio para realizar Encontros Pedagógicos de Professores Mura, em diferentes aldeias da região, a OPIM apresentou o seguinte objetivo – “Propiciar aos professores indígenas Mura em formação, através da realização de encontros pedagógicos, condições para o desenvolvimento de uma educação diferenciada, específica, intercultural, bilíngüe e de qualidade que responda aos anseios do povo Mura” (Idem, p.02). As afirmações aí contidas já dão conta das claras convicções dos Mura em relação a que caminhos seguir – um processo de formação específica – para conseguir atingir com êxito as metas planejadas. Uma das etapas do percurso trilhado pelos Mura buscando construir uma educação que atenda suas necessidades e interesses foi a conclusão do Magistério Indígena. No entanto, embora seja reconhecida como uma vitória muito importante, esta pode ser demarcada como uma parte do caminho, pois desde que concluíram o Curso Mura Peara (iniciado em 1999 e concluído em 2003) os(as) 42 professores(as) Mura, articulados pela OPIM, têm buscado dar continuidade à sua formação. As mudanças, como resultantes desse processo de formação, são perceptíveis no depoimento do professor Mariomar, durante a realização do VI Fórum de Formação Continuada Mura, em 2005: 3 Então, a escola - junto com os professores - tem buscado incentivar a comunidade a estudar sua própria realidade. Porque antes, o planejamento vinha pronto e a gente não tinha o cuidado de pesquisar, de buscar conhecimentos. A gente só fazia transcrever o que estava escrito, só era pegar no livro e passar no quadro e o aluno copiava, era uma coisa do tipo mecânica: o aluno não pensava, o professor não pensava. Hoje não! O professor tem que pensar tem que pesquisar tem que morar na aldeia. Este é um ponto principal: morar na aldeia, conhecer sua própria realidade, pra então ajudar os alunos a caminhar. Porque o professor não é mais um ditador, ele é uma pessoa que acompanha o aluno. A gente quer que o nosso aluno seja um aluno crítico, que pensa, que conhece a sua realidade e também o conhecimento científico e de outros povos indígenas. Não conhecer só a história do Mura, mas conhecer dos Sateré, do Ticuna, de várias etnias que existem hoje no Brasil. Porque a gente não vai querer a nossa autonomia e se afastar do mundo; nós dependemos um do outro. Mas nós queremos autonomia para a gente decidir o que a gente quer, o que é melhor pra nossa comunidade, para as nossas crianças (Relatórios dos IV, V e VI Fóruns de Formação Continuada Mura, UFAM/OPIM/FAPEAM, Manaus/Autazes, 2004-2005, p. 64-65). Nessa fala, é possível perceber o que mudou em suas práticas pedagógicas e nas escolas Mura bem como o entendimento desse povo sobre a função da escola e, conseqüentemente, das necessidades para formar o(a) docente indígena que precisam para atuar em suas escolas. Para esse povo, a escola significa importante instrumento de reivindicação, que ajuda a fortalecer a luta pela terra, pela cultura, pela identidade étnica. Por essa razão buscam a continuidade da formação docente em nível superior. Esta busca foi viabilizada recentemente, em articulação com a UFAM, através do Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Indígenas – Prolind, financiado pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), através da Secretaria de Ensino Superior (SESu) e Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD). Os(as) professores(as) Mura entendem que com o acesso e a conclusão do ensino superior mais condições terão de aperfeiçoar a escola como um espaço de luta, colocando esta instituição a serviço do seu povo e de seus projetos de futuro. Queremos, no curso superior, dar continuidade à educação diferenciada estudada no Mura-Peara. Que os professores em formação no curso superior já possam assumir as salas de aula do Ensino Médio. Queremos o ensino superior para formar cidadãos Mura preparados para o dia a dia da aldeia, valorizando sua própria cultura e modo de vida, com bom relacionamento com todos. Queremos formar cidadãos Mura preparados para enfrentar o mundo moderno, que vive dos cursos e concursos. Imaginamos que o curso qualifique de forma crítica os alunos e professores, respeitando a 4 cultura, os costumes, as tradições e o modo de vida em cada aldeia (Escola Elcy de Almeida Prado). Percebemos que a força que motiva o movimento dos(as) professores(as) Mura pela continuidade de sua formação, não é uma preocupação somente com os(as) professores(as) que irão fazer a Licenciatura, mas dos que virão depois. Como disse o Prof. Alcilei: “Depois de nós formados, nós é que vamos formar nossos professores no Magistério”. Pensar projetos de formação de professores(as) em nível superior, assegurando também a implantação do ensino médio nas escolas indígenas das aldeias representa uma possibilidade de fixar os jovens nas aldeias: [...], pode-se dizer com segurança que é unânime a demanda dos povos indígenas consultados pela implantação de escolas de ensino médio nas aldeias ou nas terras indígenas. O argumento geral para esta reivindicação está na profunda desordem comunitária provocada pelo abandono massivo das aldeias por parte de jovens e, muitas vezes, suas famílias; e pela desordem pessoal advinda do extremo constrangimento em se estar exposto a um ambiente escolar que ignora e desqualifica a diferença indígena em suas várias formas de manifestação (língua, valores, o modo de se vestir etc) (PECHINCHA, TAUKANE e FERREIRA, 2005, p. 189). Tal perspectiva é confirmada pelos(as) professores(as) e comunidades Mura como se pode verificar nos seguintes depoimentos expressos durante um dos Fóruns nos Pólos, realizado em 2006, enquanto atividade do projeto Prolind: A implantação do Ensino Médio trará benefício para a formação dos parentes indígenas da seguinte forma: se o aluno tem seguido a filosofia de ensino da escola indígena até a 8ª série do ensino fundamental, estudando a nossa cultura, ou seja, o conhecimento indígena, com a implantação do Ensino Médio, essa filosofia será seguida até o final desse ensinamento (Aldeias Padre e Sampaio). Temos a expectativa de que se forme um cidadão Mura conhecedor da nossa cultura (conhecimento indígena). Que aplique tal conhecimento tanto de nossa cultura, como também o conhecimento de como lidar com a sociedade em geral. Conscientizar o povo Mura do que é ser povo Mura, para que o povo Mura tenha orgulho de ser Mura. Imaginamos parentes formados, mostrando para todos que estamos avançando na educação, ampliando o conhecimento de nosso povo. Porque, se temos parentes formados no ensino superior, mais chances temos de levar nossos filhos a alcançar também essa formação futuramente. Ou seja, um orgulho de termos um parente formando outro, conquistando cada vez mais nossos direitos (Aldeias Padre e Sampaio). 5 Vemos então que um dos projetos de futuro que perseguem – tendo como forte aliada a escola Mura - é reverter o processo de negação étnica que se instalou entre os Mura devido ao preconceito e a discriminação que historicamente sofreram. Isso pode ser apreendido a partir de pronunciamentos durante o I Fórum (2003) – segundo os(as) professores(as) este povo estava tão absorvido dentro da sociedade envolvente, que não queria mais ser Mura, não queria mais ser índio – “Os próprios parentes discriminam os próprios parentes”. Para mudar esse quadro há toda uma luta a ser travada, de conscientização, de sensibilização interna. Em relação a isso, algumas lideranças lamentam o fato de que em muitas comunidades a auto-estima tenha sido afetada, devido a história de contato que sofreram. Falam de “tradições que se perderam” ao longo do processo de colonização/ocidentalização, o que resultou em desgaste e descaracterização cultural. Percebe-se que quanto maior a proximidade e o contato com a sociedade envolvente, maiores são os conflitos quanto à questão das identidades étnicas. Neste sentido, uma das tônicas principais do movimento por uma escola Mura tem sido a afirmação, e mesmo a retomada/reelaboração de sua identidade étnica. Entendemos grupos étnicos dentro dos critérios hoje vigentes na antropologia social, enquanto formas de organização social em populações cujos membros se identificam e são identificados como tais pelos outros, constituindo uma categoria distinta de outras categorias da mesma ordem (BARTH, 1976). Segundo Oliveira (1976), grupos étnicos se definem a partir da situação de contato, envolvendo relações sociais que geram mútua dependência, mas se caracterizam igualmente por profundas divergências e conflitos. Tais relações provocam reorganizações e redefinições dos grupos/culturas em contato, de modo a se situarem consistente e diferenciadamente um frente ao outro. Nas palavras de Carneiro da Cunha (1995), “as ‘culturas’ constituem para a humanidade um patrimônio de diversidade, no sentido de apresentarem soluções de organização do pensamento e de exploração de um meio que é ao mesmo tempo social e natural. (...) As culturas são entidades vivas, em fluxo” (p.140). A escola Mura, enquanto espaço aberto, com possível conteúdo novo, tem sido vista pelos(as) professores(as) como instrumento que pode colaborar na afirmação cultural e na superação de preconceitos. A idéia do que é ser “índio”, historicamente estigmatizada, pode ser revista e alterada, passando então a representar um valor. Uma das estratégias política escolhida pelos(as) professores(as) Mura vem sendo a busca por se fazerem conhecer, procurando respaldo no Município e no Estado, através do reconhecimento local e oficial, que resulta em conquista de respeitabilidade interna e frente à sociedade envolvente. Um significativo exemplo nesse sentido é a criação de um setor específico para as questões das escolas Mura, na estrutura da SEMEC/Autazes. Neste setor – o Setor de Educação Escolar Mura (SEEM) – o quadro técnico é composto por professores(as) indígenas. O SEEM foi criado em 1999 e objetiva o acompanhamento pedagógico das escolas Mura e o atendimento específico aos professores e aldeias indígenas, bem como o fortalecimento da OPIM como órgão representativo e reivindicativo - junto às esferas federal, estadual e municipal - dos interesses educacionais dos(as) professores(as) 6 e comunidades indígenas Mura da região de Autazes. Este Setor responsabiliza-se pelos projetos de formação dos(as) professores(as) Mura. Outro dado que pode demonstrar essa força estratégica pode ser ilustrado com a ocupação do cargo de presidente do Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena do Amazonas, por professores(as) Mura. Este Conselho, criado em 1998, já teve quatro presidentes, um não-índio e três indígenas, sendo dois do povo Mura, ambos integrantes da OPIM. Uma das conquistas mais recentes desse povo foi a eleição do Coordenador do SEEM, o Professor Alcilei Vale Neto, para presidência do Conselho Municipal de Educação de Autazes. Uma outra foi a contratação de 36 professores(as) indígenas através de concurso público, com garantia de vagas específicas para as escolas Mura. Essa configuração política dos Mura no município de Autazes, suas lutas para fortalecer e dar cada vez maior consistência à sua perspectiva de escola – incluindo os variados aspectos fundamentais para garantir uma efetiva política pública que respeite seus interesses e necessidades – é, de fato, uma conquista bastante significativa que vem computando, ao longo dos últimos anos, avanços inquestionáveis rumo ao propósito de romper com situações que caracterizavam suas escolas como escolas de não-índios. Até pouco tempo as escolas localizadas nas áreas indígenas no município de Autazes eram consideradas e caracterizadas como escolas rurais, seguiam rigorosamente as mesmas orientações estabelecidas pelo sistema estadual e municipal de ensino e eram administradas, em sua maioria, por professores não-indígenas. O quadro de professores era então formado por professores indígenas e não-indígenas leigos, indicados e nomeados pelo prefeito municipal para atuarem nas escolas. Mesmo atuando em suas próprias escolas, vivenciando seu universo cultural, os professores Mura eram considerados incapazes de desenvolverem um processo de educação eficiente e de qualidade. Os professores indígenas não eram reconhecidos pela Secretaria Municipal de Educação como categoria específica e, por não possuírem a menor qualificação, tinham que aplicar obrigatoriamente a metodologia utilizada pelas escolas do estado, com conteúdos programáticos preestabelecidos, alheios, por não contemplar em nenhuma situação a realidade vivida pelos alunos em suas aldeias (Projeto Político-Pedagógico da Escola Indígena Mura, 2003, p.10). Gradativamente fomos aprendendo a atuar com autonomia e a conquistar o espaço que nos cabia na sociedade majoritária e, principalmente, em nossas próprias escolas, invertendo o quadro de outrora, quando a maioria dos professores que ocupava as escolas era de professores não-índios (idem, p.13) No percurso trilhado pelo povo Mura é possível afirmar que o movimento dos(as) professores(as) Mura nasceu como uma “resposta” a uma necessidade 7 objetiva e a um descontentamento com a situação real da educação escolar e vem sendo movido pelos ideais de implantar, em seu território, uma escola verdadeiramente sua. Alimenta-se da esperança de ver concretizada a construção dessa escola através da atuação de cada um, individualmente, e do coletivo. Poderíamos dizer que a força maior que impulsiona esse movimento é visualizar, planejar e seguir construindo: O projeto de vida para nossa população. Então se construiu, tudo isso que a gente tá vendo aqui se construir, a partir do Encontro COPIAR, depois a OPIM, depois o curso de formação e hoje o Fórum junto com a UFAM. Então, está sendo construído, ainda não terminou, ainda não fechou e vai ser sempre modificando, o que for bom pra nós (Profº Mariomar, Coordenador da OPIM, Relatório FAPEAM, VI Fórum de Formação continuada, 2005, p. 65). Nesse percurso, os(as) professores(as) Mura vão construindo possibilidades através de escolhas que lhes permitam resgatar o respeito étnico tanto por parte dos não-índios como dos demais povos indígenas. Desse modo, vêm estabelecendo metas de forma a concretizar um patamar de apreensão identitária lingüística, escolhendo o Nheengatu como segunda língua, já que hoje o português é língua falada pelos Mura. O povo Mura do município de Autazes, semelhante aos demais espalhados pelo Amazonas, há pelo menos dois séculos sofreu um processo de proibição da língua de origem – a língua Mura. Tal proibição trouxe como conseqüência não só a extinção da língua falada como também uma certa perda cultural já que sua cultura mantinha-se viva, em grande parte, pelo exercício da oralidade. A extinção da língua Mura desencadeou um processo de discriminação e exclusão dessa cultura, também do mundo indígena, que vigora por vezes, até na atualidade, pois de acordo com uma certa perspectiva, ignora-se a identidade indígena se o povo não é mais detentor de sua língua original. Mesmo que outrora, a língua Nheengatu tenha sido utilizada como instrumento de dominação, hoje os(as) professores(as) Mura a projetam como possível instrumento de emancipação. Prova disso é a decisão de incluí-la como um dos conteúdos programáticos da Licenciatura Mura. Tal decisão nasce desse propósito político de revitalização e fortalecimento da identidade indígena Mura e de dar continuidade à formação específica e diferenciada iniciada no curso de Magistério Indígena Mura-Peara. Os(as) professores(as), porém, têm consciência de que falar ou estudar uma língua indígena não os faz “mais” ou “menos” Mura e que a língua portuguesa é hoje a sua língua materna. Entretanto, entendem que o Nheengatu poderá servir futuramente como forma de defesa e valorização de sua identidade junto a outros povos e frente à sociedade envolvente. Vai na frente que tu é Peara – a guisa de conclusão Na ótica Mura, o(a) professor(a) precisa ser participante de um projeto que vá além da própria educação. Para isso, deve necessariamente, envolver-se com 8 questões fundamentais como a defesa e garantia das terras indígenas e a construção de alternativas de subsistência (auto-sustentação). Conseqüentemente, a escola tanto sistematiza o conhecimento – o que é próprio, o que é novo e de outras culturas – como também tem que se posicionar frente à resolução e ao enfrentamento de problemas. Em relação a isso os professores citam como exemplo o pedido de ampliação do território, resultante de uma atividade escolar. Isso mostra que a escola assume, juntamente com a comunidade, responsabilidades com outras questões que entre os não-índios não seria entendida como competência da mesma. Atualmente, no município de Autazes existe um total de dez (10) escolas indígenas Mura, todas com professores(as) Mura, com formação específica de nível médio. Estes assumem tanto o trabalho de sala de aula como a gestão das escolas. Além disso, dados fornecidos por um diagnóstico realizado em 2006, como uma das atividades do Prolind, foram identificadas nas 15 comunidades Mura de Autazes, 3442 pessoas com mais de 5 anos de idade. Destas, 1752 (51%) freqüentavam escola, distribuindo-se nas oito séries do ensino fundamental (413 na 1ª série, 243 na 2ª série, 260 na 3ª série, 229 na 4ª série, 211 na 5ª série, 157 na 6ª série, 76 na 7ª série e 119 na 8ª série), além de 44 no SESI e EJA. Quando se considera apenas a faixa etária de 6 a 14 anos, verifica-se que 95% das crianças dessa faixa freqüentavam a escola. Este percentual atinge 97,6% quando se considera apenas a faixa etária de 7 a 14 anos. Pode-se concluir que nas comunidades Mura de Autazes o atendimento escolar desta faixa etária encontra-se universalizado. Entretanto, quando se considera a faixa etária de 11 a 14 anos, clientela potencial da 2ª etapa do ensino fundamental, verifica-se que 68% das crianças dessa faixa ainda freqüentavam a 1ª etapa. Quanto à população escolarizada de 15 a 18 anos (68,3% do total) esta aparece mais concentrada nas quatro últimas séries do ensino fundamental, onde se nota ainda forte presença de indivíduos com idade entre 19 e 24 anos. Conhecer um pouco da história dos Mura, de sua realidade, através de nossa experiência9 de trabalho, especialmente com os professores e as professoras, nos permite compreender que apesar de todo um contexto de violência e invasão cultural ao qual esse povo foi exposto, um processo de resistência e oposição vem sendo desenvolvido e protagonizado por eles. Nesta luta, a escola vem sendo incluída enquanto um espaço próprio Mura, articulada com seus projetos de vida. No que temos podido compreender, a perspectiva de escola que os Mura têm acreditado e se empenhado em conquistar, é um exemplo concreto, real e atual de inovação. Segundo Batala (1989), “através da inovação, um grupo étnico cria novos elementos culturais próprios, que em primeira instância passam a formar parte de sua cultura autônoma” (p.20). Os processos vivenciados em cada escola representam pequenas grandes mudanças construídas cotidianamente. Para enxergá-las e interpretá-las com toda sua força e significação é preciso ter atenção e sensibilidade, pois como nos alerta Batala: 9 [...] as inovações culturais são, por uma parte, mais freqüentes do que comumente se pensa: há muito novo em baixo do sol. Sobretudo, se não se pensa somente nas grandes invenções capazes de marcar por si mesmas um momento da história, se não se repara também, e sobretudo, nas mudanças cotidianas aparentemente insignificantes (1989, p.21). A partir desse estudo é possível afirmar que as estratégias implementadas pelo movimento dos professores indígenas Mura, da região de Autazes/AM, vêm conseguindo romper com algumas das armadilhas com que se defrontam para construir um projeto de escola próprio. Esse embate vem sendo vencido pela força do coletivo, a importância de um controle social levado a sério, a clareza política sobre o que querem e sobre o que não querem, a não capitulação diante das dificuldades, o compromisso social que os ajuda a “administrar” as diferenças entre eles e também em relação aos outros (indígenas e não-indígenas, nos quais nos incluímos), a crença, e mais do que isso, a vivência de uma educação escolar que só tem sentido se tomada como experiência de emancipação. Nesse processo de construção de uma política indígena para as escolas Mura, ou, de “indianização da instituição escolar”, um componente relevante e definidor desta outra/nova perspectiva é o próprio movimento dos(as) professores(as) Mura, assim descrito pelo professor Mariomar: E a OPIM foi uma organização que foi buscar informação para professores indígenas, a partir de Encontro da COPIAM. A OPIM está com 13 anos de existência, já iniciou com 06 professores em 1992, se não me engano. Então, hoje nós estamos num total de 42 professores fazendo parte da organização. Só professores indígenas, a gente não coloca professores não-índios. E essa organização [...] tem buscado formação junto à SEDUC, ao estado, parceira junto com a SEMEC para reivindicar novos direitos à educação [...] (Coordenador da OPIM, Relatório do VI fórum de Formação Continuada, 2005, p. 64). É um movimento liderado por um grupo, com respaldo do coletivo, que vem potencializando ações e articulando experiências buscando construir uma nova política educacional indígena, com autonomia, protagonismo a partir de princípios e metas elaborados pelo povo. Esse caminho de aprendizagem é descrito por Wilmar R. D’Angelis neste poema10 oferecido “Aos amigos Alcilei e Mariomar e Aos mestres Alderico e Elci: Salve os Mura, com suas canoas cheias de peixes e tracajás que o saber sistematizado dos brancos desconhece. É claro, qualquer biólogo classifica espécies e variedades, mas falo dos sabores e dos saberes que só o povo Mura detém e que eles mesmos ainda estão aprendendo a descobrir. 10 REFERÊNCIAS AMAZONAS. CONSELHO DOS PROFESSORES INDÍGENAS DA AMAZÔNIA. Relatórios dos Encontros Anuais. Manaus: COPIAM,1988 a 1999 (textos digitados). AMAZONAS. SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO E QUALIDADE DO ENSINO. Mapeamento antropológico - Relatório Interno. Manaus: SEDUC, 1998. BARTH, Frederik. Los grupos étnicos y sus fronteiras - la organización social de las diferencias culturales. México: Fondo de Cultura Econômica, 1976. BATALA, Guilhermo Bonfil. La teoria del control cultural en estudio de processos étnico. In Arinsana, nº 10, Caracas, 1989. CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. O futuro da questão indígena In LOPES DA SILVA, Aracy e GRUPIONI, Luís Donisete. A temática indígena na escola - novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC/MARI/UNESCO, 1995. OLIVEIRA, Roberto Cardoso. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Pioneiras, 1976. OPIM. Projeto de Educação Mura-Peara. Documento da OPIM endereçado à Coordenação Geral de Apoio às Escolas Indígenas/SEDUC-AM, solicitando a realização de Encontros Pedagógicos de Professores Mura durante as etapas letivas intermediárias do Mura-Peara, 1998. OPIM. Projeto Político-Pedagógico da Escola Indígena Mura, 2003. OPIM. Projeto de Educação Mura-Peara, 1998. UFAM/OPIM/FAPEAM. Relatórios dos IV, V e VI Fóruns de Formação Continuada Mura. Manaus/Autazes-AM, 2004-2005, p. 64-65). UFAM/PROLIND. Relatório do Projeto de Curso de Licenciatura Específica de Professores Indígenas Mura, 2007. WEIGEL, Valéria Augusta Cerqueira de M. Escolas de branco em malokas de índio. Manaus: EDUA, 2000. 1 Uma espécie de porco existente na região amazônica – os caititus. Estes têm uma maneira própria de se organizar. São muitos, mas andam sempre juntos e, de tal modo organizados, que não se desviam nem para um lado e nem para o outro, porque tem o Peara, que quer dizer líder. O caçador, já sabendo disso, mata primeiramente o Peara. O grupo fica momentaneamente desgovernado, mas logo escolhe outro líder para reorientar e dar continuidade à caminhada. A idéia adotada pelos(as) professores(as) Mura reafirma a necessidade de ter sempre uma liderança para conduzir o processo educacional – “Tem que haver uma referência e a essa referência é sempre verbalizado: Vai na frente, porque tu és Peara!”. 2 Grupo que faz parte da Linha de Pesquisa “Formação e práxis do educador(a) frente aos desafios amazônicos”, do PPGE/FACED/UFAM e é composto atualmente pelos professores(as) Dra. Lucíola Inês Pessoa Cavalcante, Dra. Ana Alcidia de Araújo Moraes, Dra. Rosa Helena Dias da Silva, Dr. José Silverio Baia Horta, Msc. Valeria Amed das Chagas Costa, Msc. Elciclei Faria dos Santos, Msc. Romy Guimarães Cabral, Msc. Marinez França; pelos mestrandos(as) Rita Floramar S. Melo, Cláudio Gomes da Victória, Isabel Cristina Ferreira Aranha, Willas Dias da Costa e Luciana G. Vieira Santos e a aluna de Iniciação Científica Fabiana Freitas Pinto. 3 “Formação de Professores(as) no contexto amazônico” (2002-2004), que contou com a consultoria do Prof. Dr. Wilmar D’Angelis, da UNICAMP. Financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 4 “Os professores Mura e a construção de uma política indígena de educação escolar: princípios, processos e práticas”. (20042005), financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado do Amazonas (FAPEAM), no contexto do Programa Jovem Cientista Amazônida. 5 I e II Fóruns dos Pólos – Aldeias Trincheira, São Félix e Murutinga e I e II Fóruns de Política Lingüística, que contaram com a consultoria do Prof. Dr. Wilmar D’Angelis, da UNICAMP. 6 Mapeamento da Realidade Lingüística e Antropológica do Povo Mura realizado pela Secretaria de Estado da Educação e Qualidade do Ensino (SEDUC/AM), na região de Autazes, em 1998 7 Em 2006, no contexto da realização do projeto Prolind, de elaboração de Licenciatura Específica para Formação de Professores Mura, foram recenseados, pelos próprios Professores(as) Mura, mais de 4000 índios, morando nas aldeias. 8 Os professores indígenas da Amazônia, desde 1988, organizados pela Comissão dos Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre (COPIAR), reúnem-se para socializar suas experiências, elaborar princípios e propor alternativas frente à realidade das escolas indígenas e da necessidade de uma política indígena de educação escolar. Desse modo, de 1988 a 1999 realizaram 12 Encontros Anuais. Em 2000, a COPIAR se transforma em Conselho dos Professores Indígenas da Amazônia (COPIAM). 9 Experiências de pesquisa e formação, com os professores Mura. 10 A última invasão dos Mura à cidade de Manaus no ano do Senhor de 2006, Manaus, 14 dez 2006. 11